1- Introdução
Foi aprovada, na sessão do último dia 10/08/2005, pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC), a admissibilidade da proposta de emenda à Constituição, PEC n.º 157/03, de autoria do deputado Luiz Carlos Santos (PFL/SP). O texto foi aprovado com o substitutivo do relator, deputado Michel Temer (PMDB/SP), e prevê a convocação de uma Assembléia de Revisão Constitucional, que deverá ser instalada no dia 1.º de fevereiro de 2007 e encerrada um ano após, ou seja, em 1.º de fevereiro de 2008.
De acordo com a PEC, o quorum para aprovação do texto será o de maioria absoluta em cada Casa Legislativa, com votações separadas, que deverão passar por dois turnos de discussão e de votação, sendo que a discussão das propostas será realizada em sessão unicameral. Findos tais procedimentos, o texto aprovado será submetido à aprovação popular, por meio de referendo, excluindo-se a possibilidade de mudança, por disposição expressa, das garantias previstas no art. 60, § 4.º, nem a modificação do título II, capítulo II, da Constituição Federal. A PEC prevê, ainda, a autorização de revisão constitucional a cada dez anos.
Após a aprovação de uma comissão especial que irá analisar a proposta, a PEC será votada pelo Plenário da Câmara dos Deputados, com o quorum previsto no art. 60 da CF/88 de três quintos dos deputados e em dois turnos, quando então seguirá para o Senado.
2- Revisão Constitucional: breve histórico sob o prisma da Constituição Federal de 1988
Prevê o art. 3º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, que “A revisão constitucional será realizada após cinco anos, contados da promulgação da Constituição, pelo voto da maioria absoluta dos membros do Congresso Nacional, em sessão unicameral.”
Iniciada em 1993, a revisão constitucional estendeu-se até o ano de 1994, concluída com apenas seis mudanças formais no texto magno.
Fernando Capez[1] nos ensina, com distinta coerência, ao tratar do poder de revisão ou reforma que “O constituinte de 1988, no entanto, tratou de estabelecer uma forma de alteração constitucional extraordinária, denominada revisão. Tal Poder Constituinte revisional apresenta limitação temporal, pois só pode ser exercido uma vez, passados, no mínimo, cinco anos da promulgação da Constituição Federal; o quorum de aprovação é mais fácil, ou seja, maioria absoluta, e o exercente do Poder Constituinte revisional é o Congresso Nacional, mas em composição unicameral, o que facilita a aprovação das matérias (art. 3º do ADCT). A revisão constitucional já ocorreu, não podendo mais ser utilizada essa via, pois o citado artigo fez menção a apenas uma revisão.”
3- Limitações implícitas ao poder de reforma da Constituição Federal
O Poder Constituinte Derivado ou Poder de Emenda é o legítimo responsável pelas alterações (emendas ou revisão) feitas em face do texto constitucional elaborado pelo Poder Constituinte Originário. Hoje, a competência para realizar tais reformas constitucionais foi conferida, pela própria constituição, ao Congresso Nacional[2].
Ocorre que o poder de reforma é limitado, devendo obedecer aos limites e formas fixados pelo Poder Constituinte Originário, sem olvidar dos parâmetros de ordem formal, material, temporal e circunstancial.
No caso do tema posto em discussão, basta-nos a observância das limitações formais e materiais.
Tais limitações ao Poder de Reforma dividem-se em explícitas e implícitas.
Vejamos.
As limitações formais explícitas dizem respeito à forma a ser obedecida, o procedimento, para instituição de emendas e/ou revisão, enquanto as materiais explícitas são as famigeradas cláusulas pétreas explícitas, insculpidas, especialmente, no art. 60, § 4º e seus incisos, da Constituição Federal de 1988.
A doutrina aponta, contudo, limitações implícitas ao Poder Reformador. São as denominadas cláusulas pétreas implícitas. José Afonso da Silva[3], com perspicácia, e seguindo os ensinamentos de Nelson de Souza Sampaio, demonstra-as:
“‘as concernentes ao titular do poder constituinte’, pois uma reforma constitucional não pode mudar o titular do poder que cria o próprio poder reformador;
‘as referentes ao titular do poder reformador’, pois seria despautério que o legislador ordinário estabelecesse novo titular de um poder derivado só da vontade do constituinte originário;
‘as relativas ao processo da própria emenda’, distinguindo-se quanto à natureza da reforma, para admiti-la quando se tratar de tornar mais difícil seu processo, não a aceitando quando vise a atenua-lo (sic!).”
Assim, forçoso é reconhecer que qualquer tipo de emenda tendente a modificar o procedimento de emenda à Constituição (limitação formal) ou mesmo a modificar o titular do Poder Constituinte (limitação material), criando, vale dizer, situações não esposadas pelo Poder Constituinte Originário, usufruindo de poderes que outrora não lhe foram concedidos, estará acompanhado do vício da inconstitucionalidade por ferir de morte cláusulas pétreas implícitas na Constituição Federal.
4- A inconstitucionalidade da PEC n.º 157/03 propriamente dita
Em que pese os argumentos contrários, mormente a árdua defesa ancorada pelo insigne constitucionalista e relator do caso, deputado Michel Temer, data maxima venia, não nos parece ser estes os mais corretos e coerentes.
E por várias razões.
Primeiro porque a PEC cria na Ordem Constitucional um novo quorum para a sua aprovação, que será o de maioria absoluta em cada Casa Legislativa, com votações separadas, que deverá passar por dois turnos de discussão e de votação, sendo que a discussão das propostas será realizada em sessão unicameral.
