A justiça restaurativa e o sistema brasileiro de direitos fundamentais: privatização ou modernização do jus puniendi estatal?

Resumo:O objeto do presente artigo consiste em analisar a potencial incompatibilidade entre a prática da Justiça Restaurativa como alternativa de solução dos conflitos penais e os princípios fundamentais penais e processuais penais contidos na Constituição Federal. O método adotado será o categórico-dedutivo ou universal-dedutivo, por conta do objeto da pesquisa ser eminentemente teórico. O enfoque adotado será o hermenêutico. O escopo será rebater a crítica relativa à possível transformação da Justiça Restaurativa em movimento de privatização do sistema penal e processual penal e o conseqüente afastamento das garantias fundamentais constitucionais de proteção ao réu. Para tal fim, busca-se, inicialmente, delinear os motivos contextuais que deram origem à Justiça Restaurativa e suas influências teóricas. Para fundamentação, relacionam-se seus principais conceitos, elementos e princípios gerais. Em seguida, faz-se uma análise dogmática dos princípios fundamentais constitucionais estruturantes do sistema penal e sua relação com os princípios da Justiça Restaurativa. Por fim, expõe-se a crítica ao novo sistema e parte-se para sua análise confrontando-se os conceitos expostos.

Palavras-chave: Sistema Penal. Abolicionismo. Vitimologia. Justiça Restaurativa. Direitos Fundamentais. Garantias Penais e Processuais Penais. Privatização. Modernização do Sistema Punitivo.

Abstract: The article’s object is to analyze the potential incompatibility between the practice of Restorative Justice as solution to conflicts and criminal fundamental principles contained in the Federal Constitution. The scope will rebut the criticism concerning the possible transformation of Restorative Justice in privatization of the criminal justice system and the consequent departure from fundamental constitutional guarantees to protect the defendant. For this, we seek, initially, outline the contextual reasons that have given rise to the Restorative Justice and its theoretical influences. For reasons are related the key concepts, elements and principles. Then we make a dogmatic analysis of structural constitutional fundamental principles of criminal justice system and their relation to the Restorative Justice’s principles. Finally, we expose to criticism of the new system and we go to his analysis confronting the concepts exposed.

Keywords: Criminal System. Abolitionism. Victimology Restorative Justice Fundamental Rights.Criminal Warranties. Privatization.Punitive’s System Modernization.

Sumário:Introdução. 2. A Importância das Teorias Abolicionistas e da Vitimologia para o surgimento da Justiça Restaurativa.2.1 Abolicionismo. 2.2 Vitimologia. 3. A Justiça Restaurativa como novo paradigma para solução dos conflitos penais. Princípios gerais. 4. Relação entre os princípios penais e processuais penais e os princípios da Justiça Restaurativa. 4.1 Princípio da Legalidade. 4.2 Princípio da Proporcionalidade. 4.3 Princípio daHumanidade. 4.4 Princípio da Responsabilidade Pessoal, Individualizaçãoou Culpabilidade.4.5 Princípio do Devido Processo legal. 4.6 Princípio da Presunção de inocência 5. Crítica ao novo modelo. Uma forma de privatização ou modernização do sistema jurídico penal? Conclusão

Introdução

O sistema jurídico penal encontra-se em expressivo estado de falência. Para se alcançar esta constatação nem é preciso desprender muito esforço.Basta uma simplória reflexãopouco mais além do que é superficialmente ensinado na graduação acadêmica para se vislumbrar que a moderna justiça criminal – justamente o ramo do direito que se oferece à defesa dos bens jurídicos mais essenciais à comunidade – não passa de um modelo histórico repleto de promessas declaradas e não cumpridas, como suas supostas funções legitimadoras gerais e específicas;detentor de uma estrutura que não produz justiça, e que sequer executa minimamente o que ordena, dada a incontestável impossibilidade fática e teórica de intervir em todas as atividades humanas que propõe regular.

Ademais, quando se fala em crise deste modelo que elegeu a prisão como principal resposta ao ilícito, não está a se referir a uma crítica recente. As crises da utilização da privação de liberdade como pena remontam à época de seu surgimento. Na análise feita por Foucault (1987), percebe-se que no século XIX a prisão como pena alcançou a condição de meio de punição mais utilizado, e o interessante é observar que, desde aquela época, as críticas já pareciam anunciar o quão grande fracasso seria a justiça penal.

Foucault (1987) reproduz as críticas feitas ainda em 1820 e 1845 e observa que estas permanecem as mesmas até hoje: as prisões não reduzem a taxa de criminalidade – mesmo que se aumente, multiplique ou transforme as prisões, a criminalidade permanece a mesma ou aumenta; a detenção provoca reincidência; a prisão fabrica delinqüentes em razão das condições a que submete os apenados; a prisão favorece a organização de criminosos solidários entre si e hierarquizados; os que são libertados da prisão estão condenados à reincidência; por fim, a prisão fabrica, mesmo indiretamente, delinqüência, pois no mais das vezes leva as famílias dos condenados – seus dependentes – a condições de miséria (PALLAMOLLA, 2009).

Por outro lado, longe de se vislumbrar qualquer movimento institucional que se proponha senão a dirimir, ao menos a oferecer algum paliativo a toda essa situação de colapso sistêmico, o que verdadeiramente se constataé um movimento de inflação do sistema punitivo; com a dotação indiscriminada de um sem número de condutas e de bens jurídicos à seara da proteção penal, o que, em última instância, só termina por elevar o seu grau de ineficiência e acrescer o sentimento de impunidade na população.

Na verdade, esse movimento de maximização possui como uma de suas principais causas o acelerado processo de transformações pelo qual está passando a sociedade contemporânea; processo que provocou a criação de um novo paradigma social, com acentuada capacidade de expansão e tensão político-social em níveis globais. Em resposta, surgiram e desenvolveram-se, igualmente, novas formas de ilicitude e novas feições de hostilização e de infração das normas de convivência e de harmonia social. Apura-se, desse fenômeno, que o crime teria adquirido uma capacidade notável de diversificação, diferenciadamente modelada, para explorar campos diversos, com incidência na economia e nas finanças, na tecnologia, no meio ambiente, no tráfico internacional de substâncias entorpecentes e de armas, napornografia, na prostituição de menores, no terrorismo, nocontrabando, no comércio de pessoas ou de partes do corpo, na espionagem industrial, na evasão fiscal etc. Dessa maneira, o Direito Penal passa a ser marcado pelo esquecimento ou afastamento de princípios que tradicionalmente o norteavam, tais como o da subsidiariedade da intervenção punitiva e o da defesa da dignidade da pessoa (SANTANA, 2010).

