A intervenção do assistente no interrogatório

a) a controversa natureza jurídica do interrogatório

Acalorada discussão surge acerca da natureza jurídica de tal ato processual: seria um meio de prova ou um meio de defesa? Tourinho Filho, revendo posicionamento anterior, considera o interrogatório, máxime em face da Constituição em vigor, como um meio de defesa, aduzindo que “se o acusado pode calar-se, ficando o Juiz obrigado a respeitar-lhe o silêncio, erigido à categoria de direito fundamental, não se pode dizer seja o interrogatório um meio de prova … Fosse o interrogatório meio de prova, a Lei de Imprensa o exigiria também. Entretanto ali se diz que o réu será interrogado ‘se o requerer’. Se se tratasse de meio de prova, a Lei Eleitoral não o teria dispensado, como realmente o dispensou durante mais de 30 anos …. Se fosse meio de prova, o CPP, no art. 188, não impediria a intervenção das partes. Na verdade, se a instrução criminal é contraditória, e sendo ela integrada pelo interrogatório, afrontaria a Lei Maior a não-intervenção das partes” (1). Da mesma opinião são Ada, Scarance e Magalhães, para quem “ainda que se quisesse ver o interrogatório como meio de prova, só o seria em sentido meramente eventual, em face da faculdade de o acusado não responder. A autoridade estatal não pode dispor dele, mas deve respeitar sua liberdade no sentido de defender-se como entender melhor, falando ou calando-se. O direito ao silêncio é o selo que garante o enfoque do interrogatório como meio de defesa e que assegura a liberdade de consciência ao acusado” (2). A ilustre professora não alterou seu posicionamento com o advento das novas regras do interrogatório, destacando mesmo que “o primeiro e mais importante aporte da Lei n° 10.792/2003, no que diz com o interrogatório, é o de conceituá-lo como meio de defesa” (3).

Já Adalberto Camargo Aranha assevera cuidar-se o interrogatório de um meio de prova, elencando as razões de tal entendimento: “em primeiro lugar, porque colocado no Código entre as provas e como tal considerado pelo julgador ao formar sua convicção; depois, porque as perguntas podem ser feitas livremente, apenas obedecendo às diretrizes do art. 188; em terceiro, porque pode atuar tanto contra o acusado, no caso da confissão, como em seu favor; e, finalmente, porque o silêncio, a recusa em responder às perguntas, pode atuar como um ônus processual (arts. 186 e 191)” (4) . Comunga desta opinião Hélio Tornaghi, ao ensinar que “o interrogatório, pois, na lei em vigor, é meio de prova. Fato de ser assim não significa que o réu não possa valer-se dele para se defender. Pode; ele é excelente oportunidade para fazer alegações defensivas … o objetivo do interrogatório é provar, a favor ou contra, embora dele possa aproveitar-se o acusado para defender-se” (5).

Sem embargo de tais posicionamentos, parece ganhar força, segundo a doutrina mais moderna, uma posição intermediária, que confere um caráter misto à natureza jurídica do interrogatório.

Assim, destaca Antônio Milton de Barros que “o interrogatório surge, então, como meio de defesa e meio de prova, ou ‘como meio de defesa e fonte de prova’ eis que o acusado tem a oportunidade de oferecer sua versão, ao tempo em que o juiz observa-o e colhe outros dados de que necessita para aferir sua responsabilidade e dosar a pena a ser-lhe aplicada” (6). Interessante a observação de Vicente Greco Filho, após manifestar-se pelo caráter defensivo do interrogatório: “quer como ato de defesa, quer como ato instrutório, porém, o interrogatório está mal regulado no Código vigente. Como ato de defesa porque vem antes da nomeação ou indicação do defensor. Como ato instrutório porque não admite perguntas, especialmente da parte adversa ou de co-réu. Esse tratamento inadequado, contudo, não tem levado ao reconhecimento de que há inconstitucionalidade na disciplina legal, ficando a correção das impropriedades para futura reforma legislativa” (7).

Entendemos, com efeito, que as profundas alterações na disciplina do interrogatório, introduzidas pela Lei n° 10792, de 1º de dezembro de 2003, não infirmam nosso posicionamento pelo caráter misto do interrogatório. Antes, o reforçam. De sorte que um dos fundamentos utilizados por aqueles que admitem a natureza jurídica do interrogatório como, exclusivamente, meio de defesa, se apoiava no fato de que esse ato processual não tolerava o contraditório. Tal argumentação não mais aproveita, eis que, conforme veremos adiante, o art. 188 do CPP, com a atual redação que lhe foi conferida pela Lei n° 10792/03, passou a admitir a participação das partes no ato, embora não me pareça que se possa afirmar que o contraditório, em toda sua extensão, passe a vigorar no interrogatório. Outro argumento em prol da natureza defensiva do interrogatório, consistia na falta de previsão legal, no Código Eleitoral, quanto à sua realização. Trata-se, porém, que questão superada, na medida em que a Lei nº 10.732, de 5 de setembro de 2003, alterando o art. 359 do Código Eleitoral, tornou obrigatória a realização do interrogatório.

Evidente nos parece, por isso mesmo, que as mudanças trazidas pelo novo diploma confirmam a natureza dúplice do interrogatório. É ato defesa, posto que ao interrogando é dado, inclusive, negar-se a responder às indagações que lhe são formuladas. Trata-se, aliás, de disposição já prevista na antiga redação do art. 186 do código, que contava, porém, com a ressalva da parte final do texto, quando impunha ao juiz advertir o réu que “o seu silêncio poderá ser interpretado em prejuízo da própria defesa”. Hoje, ao contrário, o parágrafo único do art. 186 deixa claro que “o silêncio … não poderá ser interpretado em prejuízo da defesa”, rendendo homenagem, assim, ao 5º, LXIII, da Constituição. É – repita-se – sob esse aspecto, meio de defesa.