Ora, isso fere prontamente a limitação formal explícita traçada pela CF/88. O art. 60 dispõe que o Código Supremo só poderá ser emendado mediante proposta de um terço, no mínimo, dos membros do Senado Federal, ou mediante proposta do Presidente da República ou de mais da metade das Assembléias Legislativas, com a maioria relativa de seus membros. Somente após é que a proposta é discutida e votada, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, e só será aprovada se, em ambos os turnos, obtiver o voto favorável de três quintos de seus membros.
Demais disso, e conforme visto, a revisão constitucional prevista pelo Poder Constituinte Originário possui, de acordo com Uadi Lammêgo Bulos[4], eficácia exaurida, e já foi realizada em 1993, não podendo ser criada uma nova Assembléia Constituinte Revisional.
Apenas por esses dois aspectos já fica fácil visualizar que a PEC n.º 157/03 quer modificar e criar situações que não foram previstas pelo Poder Constituinte Originário. Não pode o Poder Constituinte Derivado, fruto do Poder Constituinte Originário e existente no mundo jurídico por vontade deste, criar um poder que é de competência exclusiva do Constituinte Originário.
E por assim dizer ”Trata-se de uma limitação implícita ao poder reformador de inegáveis efeitos práticos. É decorrência lógica da própria rigidez constitucional que o procedimento de emenda seja mais exigente do que o das leis ordinárias. Cuida-se de limitação essencial e inafastável.
Assim, se uma emenda estabelecesse que, em determinada época, poder-se-ia emendar a constituição brasileira por maioria simples (ou mesmo maioria absoluta) estar-se-ia diante de inegável inconstitucionalidade (formal e material). Não pode o reformador estabelecer modificações que facilitem o procedimento de emenda à Constituição, ainda que temporariamente.
Em outras palavras, pode-se afirmar que a possibilidade de revisão não mais pode ser legitimamente estabelecida na ordem constitucional brasileira vigente. Uma vez ultrapassada a oportunidade estatuída pelo constituinte (art. 3o do ADCT), não é mais possível alteração da Constituição Brasileira por procedimento diferente do traçado no artigo 60, CF. Trata-se, portanto, de uma limitação material/formal, que, a despeito de não expressamente elencada como cláusula pétrea, apresenta-se insuperável para o poder reformador. As alterações que desrespeitem esta limitação, modificando o procedimento de emenda, mesmo que temporariamente, e as alterações perpetradas segundo este procedimento facilitado, serão irremediavelmente inconstitucionais, a despeito da manta de legitimidade que procure se lhes dar.” [5]
E é exatamente isso que o que está acontecendo.
Com a máscara do referendo popular (que será decidido por um povo que infelizmente ainda não é politizado) e arvorando-se no art. 1º, parágrafo único da CF/88, os defensores da criação de uma nova Assembléia Constituinte Revisional a apresentam como a panacéia dos problemas da nação.
Conforme se deflui de uma leitura mais acurada do dispositivo acima citado, é inconteste que o poder emana do povo, exercido por meio de seus representantes eleitos ou diretamente por ele nos termos da Constituição. Ou seja, não há diferença de quem exerça o poder, ou os representantes eleitos ou o povo diretamente: o poder será sempre do povo. De maneira que há de se concluir que a realização de referendo para aprovação do texto final, sugerido pelo deputado Michel Temer, não constituiria conditio sine qua non para promulgação do novo texto a ser elaborado pela Assembléia Constituinte Revisional. Parece-nos mais um lóbi dos parlamentares defensores da proposta, mormente pelo catastrófico cenário político em que se encontra o país.
Afora tudo isso, com a exceção dos direitos sociais previstos nos artigos 6.º a 11.º, bem como das cláusulas pétreas descritas no art. 60 § 4.º e seus incisos, da Constituição Federal, tudo mais poderá ser facilmente alterado ao bel prazer das conveniências dos políticos.
Em que pese a Constituição Brasileira, hoje, mais parecer periódicos vendidos em bancas de jornal (considerando o grande número de emendas que sofreu e vem sofrendo desde a sua promulgação), pensamos não ser a realização de uma nova revisão contituicional a melhor opção, pois, juridicamente pensando, e se assim aquiescêssemos, estaríamos a romper descaradamente, ao lado da inconstitucionalidade, com a Ordem Constitucional de 1988. Quiçá, a melhor opção para os anseiam por uma reformulação do texto magno seria a convocação de uma nova Assembléia Constituinte, com o fito de arquitetar uma nova Constituição. Ao menos, e em tese, seria menos horripilante do que propor um projeto de revisão constitucional totalmente inconstitucional.
Esta é a opinião defendida, com vigor, pelo decano dos constitucionalistas brasileiros, professor Paulo Bonavides, em recente entrevista concedida à Folha de São Paulo, onde ele chama a PEC de “terrorismo constitucional”, “maquinada por congressistas cuja cegueira não lhes (sic!) deixa perceber que, ao convocarem uma Constituinte bolso, nos termos em que pretendem fazê-lo, estão perpetrando duas monstruosas inconstitucionalidades: a primeira está na convocação mesma (sic!) de tal assembléia; a segunda, no aniquilamento do quorum constitucional do art. 60” [6].
Ante todo o exposto, concluímos que a Proposta de Emenda à Constituição n.º 157/03 está eivada de inconstitucionalidade, por ferir as limitações ao Poder Reformador (cláusulas pétreas implícitas e explícitas), e propugnamos, a exemplo dos ensinamentos do professor Paulo Bonavides, pela sua total rejeição.
Procurador Municipal
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