A inclusão social das pessoas com deficiência pela reserva de vagas nos concursos públicos

1. Introdução

Aproximadamente 25 milhões de pessoas que vivem no Brasil têm algum tipo de deficiência – física, mental, auditiva, visual ou motora –, de acordo com o último censo demográfico, realizado em 2000 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O número corresponde a 14,5% da população brasileira. Apesar de constituírem um significativo contingente populacional, entretanto, as pessoas com deficiência[1] ainda são excluídas do meio social. Em sua fala no painel Dignidade da Pessoa Humana, Direitos Fundamentais e Exclusão, durante o IX Congresso Ibero-Americano de Direito Constitucional, realizado em Curitiba (PR) entre os dias 11 e 15 de novembro de 2006, Luiz Alberto David Araújo, assinalou:

“No Brasil, nós temos 15% de pessoas portadoras de deficiência. (…) Esse índice de 15% não reflete, na verdade, o padrão de inclusão. Se nós imaginarmos que dentro desses 15% eu tenho que reduzir um grupo de deficiência mental profunda, eu deveria imaginar que em toda a atividade brasileira eu deveria ter, pelo menos, 12% ou 10% de pessoas portadoras de deficiência. Mas nós não encontramos 10% de pessoas portadoras de deficiência aqui, nas escolas, no cinema, no teatro, na praça, na praia, no barzinho, no trabalho. Então em algum lugar essas pessoas estão. (…) Certamente, elas não estão incluídas socialmente.”

Cabe aqui uma reflexão provocadora, que talvez ajude a explicar a questão da exclusão. Imagine que você, leitor destas linhas, é o proprietário de uma empresa e tem de contratar um secretário. Todos os presentes ao processo seletivo apresentam o mesmo nível de escolaridade. Um deles tem uma deficiência mental que não o incapacita ao trabalho, mas o faz notavelmente diferente. Diante de diversos outros profissionais para o cargo, todos sorridentes e dentro dos padrões “normais”, você não excluiria o que tem a deficiência? Talvez com uma desculpa de que ele “não se encaixa no perfil da empresa”? Se você respondeu honestamente que não, que não levaria em conta a deficiência como “ponto negativo” ao analisar o candidato, saiba que, infelizmente, faz parte de uma minoria. Conforme explica José Pastore:

“As relações humanas costumam ser formadas, em grande parte, pela primeira impressão. E, nesse caso, chamam mais atenção os atributos (as deformidades) do que os portadores desses atributos (seres humanos). Em outras palavras, as deformidades vêm antes das pessoas. A partir daí, compõe-se uma visão desumana e estereotipada das pessoas. O grave é quando a repulsa individual se transforma em repulsa social. Isso tende a empurrar o portador de deficiências para o isolamento.” [2]

Se a sociedade, por si só, não inclui naturalmente as pessoas com deficiência, cabe à lei promover essa inclusão. Já escrevia Maquiavel no século 15 que “onde uma coisa obra bem sem leis, por si mesma, a lei não é necessária; mas quando falta esse bom hábito, a lei torna-se necessária logo.” [3]

Assim, na esteira de idéias como as contidas na Declaração dos Direitos das Pessoas Portadoras de Deficiência[4], aprovada em 1975 pela Organização das Nações Unidas, e na Convenção n.º 159[5] da Organização Internacional do Trabalho, de 1983, a Constituição Federal de 1988 foi especialmente concebida de maneira a salvaguardar essa e outras minorias e trazê-las ao seio da sociedade. Nas palavras de Gláucia Gomes Vergara Lopes, “é indiscutível que a Constituição Federal, promulgada em 5 de outubro de 1988, foi um marco para os direitos sociais no Brasil, entre eles, a proteção daqueles considerados em posição desvantajosa quer por questões raciais, socioeconômicas ou por portar algum tipo de deficiência (grifo nosso).[6]

É fato que constituições anteriores já haviam tratado do tema da pessoa com deficiência, entretanto, como afirma Ricardo Tadeu Marques da Fonseca, em seu artigo O Trabalho Protegido do Portador de Deficiência, “(…) a Constituição de 1988 rompeu com o modelo assistencialista, até então operante, pois embora já houvesse ratificado a Convenção 159 da OIT, nossa Nação ainda não implementara qualquer arcabouço jurídico hábil a integrar o portador de deficiência.[7]

E a inclusão efetiva das pessoas com deficiência na sociedade passa necessariamente pela escola e pelo trabalho, fazendo com que elas conquistem a cidadania plena, transformando-se em “sujeitos do próprio destino, não mais meros beneficiários de políticas de assistência social.” [8] Fixar-me-ei, na seqüência, no segundo aspecto: o acesso da pessoa com deficiência ao trabalho. Buscando um aprofundamento ainda maior, em razão dos limites deste artigo, analisarei a questão da reserva de vagas às pessoas com deficiência nos quadros do serviço público. Passo, pois, a essa análise.