Assim, através de um discurso midiático apelativo, implanta-se um sentimento de insegurança generalizado na população e o direito penal passa a ser irresponsavelmenteutilizado como plataforma de política demagógica, elegendo-se a justiça criminal como fórmula mágica de solução para todos os males da modernidade. Dispensável dizer que o Direito Penal, por si só, nada resolve e que esse tipo de política temerária só leva ao aumento do sentimento de impunidade.

Deveras, na modernidade o direito penal encontra-se inexoravelmente ligado a uma terminologia bélica, o que revela claramente a adoção da concepção arcaica e retributivista de que a violência deve ser respondida com mais violência. É visível a contradição que esse discurso tenta esconder: não se obtém a paz declarando a guerra. Nesse sentido, a sociedade contemporânea foi domesticada para acreditar que segurança e paz são fatores diretamente dependentes do grau de repressão estatal aos fatos rotulados como crime. Também é notórioque essa recepção do público pelo sistema penal multiplicou-se nas últimas décadas em virtude da já mencionada difusão da mídia sensacionalista, o que pode ser percebido pela propagação quase folclórica daquela máxima de Beccaria (1980) – “o que intimida o criminoso é a certeza da punição”, que passou a ser veiculada pelos mais diversos meios e que tem se repetido como bordão na voz de pessoas das mais variadas tendências (SANTANA, 2010).

De outra sorte, também não se pode afirmar que nenhuma experiência foi empreendida para se buscar consertar as falhas do modelo retributivo. Dentre esses ensaios, merece destaque a recente criação das penas alternativascomo tentativa de salvar o paradigma punitivo ao estatuir formas diversificadas de castigo.

Contudo, essa tentativa de reforma ao invés de resultar numa substituição da pena de cárcere por uma pena alternativa, acabou por aumentar o campo de atuação do controle formal, somando à antiga pena privativa de liberdade a nova pena alternativa, sem introduzir qualquer mudança significativa na racionalidade do sistema penal (PALLAMOLLA, 2009). Isto porque tanto a pena de prisão quanto as penas alternativas se fundam numa mesma compreensão de crime e justiça, que abrange a seguinte sequência: violada a norma, a culpa deve ser atribuída; a justiça deve vencer e esta não deve se desvincular da imposição de dor através de um processo formal.

Por outro lado, existe um complexo de garantias matérias e processuais ao qual o aparelho estatal deve obediência no exercício de sua atividade punitiva. São os direitos e garantias penais e processuais penais previstos na Constituição Federal, frutos da evolução histórica em defesa da dignidade humana, cláusulas pétreas inarredáveis do Estado Democrático de Direito. Esses institutos asseguram o tratamento justo, igualitário e equitativo de qualquer acusado em todas as fase da persecução penal, encontrando seu fundamento maior no art. 1º, III da Carta Magna: o consagrado princípio da dignidade da pessoa humana. Constituem, portanto, instrumentos inafastáveis de defesa dos direitos do cidadão acusado, aos quais o sistema penal deve obediência incondicional, não importando os meios de atuação erigidos.

Não obstante a existência desses mecanismos de defesa e de garantia dos direitos dos sujeitos submetidos ao sistema criminal, não há exagero algum em afirmar que o modelo clássico de justiça criminal acha-se, desde sempre, em crise. Porque absolve ou condena, mas não "resolve" o problema criminal, ou seja, praticamente nada de positivo faz para sua solução efetiva. Isso porque se preocupa exclusivamente com o castigo do agente culpável, isto é, com a pretensão punitiva do Estado, que é só um dos sujeitos implicados no problema criminal, mas não atende às legítimas expectativas dos restantes: da vitima, da comunidade e do próprio infrator (GOMES, 2007).

Nesse contexto de crise institucional generalizada surge a proposta de Justiça Restaurativa, não só como um modelo para a busca da solução consensual dos conflitos penais, mas como uma tentativa de re-moralização do sistema jurídico penal diante de todas as fundamentadas críticas que vem sofrendo. Saber até que ponto tal proposta pode dialogar e conviver harmoniosamente com o sistema jurídico tradicional de garantias constitucionais do réué o que se pretende com o presente estudo.

2. A importância das teorias abolicionistas e da vitimologia para o surgimento da justiça restaurativa

Duas teorias possuem notável influência na elaboração do idealde Justiça Restaurativa, são elas a Teoria Abolicionista e a Vitimologia.

2.1 Abolicionismo

Nas décadas de 60 e 70 do século passado, um conjunto complexo de fatores sociais e políticos criou uma circunstância favorável para uma crítica radical do sistema prisional. Assim, nos anos 80, a discussão a respeito do direito penal definitivamente tomou corpo e não tardaram a surgir discussões em relação às possíveis alternativas ao direito penal e ao castigo. A criminologia crítica é marcada, então, por uma cisão e de um dos seus ramos surge o Abolicionismo.

Entretanto, o Abolicionismo não pode ser visto como um movimento unitário, dado que possui diversos representantes com perspectivas e propostas diferenciadas. Dentre os aspectos em comum das diversas correntes, pode-se apontar: o não reconhecimento da legitimidade do sistema penal, visto que não aceitam moralmente a justificativa de seus fins frente ao sofrimento que provoca; a consideração da substituição da sanção punitiva por meios pedagógicos ou de controle social informal como vantajosa.

Nas palavras de Eugênio Raul Zaffaroni (1991), “Hoje temos consciência de que a realidade operacional de nossos sistemas penais jamais poderá adequar-se à planificação do discurso jurídico penal, e de que todos os sistemas penais apresentam características estruturais próprias de seu exercício de poder que cancelam o discurso jurídico penal e que, por constituírem marcas de sua essência, não podem ser eliminadas sem a supressão dos próprios sistemas penais. A seletividade, a reprodução da violência, a criação de condições para maiores condutas lesivas, a corrupção institucionalizada, a concentração de poder, a verticalização social e a destruição das relações horizontais ou comunitárias não são características conjunturais, mas estruturais do exercício de poder de todos os sistemas penais”.

Dessa forma, as idéias abolicionistas, de maneira ampla, pretendem superar não somente a pena de prisão, mas todo o sistema punitivo tradicional. Suas críticas partem basicamente de duas premissas: primeiro, que os delitos não teriam uma realidade ontológica, constituindo apenas expressão de conflitos sociais, problemas e causalidades variáveis de acordo com o tempo e espaço; segundo, que o direito penal não auxilia na resolução de seus problemas institucionais, pois não evita os delitos e não ajuda o autor do crime nem a vítima.

