Aspectos polêmicos do cotejo analítico exigido no Recurso Especial com fundamento no artigo 105, III, “c”, da Constituição Federal

Sumário: 1. Introdução. 2. Recurso “Especial”. 3. Cotejo Analítico. 4. Conclusões.


1. Introdução


O Superior Tribunal de Justiça – STJ foi criado pela Constituição Federal de 1988 como o guardião das Leis Federais, tendo como principal objetivo uniformizar a jurisprudência dos Tribunais Estaduais e do Distrito Federal e Tribunais Regionais Federais em razão da proliferação, por todo o país, de decisões diametralmente divergentes sobre o mesmo assunto.


Eis que surgiu, então, o chamado recurso especial, previsto no artigo 105, III, da Carta Magna, como uma espécie de impugnação de decisão judicial, cujo escopo é garantir a proteção, aplicação e interpretação das Leis Federais de modo uniforme. Em suma, esse recurso é comumente interposto com base em duas alíneas do referido diploma legal, quando (i) a) contrariar tratado ou lei federal, ou negar-lhes vigência; (ii) c) der a lei federal interpretação divergente da que lhe haja atribuído outro tribunal.


Percebe-se, portanto, que o recurso especial pode ser interposto não só quando há flagrante desrespeito a tratado ou lei federal, como também em situações em que a decisão recorrida for divergente ou conflitante com o resultado de outro julgado proferido, em única ou última instância, pelos Tribunais Estaduais ou pelos Tribunais Regionais Federais.


A ideia deste artigo surgiu a partir da análise de diversos precedentes do STJ sobre a modalidade de interposição de recurso especial com base na alínea “c”, do artigo 105, III, da Constituição Federal, que envolve a necessidade de comprovação de divergência jurisprudencial.


2. Recurso “Especial”


Essa modalidade recursal não é chamada de especial em vão. Um dos requisitos de admissibilidade do recurso especial que prova essa particularidade é exatamente a vedação do reexame de provas ou elementos fáticos no STJ (verbete n. 7 da Súmula do Superior Tribunal de Justiça). Por essa razão, inclusive, é que os Tribunais Superiores não podem ser classificados como uma terceira instância e sim, devem ser considerados, como uma instância especial ou extraordinária.


Nesta esteira, Rodolfo de Camargo Mancuso destaca que “um dos motivos por que se têm os recursos extraordinário e especial como pertencentes à classe dos excepcionais reside em que o espectro de sua cognição não é amplo, ilimitado, como nos recursos comuns (máxime a apelação), mas, ao invés, é restrito aos lindes da matéria jurídica. Assim, eles não se prestam para o reexame da matéria de fato, presumindo-se ter esta sido dirimida pelas instâncias ordinárias, quando procederam à subsunção do fato à norma de regência. Se ainda nesse ponto fossem cabíveis o extraordinário e o especial, teríamos o STF e o STJ convertidos em novas instâncias ordinárias, e teríamos despojado aqueles recursos de sua característica de excepcionalidade, vocacionados que são à preservação do império do direito federal, constitucional ou comum.” (in Recurso Extraordinário e Recurso Especial. 11ª ed., São Paulo: Ed. RT, 2010, p. 143).


A partir dessa ideia, percebe-se que alcançar o conhecimento e provimento de um recurso especial é uma tarefa que requer habilidade e técnica processual. O desafio é frequente visto que o recorrente necessita fundamentalmente demonstrar que o julgado proferido pelo Tribunal a quo incorreu em eventual violação à lei federal, sem, no entanto, se valer dos elementos fáticos ou das provas acostadas aos autos.


Nesse sentido, é muito comum um recurso especial não ser conhecido no Superior Tribunal de Justiça, exatamente pela incidência reiterada do verbete n. 7, da Súmula do STJ, que assim dispõe: “A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial.”


3. Cotejo analítico


Como já dito, uniformizar a jurisprudência dos Tribunais pátrios é uma das principais finalidades do Superior Tribunal de Justiça. Para tanto, existe a figura do recurso especial com base no dissídio jurisprudencial, previsto no artigo 105, III, “c”, da Constituição Federal.


