Partindo da concepção de Estado dada por Montesquieu este trabalho discute as competências das três funções estatais e da instituição do Ministério Público para atingir a finalidade da Lei de Execução Penal. Deste modo, demonstra a ausência de política criminal que responsabiliza o Executivo, a expansão do direito penal que responsabiliza o Legislativo e as omissões do Judiciário e do Ministério Público.
Um Estado possui vários grupos sociais diferenciados e, para que consiga atingir seus fins deve impor regras e limites. É o poder estatal. Para que exerça o seu poder o Estado o divide em funções. Canotilho (2002:573) explica que “dividir ou separar poderes é uma questão atinente ao exercício de competências dos órgãos de soberania e não um problema de divisão do poder unitário do Estado”.
No nível funcional as funções de poder estatal-político são a legislação, a aplicação e execução de normas e a jurisdição[1]. Essa divisão do poder estatal assumiu, com John Locke, quatro funções, quais sejam, o legislativo, o executivo, o federativo e o prerrogativo[2]. O legislativo era responsável pela criação de normas jurídicas, o executivo, responsável pela aplicação e execução destas regras no espaço nacional, ou seja, “era consistente em aplicar a força pública no interno, para assegurar a ordem e o direito” (MORAES, 2003: 369). O poder federativo era responsável pelo desenvolvimento de relações externas e de direito internacional e, por fim, o prerrogativo tinha a responsabilidade pela tomada de decisões em casos de exceção constitucional como guerra e estados de emergência[3].
A clássica divisão do poder estatal em três funções coube a Montesquieu que entendeu que o poder estatal tinha três funções distintas e harmônicas entre si: o legislativo, o executivo e o judiciário. Esta divisão deu autonomia ao poder judiciário e colocou no plano do poder executivo as funções trazidas por Locke, como os poderes federativo e prerrogativo.
A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 2º reza que “são poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”, significando que “a investidura e a permanência das pessoas num dos órgãos do governo não dependem da confiança nem da vontade dos outros; que, no exercício das atribuições que lhes sejam próprias, não precisam os titulares consultar os outros nem necessitam de sua autorização; que na organização dos respectivos serviços, cada um é livre, observadas apenas as disposições constitucionais e legais. A harmonia entre os poderes verifica-se primeiramente pelas normas de cortesia no trato recíproco e no respeito às prerrogativas e faculdades a que mutuamente todos têm direito” (SILVA, 2002: 110).
Canotilho e Moreira (apud MORAES, 2003: 370) explicam que “um sistema de governo composto por uma pluralidade de órgãos requer necessariamente que o relacionamento entre os vários centros do poder seja pautado por normas de lealdade constitucional. A lealdade institucional compreende duas vertentes, uma positiva e outra negativa. A primeira consiste em que os diversos órgãos do poder devem cooperar na medida necessária para realizar os objetivos constitucionais e para permitir o funcionamento do sistema com o mínimo de atritos possíveis. A segunda determina que os titulares dos órgãos do poder devem respeitar-se mutuamente e renunciar a prática de guerrilha institucional, de abuso de poder, de retaliação gratuita ou de desconsideração grosseira. Na verdade, nenhuma cooperação constitucional será possível, sem uma deontologia política, fundada no respeito das pessoas das pessoas e das instituições e num puro do sentido da responsabilidade de Estado”.
Na Lei de Execuções Penais (LEP) são encontrados vários dispositivos que demonstram a presença da independência e harmonia dos poderes preconizada pela Constituição Federal.
A cooperação dos poderes e a execução penal
O fim da execução penal de acordo com o artigo 1 da LEP é “a correta efetivação dos mandamentos existentes nas sentenças ou outras decisões destinados a reprimir e a prevenir os delitos, e a oferta de meios pelos quais os apenados e os submetidos às medidas de segurança venham a ter participação construtiva na comunhão social” (item 14 da Exposição de Motivos da LEP). E para que estes objetivos sejam efetivados são previstos na LEP vários direitos relacionados aos condenados, como também, órgãos responsáveis pela execução da pena e sua fiscalização, o que determina a natureza jurídica da execução penal.