O Abolicionismo, portanto, almeja a substituição do modelo tradicional de justiça penal, defendendo a recuperação do conflito pela vítima e pelo ofensor, prevendo, inclusive, em algumas hipóteses, a intervenção de terceiros como mediadores. Assim, propõe que a comunidade recupere sua capacidade de solucionar conflitos ou que possa direcioná-los para o âmbito do direito civil.

Segundo LoukHulsman(apud MATHIESEN, 1997), “A criminalização é injusta, já que, através de sua própria estrutura, nega as variedades existentes na vida social e os diferentes “significados” daí gerados, e porque ela é incapaz de percebê-los e lidar com eles. É injusta, também – em seus próprios termos -, porque não consegue lidar igualmente com agressores e vítimas: a maioria deles nem mesmo aparece na justiça criminal (cifra negra); regra geral, são lidados em algum outro lugar de uma forma que não é sequer conhecida pela justiça criminal”.

Já para Nils Christie (apudZAFFARONI, 1991), o sistema penal é responsável por impor dor, produzir sofrimento e destruir as relações comunitárias. A alternativa, para o autor, seria construir formas de justiça participativa e comunitária capazes de abdicar do uso da sanção de privação ou restrição de liberdade e de utilizar a reparação ou indenização do dano por meio da composição do conflito.

Nessa ordem de idéias, pode-se dizer que Nils Christie e LoukHulsman foram os abolicionistas que mais contribuíram para a perspectiva restaurativa, pois apresentaram críticas contundentes às formas de reação ao delito de caráter punitivo eimpulsionaram reformas no sistema penal. Não obstante, o radicalismo de suas idéias, no mais das vezes tidas como utópicas, deu lugar a inúmeras críticas por parte de criminólogos céticos que não acreditam no poder comunitário de resolução de conflitos e por parte de juristas que alegam que tal modelo suprime os direitos e garantias do acusado já consagrados no processo penal tradicional, previstos na constituição. Esta última censura, também objeto do presente estudo, será analisada mais adiante.

2.2 Vitimologia

A Vitimologia se desenvolve e ganha destaque entre os anos 70 e 80 principalmente por meio de autores nos Estados Unidos, Canadá e Europa. Contudo, pode-se dizer que seu marco inicial deu-se com a publicação da Obra The Criminal and His Victimem 1948, de Von Hentig, autor que apontou a contribuição da vítima ao delito e afirmou a existência de vários tipos de vítima. Depois dele, Mendelson deu seguimento a seus estudos, potencializando-os por meio de uma classificação que avaliava o nível de culpabilidade da vítima na produção do delito.

Repensar qual deva ser o papel da vítima no sistema penal, quais são seus direitos e necessidades; analisar o processo penal sobre outra ótica; resgatar alguém que sempre foi relegado tanto pelo direito substancial quanto pelo direito processual penal; esses são os traços distintivos e essenciais da Vitimologia.

A verdade é que o direito penal se esquece da vítima ao tratar apenas da proteção ao bem jurídico e defesa das garantias do réu. Além disso, simplesmente se esquiva da prestação de qualquer tipo de auxílio reparatório ou compensatório dos danos causados àquele sujeito e de sua necessidade de re-socializaçãoem razão do mal sofrido. Pior que isso, o direito processual penal moderno se caracteriza por cada vez mais instigar o denominado processo de vitimização secundária – efeito correspondente à completa alienação da vítima no processo penal, já que aquela não recebe quaisquer informações quanto a seus direitos e tampouco atenção jurídica; o que se reflete basicamente em fazer o sujeito passivo do crime obrigatoriamente reviver toda a experiência traumática oriunda do ilícito durante as instâncias procedimentais, sem qualquer assistência terapêutica ou psicológica, tratando-o como mero instrumento para a busca do escopo punitivo: a inflicção dapena privativa de liberdade.

Assim como o Abolicionismo, o movimento de vítimas não possui uniformidade quanto ao entendimento de qual deve ser o papel do sistema de justiça criminal na preservação dos direitos da vítima. Em decorrência da heterogeneidade do movimento e a depender do ordenamento estudado, hoje é possível se deparar com diferentes paradigmas e políticas, contudo, pelo menos quatro aspectos/objetivos marcam as pretensões desse movimento: I- o apoio eassistência às vítimas; II- as experiências das vítimas na justiça criminal; III- a compensação da vítima pelo Estado; IV- a reparação da vítima pelo ofensor (PALLAMOLLA, 2009).

Além disso, a atuação da Vitimologia estende-se à produção de pesquisas que visam à obtenção de informações a respeito das vítimas e à atenção assistencial e econômica a lhe ser dispensada para que se procure suprir suas necessidades.

Dessa maneira, o que a Vitimologia trouxe realmente à tona é que o atual sistema de justiça penal ignora a vítima e suas necessidades – já que as aquelas, na maioria das vezes, querem apenas que o dano seja ressarcido, que o ofensor lhe dê explicações para que possa entender o ocorrido, ou, ainda, que receba simplesmente um pedido de desculpas – e, com isso, atua de forma a revitimizá-la.

Por derradeiro, é preciso esclarecer que a influência da Vitimologia sobre a Justiça Restaurativa é ampla, mas não é total. Portanto, a despeito dos inúmeros pontos de contato, não é correto afirmar que a Justiça Restaurativa se trata de um movimento restrito à vítima – dado que se preocupa com ela – mas porque também o faz, e em pé de igualdade, com o ofensor e com a comunidade envolvidos no conflito.

3. A justiça restauraurativa como novo paradigma para solução dos conflitos penais. Princípios gerais

A Justiça Restaurativa consiste num movimento mundial de ampliação de acesso à justiça criminal surgido nas décadas de 70 e 80 nos Estados Unidos e na Europa. Inspira-se em antigas tradições pautadas em diálogos pacificadores e construtores de consenso oriundos de culturas africanas e das primeiras nações do Canadá e da Nova Zelândia. Seus propósitos têm embasado programas sociais dedicados a cuidar das vítimas, dos ofensores e das comunidades que os abrigam, além disso, têm atuação orientada para a restauração da vida dos agentes envolvidos no conflito e para sua (re) interação social.

