Resumo: A presente matéria estuda a questão da independência funcional dos delegados de polícia, objeto da proposta de emenda à Constituição nº 293/2008, de autoria do deputado Alexandre Silveira, que altera a redação do art. 144, da Constituição Federal.
Palavras-chave: independência funcional; garantias pessoais; delegado de polícia; autoridade policial, Polícia Civil; autonomia da Polícia Judiciária; investigação criminal; e sistema de justiça criminal.
Sumário: I – Introdução; II – Garantia de Independência Funcional; III – Necessidade das Garantias Pessoais; IV – Entendimento Doutrinário sobre a Autonomia da Polícia Judiciária; V – Tramitação da Proposta na Câmara dos Deputados; VI – Conclusão; e VII – Bibliografia.
I – Introdução
Tramita na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, da Câmara dos Deputados, a proposta de emenda à Constituição nº 293/2008, de autoria do deputado Alexandre Silveira, que altera a redação do art. 144, da Constituição Federal, com a finalidade de conceder independência funcional aos delegados de polícia.
A mencionada proposta confere às autoridades policiais independência funcional no exercício do cargo, por intermédio das garantias da vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de subsídios.
Texto da proposta:
“Art. 144 –(…)
§ 10. O delegado de polícia de carreira, de natureza jurídica, exerce função indispensável à administração da justiça, sendo-lhe assegurada independência funcional no exercício do cargo, além das seguintes garantias:
a) vitaliciedade, não podendo perder o cargo senão por sentença judicial transitada em julgado;
b) inamovibilidade, salvo por motivo de interesse público; e
c) irredutibilidade de subsídio.” (grifei)
Para compreender a questão, é necessário fazer breve digressão sobre o assunto.
Os §§ 1º e 4º, do art. 144, da Constituição Federal, atribuem às Polícias Federal e Civil dos Estados a atividade de Polícia Judiciária.
A atividade de Polícia Judiciária é de suma importância, porque se destina a investigar os crimes cometidos, colhendo todas as provas da materialidade (existência do fato) e autoria, para que o Ministério Público possa formalizar a acusação, desencadeando a ação penal, e o Poder Judiciário julgar o infrator.
A Polícia Judiciária, pela natureza da atividade que exerce, é considerada como um dos pilares de sustentação do sistema de justiça criminal.
Apesar dessa importância, atualmente, os delegados de polícia desempenham sua missão constitucional expostos à ingerência política, pois não possuem as garantias pessoais, circunstância que acarreta imensurável prejuízo à persecução criminal.
O deputado Alexandre Silveira, na justificativa do citado projeto, afirma que:
“Infelizmente, as polícias e os policiais não possuem nenhuma dessas garantias. Na prática, isso significa que um delegado de Polícia Federal, por exemplo, pode ser transferido a qualquer tempo, ou ser designado pela vontade dos superiores para qualquer caso, ou dele ser afastado, além de se submeter a um forte regime disciplinar que prevê a punição pelo simples fato de fazer críticas à Administração. O Chefe das Polícias Civis nos Estados, da mesma forma, é escolhido pelos respectivos governadores, evidenciando a subordinação de seus delegados ao Poder Executivo local.”
Diante deste preocupante quadro, o parlamentar apresentou proposta no sentido de assegurar independência funcional aos delegados de polícia, para que, no exercício do cargo, não sofram pressões ou intimidações nocivas ao esclarecimento dos fatos sob apuração.
II – Garantia de Independência Funcional
A doutrina divide as garantias em duas espécies:
– garantias institucionais; e
– garantias pessoais ou de independência funcional.
Os órgãos de Estado necessitam de algumas prerrogativas atribuídas à entidade como um todo (garantias institucionais) e outras prerrogativas concedidas aos seus integrantes (garantias pessoais ou de independência funcional), para que possam exercer suas atribuições constitucionais, de forma autônoma, livre e independente[1].
As denominadas garantias institucionais são prerrogativas que visam preservar a independência do próprio órgão.
Essas prerrogativas se subdividem em duas espécies: garantia de autonomia administrativa e garantia de autonomia financeira.
A garantia de autonomia administrativa permite aos órgãos de Estado a sua auto-organização, como a possibilidade de elaborar o seu regimento interno e de eleger seus dirigentes.
A garantia de autonomia financeira possibilita aos órgãos de Estado a apresentação da sua proposta orçamentária.