Sobre o assunto, vejamos o que leciona o Ministro Luiz Fux: “com o escopo de uniformizar o Direito federal, a Constituição autoriza o recurso especial quando a decisão recorrida diverge de outra proferida pelos tribunais do país ou pelo próprio Superior Tribunal de Justiça. Adjuntando-se pressupostos constitucionais e requisitos de admissibilidade, pode-se concluir que o cabimento do recurso especial, nesse caso, é resultado da decisão gravosa que optou por uma das interpretações divergentes do Direito federal e o recorrente pleiteia, exatamente nessa hipótese, a prevalência da jurisprudência predominante que lhe é mais favorável. Mas, para esse fim, cumpre-lhe, preliminarmente, demonstrar a divergência de entendimento, quanto ao mesmo Direito legislado, por diferentes tribunais de “outras unidades da federação”.” (in Curso de Direito Processual Civil. 4ª ed., Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2008, vol. I, p. 896).


O regimento interno do STJ, em seu artigo 255, cumulado com o Código de Processo Civil, artigo 541, parágrafo único, disciplinam como deve ser instruído o recurso especial nessa modalidade. Percebe-se especificamente no §2º, do artigo 255, do Regimento Interno do STJ, que o recorrente deverá transcrever os trechos dos acórdãos que configurem o dissídio jurisprudencial, mencionando as circunstâncias que identifiquem ou assemelhem os casos confrontados.


Aparentemente, parece ser uma tarefa plausível demonstrar a divergência entre o acórdão recorrido e o acórdão paradigma (divergente), no entanto, na prática, o STJ tem demonstrado não ser algo tão acessível aos advogados.


Após farta apreciação da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça quanto ao tema, não restam dúvidas de que a necessária comprovação do dissídio jurisprudencial – de modo a ensejar o simples conhecimento de um recurso especial interposto com base na aliena “c”, do art. 105, III, da CF – é algo que não está tão transparente e palpável aos advogados e operadores do Direito, de um modo geral. Os precedentes aplicados pelos ministros do STJ, em suas decisões, são praticamente idênticos e sempre no mesmo sentido, a saber:


“(…) Não há falar em comprovação do dissídio pretoriano, na forma exigida pelos arts. 541, parágrafo único, do CPC e 255, §§ 1º e 2º, do RISTJ, se o cotejo analítico é realizado de modo deficiente, com mera transcrições de ementas dos acórdãos indicados como paradigmas, deixando sem evidência a similitude fática entre os casos confrontados e a divergência jurídica de interpretações.

(STJ, AgRg no Ag 911166/MG, Rel. Min. Vasco Della Giustina, 3ª turma, DJe 28/06/2011)


(…) Não basta a simples indicação do repositório de jurisprudência, ou a simples transcrição de excerto do acórdão paradigma, tendo em vista que se faz necessário, também, a demonstração analítica de que os arestos divergem na aplicação da lei a casos idênticos, sob circunstâncias e fatos jurídicos análogos, ônus processual que não se desincumbiu o agravante.”

(STJ, AgRg no Ag 1355007/PB, Rel. Min. Castro Meira, 2ª turma, DJe 30/06/2011)


(grifos acrescentados)

Compreende-se, pela leitura acima e pelos dispositivos invocados, que o STJ deveria exigir, basicamente, para a comprovação da divergência jurisprudencial: (i) a transcrição dos arestos confrontados, com o devido cotejo analítico, e (ii) a demonstração da semelhança fática entre o acórdão recorrido e o acórdão paradigma, com a respectiva divergência jurídica comprovada.


Teoricamente, algo que deveria ser prático e viável, infelizmente, é visto e aplicado, cotidianamente, com muita complexidade e excesso de formalismo pelo Superior Tribunal de Justiça.


Antes da elaboração deste artigo, foram analisados diversos recursos especiais interpostos com fundamento na alínea “c”, do artigo 105, III, da Carta Magna. A todos, sem exceção, o STJ proferiu decisão negativa. Várias formas de comprovação de dissídio jurisprudencial foram examinadas, até mesmo através de um quadro esquemático, com transcrição de trechos dos acórdãos recorrido e paradigma, seguido do sistemático cotejo, tudo de forma a comprovar a semelhança entre o contexto fático dos arestos comparados e a divergência na aplicação do direito material.


Não bastasse o cumprimento de rigorosos requisitos de ordem técnica, de como fazer um recurso especial ser processado, nos moldes do artigo 105, III, da CF, foi proferida, recentemente, no Superior Tribunal de Justiça, uma decisão monocrática inovadora, para não falar chocante, em sede de Agravo em Recurso Especial, in verbis:


(…) 8. – Quanto ao pretendido dissenso jurisprudencial, verifica-se evidente deficiência na interposição do recurso, tendo em vista o disposto no artigo 541 do Código de Processo Civil e os §§ 1º e 2º (cotejo) do artigo 255 do Regimento Interno desta egrégia Corte, pois ausente o necessário cotejo analítico.