Não obstante tratar-se de um movimento não tão recente, é forçoso admitir que, frente sua grande diversidade de orientações, a Justiça Restaurativa não possui um conceito bem definido. A mesma dificuldade também atinge a delimitação deseus objetivos que, dentre outras aspirações, direcionam-se à conciliação ou reconciliação das partes, à resolução do conflito, à reconstrução dos laços rompidos pelo delito, à prevenção da reincidência e à responsabilização pelo fato.

Assim, a despeito de sua dificuldade conceitual, a Justiça Restaurativa pode ser definida como um processo pelo qual todas as partes que têm interesse em determinada ofensa juntam-se para resolvê-la coletivamente e para tratar suas implicações futuras.

Pode-se também citar a definição utilizada pelo programa de Justiça Restaurativa desenvolvido pela Organização das Nações Unidas, o qual a define como procedimento restaurativo “qualquer processo no qual a vítima, o ofensor e/ou qualquer indivíduo ou comunidade afetada por um crime participem junto e ativamente da resolução das questões advindas do crime, sendo freqüentemente auxiliados por um terceiro investido de credibilidade e imparcialidade” (ONU, 2006).

Nessa linha, fazendo-se um comparativo com o sistema retributivo, a Justiça Restaurativa apresenta os seguintes traços marcantes: I – trata o delito como um conflito entre pessoas, e não simplesmente como uma infração à norma; II- atribui a responsabilidade pelo crime não só ao indivíduo, mas também à sociedade; III- o controle se dá não somentepelo sistema penal, como também pela comunidade; IV- os protagonistas deixam de ser o infrator e o Estado, e passam a ser o infrator, a vítima e a comunidade; V- o procedimento não é adversarial, mas se constrói através do diálogo; VI –suas finalidades não são provar delitos, estabelecer culpas ou aplicar castigos, mas sim resolver conflitos, distribuir responsabilidades e reparar o dano; VI – baseia-se também no futuro e não somente no passado.

Quanto aos seus princípios norteadores, sugere-se o seguinte rol: voluntarismo, consensualidade, complementaridade, confidencialidade, economia de custos, mediação e disciplina (FERREIRA, 2006). O conteúdo desses princípios é detalhado a seguir.

Voluntarismo. A participação dos sujeitos na mediação envolve a sua cooperação, um interesse sério e uma vontade livre. Deve-se afastar, portanto, uma atuação impositiva e unilateral própria do sistema judicial. Ademais, o voluntarismo faz com que o agressor compreenda, interiorize e se responsabilize melhor perante as conseqüências danosas da sua conduta e a necessidade de as mitigar e de impedir sua repetição. De outra forma, ao tornar o processo restaurativo como algo obrigatório, pode-se estar a convertê-lo num ato inútil e traduzível num puro desperdício de tempo e de recursos. Por outro lado, os mediados devem estar em posição de revogar o seu consentimento durante qualquer momento do processo de mediação. Contudo, se é certo que só o voluntarismo respeita a natureza da Justiça Restaurativa, tal opção não deixa, igualmente, de conter em si uma das suas mais óbvias limitações: não havendo predisposição das partes para acordarem, não haverá mediação penal, e todo o ritual do processo tradicional deverá ser iniciado ou retomado – conforme cada modelo restaurativo.

Consensualidade. Um desfecho bem sucedido se traduz em ganhos para ambas as partes. Apostando numa plataforma de entendimento com o agressor, os mecanismos da Justiça Restaurativa permitem a reparação à vítima e a sua reabilitação em termos razoáveis e de exeqüibilidade, bem como uma satisfação moral que lhe permita mitigar os efeitos psicológicos do crime, a recuperação da sua auto-estima e o restabelecimento de um relacionamento normal em seu convívio social.

Confidencialidade. A mediação impõe a todos os seus intervenientes a confidencialidade sobre o conteúdo dos contatos estabelecidos, incluindo os fatos revelados, as afirmações destinadas a solucionar o conflito e as sugestões apresentadas pelo mediador ou pelas partes destinadas à solução do impasse. Dessa forma, no caso do processo restaurativo fracassar, os elementos aí colhidos não devem poder se comunicar com o juízo penal. Assim, os conteúdos das declarações não devem ser reduzidos a escrito. Outra conseqüência da confidencialidade é que o processo de mediação deve ter sua publicidade reduzida, logo, o evento, em princípio, deve transcorrer a portas fechadas.

Complementaridade. Nem sempre os mecanismos da Justiça Restaurativa evitarão um processo criminal. Mesmo assim, tendo em conta os benefícios para a vítima (materiais, econômicos, sociais, morais e de segurança) e para o ofensor (morais, sociais e judiciais), o processo de mediação pode revelar-se de grande utilidade. Poder-se-á falar, portanto, num complexo de dupla complementaridade entre o sistema de Justiça oficial e os mecanismos de Justiça Restaurativa.

Economia de custos. A opção pelos mecanismos da Justiça Restaurativa traduz-se numa redução de custos materiais tanto para o Estado como para os sujeitos implicados nos problemas trazidos pela ofensa, seja a título direto ou indireto. Em alguns modelos, o Estado chega inclusive apoiar com financiamento os centros de mediação ou conciliação.

Mediação. A administração e a gestão dos instrumentos restaurativos envolvem, normalmente, a utilização de processos de negociação e de mediação. Faz-se necessária, portanto, a atividade de um terceiro intermediário, indicado pelas partes ou integrado ao aparato público, privado ou comunitário de mediação. A atividade desse terceiro poderá ir desde a preparação e o estabelecimento efetivo da comunicação entre os mediados até a formulação de sugestões ou à proposta de uma solução para o conflito.

Disciplina. Na Justiça Restaurativa a disciplina envolve a obediência a medidas de ordem social que se mostram escolhidas pelos próprios envolvidos na ofensa, incidindo, dessa maneira, sobre o vitimador e a vítima e vinculando-os à correta execução do acordo estipulado.

Estabelecidos os principais conceitos, princípios e fundamentos do modelo de Justiça Restaurativa, parte-se para análise dos direitos e garantias penais e processuais penais previstos na Constituição Federal, para, a seguir, avaliar de maneira conclusiva se ambos são compatíveis e harmônicos para o desenvolvimento do sistema penal.

4. Relação entre os princípios penais e processuais penais previstos na constituição da república e os princípios da justiça restaurativa

Hoje pode-se denominar os princípios reguladores do controle penal de princípios constitucionais fundamentais de garantia do cidadão, ou simplesmente de princípios fundamentais de direito penal de um Estado Social e Democrático de Direito.

