A inconstitucionalidade do regime de separaçåo de bens aos maiores de setenta anos

Resumo: O presente artigo teve como escopo apurar a possível inconstitucionalidade do regime de bens conferido aos maiores de setenta anos. De tal modo, realiza-se uma análise dos princípios constitucionalmente previstos que são violados por conta de tal previsão normativa do Código Civil, bem como é feito um estudo dos demais princípios relativos aos regimes de bens e, por fim, uma abordagem dos diversos regimes de bens em si, de acordo com a evolução das relações familiares. Alguns estudiosos esclarecem que esta determinação possui uma característica protetiva, haja vista a possibilidade de se impedir um matrimônio por interesse econômico. Em contrapartida, outros doutrinadores salientam que tal obrigatoriedade ao regime de separação de bens aos maiores de setenta anos está em desacordo com os princípios constitucionais básicos, bem como o princípio da igualdade, da dignidade da pessoa humana e do devido processo legal, os quais serão devidamente esmiuçados no decorrer do trabalho, como mencionado anteriormente. Nesse sentido, buscar-se-á demonstrar e sustentar a inconstitucionalidade da obrigatoriedade ao regime de separação de bens aos maiores de setenta anos.[1]

Palavras-Chave: Maiores de Setenta Anos, Matrimônio, Princípios Constitucionais, Inconstitucionalidade, Regime de Separação de Bens.

Abstract: The present work had the scope of verifying the possible unconstitutionality of the regime conferred for over seventy year’s people. Was made an analysis of the principles from the Brazilian Federal Constitution that are violated by the rule of the Civil Code, as well as other principles concerning matrimonial property regimes, and finally, a discussion of these regimes, according to the evolution of family relationships. Through a doctrinal and jurisprudential study it was showed that questioning, because some authors say that this determination has a protective feature, considering the possibility to prevent a marriage by economic interest. However, other current defends that this requirement isn’t in agreement with basic constitutional principles, such as the principle of equality, human dignity and due process of law, which were duly scrutinized in this work, as mentioned earlier. Finally, it was demonstrated the unconstitutionality of the legal regime of separation of property for over seventy years.

Keywords: Ages Seventy Years, Marriage, Constitutional Principles, Unconstitutionality, Regime of Separation of Property.

Sumário: Introdução. 1. Princípios constitucionais e o regime de separação de bens aos maiores de setenta anos. 1.1. A inconstitucionalidade do art. 1.641, II do Código Civil de 2002. 1.2. Os projetos de lei. Conclusão. Referências. Introdução

INTRODUÇÃO

Este artigo tem por objetivo promover uma análise acerca da inconstitucionalidade do regime de bens reservado aos maiores de setenta anos. Nesse sentido, desenvolver-se-á um estudo dos princípios constitucionais relacionados, tendo em vista que tais relações são motivos de discussões desde os primórdios da existência humana.

Ao longo dos anos, pode-se perceber a evolução do código civil, principalmente no ano de 2002, onde foi instituído o Novo Código Civil, o qual foi responsável pela apresentação de diversas inovações, como é o caso da substituição do regime supletório para o de comunhão parcial de bens, bem como a extinção do regime total e o advento do regime de participação final dos aquestos.

Outra modificação importante diz respeito à possibilidade de se alterar os regimes de bens após a realização do casamento, quando motivada e autorizada pela justiça. Contudo, dentro desta regra da mutabilidade há uma exceção, bem como observado no art. 1.641, II do Código Civil, o qual discorre sobre a obrigatoriedade da consecução do regime de separação total de bens àqueles que possuem idade superior a setenta anos.

No decorrer deste artigo, serão igualmente apresentados os princípios constitucionais e a obrigação do regime de bens aos maiores de setenta anos. É importante reforçar que esta imposição é considerada uma das exceções ao princípio da mutabilidade dos regimes de bens, sendo que o legislador, apesar de várias contraposições, manteve do Código de 1916 esta obrigação que consta no art. 1.641, II, do Novo Código Civil.

Diversos doutrinadores e até mesmo jurisprudência certificam que tal imposição está em desacordo com os princípios constitucionais. Nesse sentido, tem-se a seguinte pergunta problema: a obrigatoriedade no regime de separação de bens aos maiores de setenta anos pode ser considerada inconstitucional?

