Sumário: 1. Ente Público ou Entidade Política. 1.1. Conceito e classificação. 1.2. Representação em juízo. 2. Ação Penal. 2.1. Conceito. 2.2. Classificação. 2.3. Natureza jurídica da ação penal privada subsidiária da pública. 2.4. A legitimidade dos entes políticos para, através de seus procuradores, proporem a ação penal privada subsidiária da pública, com relação aos crimes que causam lesão ao seu patrimônio.
1- ENTE DE DIREITO PÚBLICO OU ENTIDADE POLÍTICA
1.1– CONCEITO E CLASSIFICAÇÃO
Entidade ou ente, nada mais é do que a pessoa jurídica.
Assim, pode-se afirmar que, no âmbito de nossa organização política e administrativa, os entes de direito público são os estatais, autárquicos e fundacionais.
Acerca da definição dos aludidos entes, é de se trazer à baila as lições de Hely Lopes Meirelles:
“Entidades estatais: São pessoas jurídicas de Direito Público que integram a estrutura constitucional do Estado e têm poderes políticos e administrativos, tais como a União, os Estados-membros, os Municípios e o Distrito Federal. A União é soberana; as demais entidades estatais têm apenas autonomia política, administrativa e financeira, mas não dispõem de Soberania, que é privativa da Nação e própria da Federação.
Entidades autárquicas: São pessoas jurídicas de direito público, de natureza meramente administrativa, criadas por lei específica, para a realização de atividades, obras ou serviços descentralizados da entidade estatal que as criou. Funcionam e operam na forma estabelecida na lei instituidora e nos termos de seu regulamento. As autarquias podem desempenhar atividades educacionais, previdenciárias e quaisquer outras outorgadas pela entidade estatal-matriz, mas sem subordinação hierárquica, sujeitas apenas ao controle finalístico de sua administração e da conduta de seus agentes.
Entidades fundacionais: São pessoas jurídicas de Direito Público ou pessoas jurídicas de Direito Privado, devendo a lei definir as respectivas áreas de atuação, conforme inc. XIX do art. 37 da CF, na nova redação dada pela EC 19/98. No primeiro caso elas são criadas por lei, à semelhança das autarquias, e no segundo a lei apenas autoriza a sua criação, devendo o Poder Executivo tomas as providências necessárias à sua instituição.” [01]
Frise-se que, comumente, os doutrinadores utilizam-se dos termos Fazenda Pública; Ente Político; Estado-Administração ou Pessoa Jurídica de Direito Público como sinônimos de Ente de Direito Público.
1.2 – REPRESENTAÇÃO EM JUÍZO
Os entes públicos são representados em juízo pelo Chefe do Executivo ou por procurador constituído de forma contratual ou institucional.
O ente estatal, mais especificamente, os Estados-membros e o Distrito Federal, são representados por procuradores institucionalmente constituídos, nos termos do art. 132 da Carta Magna adiante transcrito:
“Art. 132: Os Procuradores dos Estados e do Distrito Federal, organizados em carreira, na qual o ingresso dependerá de concurso público de provas e títulos, com a participação da Ordem dos Advogados do Brasil em todas as suas fazes, exercerão a representação judicial e a consultoria jurídica das respectivas unidades federadas”.
Da mesma forma, a União, nos termos em que estabelece o disposto no artigo 131 da Constituição Federal:
“Art. 131: A Advocacia-Geral da União é a instituição que, diretamente ou através de órgão vinculado, representa a União, judicial ou extrajudicialmente, cabendo-se, nos termos da lei complementar que dispuser sobre sua organização e funcionamento, as atividades de consultoria e assessoramento jurídico do Poder Executivo”.
Os Municípios, por sua vez, são representados pelo Chefe do Executivo, ou por procurador, conforme estabelecido no inciso II do art. 12 do Código de Processo Civil: “Serão representados em juízo, ativa e passivamente: II – o Município por seu Prefeito ou procurador”.