Segundo Bitencourt (2012, p. 50), esses princípios encontram seu fundamento maior na Constituição Federal. Todos eles constituem garantias do cidadão perante o poder punitivo estatal. O preâmbulo da Carta Magnajá propriamente proclama princípios como a liberdade, igualdade e justiça, que inspiram todo o sistema normativo brasileiro, como fonte interpretativa e de integração das normas constitucionais, orientadora das diretrizes políticas, filosóficas, ideológicas da Constituição, e, como consequência, também das normas infraconstitucionais em matéria penal e processual penal.

É no art. 5º da Carta Maior onde se localizam os princípios constitucionais específicos em matéria penal, cuja função consiste em orientar o legislador ordinário para a adoção de um sistema de controle criminal voltado para os direitos humanos.

A seguir, serão elencados os princípios mais relevantes à temática em questão. Existem outros postulados trazidos pelo próprio texto constitucional e pela doutrina, mas que não poderão ser analisados em razão da limitação extensiva do presente trabalho, contudo, essa restrição em nada afetará seu rigor científico. Em tempo, será realizado o confronto entre os princípios constitucionais penais e processuais penais com os princípios da Justiça Restaurativa expostos, e em que medida se complementam e se harmonizam para fins de alcance da maior legitimação desse novo modelo alternativo.

4.1 Princípio da legalidade

A atribuição exclusiva do legislador para definir crimes e cominar penas constitui o alicerce do direito penal moderno. O fato da atuação do Estado ser orientada por regras jurídicas que expressem a vontade popular é condição de legitimação democrática por meio do poder competente, o Poder Legislativo. No âmbito jurídico-penal, em que se materializam as mais sensíveis restrições à liberdade, com maior razão impõe-se o respeito ao princípio da legalidade.

Este princípio atende, então, a uma necessidade de segurança jurídica e de controle do exercício do poder punitivo, de modo a coibir possíveis abusos às liberdades individuais por parte do titular do poder punitivo, o Estado. Consiste, portanto, constitucionalmente, numa poderosa garantia política para o cidadão, expressiva do império da lei, da supremacia do Poder Legislativo, e da soberania popular, sobre os outros poderes do Estado, de legalidade da atuação administrativa e da escrupulosa salvaguarda dos direitos e liberdades individuais (QUEIROZ, 2011, p. 52).

O princípio da legalidade penal está previstono art. 5º, XXXIX, da Constituição Federal, ao dispor que “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”. Este princípio representa ao mesmo tempo uma limitação formal e material do poder estatal.

Formalmente significa que somente por lei, em sentido estrito,editada pelo Poder Legislativo, o Estado poderá legislar sobre matéria penal, definindo as infrações penais e cominando as respectivas sanções. São inconstitucionais, dessa maneira, atos legislativos que, sem se revestirem do status genérico e abstrato de lei, nem obedecerem o processo legislativo devido, pretendam definir crimes ou cominar penas.

Contudo, outros atos legislativos podem eventualmente dispor sobre matéria penal sempre que a hipótese não seja a de definir crimes nem a de cominar penas ou aumentar o rigor punitivo, e sim a de conceder benefícios ou similar, como ocorre com o indulto ou a comutação de penas, que competem ao Presidente da República (CF, art. 84, XII), que se utiliza de simples decreto para tanto. Por isso, nada impede que outra norma, como uma medida provisória, possa dispor sobre matéria penal, desde que favoravelmente ao réu (GOMES, 2008, p. 42).

Segundo Ferrajoli (1995, p. 95), este princípio é tão fundamental que seu conteúdo abrange todas as demais garantias penais e processuais como condições necessárias à legalidade penal: proporcionalidade, devido processo legal etc.

Dessa forma, o princípio deve ser aplicado, de maneira ampla, a toda e qualquer intervenção penal que implique privação ou restrição a direito ou liberdade do agente, seja ela resultado da aplicação do modelo tradicional ou alternativo (Justiça Restaurativa) de solução do conflito.

A adoção do modelo de Justiça Restaurativa em nada desrespeita o princípio em questão. Tendo seu procedimento regulado devidamente em lei, a qual trará o momento processual correto de sua aplicação, as hipóteses de crimes cabíveis, os efeitos jurídicos da solução alcançada etc., vê-se que em nada a sua instituição poderá se opor ao princípio da legalidade. Além disso, como modo de resposta à solução de um conflito penal, o modelo restaurativo deve ser aplicado para infrações previstas anteriormente na lei, não sendo possível utilizá-lo para solucionar conflitos sociais não previstos previamente como figuras típicas penais, sob pena de ofensa frontal ao princípio da irretroatividade da lei penal, vertente da legalidade

4.2 Princípio da proporcionalidade

O princípio da proporcionalidade não encontra previsão expressa no ordenamento constitucional. Contudo, pode ser depreendido como fruto de outro princípio que será adiante tratado: o devido processo legal em seu caráter substancial.

Para Alexy (2001, apud QUEIROZ, 2011, p.56) a proporcionalidade é entendida como mandado de otimização do respeito máximo a todo direito fundamental, compreende os princípios (ou subprincípios) de necessidade, adequação e proporcionalidade em sentido estrito, já que a intervenção do poder público sobre a liberdade dos cidadãos só pode ser legítima na medida em que seja necessária, adequada e proporcional.  Afinal, como disse Beccaria (1980) “a pena, para não ser um ato de violência contra o cidadão, deve ser essencialmente pública, pronta, necessária, a menor das penas aplicáveis nas circunstâncias dadas, proporcionada ao delito e determinada pela lei”.

De outra forma, além da proibição de excesso, o princípio da proporcionalidade compreende a proibição de insuficiência da intervenção jurídico-penal. É dizer, se por um lado deve ser combatida a sanção penal desproporcional porque excessiva, por outro lado cumpre também evitar a resposta penal que fique muito aquém do seu efetivo merecimento, dado o seu grau de ofensividade e significação político-criminal, afinal a desproporção tanto pode dar-se para mais quanto para menos.

A proposta da Justiça Restaurativa não só obedece ao postulado da proporcionalidade, como também o utiliza como fundamento. Tal modelo busca a máxima efetividade e aceitação social da resposta penal ao conflito social, o qual necessariamente envolve agente, vítima e sociedade. Deve, prioritariamente, ser aplicado aos crimes de menor potencial ofensivo, quando o dano ao bem jurídico protegido não é tão intenso a ensenjar uma resposta estatal mais enfática. Além disso, visa sempre à satisfação dos interesses de todos os envolvidos no processo de composição.