É neste contexto que se desenvolverá uma abordagem inicial acerca de diversos temas como a evolução dos bens e dos seus regimes de separação até o questionamento final sobre tal inovação e as suas possíveis consequências, a violação ou não de princípios consagrados constitucionalmente, e consequentemente, a inconstitucionalidade deste regime de separação de bens.

Os inúmeros casos que se fazem presentes em nossa sociedade atual envolvendo o Direito Sucessório e seus desdobramentos, levam a perceber que alguns de seus temas merecem tratamento e aprofundamento especial, no intento de solucionar da melhor forma possível os conflitos existentes nas relações familiares.

O regime obrigatório de separação de bens destinado aos maiores de setenta anos, por sua vez, está dentro destes temas ensejadores de conflitos e controvérsias, tanto pelos diretamente atingidos quanto pelos doutrinadores e legisladores.

Desta feita, faz-se imprescindível um estudo detalhado sobre a atual temática e todos os assuntos conexos à ela, para melhor compreensão do seu surgimento, ao imergir-se primeiramente num contexto histórico de evoluções diversas ao estado atual deste importante tema do Direito Civil.

Portanto, a discussão em torno deste assunto se mostra relevante e necessária, justamente, porque, é através deste debate que se chegará à conclusão de sua inconformidade perante os preceitos constitucionais e que apresenta ainda, divergências tanto na doutrina, quanto na jurisprudência, que se debruçam para interpretar e aplicar adequadamente a legislação referente a esta temática.

1. PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS E O REGIME DE SEPARAÇÃO DE BENS AOS MAIORES DE SETENTA ANOS

1.1 A INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 1.641, II DO CÓDIGO CIVIL DE 2002

É cediço que o termo “inconstitucionalidade” abarca um sentido amplo, mas que, em suma, significa todo aquele conjunto de atos, leis e comportamentos contrários à nossa Carta Magna, isto é, que desrespeitam seu texto legal.

Em consonância com esse entendimento, TAVARES (2001, p. 169) preleciona:

“Tem-se aqui, um sentido de “inconstitucionalidade”, plenamente admissível, por incluir não só a lei, mas todo o ato normativo, e não apenas o ato normativo, mas igualmente todo comportamento (incluindo o dos particulares) despropositado com relação às prescrições constitucionais. Basta, assim, a dissonância para identificar a inconstitucionalidade”.

Neste sentido, cumpre-nos concluir que a inconstitucionalidade baseia-se em tudo aquilo que está em desconformidade com a própria Constituição Federal, gerando uma sanção – nulidade ou anulabilidade – para o ato.

Cabe também diferenciar que esta inconstitucionalidade pode ser material, composta por vícios materiais, os quais se referem, conforme os ensinamentos de Mendes (2009, p. 1063) “ao próprio conteúdo ou ao aspecto substantivo do ato, originando-se de um conflito com regras ou princípios estabelecidos na Constituição”.

Em outra via, a inconstitucionalidade também pode ser formal, quando atingirem o ato normativo, sem afetar seu conteúdo propriamente dito, tratando-se dos pressupostos e procedimentos referentes ao processo de elaboração da lei, devido à desobediência de princípio de cunho técnico.

Assim sendo, pode-se depreender que a inconstitucionalidade, seja material ou formal, baseia-se na ideia de contrariedade, de incompatibilidade e desobediência aos preceitos da própria Constituição Federal.

Superada esta conceituação, passa-se à análise propriamente dita das aplicações que o Código Civil impõe no que diz respeito ao regime de separação total de bens àqueles indivíduos que se enquadram no art. 1.641, II, estando esta regra presente também no antigo Código revogado (vide artigo 258, II). Tal imposição impede que os indivíduos maiores de setenta anos se casem sob o regime de separação de bens que lhes agradar. Senão vejamos:

“Art. 1.641. É obrigatório o regime da separação de bens no casamento:

II – da pessoa maior de 70 (setenta) anos” (Redação dada pela Lei nº 12.344, de 2010);

O legislador, ao implementar tal restrição, a fez no intuito de proteger o indivíduo maior de 70, uma vez que o mesmo poderia ser simplesmente iludido por uma outra pessoa jovem que estivesse apenas interessada no patrimônio do consorte do que no relacionamento em si. 