De outro lado, as garantias pessoais ou de independência funcional, objeto da proposta de emenda à Constituição nº 293/2008, são prerrogativas inerentes às atividades exercidas pelo servidor, portanto, não são vantagens especiais.
A doutrina apresenta três espécies de garantias pessoais ou de independência funcional:
– Vitaliciedade;
– Inamovibilidade; e
– Irredutibilidade de subsídios.
A vitaliciedade é a garantia que assegura ao servidor o direito de só ser demitido do respectivo cargo por decisão judicial transitada em julgado.
Isto significa que ele não pode ser demitido por intermédio de simples processo administrativo disciplinar.
A inamovibilidade consiste na impossibilidade de remoção do funcionário de um cargo para outro, exceto por interesse público.
Finalmente, a irredutibilidade de subsídio significa que o funcionário não pode ter seus vencimentos reduzidos.
III – Necessidade da Garantia de Independência Funcional
Os delegados de polícia precisam das garantias da vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de subsídios, pela natureza da atividade que exercem.
As Polícias Federal e Civil dos Estados estão subordinadas ao Poder Executivo, mas na sua essência estão vinculadas ao Poder Judiciário, na medida em que os delegados realizam atividades na área criminal semelhantes às desenvolvidas pelos magistrados, quais sejam: a materialização do evento criminoso e a busca incessante da verdade dos fatos.
Realmente, no Brasil vigora o sistema da persecução criminal acusatório.
Tal sistema se caracteriza por ter, de forma bem distinta, as figuras do profissional que investiga e formaliza o fato criminoso (delegado de polícia), defende (advogado), acusa (membro do Ministério Público) e materializa e julga (magistrado) o crime.
Ressalte-se que a Polícia Judiciária, por não ser parte, não se envolve e nem se apaixona pela causa investigada.
O delegado de polícia não está vinculado à acusação ou à defesa, agindo como um verdadeiro magistrado tem apenas compromisso com a verdade dos fatos.
É evidente a semelhança das atividades realizadas por estes profissionais do direito, de um lado, o delegado de polícia formaliza os acontecimentos, durante a fase inquisitiva; de outro, o magistrado materializa o fato, no decorrer da etapa do contraditório.
Entretanto, por uma omissão legislativa, os delegados de polícia não possuem as mesmas garantias funcionais atribuídas aos magistrados.
IV – Entendimento Doutrinário sobre a Autonomia da Polícia Judiciária
É importante, também, verificar o entendimento da doutrina sobre o assunto.
Em magnífica matéria sobre a ausência de autonomia da Polícia Judiciária, Luiz Flávio Gomes e Fábio Scliar[2] lecionam:
“A preocupação com a ausência de autonomia da Polícia Judiciária é justificável em função da crescente importância que a investigação criminal vem assumindo em nossa ordem jurídica, seja por conta de uma necessária mudança de postura a seu respeito, para considerá-la como uma garantia do cidadão contra imputações levianas ou açodadas em juízo, seja pelo papel mais ativo que tem sido desempenhado nos últimos tempos pelos órgãos policiais”. (grifei)
Mais adiante, os professores acrescentam:
“Esta ausência enfraquece a Polícia Judiciária e a torna mais suscetível às injunções dos detentores do poder político, e considerando a natureza e a gravidade da atribuição que exerce, bem como os bens jurídicos sobre os quais recai a sua atuação, o efeito pode ser desastroso em um Estado Democrático de Direito”. (grifei)
O mestre Fernando da Costa Tourinho Filho[3], abordando a questão da importância da atividade policial, assim se posicionou:
“Há uma séria crítica à Polícia no sentido de poder sofrer pressão do Executivo ou mesmo de seus superiores e de políticos. É comum, em cidades do interior, a Autoridade Policial ficar receosa de tomar alguma medida que possa contrariar Prefeitos e Vereadores. Nesses casos, é o Ministério Público, então, que toma a iniciativa. Mas, para que se evitem situações como essas, bastaria conferir aos Delegados de Polícia, que têm, repetimos, a mesma formação jurídica dos membros do Ministério Público e Magistratura e, ao contrário destes, diuturnamente expõem suas vidas no desempenho de suas árduas tarefas, as mesmas garantias conferidas àqueles; irredutibilidade de vencimentos, inamovibilidade (salvo o caso de interesse público devidamente apurado) e vitaliciedade”. (grifei)
Na visão de outro grande processualista penal, José Frederico Marques[4], a Polícia Judiciária necessita de uma estrutura organizacional e de garantias que possibilitem o desenvolvido de seu mister com imparcialidade e isenção.