Cita-se um exemplo de aplicação da Justiça Restaurativa em que a proporcionalidade restaria homenageada. Em caso de furto simples em que a pena aplicada fosse maior que dois anos as medidas alternativas não seriam cabíveis. Se o objeto do crime fosse um celular, no valor de 150 reais, a depender do caso concreto, seria mais proporcional a restituição do produto ou do valor equivalente, com um pedido voluntário de desculpa à vítima e seus próximos do que a aplicação de uma pena privativa de liberdade e toda a degeneração inerente ao seu sistema de execução prisional. Essa medida consensual alcançada entre as partes e o mediador, certamente, não seria uma resposta além ou aquém do fato que a originou, seria, justamente, proporcional.

4.3 Princípio da humanidade

Trata-se de uma outra importante limitação ao poder punitivo decorrente do art. 1º, III, da Constituição Federal. Esse postulado declara que constitui fundamento do Estado Democrático a dignidade da pessoa humana, proibindo, dentre outras coisas, a adoção de penas que, por sua natureza ou modo de execução, atentem contra esse fundamento, envilecendo o cidadão infrator ou inviabilizando definitivamente a sua reinserção social ou, ainda, submetendo-o a um sofrimento excessivo. Veda, dessa forma, a aplicação de qualquer pena desumana ou degradante (QUEIROZ, 2011, p. 64).

O poder de castigar não é absoluto.Nem poderia ser diferente. O Estado Democrático de Direito não persegue a realização de valores absolutos de justiça, nem fins teocráticos ou metafísicos. O princípio da dignidade da pessoa humana representa, assim, como diz Daniel Sarmento (2000, pp. 195-196), o epicentro da ordem jurídica, conferindo unidade teleológica e axiológica a todas as normas constitucionais, pois o Estado e o Direito não são fins, mas apenas meios para a realização da dignidade do homem.É que o Estado que mata, que tortura, que humilha o cidadão, não só perde qualquer legitimidade como contradiz a sua própria razão de ser, que é servir à tutela dos direitos fundamentais do homem, colocando-se no mesmo nível dos delinquentes (FERRAJOLI, 1995, p. 396).

Em decorrência, a Constituição Federal proscreve expressamente a adoção da pena de morte, salvo no caso de guerra declarada, de caráter perpétuo, de trabalhos forçados, de banimento e cruéis (CF, art. 5º, XLVII), porquanto claramente incompatíveis com uma sociedade que se pretende civilizada. São,portanto, inaceitáveis por, ferirem a dignidade humana, toda sorte de pena que converta o infrator num inválido, parcial ou totalmente, ou que o impossibilite de, cumprida a pena, reintegrar-se à vida social.

É de se ressaltar que, conforme esclareceZugaldíaEspinar (1991, apud QUEIROZ, 2011, p.66), em nome da dignidade ficam também proibidas as penas exemplificadoras, pois, se forem descartadas as concretas exigências preventivas especiais, e somente importarem os critérios de prevenção geral, o delinquente deixará de ser um fim em si mesmo para se converter num meio para se obter efeitos sobre outros, convertendo a pena individualizada em inumana e degradante.

O princípio da humanidade também resta preservado na aplicação do processo restaurativo. Pode-se, inclusive, dizer que é mais respeitado aqui do que no modelo tradicional. Através do consenso construído em diálogo com a vítima, sociedade e infrator, todos têm a sua opinião preservada, o que constitui um marco de qualquer interação civilizada: o respeito à pessoa do semelhante. Assim é que o mediador não permitirá a imposição de soluções humilhantes ao acusado. Além disso, havendo voluntariadade do infrator no processo, o mesmo não se encontra obrigado a cumprir nenhuma determinação, do mediador ou da vítima, que considere ultrajante à sua pessoa. E se o consenso não for alcançado, o processo penal deverá prosseguir seu rumo natural.

4.4. Princípio da responsabilidade pessoal, individualização ou culpabilidade

A Constituição Federal trata expressamente desse princípio em seu art. 5º, XLV,o qual dispõe: “Art. 5º, XLV Nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens, nos termos da lei, ser estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do patrimônio transferido”.

O princípio da pessoalidade da pena impede a responsabilidade penal objetiva ou presumida.Assim, nenhuma pessoa pode ser responsabilizada por fato de terceiro ou objetivamente, devendo ser sempre apurado se o autor agiu com dolo ou culpa.

Nem poderia ser de outra forma, pois, se a função declarada do direito penal é a proteção subsidiária de bens jurídicos, segue-se que sua intervenção só pode ter lugar quando os seus destinatários se achem em condições de agirem conforme a norma. Onde falte o domínio da vontade humana a norma penal é todo ineficaz, não podendo mudar o curso dos eventos naturais (QUEIROZ, 2011, p.67).

Consequentemente, só pode haver responsabilidade penal se existir dolo ou culpa do agente.Ou seja, quando sua conduta seja previsível e evitável. Em outras palavras, um direito penal que pretenda exigir responsabilidade por fatos que não dependam em absoluto da vontade do indivíduo deve ser qualificado como arbitrário e disfuncional.

Assim, diferentemente de outros ramos do direito, em que se admite eventualmente a responsabilidade objetiva, a responsabilidade penal é sempre pessoal, não cabendo a responsabilidade coletiva, subsidiária, solidária ou sucessiva (BATISTA, 1990, p. 104). A exceção fica para os crimes ambientais.

Quanto à ressalva constitucional de que a obrigação de reparar o dano e a decretação de perdimento de bens poderá se estender aos sucessores do condenado até o limite do valor do patrimônio transferido, não há afronta ao princípio em tela, uma vez que o que se estende aos sucessores do condenado não é a pena, mas só os efeitos civis da sentença, exclusivamente em relação aos bens adquiridos com o produto do crime e até o limite do patrimônio transferido.

No tocante ao âmbito da Justiça Restaurativa, esse princípio também resta preservado. É o infrator quem participará do procedimento consensual, o qual deverá levar em conta suas condições pessoais, sociais, econômicas, enfim, suas particularidades, além das particularidades da vítima, a fim de se alcançar a solução mais justa. Ademais, é o infrator que deverá cumprir pessoalmente a medida convencionada, seja de restituição, seja um pedido de desculpa, seja a prestação de um serviço a terceiro etc. Por fim, se houver repercussão patrimonial, é sua herança que responderá, nos limites do que for transferido aos seus sucessores.