Desse modo, o legislador buscou evitar uniões a partir de uma livre escolha de regime, sendo que, até mesmo duas pessoas idosas que desejam casar se vêem igualmente impedidas de escolher o regime de bens, sob a alegação de que, uma vez atingida determinada idade, o indivíduo já não mais possui pleno discernimento e/ou tem suas capacidades e habilidades reduzidas.

Para Monteiro (2004, p. 218), contudo, a imposição do regime obrigatório de separação de bens deve ser considerada correta. Observe:

“Como bem justificou o Senador Josaphat Marinho na manutenção do art. 1.614, n. II, do atual Código Civil, trata-se de prudência legislativa em favor das pessoas e de suas famílias, considerando a idade dos nubentes.  É de lembrar que, conforme os anos passam, a idade avançada acarreta maiores carências afetivas e, portanto, maiores riscos corre aquele que tem mais de sessenta anos de sujeitar-se a um casamento em que o outro nubente tenha em vista somente vantagens financeiras. Possibilitar, por exemplo, a adoção do regime de comunhão universal de bens, num casamento assim celebrado, pode acarretar conseqüências desastrosas ao cônjuge, ou mesmo a seus filhos, numa dissolução causa mortis do casamento.” 

O autor retrata acerca dos riscos de natureza patrimonial na construção do relacionamento de um idoso, levando em conta a sua condição de fragilidade no aspecto afetivo, razão pela qual defende que a norma possui caráter protetivo, visando, por conseguinte, impedir o que é popularmente conhecido como “golpe do baú”.

Insta frisar que os posicionamentos favoráveis à imposição prevista no Código Civil, sustentam-se na hipótese de interesse estritamente patrimonial de uma pessoa que se casa com uma septuagenária e, também, na suposta vulnerabilidade afetiva que as pessoas dessa faixa etária se encontram. De acordo com Pontes de Miranda (2001, p. 219):

“[…] para evitar explorações, consistentes em levar ao casamento, para fins de comunhão de bens, mulheres em idade vulnerável, ou homens em fase de crise afetiva, a lei cortou cerce a possibilidade das estipulações convencionais de ordem matrimonial e excluiu o regime comum. É cogente o da separação de bens.”

Clóvis Beviláqua (1945, p. 169) também é partidário deste mesmo entendimento:

“[…] essas pessoas já passaram da idade em que o casamento se realiza por impulso afetivo. Por isso, o legislador, receando que interesses subalternos, ou especulações pouco escrupulosas, arrastassem os mais velhos a casamentos inadequados ou inconvenientes, pôs entraves a essas ambições com o regime da separação de bens obrigatório”.

Vale mencionar que o antigo Código Civil já consagrava esta norma, caracterizando a distinção na idade dos companheiros: para a mulher era 50 (cinquenta) anos e para o homem, 60 (sessenta). Entretanto, no presente Código, em respeito ao princípio da igualdade de ambos os sexos, passou a ser de 60 anos, vindo a ser recém-alterado esse limite com o advento da Lei nº 12.344 de 9 de dezembro de 2010  para 70 anos aos consortes ou companheiros, sem distinção de sexo.

Esta dilação de 10 anos demonstra certa flexibilidade e, consequentemente, uma evolução do entendimento do legislador e uniformização da ideia de que tal regra deveria ser imediatamente modificada. Contudo, embora tenha sido alterada, a regra ainda padece do vicio de ser inconstitucional por configurar nítida violação aos princípios constitucionais, à medida que reduz a autonomia da pessoa e a constrange pessoal e socialmente.

Essa modificação, portanto, não torna a norma “mais constitucional”, pois continua a limitar a vontade, a liberdade e a autodeterminação do indivíduo injustificadamente, levando em consideração também que o Código Civil estabelece tão somente o início da capacidade civil e não seu fim, bem como define criteriosamente os absolutamente e relativamente incapazes nos artigos 3º e 4º do mesmo diploma legal, respectivamente, sem mencionar, em momento algum, a pessoa maior de 70 anos, o que a torna plenamente capaz de exercer os atos da vida civil de forma livre.

Sendo assim, uma vez atingida a capacidade civil ao completar 18 anos, esta somente cessará com sua morte, a menos que a pessoa incida numa das hipóteses dos incisos dos referidos artigos 3º e 4º, tendo em vista que o Código Civil não determinou nenhuma maneira de cessar a capacidade civil do indivíduo em razão de sua idade.