Apesar de divergências doutrinárias a respeito [4] Grinover (apud MARCAO 2004: 2) leciona que “na verdade, não se nega que a execução penal é atividade complexa, que se desenvolve, entrosadamente, nos planos jurisdicional e administrativo. Nem se desconhece que dessa atividade participam dois Poderes estaduais: o Judiciário e o Executivo, por intermédio, respectivamente, dos órgãos jurisdicionais e dos estabelecimentos penais”. Não se nega que a doutrina ao entender a natureza complexa da execução penal, vislumbra como participantes da mesma somente dois Poderes contidos na “separação de poderes” de Montesquieu: o executivo e o judiciário, que seriam os responsáveis pela aplicação da LEP e, conseqüentemente, na garantia dos direitos reservados aos condenados e internos. Mas, no Título III da LEP que trata “Dos órgãos da Execução Penal” é visto que a participação da pena não se restringe a esses dois poderes citados na natureza jurídica da execução penal. Reza o artigo 61 da LEP que “são órgãos da execução penal: I-o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária; II-o Juízo da Execução; III-o Ministério Público; IV-o Conselho Penitenciário; V-os Departamentos Penitenciários; VI-o Patronato; VII-o Conselho da Comunidade”.
A intenção do legislador ao colocar como órgãos da execução penal os poderes executivo, judiciário e juntamente a instituição do Ministério Público foi a de fortalecer o direito penitenciário, pois, como explica na exposição de motivos da LEP nos itens 89,90 e 91, “diante das dúvidas sobre a natureza jurídica da execução e do conseqüente hiato de legalidade nesse terreno, o controle jurisdicional, que deveria ser freqüente, tem-se manifestado timidamente para não ferir a suposta ‘autonomia’ administrativa do processo executivo. Essa compreensão sobre o caráter administrativo da execução tem sua sede jurídica na Doutrina política de Montesquieu sobre a separação dos poderes. Discorrendo sobre a ‘individualização administrativa’, Montesquieu sustentou que a lei deve conceder bastante elasticidade para o desempenho da administração penitenciária, ‘porque ela individualiza a aplicação da pena às exigências educacionais e morais de cada um’ (L’ individualisation de la peine, Paris, 1927, p. 267/268). O rigor metodológico dessa divisão de poderes tem sido, ao longo dos séculos, uma das causas marcantes do enfraquecimento do direito penitenciário como disciplina abrangente de todo o processo de execução”.
A LEP prevê em vários artigos as incumbências destes órgãos da execução penal, que procuram efetivar a correta aplicação da Lei, como também, o respeito aos direitos fundamentais dos condenados e dos internos. O artigo 64 prevê que compete ao Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, Poder Executivo: “I – propor diretrizes da política criminal, quanto à prevenção do delito, administração da justiça criminal e execução das penas e das medidas de segurança (…) VI-estabelecer regras sobre a arquitetura e construção de estabelecimentos penais e casas de albergados; VIII – inspecionar e fiscalizar os estabelecimentos penais, bem assim informar-se, mediante relatório do Conselho Penitenciário, requisições, visitas ou outros meios, acerca do desenvolvimento da execução penal nos Estados, Territórios e Distrito Federal, propondo às autoridades dela incumbidas as medidas necessárias ao seu aprimoramento; IX- representar ao juiz da execução ou à autoridade administrativa para a instauração de sindicância ou procedimento administrativo, em caso de violação das normas referentes à execução penal; X- representar à autoridade competente para a interdição, no todo ou em parte, de estabelecimento penal”. Ao fazer referência ao Poder Judiciário, a LEP em seu artigo 66 prevê que compete ao juiz da execução: (…) “VI – zelar pelo correto cumprimento da pena e da medida de segurança; VII – inspecionar, mensalmente, os estabelecimentos penais, tomando providências para o adequado funcionamento e promovendo, quando for o caso, a apuração de responsabilidade; VIII – interditar, no todo ou em parte, estabelecimento penal que estiver funcionando em condições inadequadas ou com infringência aos dispositivos desta Lei”. Quanto à instituição do Ministério Público a LEP prevê em seu artigo 67 que “o Ministério Público fiscalizará a execução da pena e da medida de segurança, oficiando no processo executivo e nos incidentes da execução”. Novamente, fazendo referência ao Poder Executivo, a LEP prevê em seu artigo 72 que são atribuições do Departamento Penitenciário Nacional: “I – acompanhar a fiel aplicação das normas de execução penal em todo o território nacional; II – inspecionar e fiscalizar periodicamente os estabelecimentos e serviços penais”.