4.5 Princípio do devido processo legal

A Constituição da República Federativa do Brasil proclama, em seu art. 5º, LIV, que ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal. O princípio significa dizer que se devem respeitar todas as formalidades previstas em lei para que haja cerceamento da liberdade, ou para que alguém seja privado de seus bens ou direitos.

A tramitação regular e legal de um processo é a garantia dada ao cidadão de que seus direitos serão respeitados, não sendo admissível nenhuma restrição aos mesmos sem prévia estipulação legal. Portanto, a liberdade é a regra e o cerceamento à liberdade, a exceção. A Constituição Federal, ao tratar da liberdade, não especificou o tipo ou categoria. Assim, o intérprete não está autorizado a restringir o alcance desse dispositivo, o qual deve ser interpretado da maneira mais ampla possível, por constituir direito fundamental. Assim, entende-se que a expressão “da liberdade” compreende não só a liberdade de locomoção como toda e qualquer liberdade prevista no ordenamento jurídico (RANGEL, 2011, p. 34).

Por constituir marco fundamental do ordenamento, todos os outros princípios processuais derivam do devido processo legal, pois não há verdade processual e justiça sem que, para que se possa descobri-las, respeitem-se os procedimentos delineados em lei. Nessa linha, não há como se respeitar o contraditório e a ampla defesa, previstos no art. 5º, LV da CF, sem o respeito o devido processo legal.

Parte da doutrina defende que esse princípio possui duas vertentes: uma formal e uma substancial. A formal consiste justamente na obediência às normas processuais devidas durante a aplicação do processo punitivo. Já a substancial, ou material, leva em consideração valores de equidade e justiça, preocupando-se além da mera formalidade na efetivação da norma. Assim é que a vertente material do devido processo legal origina outros dois princípios ou critérios normativos: a razoabilidade e a proporcionalidade. 

Dada sua reconhecida relevância, conclui-se que o devido processo legal é o princípio reitor de todo o arcabouço jurídico processual. No dizer do mestre Frederico Marques (1997, apud RANGEL, 2011, p. 37): “O Estado, no processo, torna efetiva, por meio dos poderes jurisdicionais de que estão investidos os órgãos judiciários, a ordem normativa do direito penal, com o que assegura a aplicação de suas regras e seus preceitos”.

Sendo o baluarte de todo e qualquer processo e procedimento no âmbito judicial ou administrativo, a Justiça Restaurativa não seria exceção à obediência desse princípio. Dessa maneira, na vertente formal, o processo restaurativo deve obedecer ao procedimento previsto na lei que devidamente o instituir ou autorizar e, na vertente material, restará atendido com o alcance de uma solução justa, satisfatória, razoável e proporcional para as partes envolvidas.

4.6 Princípio da presunção de inocência

Este princípio encontra-se previsto no art. 5º, LVII da CF, o qual prevê que ninguém será tido como culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória.

Na doutrina, afirma-se frequentemente que este postulado impõe ao poder público a observânciade duas regras específicas em relação ao acusado. Uma de tratamento, segundoa qual o réu, em nenhum momento do iter persecutório, pode sofrer restriçõespessoais fundadas exclusivamente na possibilidade de condenação. A outra defundo probatório, a estabelecer que todos os ônus da prova relativa à existência do fato e à sua autoria devem recair exclusivamente sobre a acusação. Então, à defesarestaria apenas demonstrar a eventual incidência de fato caracterizador de excludentede ilicitude e culpabilidade, cuja presença fosse por ela alegada (PACELLI, 2011, p. 47).

No campo das prisões cautelares, esse princípio impõe que toda privação da liberdade, antes do trânsito em julgado deva ostentarnatureza assecuratória, ou seja, não punitiva, com a imposição daordem judicialdevidamente motivada.Em outras palavras, o estado de inocência proíbe a antecipaçãodos resultados finais do processo sem que haja razões de extrema necessidade, ligadas à tutela da efetividade do processo e/ouda própria realização da jurisdição penal.

Nessa linha, até mesmo para o ato de indiciamento, que vem a ser uma formalizaçãoda situação do investigadoem inquérito policial, é possível reclamar-se a presença de justa causa, uma condição da ação penal. É que também o indiciamento impõe uma cargasignificativa e socialmente onerosa à situação jurídica do inocente.

Também não se pode argumentar uma suposta naturezaprogramáticada norma constitucional em apreço. O próprio parágrafo único do art.5º da CF determina a aplicação imediata das normas que instituem direitose garantias fundamentais, como corolário do dever de respeito ao fundamento da dignidade da pessoa humana. Assim, toda normaconstitucional tem eficácia suficiente para revogar disposiçõeslegais com ela incompatíveis e anteriores à sua vigência.

O princípio da presunção ou estado de inocência também convive perfeitamente com o modelo restaurativo. O fato do processo alcançar um consenso pelas as partes envolvidas, e o fato desse acordo envolver uma prestação positiva ou negativa do infrator, o seu cumprimento não lhe implicará, de nenhuma maneira, assunção de culpa. Nem poderia ser de outra forma, pois o modelo restaurativo é baseado em procedimento informal, em que todas as partes se encontram no mesmo patamar. Aqui busca-se, propriamente, a restauração, não a condenação. Por isso, sendo cumprido ou não o acordo pelo infrator, em nada isso poderá afetarsua esfera de inocência.

5. Crítica ao novo modelo. Uma forma de privatização ou modernização do sistema jurídico penal?

Restando compatibilizados os princípios constitucionais penais e os princípios informadores da Justiça Restaurativa, parte-se, finalmente, para a análise de uma de suas principais vertentes críticas, a qual consiste em lhe atribuir os contornos deformadoresda justiça primitiva privada.

Para os autores que sustentam essa censura, a Justiça Restaurativa representaria um regresso ao império dos poderosos, onde prevaleceria sempre a vontade do mais forte.Tais estudiosos consideram o ajuste conciliador-reparador como um entendimento hipócrita, mercantil e conservador. Tal acordo ofereceria proteção unicamente aos interesses materiais das vítimas através de um pragmatismo exacerbado, frente ao qual os infratores ficariam indefesos, além de conter absoluta preterição aos fins sociais do Estado Social. Tudo se reduziria a uma mera operação de compra e venda mais própria de um “bazar de feira livre” do que de um Estado Democrático de Direito que se defina como Garantista (KRAPAC, 1997). Além disso, os mesmos críticos sustentam que a reparação se trata de instituto tipicamente empregado pelo Direito Civil, não devendo, por essa razão, se misturar aos propósitos e objetivos do sistema penal, de fins marcadamente públicos.