A jurisprudência, por sua vez, vem flexibilizando o conteúdo desse dispositivo legal, ao efetuar um controle de constitucionalidade difuso, vez que reconhecem a inconstitucionalidade do dispositivo a cada decisão proferida, proclamando que a referida restrição não é compatível com as cláusulas constitucionais de tutela da dignidade da pessoa humana, da igualdade jurídica e da intimidade, assim como a garantia do processo regular (vide artigos. 1º, III e 5º, I, X e LIV da Constituição Federal).

Enquanto este artigo não é retirado do Código Civil, os julgados desempenham seu papel de não apenas cumprir a lei, mas, antes e acima de tudo, velar pela efetividade da Constituição Federal. Em trechos de acórdãos do tema, pronunciaram-se:

 “[…] A RESTRIÇÃO IMPOSTA NO INCISO II DO ART. 1641 DO CÓDIGO VIGENTE, CORRESPONDENTE DO INCISO II DO ART. 258 DO CÓDIGO CIVIL DE 1916, É INCONSTITUCIONAL, ANTE O ATUAL SISTEMA JURÍDICO QUE TUTELA A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA COMO CÂNONE MAIOR DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL, REVELANDO-SE DE TODO DESCABIDA A PRESUNÇÃO DE INCAPACIDADE POR IMPLEMENTO DE IDADE.”

Neste ínterim, o cerne da questão indaga a aplicação do regime de bens dos idosos que atingiram 70 anos. A restrição, como já demonstrado, é defendida por alguns doutrinadores, mas contestada por outros, os quais alegam clara violação aos princípios constitucionais, como o princípio da igualdade, do devido processo legal, da dignidade da pessoa humana, da liberdade, da isonomia, da autonomia da vontade, dentre outros, igualmente expostos ao longo deste trabalho.  Corroborando com tal concepção, Manfré (2003, p. 148) posiciona-se:

“Sob a égide do Código Civil de 1916, notadamente a partir da vigência da Constituição da República de 1998, acenderam-se irresignações a essa obrigatoriedade de regime de bens em decorrência da idade de qualquer dos cônjuges, aliás, por mesmas razões cabíveis também em relação ao novel estatuto de 2002.”

Em consonância com este entendimento, Madaleno (2008, p. 1900) assevera:

“Conforme referências precedentes, manter a punição obrigatória da adoção de um regime de bens (…) porque as pessoas contavam com mais de 60 anos de idade é ignorar princípios elementares do Direito Constitucional. Em face do direito à igualdade e à liberdade ninguém pode ser discriminado em função do sexo ou da idade, como se fossem causas naturais de incapacidade civil.”

O autor ainda complementa afirmando que atinge indubitavelmente a Constituição Federal de 1988, levando em consideração que esta consagrou o princípio da dignidade da pessoa humana como prioridade e entende que essa diretriz “já vinha sendo preconizada pela Súmula n. 377 do STF ao ordenar a comunicação dos bens adquiridos na constância do casamento, como se estivesse tratando da comunhão parcial de bens.”.

Sem deixar de considerar que se esta restrição objetiva a proteção dos bens da família constitui argumentar que, o que se busca é somente satisfazer a família, atendendo tão somente o seu interesse em detrimento dos idosos, dos quais, por certo, é retirado qualquer tipo de pretensão e de direitos estabelecidos a eles.

A título de corroboração, vale afirmar que tal obrigatoriedade é inconstitucional porque discrimina o idoso, demonstrando clara afronta ao artigo 5º da Constituição Federal. A segunda razão perfaz-se na ideia de que viola igualmente o princípio da liberdade do indivíduo, oriundo da dignidade da pessoa humana (vide art. 1º, inciso III da Carta Magna).

Outra justificativa: tal norma é demasiadamente protetora dos herdeiros em detrimento do direito à liberdade de escolha do maior de setenta anos, ferindo também o principio da solidariedade familiar e social, previsto no art. 3º, inciso I, da Constituição Federal.

Cumpre-nos também destacar que esta imposição está fundamentada em dois pressupostos: a proteção deste indivíduo maior de setenta anos contra casamentos baseados em interesses exclusivamente econômicos, sendo, portanto, matrimônios indignos; e também a proteção aos herdeiros.