2. A reserva de cargos e empregos públicos às pessoas com deficiência

Sempre polêmicas, sobretudo entre aqueles que não estudam a fundo a questão, as políticas afirmativas são o instrumento legal para a inclusão minorias. “O direito de ir e vir, de trabalhar e de estudar é a mola mestra da inclusão de qualquer cidadão e, para que se concretize em face das pessoas com deficiência, há que se exigir do Estado a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, por meio de políticas públicas compensatórias e eficazes (grifo nosso).” [9]

“Aliás, cumpre aqui abrir um parêntese para lembrar que discriminações legais são instrumentos normativos fundamentais para conferir eficácia plena e real ao princípio da igualdade. Nesse sentido é por demais conhecida, e sempre moderna, a lição do mestre Rui Barbosa, sobre a necessidade de ‘tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na medida em que eles se desigualam’”. [10]

Solidificado o entendimento acerca da necessidade dessas discriminações legais, passemos àquela instituída pela legislação vigente no Brasil no tocante ao acesso ao serviço público das pessoas com deficiência. A preocupação não é recente. Já em 1943, o Decreto-Lei nº 5895 de 20/10/1943 autorizava o aproveitamento de indivíduos de capacidade reduzida no serviço público. Quase meio século depois, o inciso VIII do artigo 37 da Constituição de 1998 veio solidificar que “a lei reservará percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência e definirá os critérios de sua admissão.” De acordo com Maria Sylvia Zanella di Pietro, “o dispositivo não é auto-aplicável, cabendo aos interessados adotar as medidas judiciais cabíveis em caso de omissão do Poder Público na promulgação da lei.” [11]

Vem então a lei 7.853, de 24 de outubro de 1989, dispondo, entre outras coisas, sobre o apoio às pessoas portadoras de deficiência e sua integração social. A alínea “d” do inciso III do artigo 2.º da referida lei orienta os órgãos e entidades da administração direta e indireta a viabilizarem “a adoção de legislação específica que discipline a reserva de mercado de trabalho, em favor das pessoas portadoras de deficiência, nas entidades da Administração Pública (grifo nosso) e do setor privado (…).” Como se observa, não houve reserva percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas com deficiência por parte da lei, como orienta a Carta Magna. Mas o percentual foi fixado no ano seguinte, conforme se verá a seguir.

Uma vez que o acesso aos cargos e empregos públicos, conforme a Carta Magna[12], via de regra, dá-se por concursos públicos, foi em relação a esses que o legislador estabeleceu cotas para as pessoas com deficiência, na lei 8.112, de 11 de dezembro de 1990, que dispõe sobre o regime jurídico dos servidores públicos civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais. Diz o § 2.º do artigo 5.º da supracitada lei: “Às pessoas portadoras de deficiência é assegurado o direito de se inscrever em concurso público para provimento de cargo cujas atribuições sejam compatíveis com a deficiência de que são portadoras; para tais pessoas serão reservadas até 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas no concurso.” Note-se, entretanto, que não havia até o momento um mínimo legal de vagas para as pessoas com deficiência, o que abria uma brecha inclusive para a não reserva de vagas.

Eis que, em 20 de dezembro de 1999, é editado o Decreto 3.298, regulamentado a lei 7.853, de 1989, e estabelecendo esse mínimo percentual. Informa o artigo 37 daquele decreto:

“Fica assegurado à pessoa portadora de deficiência o direito de se inscrever em concurso público, em igualdade de condições com os demais candidatos, para provimento de cargo cujas atribuições sejam compatíveis com a deficiência de que é portador.

§ 1.º O candidato portador de deficiência, em razão da necessária igualdade de condições, concorrerá a todas as vagas, sendo reservado no mínimo o percentual de cinco por cento em face da classificação obtida.

§ 2.º Caso a aplicação do percentual de que trata o parágrafo anterior resulte em número fracionado, este deverá ser elevado até o primeiro número inteiro subseqüente.”