“De tudo se conclui que a polícia judiciária precisa ser aparelhada para tão alta missão, tanto mais que o Código de Processo Penal a prevê expressamente no art. 6º, item IX. Para tanto seria necessário uma reforma de base, tal como preconizaram Sebastián Soler e Velez Mariconde na Exposição de Motivos do Código de Processo Penal de Córdoba, em que se estruturasse a polícia judiciária em quadros próprios, separando-a da polícia de segurança e da polícia política. Reorganizada em bases científicas, e cercada de garantias que a afastem das influências e injunções de ordem partidária, a polícia judiciária, que é das peças mais importantes e fundamentais da justiça penal, estará apta para tão alta e difícil tarefa”. (grifei)
O jurista Fábio Konder Comparato, em entrevista concedida ao site Terra Magazine, defende que a Polícia Judiciária seja autônoma em relação ao Poder Executivo.
Para ele, isso evitaria abusos e possibilitaria mais transparência nas investigações realizadas por esses órgãos.
O conceituado professor entende, ainda, que:
“A polícia de segurança (Militar) tem que ficar sob comando do Executivo, porque ela tem que intervir imediatamente, tem que manter a ordem pública. Mas a polícia judiciária não pode ficar submetida ao Executivo, porque ela é um órgão essencial para o funcionamento do sistema judiciário”. (grifei)
“E se ela estiver no Executivo, há dois defeitos capitais: não só ela não investiga eventuais infrações penais cometidas, e já não digo pelo chefe do Executivo, que é absolutamente responsável, como uma espécie de rei, mas ela também não investiga os amigos do chefe”.
Finalmente, o doutrinador arremata:
“Por outro lado, ela pode servir como uma arma do chefe do Executivo contra os seus inimigos. O que no Brasil está claríssimo. Essa autonomia significa que, tal como o Ministério Público, a polícia judiciária não pode se subordinar ao Executivo”. (grifei)
V – Tramitação da Proposta na Câmara dos Deputados
Atualmente, a proposta de emenda à Constituição nº 293/2008, que assegura a mencionada garantia, aguarda votação do parecer do deputado relator João Campos, na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania.
O deputado João Campos apresentou parecer favorável à admissibilidade da proposta em tela, tanto sob o aspecto formal como material.
Sob o aspecto formal, o parlamentar ressaltou que a proposta é constitucional, pois não afronta as cláusulas pétreas, previstas no § 4º, do art. 60, da Constituição Federal.
No que se refere ao aspecto material, o deputado João Campos afirma que:
“A matéria garantias pessoais ou de independência funcional se reveste de natureza constitucional, porque proporciona liberdade e independência de atuação aos integrantes de determinados órgãos de Estado, que exercem atividades de suma importância para a sociedade”. (grifei)
O deputado relator acrescenta, ainda, que:
“Tais prerrogativas devem constar no texto da Magna Carta, porque a liberdade de ação desses profissionais preserva o Estado Democrático de Direito, entendido como o sistema institucional fundamentado no respeito às normas, separação dos poderes e aos direitos e garantias fundamentais”. (grifei)
Finalmente, arremata argumentando que:
“A veracidade de tal assertiva pode ser observada nos incisos I, II, III, do art. 95 e nas alíneas “a”, “b” e “c”, do inciso I, do § 5º, do art. 128, da Constituição Federal, que, respectivamente, atribuem aos magistrados e integrantes do Ministério Público as garantias da vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de subsídios”. (grifei)
VI – Conclusão
Em síntese, é necessário reconhecer a existência de uma lacuna no ordenamento jurídico vigente, na medida em que o legislador deixou de atribuir aos delegados de polícia a garantia de independência funcional.
É evidente que a ausência desta garantia cria condições para que os detentores do poder político, principalmente as autoridades vinculadas ao Poder Executivo, interfiram, de maneira indevida, no âmbito da Polícia Judiciária, circunstância que ocasiona imensurável prejuízo à justiça criminal.
Portanto, tal omissão precisa ser sanada, para que autoridade policial possa exercer suas relevantes funções livremente, sem ingerência política.
Delegado de polícia do Estado de São Paulo, professor universitário, autor de duas obras na área do Direito Administrativo Disciplinar. Atualmente, exerce a atividade de assessor jurídico do gabinete do deputado federal Regis de Oliveira, em Brasília
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