Contudo, como já foi explanado, esta tentativa foi infrutífera à medida que viola os diversos princípios, a maioria constitucionalmente previstos, tornando a norma inconstitucional.

No mesmo sentido, a doutrina vem se posicionando, como podemos verificar o entendimento de Lôbo (2009, p. 302):

“Essa hipótese é atentatória do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, por reduzir sua autonomia como pessoa e constrangê-lo a tutela reducionista, além de estabelecer restrição à liberdade de contrair matrimônio, que a Constituição não faz. Consequentemente, é inconstitucional esse ônus.”

Ou mesmo na concepção de Tartuce e Simão (2010, p. 165), pode-se notar a discordância em relação a tal norma:

“Isso porque introduz um preconceito quanto às pessoas idosas que, somente pelo fato de ultrapassarem determinado patamar etário, passam a gozar da presunção absoluta de incapacidade para alguns atos, como contrair matrimônio pelo regime de bens que melhor consultar seus interesses”.

Concernente à proteção dos herdeiros, os professores a afastam, afirmando que "a justificativa de proteção patrimonial dos herdeiros também não é plausível. Ora, se esses querem juntar um bom patrimônio, que o façam diante do seu trabalho. Ser herdeiro não é profissão…" (TARTUCE e SIMÃO, 2010, p. 165).

No mesmo sentido, faz- se imprescindível a explanação do voto do ministro do Supremo Tribunal Federal Cezar Peluso, quando ainda era desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, acerca do tema na AC nº 007. 512-4/2-00 – 2ª CDPriv – de 18 de agosto de 1998.

“Lei que, com o propósito racional de guardar o patrimônio dalgumas pessoas contra as fraquezas da submissão amorosa, priva-as a todas de exercitarem a liberdade jurídica de dispor sobre seus bens e de pautarem suas ações por razões íntimas, ressente-se de nexo de proporção entre o objetivo legítimo, que está na tutela dos casos particulares de debilidade senil, e o resultado prático exorbitante, que é, no fundo, a incapacitação da ampla classe das pessoas válidas na mesma faixa etária. Ou seja, inabilita e deprecia quase todos, por salvar uns poucos, que, aliás, têm outros meios jurídicos para se redimir dos enganos das paixões crepusculares. […] O alcance irracional e injusto da mesma norma vulnera ainda princípios constitucionais, até com gravidade maior, sob outro ponto de vista, que é o da mutilação da “dignidade” da pessoa humana em situação jurídica de casamento, porque, desconsiderando-lhe, de modo absoluto e sem nenhum apoio na observação da realidade humana, o poder de autodeterminação, sacrifica, em nome de interesses sociais limitados e subalternos o direito fundamental do cônjuge de decidir quanto à sorte de seu patrimônio disponível, que, não ofendendo direito subjetivo alheio nem

a função social da propriedade, é tema pertinente ao reduto inviolável de sua consciência. É muito curta a razão normativa para a invasão tamanha. A lei, aqui, é modo exemplar de intrusão estatal lesiva do direito à intimidade (right of privacy, ou, como se usa dizer, direito à privacidade), enquanto dimensão substancial da pessoa humana e objeto de tutela constitucional explicitam (art. 5º, X, da Constituição Federal) e implícita (art. 5º, LIV)”.

Desta feita, pode-se afirmar que atualmente é inaceitável um preconceito injurioso como esta imposição, a qual foi estabelecida no regime anterior, isto é, no Código Civil de 1916, em seu artigo 258, parágrafo único, inciso II, o que, à época, parecia mais aceitável tal regra, levando em consideração a sociedade daquele tempo, na qual as mulheres, via de regra, não possuíam independência financeira, razão pela qual constituíam matrimônio com interesses puramente econômicos.

Contudo, nos dias atuais, vive-se em uma sociedade moderna, livre de preconceitos e pertencente à um Estado Democrático de Direito, além da evolução da medicina, trazendo maior expectativa de vida à população. Vislumbra-se a longevidade plena, fato que se pode observar pela existência de pessoas maiores de 60, 70 ou 80 anos com plena capacidade laboral, física, psíquica e emocional.