Como se vê, a Constituição silenciou acerca da aludida representação, talvez pela grande dificuldade prática de se obrigar a instituição de Procuradorias, frente a notória escassez de recursos financeiros que afeta a grande parte dos Municípios.
No que concerne às autarquias e fundações de direito público, pode se afirmar que serão representadas por seus dirigentes máximos ou por procurador autárquico ou fundacional, nos termos em que dispuser a lei, conforme se depreende do disposto no art. 12 do Código de Processo Civil.
É interessante salientar, neste tópico, que os procuradores dos entes públicos são detentores da importante missão de promover ativa ou passivamente, a defesa da entidade que representa, e não do governo ou do dirigente executivo.
A propósito, ensina Cláudio Grande Júnior, citando Fides Angélica Ommati:
“Quanto à atividade de defesa, o grande impasse diz respeito a “não se confundir a defesa do Estado com defesa do governo, se bem que, por vezes, possa ocorrer”. E tal se deve ao fato de que do mesmo modo que no processo penal ao réu deve ser efetivamente garantida a ampla defesa, ao Estado também se deve garanti-la, porque ambas as hipóteses encarnam interesses indisponíveis. Pode-se afirmar categoricamente que “no plano da defesa jurídica, a evolução é marcada pela defesa dita integral, que inclui a judicial e extrajudicial”……Pode perfeitamente ocorrer de se ter que defender o governo, um vez que este dá tônica à atuação estatal, o que, inclusive, determina o comportamento do Estado em ações populares e civil públicas. Mas não se pode chegar ao absurdo de advogados públicos defenderem a pessoa do governante em processos criminais ou de mero interesse particular, porque aí, sim, este estaria patrimonializando mão-de-obra qualificada estatal em benefício pessoal. Aliás, o que o Estado ganharia com isso?. Nada, só o governo! Não se justifica, portanto, dito patrocínio judicial por advogados públicos”. [02]
Sobre o mesmo tema, as lições de Hely Lopes Meirelles:
“O Chefe do Executivo não pode utilizar advogado da Administração Pública, ou contratá-lo às expensas da Fazenda Pública, para sua defesa, por fato anterior ou concomitante ao exercício do cargo, salvo em questão pertinente às suas prerrogativas”. [03]
2 – AÇÃO PENAL.
2.1 – CONCEITO
O Prof. Júlio Fabrini Mirabete traz em sua obra “Processo Penal”, conceitos de ação penal elaborados por Magalhães Noronha e José Frederico Marques: “…o direito de pedir ao Estado-Juiz a aplicação do Direito Penal Objetivo” (Magalhães Noronha), ou ainda, “o direito de invocar-se o Poder Judiciário para aplicar o direito penal objetivo” (José Frederico Marques). [04]
O citado Mestre, por sua vez, adotando o conceito elaborado por Fernando da Costa Tourinho Filho, leciona que a ação penal:
a- É um direito autônomo:
O direito de ação é autônomo, pois não se confunde com o direito subjetivo material que ampararia a pretensão deduzida em juízo. Se não fosse, não se poderia compreender como o direito de ação pôde ser exercido pela parte quando, afinal, foi ela julgada improcedente. Tem assim a ação um conteúdo próprio, uma vida própria, diversos do direito material a que está ligado. O destinatário da ação não é o sujeito passivo da pretensão insatisfeita e sim o Estado, representado pelo órgão judiciário, a quem se endereça o pedido sobre a pretensão. O interesse do autor é ver atendida sua pretensão, aquela deduzida perante o Estado-Juiz.
b- É um direito abstrato:
Além de autônomo, o direito de ação é um direito abstrato, que investe o seu titular da faculdade de invocar o poder público, por meio dos órgãos judiciários, para compor uma lide e atender, se possível, a pretensão insatisfeita de que este se origina. Independe, portanto, do resultado final do processo, de que o autor tenha ou não razão, ou de que obtenha ou não êxito no que pretende.