Também possui, no entanto, a característica de meio de prova, ou, para ser mais preciso, fonte de prova. Basta ver a situação na qual o réu, perante o juiz e – agora – obrigatoriamente na presença de seu defensor, confessa a prática do crime. Conquanto se façam restrições ao caráter absoluto da confissão, que não ostenta mais o status de “rainha das provas” (v. no item confissão), parece claro, na prática, o enorme valor probatório dessa admissão formulada pelo acusado. Ninguém dirá que, nesse caso, o julgador desprezará a confissão. Ao contrário, ela servirá como valiosíssimo elemento, formador da serena convicção do juiz, revelando sua inegável faceta de fonte de prova.

b) a possibilidade de intervenção do assistente

Insistimos na possibilidade do assistente de acusação encaminhar perguntas no interrogatório. Afinal, o art. 188, com sua nova redação, faculta às partes essa possibilidade. Ora, o assistente de acusação é parte. É verdade que uma parte contingente, para utilizar a expressão de Tourinho, já que o processo existirá com ou sem o assistente. Mas sem dúvida, parte. Alguém dirá que dentre as funções do assistente, relacionadas no art. 271, não é encontrada essa possibilidade. É argumento que não se aproveita. A um, porque não haveria mesmo como o legislador, no art. 271, prever a possibilidade do assistente fazer perguntas durante o interrogatório, já que o mencionado dispositivo legal é original do Código de Processo Penal (portanto de 1941), enquanto que a nova redação do art. 188 foi conferida pela Lei nº 10.792, que é de 2003.

A dois, em razão de que as atribuições elencadas no art. 271 encerram um rol meramente exemplificativo. Significa dizer: se reconhecem outras funções ao assistente além daquelas mencionadas no dispositivo legal. Assim, por exemplo, em matéria de recursos, o código somente possibilita a interposição de recurso em sentido estrito, pelo assistente, em dois casos, conforme se infere do art. 271 combinado com o art. 584, § 1º: da impronúncia e da decisão que decreta extinta a punibilidade. Portanto, o rol de possibilidades de oferta do recurso em sentido estrito, para o assistente, seria taxativo, não admitindo ampliação para outras hipóteses senão aquelas duas acima aludidas. Apesar disso, ninguém irá negar, ao assistente, por exemplo, a possibilidade de interpor recurso stricti juris contra decisão que não recebe apelação por ele ofertada (art. 581, XV). Mais: se o assistente, conforme faculdade que lhe é expressamente concedida, recorre em sentido estrito da sentença de impronúncia e o juiz nega seguimento ao recurso, seria um absurdo negar-lhe a possibilidade de apresentar carta testemunhável (art. 639, II), para garantir a subida do recurso. Saliente-se, ainda, que a Súmula 210 do STF defere ao assistente a possibilidade de apresentar recurso extraordinário. E que a jurisprudência admite o recurso em sentido estrito também da decisão de desclassificação, por equiparar-se à impronúncia (8), bem como embargos infringentes (9). Já a doutrina, quase que unânime, reconhece legitimidade ao assistente para oposição de embargos de declaração. Vê-se, assim, que não prospera o argumento de que a participação do assistente no interrogatório seria vedada porque não prevista no art. 271, já que suas possibilidades de atuação transcendem às hipóteses mencionadas no dispositivo aludido.

A três, finalmente, em virtude de que mesmo a fria leitura do art. 271 autorizaria a participação do assistente. Assim, já que entendemos, como visto acima, que o interrogatório importa em um misto de defesa e de prova e o art. 271 autoriza o assistente a propor meio de prova, parece claro que poderá ele, também, intervir no interrogatório. Saliente-se, em acréscimo, que o mesmo dispositivo legal permite ao assistente requerer perguntas às testemunhas. Nada diz em relação ao ofendido e tampouco o art. 201 do código faz qualquer menção nesse sentido. A despeito do silêncio da lei, ninguém, em sã consciência, negaria ao assistente a possibilidade de encaminhar perguntas à vítima. Ora, se pode formular perguntas às testemunhas (conforme previsão legal) e pode formular perguntas ao ofendido (embora sem previsão legal), nada impede que as faça, também, durante o interrogatório.

Notas:

(1)  TOURINHO FILHO, Fernando da Costa Processo penal, 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2005, vol. 3, p. 271.
(2)  GRINOVER, Ada Pellegrini, SCARANCE FERNANDES, Antonio, MAGALHÃES GOMES FILHO, Antonio. As nulidades no processo penal, 8. ed. São Paulo: RT, l.997, p. 73
(3)  GRINOVER, Ada Pellegrini, O interrogatório como meio de defesa (Lei nº 10.792/03), Revista brasileira de ciências criminais, RT, mar.-abr. 2005, p. 185)
(4)  ARANHA, Adalberto José Q. T. de Camargo. Da prova no processo penal, 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1987, p. 68
(5)  TORNAGHI, Hélio. Curso de processo penal, 7. ed. São Paulo: Saraiva, 1990, vol. 1, p. 359.
(6)  BARROS, Antônio Milton de. Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 14, p. 133
(7)  GRECO Filho, Vicente . Manual de processo penal, 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 226.
(8)  RT 636/320.
(9)  RT 681/406.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Ronaldo Batista Pinto

 

Promotor de Justiça no Estado de São Paulo. Mestre em Direito pela UNESP Universidade Estadual Paulista. Professor de Direito Processual Penal das Faculdades COC de Ribeirão Preto – SP.

 


 

Equipe Âmbito Jurídico

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