Com isso, ficou estabelecido, por fim, que devem ser reservadas entre 5% e 20% das vagas nos concursos públicos às pessoas com deficiência. “Grande avanço se obteve, ao se fixar o percentual mínimo de 5%. A maioria das leis estaduais e municipais falava em até 5%, o que possibilitava a fixação de percentuais irrisórios.[13]

Pode-se pensar que, com tal amparo legal, a pessoa com deficiência esteja sendo, finalmente, incluída nos quadros de servidores públicos. De fato, esse processo está ocorrendo, mas há arestas a serem aparadas. À guisa de exemplo, há casos em trâmite no Judiciário de pessoas com deficiência que foram consideradas inaptas à função no exame médico admissional quando, de acordo com art. 43, § 2.º , do Decreto Federal 3298/99, “a equipe multiprofissional avaliará a compatibilidade entre as atribuições do cargo e a deficiência do candidato durante o estágio probatório”[14].

Por fim, cabe a reflexão de que não bastam boas leis para que a inclusão das pessoas com deficiência seja efetiva. É preciso haver um esforço coletivo, tanto da sociedade quanto do Estado. Afinal, como escreveu o jurista e poeta português Antônio Ferreira, ainda no século 16, “boas são as leis: melhor o uso bom delas”.

 

Notas:
[1] O uso do termo “pessoa com deficiência” ao invés do constitucional “portadora de deficiência” está em consonância com o entendimento moderno, segundo o Professor Romeu Kazumi Sassaki – ver www.mj.gov.br/sedh/ct/corde/dpdh/sicorde/Como%20chamar%20as%20pessoas%20que%20têm%20deficiência.doc.
[2] PASTORE, José. Oportunidades de trabalho para portadores de deficiência. São Paulo: LTr, 2000.
[3] Rónai, Paulo. Dicionário Universal Nova Fronteira de Citações. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
[4] “As pessoas portadoras de deficiência têm o direito inerente de respeito por sua dignidade humana. Qualquer que seja a origem, natureza e gravidade de suas deficiências, os seus portadores têm os mesmos direitos fundamentais que seus concidadãos da mesma idade, o que implica, antes de tudo, o direito de desfrutar uma vida decente, tão normal e plena quanto possível” (art. 32). “As pessoas portadoras de deficiência têm o direito de ter as suas necessidades especiais levadas em consideração em todos os estágios de planejamento econômico e social” (art. 8). Ambos da Declaração dos Direitos das Pessoas Portadoras de Deficiência, da ONU.
[5] A Convenção 159 da OIT, de 1983, trata do trabalho, reabilitação e emprego de pessoas com deficiência.
[6] LOPES, Gláucia Gomes Vergara. A Inserção do Portador de Deficiência no Mercado de Trabalho – A Efetividade das Leis Brasileiras. São Paulo: LTr, 2005.
[7] FONSECA, Ricardo Tadeu Marques da. Revista de Direitos Difusos n.º 4 – “Proteção Jurídica dos Portadores de Deficiência”. São Paulo, IBAP – Instituto Brasileiro de Advocacia Pública & Editora Esplanada ADCOAS, Dezembro de 2000.
[8] FONSECA, Ricardo Tadeu Marques da. A sociedade inclusiva e a cidadania das pessoas com deficiência.
[9] Ibidem.
[10] DIAS, Luiz Cláudio Portinho Dias. Temas Atuais de Direito do Trabalho e Direito Processual do Trabalho – Coord. por Guilherme José Purvin de Figueiredo. São Paulo, IBAP – Instituto Brasileiro de Advocacia Pública & Editora Esplanada ADCOAS, Junho de 2001.
[11] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Adminisrativo. 14.ª edição. São Paulo: Atlas, 2002.
[12] Informa o inciso II do artigo 37 da Constituição Federal de 1988 que “a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração.”
[13] Idem à referência de n.º 6.
[14] Sobre o tema, cabe a referência a um julgamento de apelação em mandato de segurança (processo 2001.71.00.015680-0), em que o Tribunal Regional Federal da 4.ª Região adianta na ementa que é “inviável a eliminação de candidata aprovada em concurso público para vaga reservada à pessoa portadora deficiência, sob alegação de que a deficiência impede o exercício das atividades do cargo. O Decreto 3298 que regulamentou a Lei nº 7853 estabelece que a verificação da capacidade para o desempenho da função ocorre no estágio probatório.”

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Vinícius André Dias

 

Jornalista e Acadêmico de Direito das Faculdades Integradas Curitiba

 


 

Equipe Âmbito Jurídico

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