Mas a já conhecida “falência do sistema prisional”, o desrespeito aos direitos fundamentais dos condenados e internos, a superpopulação carcerária, as rebeliões demonstram que há uma falha no sistema penitenciário. Tucci (2004: on-line) analisando a triste realidade penitenciária diz que “realmente, diversificados e importantes fatores, a partir da falta de vontade política para a sua correlata e precisa implantação, contribuíram para que ela, efetivamente, não vingasse. Além do que, a essa triste realidade, outras, de igual relevância, foram, cada vez mais intensamente, acrescidas, e das quais cumpre destacar: a) a grande (até que ponto, não se sabe…) insuperável morosidade da Justiça Criminal; b) a falta de estabelecimentos prisionais, hospitalares e ambulatórios adequados, em numero suficiente ao recolhimento, à internação e ao tratamento dos condenados; c) as péssimas condições das instalações desses estabelecimentos, afrontosas, inclusive, da dignidade da pessoa humana; d) a desenfreada corrupção de administradores de estabelecimentos penais e de seus agentes penitenciários; e) a criminalidade violenta, crescente (inclusive no interior desses próprios estabelecimentos) diuturnamente; f) a falta de destinação de verbas orçamentárias especificas, pelo menos razoáveis, ao sistema penitenciário”.
Esta falha é estatal, mas pode-se dizer que todos os órgãos incumbidos pela correta aplicação da LEP são responsáveis? De quem é a culpa?
Mea culpa
O Departamento Penitenciário Nacional e o Conselho de Política Criminal e Penitenciária são ligados ao Ministério da Justiça, por isso são integrantes do Poder Executivo. O Ministério da Justiça tem como tarefa o planejamento, coordenação e administração da política penitenciária nacional. De acordo com o Decreto 4720 de 2003, artigo 10, o Departamento Penitenciário Nacional tem a incumbência, entre outras, de acompanhar a fiel aplicação das normas de execução pena em todo o território nacional e de gerir os recursos do Fundo Penitenciário Nacional. São incumbências positivas, de agir. Já com relação ao Conselho de Política Criminal e Penitenciária, o decreto prevê em seu artigo 35 algumas competências do órgão, como, por exemplo, propor diretrizes da política criminal quanto à prevenção do delito, inspecionar e fiscalizar os estabelecimentos penais, representar à autoridade competente para a interdição, no todo ou em parte, de estabelecimento penal. As incumbências dos dois órgãos do Ministério da Justiça são diferentes e demonstram que o Conselho de Política Criminal e Penitenciária não tem o poder de decisão como o Departamento Penitenciário possui. Apesar disso, a responsabilidade do Executivo persiste, pois a política criminal é de responsabilidade do Ministério da Justiça. A responsabilidade do Executivo se dá por omissão por não implementar uma política criminal que atenda e fomente todas as atribuições e direitos relacionados à execução penal.
Quanto ao poder Judiciário, a sua responsabilidade frente à execução penal é por omissão se o juízo se omitir nas especificações constantes nos incisos VI, VII e VIII do artigo 66 da LEP. Atribuir responsabilidade ao Judiciário fora destas atividades é querer se escusar de uma responsabilidade que é do Executivo. Neste sentido, é importante retornar à clássica separação de poderes, em que o Judiciário tem a função de aplicar a lei no caso concreto buscando, também, a efetivação dos direitos fundamentais do homem.
O Ministério Público também não pode ser responsabilizado pelos problemas penitenciários a não ser se houver omissão na fiscalização estampada no artigo 67 da LEP. Tarefa constitucional prevista no artigo 127 da Constituição Federal, em que dispõe que o Ministério Público tem a incumbência de defender a ordem jurídica, o regime democrático, os interesses sociais e os individuais indisponíveis.
Apesar de não citado pela LEP como órgão da execução penal, o Poder Legislativo, assim, como o Executivo tem responsabilidade perante o sistema penitenciário, já que atua numa política simbólica, exagerando na criação de tipos penais e, que conseqüentemente, traz prejuízos ao sistema penitenciário. A massificação criminalizadora causada pelo Legislativo incha o sistema penitenciário e impossibilita qualquer tentativa, se houvesse, de uma política criminal tendente a efetivar os direitos dos condenados e dos internos. Dotti (2003: on-line) ao criticar a inflação legislativa caracterizando a política criminal como o direito penal do terror diz que a atuação legislativa “anarquiza os meios e métodos de controle da violência e da criminalidade, estimula o discurso político e revela a ausência de uma Política Criminal em nível de Governo Federal”.
Parafraseando Foucault (2002: 13) a execução da pena vai-se tornando um setor autônomo, em que um mecanismo administrativo desonera o Estado, que se livra desse secreto mal-estar por um enterramento burocrático da pena.
Professora Mestre em Ciências Penais pela Universidade Federal de Goiás. Professora de Direito Penal e Processual Penal e supervisora do Núcleo de Prática Jurídica do Curso de Direito da UniEVANGÉLICA, Anápolis-GO
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