c- É um direito instrumental, específico e determinado:
É também um direito instrumental. Embora o fim último do autor seja o de obter um resultado favorável à pretensão insatisfeita, o direito de ação tem por fim a instauração do processo, com a tutela jurisdicional, para a composição da lide. Esse direito instrumental, porém, só existe porque é conexo a um caso concreto. Ingressa-se em juízo pretendendo algo específico. Seu conteúdo é a pretensão deduzida, como determinado, porque está ligada a um fato ou interesse concreto.
d- É um direito subjetivo:
É a ação um direito subjetivo, porque o titular pode exigir do Estado-Juiz a prestação jurisdicional.
e- É um direito público:
É um direito público porque serve para a aplicação do direito público, que é o de provocar a atuação jurisdicional.
E, por fim, assevera:
Diante de tais características pode-se adotar a definição de ação fornecida por Fernando da Costa Tourinho Filho: “Ação é o direito subjetivo de se invocar do Estado-Juiz a aplicação do direito objetivo a um caso concreto. Tal direito é público, subjetivo, autônomo, específico, determinado e abstrato”. (grifo nosso) [05]
2.2 – CLASSIFICAÇÃO DAS AÇÕES PENAIS
Vários são os critérios de classificação das ações penais.
Colocando-se a ação penal no esquema da Teoria Geral do Processo, em face do seu conteúdo, pode-se afirmar que ela subdivide-se em ações de conhecimento (declaratória, constitutiva e condenatória), as cautelares e as executivas.
Convém trazer à colação, a este altura, as lições do Professor Julio Fabrini Mirabete:
a- Ação penal declaratória:
Ação penal de conhecimento é aquela em que a prestação jurisdicional consiste numa decisão sobre situação jurídica disciplinada no Direito Penal. São exemplos de ação penal declaratória o hábeas corpus preventivo em que o pedido é de declarar-se a existência de uma ameaça à liberdade de locomoção….
b- Ação penal constitutiva:
Sendo a ação penal constitutiva àquela destinada a criar, extinguir ou modificar uma situação jurídica sob a regulamentação do direito penal ou formal, apontam-se como exemplos as referentes ao pedido de homologação de sentença penal estrangeira e o de revisão criminal (que é uma rescisória no campo penal).
c- Ação penal condenatória:
A ação penal condenatória, destacadamente a mais relevante no campo penal, é a que tem por objetivo o reconhecimento de uma pretensão punitiva ou aplicação de medida de segurança, para que seja imposto ao réu o preceito sancionador da norma penal incriminadora.
d- Ação penal executiva:
Como ação penal executiva, em que se dá atuação à sanção penal, cita-se a execução da pena de multa, disciplinada nos artigos 164 a 170 da Lei de Execução Penal. Como a execução das demais penas (privativas de liberdade e restritivas de direito) independe de provocação dos órgão da persecução penal, procedendo-se de ofício, sem citação, não há que se falar, nessas hipóteses, em ação executiva, mas em prolongamento da ação penal condenatória.
e- Ação penal cautelar:
A ação cautelar, em que há a antecipação provisória das prováveis conseqüências de uma decisão de ação principal em que se procura afastar o periculum in mora assegurando a eficácia futura desse processo, encontra exemplos no processo penal na perícia complementar (art. 168), no depoimento ad perpetuam rei memoriam (art. 225), na prisão preventiva (arts. 311 e ss) etc. [06]
Todavia, o critério mais utilizado é aquele que se baseia no aspecto subjetivo do titular da ação penal.
Adotando-se o citado critério, as ações penais são públicas, quando a titularidade de seu exercício é do Ministério Público, ou privadas, quando seu titular é o particular ofendido ou seu representante legal.
As ações penais públicas, por sua vez, subdividem-se conforme esteja ou não presente uma condição específica de procedibilidade, qual seja, a representação do ofendido ou requisição do Ministro da Justiça. Quando se exige este requisito, a ação é pública condicionada; nos demais casos a ação será pública incondicionada.