Esses argumentos são inconsistentes em dupla via, tanto em seu conteúdo quanto em seu fundamento. É o que se tentará provar a seguir.

No que tange ao conteúdo, de imediato é importante esclarecer algumas premissas fundamentais do sistema restaurativo. Primeiramente que, quando se faz referência ao esforço reparador do autor do delito não se está a afirmar que ele atenda tão somente ao interesse da vítima. Segundo que, a despeito do procedimento restaurativo se tratar de uma solução divertida[1], o mesmo – ao menos na maioria das experiências desenvolvidas até então – se encontra inserido dentro do próprio processo penal tradicional, diferindo-se somente quanto ao seu momento de ocorrência[2]. Assim, o estabelecimento do procedimento restaurativo deve depender de autorização expressa do magistrado ligado à causa e, da mesma maneira, o quanto acordado também deve ser homologado pelo respectivo juiz. Tudo de acordo com os princípios processuais anteriormente tratados.

Dessa forma, não há que se falar em desrespeito às garantias processuais do réu, porquanto em nenhum momento o mesmo se encontrará desacolhido pelo escudo dos princípios penais e processuais protetivos, seja antes, seja durante, seja após o procedimento consensual.

A reparação, em suma, não deve ser direcionada predominantemente ao autor do delito ou à vítima, devendo levar em consideração ambas as linhas de visão. De outra forma, a sentença penal condenatória, fruto do processo penal tradicional, somente proporciona à vítima um título executivo judicial, que termina carecendo de qualquer valor prático, quando o autor, como é comum acontecer, ou nada possui ou se subtrai à execução. Esse gasto inútil de energia, de tempo e de dinheiro no processo e na execução desaparece no momento em que o autor presta, por vontade própria, a indenização dos prejuízos (SANTANA, 2010). Nesse sentido, chega-se a uma situação inusitada, deveras, pouco comum, na qual convergem tanto os interesses da vítima como os do autor, precisamente aí residindo a grande força de deslumbramento deste novo modelo.

De outra sorte, quanto às garantias do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa de nada adianta a observância formal desses princípios, se só servirem para levar o acusado ao destino certo e “seguro” da punição severa (SICA, 2008).

Também não há como se alegar que a reparação seja um mecanismo tipicamente de direito privado, pois, como já exposto, não existe qualquer embasamento filosófico que defina cabalmente a cisão desses dois sistemas, tratando-se, portanto, de divisão meramente casuística, empírica e inconstante a depender de cada ordenamento.

Assim é que, para Roxin (apud SANTANA, 2010), a reparação conduz a uma relativa aproximação de ambos os ramos do Direito, sendo que sua introdução no sistema de sanções penais não significa, de forma alguma, a privatização do Direito Penal, a transformação da reparação em um novo tipo de pena, tampouco a criação de um novo fim para a pena. Ademais, isso não demonstra uma inversão da marcha do desenvolvimento histórico, mas, ao contrário, uma união modernizadora desses ramos do Direito, aos quais corresponde à função comum de dar soluções a conflitos sociais.

Por derradeiro, se o Direito Penal está assumindo uma tarefa que já é atribuída também ao Direito Civil, não constitui isso nenhum dano, apenas ilustra o reconhecimento de que os diferentes ramos do direitonão podem ficar isolados uns dos outros, confirmando a interdisciplinaridade, posto que devem perseguir objetivos semelhantes por caminhos distintos, até porque, a despeito de sua divisão ramificada, o Direito sempre deve ser considerado como único, tanto em seus fundamentos, quanto em suas finalidades.

Conclusão

A busca por instrumentos mais eficazes no combate à conflitualidade social tem sido o carro chefe das políticas de segurança pública de diversos Estados de Direito nas últimas décadas.

Contudo, a insistência na manutenção dos mesmos mecanismos tradicionais de tratamento penal e processual penal da criminalidade está a dar uma convincente indicação de que o caminho até então trilhado não tem conseguido lograr os frutos esperados. Portanto, mais evidente do que nunca – e em razão principalmente da abertura crítica proporcionada pelos movimentos abolicionistas e pela Vitimologia – urge a instauração de instrumentos de diversão para desafogar o já esgotado sistema retributivo e atender aos anseios que emergiram de sujeitos e entidadesdiretamente interessados no conflito, mas que, a seu despeito, sempre foram relegados pelo tratamento penal oficial, é dizer: a vítima e a comunidade.

Nessa ordem de fatores surge a proposta daJustiça Restaurativa, com seu modelo baseado na construção de um diálogo horizontal entre os agentes envolvidos no conflito (autor, vítima e comunidade) e visando ao estabelecimento de um acordo espontâneo que alcance, ao mesmo tempo, a reparação da vítima e a remição do infrator.

Com o novo sistema surgem também um sem número de críticas, muitas delas recheadas de carga valorativa do paradigma tradicional. Em seu contraponto, foram examinados os princípios constitucionais penais e processuais penais que constituem as garantias fundamentais do indivíduo que sofrem a persecução penal. Restou claro que todos se encontram em harmonia com os princípios do modelo restaurativo. Por fim, foi desconstruída a crítica que se faz ao mesmo, a qual alega se tratar de um retrocesso ao modelo privatista. Concluiu-se que, em verdade, a Justiça Restaurativaconstitui um avanço modernizador e integrador do direito público e privado em busca da pacificação social efetiva.

Referências
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ZAFFARONI, Eugênio Raul. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. Rio de Janeiro: Renavan, 1991.
Notas:
[1] Divergir significa optar por vias, formas ou métodos diferentes e alternativos ao que é (ou era) normal, comum ou habitual. Numa perspectiva de política criminal, diversão significa a eleição de uma ou mais opções que se destinem a prosseguir uma via exclusivamente desviada ao sistema de justiça “oficial”, na prevenção, gestão e resolução de determinados fatos penalmente relevantes. (FERREIRA, 2006).
[2] Podendo, assim, instaurar-se antes ou após o oferecimento da denúncia; antes ou após a sentença condenatória ou até mesmo na fase de execução, tudo a depender do respectivo ordenamento jurídico.

Informações Sobre o Autor

Bruno Miranda Novaes Barbosa

Graduado em Direito pela Universidade Federal da Bahia 2011. Pós-graduando em Direito Constitucional pela Universidade Anhanguera. Atualmente é Técnico Administrativo do Banco Central do Brasil e advogado


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