Não se deve, portanto, aceitar que uma norma com tal conteúdo ainda esteja vigente no nosso ordenamento jurídico, levando-nos a acreditar que, de acordo com Villela (1980) esta proibição é mais um reflexo do caráter patrimonialista do Código Civil de 2002, constituindo-se um dos ultrajes gratuitos que a nossa própria cultura provoca na terceira idade.

Certamente, tal normal mostra-se atentatória da liberdade individual do ser humano e a tutela excessiva do Estado em cima de uma pessoa maior e capaz é, sem dúvida alguma, descabida e injustificável. Pereira (2007, p. 194) aduz no mesmo sentido:

“Esta regra não encontra justificativa econômica ou moral, pois que a desconfiança contra o casamento dessas pessoas não tem razão para subsistir. Se é certo que podem ocorrer esses matrimônios por interesses nessas faixas etárias, certo também que em todas as idades o mesmo pode existir.”

Torna-se, desta feita, incabível a redução dos maiores de setenta anos à categoria de um adolescente imaturo, o qual não possui experiência e maturidade suficientes para lidar com as adversidades da vida ou tomar decisões fundamentais para o seu próprio bem. Ou ainda pior, equipará-los a seres humanos sem discernimento, indivíduos fragilizados que podem ser facilmente ludibriados por falsas intenções alheias, retirando-lhes, deste modo, a faculdade de optar sob qual regime de separação de bens deseja conviver.

Não há dúvidas, portanto, que esse dispositivo acaba por furtar o direito de livre escolha dos septuagenários em relação à administração de seu próprio patrimônio, devendo ser imediatamente revogado do Código Civil, o qual cometeu flagrante equívoco em manter uma norma tão retrógrada e incompatível com a atual sociedade. 

Sendo assim, como já foi dito, resta clara a incongruência e a falta de harmonia com os princípios constitucionais e demais regras em relação à esta imposição legal, fato este que deflagra uma urgente mudança neste cenário para que sejam alcançadas e não mais atingidas a liberdade, a autodeterminação do indivíduo e a dignidade da pessoa humana como um todo.

1.2 OS PROJETOS DE LEI

Ante o exposto, não resta dúvida que o dispositivo legal deve ser alterado. Com esta finalidade, alguns projetos de lei foram apresentados e tramitam no Congresso Nacional.

No Senado, o Projeto de Lei da Câmara nº 07/2008 buscou e obteve a alteração da idade de sessenta para setenta anos, tomando como base argumentativa o aumento da expectativa de vida do povo brasileiro. No mesmo sentido, tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei nº 4.944/2009, o qual propõe que a referida imposição seja destinada aos maiores de oitenta anos.

Não se pode deixar de notar, todavia, que tais projetos padecem de um mesmo vício de não enfrentar e solucionar o problema, uma vez que o real problema não está pautado na idade limite em si, mas no fato de que não se pode presumir a incapacidade absoluta de um indivíduo sem quaisquer critérios sedimentados, sejam estes objetivos ou científicos, permitindo que a lei o faça casuística e arbitrariamente, sem a devida valoração principiológica, constitucionalmente prevista.

Encontramos o mesmo posicionamento na leitura de Chinelato (2004, p. 290-291):

“A plena capacidade mental deve ser aferida em cada caso concreto, não podendo a lei presumi-la, por mero capricho do legislador que simplesmente reproduziu razões de política legislativa, fundadas no Brasil do início do século passado.”

Por tal razão, parecem mais adequados os projetos que possuem como escopo a exclusão definitiva da legislação qualquer imposição de regime de bens aos idosos, em função de sua idade.

Assim sendo, o Projeto de Lei do Senado nº 209/2006 almeja a revogação do inciso II do artigo 1.641 do Código Civil e o faz sob os seguintes argumentos:

“Tal imposição de regime de bens [é] não apenas uma intervenção estatal abusiva na instituição familiar, como também uma evidente violação, de caráter discriminatório, do princípio da dignidade da pessoa humana, que se encontra consubstanciado no art. 1º, inciso III, da Constituição Federal (CF). Ademais, tem-se argüido afronta também a outros dispositivos constitucionais, a saber: ao art. 5º, incisos I e X, e ao art. 226, do qual emerge o princípio da liberdade de constituir entidade familiar.”