É de se ressaltar que os motivos determinantes do enquadramento de determinado crime a um dos tipos de ação supracitados são de natureza política criminal.
Assim, os crimes mais agressivos a sociedade, são de persecução absolutamente indisponível, estando sujeitos a ação pública incondicionada.
Nos crimes em que ocorra lesão imediata concernente à esfera íntima do ofendido e apenas mediata ao interesse da coletividade, exige-se que o ofendido manifeste o desejo de que se inicie a persecução, embora a iniciativa continue sendo pública (ação penal pública condicionada).
Crimes há em que a ofensa atinge quase que exclusivamente o interesse do sujeito passivo. Nestes, o Estado confere ao ofendido o próprio direito de ação.
Tendo em vista a finalidade do presente trabalho, concentraremos a atenção mais especificamente, embora de forma bastante concisa, na sub-classificação das ações penais privadas.
Leciona o Mestre Julio Fabrini Mirabete, que:
“há duas formas de ação privada: a exclusiva, ou principal, e a subsidiária da ação pública. A ação privada exclusiva somente pode ser proposta pelo ofendido ou por seu representante legal…Fala-se na ação privada personalíssima, cujo exercício compete, única e exclusivamente, ao ofendido, em que não há sucessão por morte ou ausência”. [07].
No que se refere à ação privada subsidiária da pública, assevera o citado mestre que pode “intentar-se nos crimes de ação pública, se o Ministério Público não oferece denúncia no prazo legal (art. 100, § 3º, do CP, e art. 29, do CPP). [08].
Veja-se o que dispõem os citados dispositivos legais:
Art. 100 – A ação penal é pública, salvo quando a lei expressamente declara privativa do ofendido.
…….
§ 3º – A ação de iniciativa privada pode intentar-se nos crimes de ação pública, se o Ministério Público não oferece denúncia no prazo legal”.
“Art. 29 – Será admitida ação privada nos crimes de ação pública, se esta não for intentada no prazo legal, cabendo ao Ministério Público aditar a queixa, repudiá-la e oferecer denúncia substitutiva, intervir em todos os termos do processo, fornecer elementos de prova, interpor recurso e, a todo tempo, no caso de negligência do querelante, retomar a ação como parte principal.”
Assim, é de se concluir que a aludida ação pode ser intentada por qualquer um que tenha o seu bem jurídico lesado ou ameaçado pela prática de crime, qualquer que seja a lei definidora do ilícito.
Assente-se, em passant, que a propositura desta ação só tem guarida quando caracterizada a inércia do Ministério Público. Vale dizer: quando, transcorrido o prazo legal, não são tomadas as providências cabíveis, o que não ocorre, vale ressaltar, quando o inquérito policial é arquivado por despacho do juiz, a requerimento do Promotor de Justiça.
No ponto, Mirabete observa que:
“A ação penal subsidiária, ou supletiva, só tem lugar no caso de inércia do órgão do MP, ou seja, quando ele, no prazo que lhe é concedido para oferecer a denúncia, não a apresenta, não requer diligência, nem pede o arquivamento. Arquivado o inquérito policial, por despacho do juiz, a requerimento do Promotor de Justiça, não pode a ação penal ser iniciada sem provas (Súmula 525) e, em conseqüência, não cabe a ação privada subsidiária”. [09].
No mesmo sentido, o entendimento do Supremo Tribunal Federal:
“Para que surja o direito de promover a ação penal privada subsidiária é indispensável que tenha havido omissão da ação pelo Ministério Público, o que nada mais é do que a inércia processual – falta de oferecimento de denúncia ou de pedido de arquivamento formulado à autoridade judiciária – e não verificar-se se ocorreu ou não inércia administrativa do citado órgão”. (HC – Rel. Sydney Sanches – RT – 609/420).