Ainda que assim não fosse, impossível se torna o confronto entre os paradigmas e o acórdão recorrido, uma vez que a comprovação do alegado dissenso reclama consideração sobre a situação fática própria de cada julgamento, o que não é possível de se realizar nesta via especial, por força do enunciado 07 da Súmula desta Corte. “(STJ, AREsp n. 16.587/DF, 3ª turma, DJe 08/08/2011)


(grifos acrescentados) 

De acordo com o fundamento dessa decisão monocrática, se toda e qualquer análise de cotejo analítico entre acórdãos recorrido e paradigma redundar na incidência do enunciado n. 7 da Súmula do STJ, podemos afirmar categoricamente que jamais teremos conhecimento/provimento de recurso especial com fulcro no artigo 105, III, “c”, da Constituição Federal.


4. Conclusões


É cediço que existe um número excessivo de recurso especial carente de fundamentação e/ou deficiente de requisitos básicos para sua admissibilidade. Infelizmente, a interposição de recursos infundados, de forma a protelar o regular andamento processual, é uma verdade e uma constante em nosso Judiciário.


Em contrapartida, não podemos olvidar que há também inúmeros recursos especiais muito bem fundamentos e dotados de uma técnica processual exemplar, que, tragicamente, caem numa vala comum e são processados e julgados de forma equivocada.


Como forma de corroborar essa assertiva, basta fazer uma simples pesquisa jurisprudencial com o tema em referência no sítio do STJ e, paralelamente, analisar as respectivas minutas dos recursos especiais interpostos com fulcro no artigo 105, III, “c”, da Constituição Federal. Surpreendentemente ou não, a verdade é que a grande maioria desses recursos – inobstante a técnica utilizada – tem seguimento negado pelo STJ pelos mesmos critérios.


Curiosamente, para elaboração deste artigo, foram analisadas as mais variadas técnicas adotadas nos recursos especiais, para a comprovação de dissídio jurisprudencial, e a percepção gerada é que o STJ aplica, sistematicamente, os mesmos precedentes, com fundamentos análogos, senão idênticos.


Será que chegaremos ao ponto de rogar por um manual de prática, com critérios exclusivamente objetivos, redigidos pelos próprios ministros, para que tenhamos o preenchimento desse requisito de admissibilidade?


Negativa ou positiva a resposta, o mais importante é que o STJ não dificulte ainda mais o atendimento a esse requisito de admissibilidade do recurso especial, com base na alínea “c”, do artigo 105, III, da CF, que já é um tabu a ser quebrado pelos advogados.


Acreditar que a apreciação do cotejo analítico ou do dissídio jurisprudencial – acórdão recorrido e acórdão divergente – motiva a aplicação do verbete n. 7, da Súmula do STJ, é algo realmente preocupante, para não dizer absurdo. Isso não só acabaria com o recurso especial com fundamento no dissídio jurisprudencial, como também implicaria numa flagrante violação a um dispositivo constitucional (artigo 105, III, “c”, da Carta Magna).


Dessa forma, não restam dúvidas de que essa modalidade recursal é imprescindível e extremamente importante para o nosso ordenamento jurídico, notadamente para atender o papel institucional do Superior Tribunal de Justiça, que é a uniformização da jurisprudência dos Tribunais pátrios.


 


Referências bibliográficas:

FUX, Luiz. Curso de Direito Processual Civil. 4ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2008, vol. I.

MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Recurso Extraordinário e Recurso Especial. 11ª ed., São Paulo: Ed. RT, 2010, p. 143). 


Informações Sobre o Autor

Marcello Medeiros de Castro

Advogado em Brasília-DF. Sócio Fundador do Castro Filho & Medeiros Advogados. Professor de Direito Processual Civil do IESB – Instituto de Educação Superior de Brasília. Pós-graduado em Direito Processual Civil pelo IBDP – Instituto Brasileiro de Direito Processual. Cursou docência para o Ensino Superior pela Unisul em parceria com o IBDP, além de extensão de Direito Processual Civil pelo IDP – Instituto Brasiliense de Direito Público.


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