Neste sentido, tal projeto recebeu relatório do Senador Marco Maciel, com voto favorável à aprovação, pelo qual o mesmo argumenta que "homens e mulheres maiores de sessenta anos orientam a economia e decidem os destinos da sociedade. Não é aceitável que tenham tanta responsabilidade e sejam impedidos de escolher o próprio regime de bens".

Seguindo a mesma linha, verifica-se, tramitando na Câmara, o Estatuto das Famílias, Projeto de Lei nº 2.258/2007, apensado ao Projeto de Lei nº 674/2007. Os motivos desse projeto se fundamentam sob tal explanação: "por seu caráter discriminatório e atentatório à dignidade dos cônjuges, também foi suprimido o regime de separação obrigatório".

Vale informar que se no momento em que o idoso pretende se casar este não estiver em condições de guiar seus atos e manifestar sua vontade de forma clara e satisfatória ou mesmo compreender as consequências e a extensão de sua decisão, compete ao Registrador, profissional do direito, dotado de fé pública, no exercício de sua atividade, qualificar o interessado em sua capacidade, esclarecer sobre os regimes de bens e suas implicações e, sendo o caso, impedir que o casamento seja realizado.

É cediço, portanto, que a limitação legal padece de inconstitucionalidade, além de presumir a senilidade dos idosos, pessoas que outrora eram tratadas como referência de sabedoria para a sociedade.

Logo, demonstrada a ineficácia dos projetos de lei que apenas visam o aumento da idade, faz-se imprescindível que a melhor solução para tal imbróglio é a aprovação do Projeto de Lei do Senado nº 209/2006 e o Estatuto das Famílias, a fim de que seja sanada a inconstitucionalidade do mencionado dispositivo e resgatada a dignidade das pessoas da melhor idade, dando valor ao seu pleno discernimento, experiência e serenidade, qualidades estas que são adquiridas ao longo de nossas vidas.

CONCLUSÃO

Diante de todos os argumentos explanados ao longo deste artigo, pode-se inferir que a restrição do artigo 1.641, inciso II do Código Civil de 2002 realmente padece do vício da inconstitucionalidade, tendo em vista que desobedece aos princípios previstos na Constituição Federal de 1988, como o da dignidade da pessoa humana, da liberdade, da igualdade, do devido processo legal, dentre outros. 

Esmiuçaram-se no decorrer deste artigo tais princípios, demonstrando de que forma são violados pela norma em comento, mediante a explicação do que eles vêm a garantir, como a variedade dos regimes de bens previstos e a liberdade de sua escolha, e de como o dispositivo impede a efetivação dos mesmos, impossibilitando o pleno exercício de direitos e garantias assegurados por tais princípios.

Comprovou-se também que o critério eleito pelo legislador para estabelecer um tratamento diferenciado ao idoso, impondo-lhe um único regime de bens quando o mesmo pretender casar, em razão de sua idade, é desproporcional e irrazoável, levando em conta que não se pode presumir a incapacidade do indivíduo apenas pelo alcance de determinada idade.

Ademais, abordou-se acerca dos projetos de lei que tem por objetivo o aumento desse limite etário, bem como aqueles que possuem como escopo a revogação do dispositivo questionado, alegando justamente sua desconformidade com os princípios retratados nesse trabalho, o que nos faz depreender que a norma é inconstitucional.

Este artigo, por fim, teve como objetivo principal apurar a inconstitucionalidade do artigo supramencionado, fazendo valer a dignidade da pessoa humana, ao atribuir o valor grandioso dos superiores aos 70 anos, indivíduos enquadrados como idosos, detentores de vasta experiência e sabedoria, razão pela qual merecem tal reconhecimento, proteção e respeito pelos operadores do Direito e pela sociedade em geral.

 

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VILLELA, João Batista. Liberdade Família. Revista da Faculdade de Direito da UFMG, 1980, v. 7.
Notas
[1] Trabalho orientado pela Profª. Dra. Karen Rocha Richardson

Informações Sobre o Autor

Carime Miranda Abdon

Graduada em Direito pelo Centro Universitário do Estado do Pará CESUPA; Especialista em Direito Civil e Processual Civil pela Fundação Getúlio Vargas FGV e em Direito Constitucional pela Luiz Flávio Gomes FGV; Advogada


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