2.3 – NATUREZA JURÍDICA DA AÇÃO PENAL PRIVADA SUBSIDIÁRIA DA PÚBLICA
Como é cediço, a ação penal privada subsidiária da pública, está prevista, inclusive, no art. 5º, inciso LIX da Constituição Federal: “Será admitida ação privada nos crimes de ação pública, se esta não for intentada no prazo legal”.
A propósito, ensina o Prof. Mirabete que:
“Essa ação privada subsidiária da ação pública passou a constituir garantia constitucional com a nova Carta Magna (art. 5º, LIX), em consonância, aliás, com o princípio de que a lei não pode excluir da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito (art. 5º , XXXV). Atende-se ao inderrogável princípio democrático do processo a participação do ofendido na persecução penal” [10].
O Procurador da República Anastácio Nóbrega Tahim Júnior, por sua vez, observa:
“Alçada à categoria de garantia constitucional, a ação penal privada subsidiária da pública ainda suscita controvérsias. Singularizada por muitos como uma verdadeira avis rara de nosso ordenamento jurídico, sem prejuízo da inconveniência resultante de sua existência num sistema acusatório, como é o caso do nosso, a verdade é que, com assento no artigo 5º de nossa Carta Política de 1988, a ação penal privada subsidiária consubstancia-se em cláusula pétrea, em que pese todas essas honrosas críticas”. [11]
Têm-se, pois, que a natureza jurídica da ação penal privada subsidiária da pública é de instrumento de garantia constitucional, podendo, assim, ser também chamada de “remédio”.
2.4 – A LEGITIMIDADE DOS ENTES POLÍTICOS PARA, ATRAVÉS DE SEUS PROCURADORES, PROPOREM A AÇÃO PENAL PRIVADA SUBSIDIÁRIA DA PÚBLICA, COM RELAÇÃO AOS CRIMES QUE CAUSAM LESÃO AO SEU PATRIMÔNIO.
Conforme visto acima, a ação supracitada caracteriza-se como cláusula pétrea e pode ser intentada por qualquer um que tenha o seu interesse ou bem jurídico lesado ou ameaçado de lesão pela prática de crime.
Todavia, é necessária uma análise acerca da abrangência da aplicabilidade desse dispositivo constitucional.
Assim, impõe-se, primeiramente, definir qual seria o sujeito passivo detentor da legitimidade para a propositura da ação subsidiária.
Não se pode afirmar, obviamente, que o citado sujeito passivo poderia ser tão-somente a pessoa física.
É evidente que também detém esta condição a pessoa jurídica, eis que pode, obviamente, também sofrer lesão ou ameaça de lesão, em decorrência da prática de uma infração penal.
Neste sentido é o entendimento do Prof. Fábio Ramazzini Bechara, ao comentar acerca da pessoa jurídica na condição de sujeito passivo de crimes:
Nesse mesmo conceito se inserem não somente as pessoas físicas, mas igualmente as pessoas jurídicas, sejam elas de direito público ou de direito privado. No crime de estelionato, na modalidade emissão de cheques sem fundos, por exemplo, tanto é possível que o sujeito passivo seja uma pessoa física quanto uma pessoa jurídica – uma empresa, uma sociedade de economia mista, a União, os Estados, os Municípios. (grifo nosso). [12]
Não há se falar que o Ministério Público, por se confundir com o Estado-Administração, retiraria deste a legitimidade para propor a ação subsidiária, eis que, consoante é sabido, a Constituição Federal de 1988 retirou do Parquet a atribuição de representante judicial dos entes de Direito Público (arts. 131 e 132), o que os legitima plenamente para a propositura da ação subsidiária.
Como dilucida o Professor Airton Rocha Nóbrega:
Uma avaliação atual dessa questão, exige, necessariamente, que se considere o fato de estarem deslocadas da esfera de competência do Ministério Público as atribuições alusivas à representação judicial dos entes de Direito Público que, com a promulgação da Carta Federal de 1988, se viu transferida, no âmbito federal, para a esfera da Advocacia-Geral da União (art. 131).
Esse órgão passou a ter, portanto, por intermédio de quadro próprio, de forma independente e dissociada da atuação do Ministério Público, a função institucional de representante judicial da União, diretamente ou através de órgão vinculado.
Ao Ministério Público, como órgão independente e instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, reserva-se o exercício de atribuições que lhe são próprias (CF: art. 129), não mais fazendo parte desse rol de atividades aquela alusiva à representação de tais entes.)(grifei) [13]
Por sua vez, o Professor Rodolfo de Camargo Mancuso, citando José Marcelo Menezes Vigliar, afirma:
Nesse ponto, é muito importante a distinção conceitual, desenvolvida na doutrina italiana por Renato Alessi, entre “interesse público primário” e “interesse público secundário”, cujo desdobramento permite, a nosso ver, a não menos importante distinção entre “interesse público” (propriamente dito) e “interesse fazendário” ou “da Administração Pública”.
Note-se que o art. 127 da CF legitima o Ministério Público à defesa “dos interesse sociais e individuais indisponíveis”, mas no art. 129, IX, veda-lhe “a representação judicial e a consultoria jurídicas entidades públicas”, justamente por causa daquela distinção, observando-se, v.g., que “o interesse da União” vem a ser defendido por esse mesmo ente político, através de sua Procuradoria, no caso a Advocacia Geral da União (CF, art. 131). No ponto, preleciona José Marcelo Menezes Vigliar: “Fica patente que nem sempre o interesse cujo Estado (enquanto pessoa jurídica de direito público) é o titular coincide com o interesse público identificado com o conceito de bem geral (interesse da coletividade como um todo). (grifo nosso) [14]
O Professor Jessé Torres Pereira Júnior, ao comentar o disposto no art. 103 da Lei Federal n. 8.666/93, em singular e objetiva apreciação, assevera com plena juridicidade, que o Estado-Administração, por distinguir-se do Ministério Público, tem plena legitiminade para propor a ação subsidiária:
Consagrou o legislador, neste dispositivo, o que a doutrina nomeia ação penal privada subsidiária da pública. Instituto incluído nos artigos 29 e 30 do Código de Processo Penal e alçado a direito individual pelo constituinte de 1988, consiste na garantia que se assegura ao cidadão de poder deflagrar o processo persecutório do infrator em caso de inércia de órgão de atuação do Ministério Público, quando este deixa de propor a ação penal, oferecendo a denúncia no prazo legal. É hipótese, pois, de substituição processual, eis que o ofendido ou quem tenha qualidade para representá-lo atua em nome próprio defendendo direito alheio, uma vez que o titular do direito de punir é o Estado.
Cumpre, pois, definir quem tem a legitimação extraordinária para propor a ação penal privada subsidiária. Remete o dispositivo em comento ao disposto nos artigos 29 e 30 do diploma processual penal, estabelecendo este último que caberá ao ofendido (ou a quem tenha qualidade para representá-lo) a iniciativa para intentar a ação penal no caso de omissão do Ministério Público. Legitimado, pois, será o titular do bem jurídico penalmente tutelado e lesado pelo ato infracional praticado.
Sob este prisma, vamo-nos deparar com curiosa situação, nos caso dos crimes definidos na Lei: como, em todos eles, o objeto da proteção penal é a Administração Pública e, por conseguinte, sujeito passivo primário é o Estado, disto se segue será ele, o ofendido, o legitimado extraordinariamente para a propositura da ação penal privada subsidiária da pública. Peculiar situação em que veremos o Estado substituindo-se…ao próprio Estado!
Com efeito. Titular do direito de ação penal pública, não detém o Ministério Público um direito próprio, seu, exclusivo, senão que a Constituição lhe confere a guarda e o exercício de um direito do Estado, já que a este, e só a este, se reconhece a titularidade do direito de punir. Por isto mesmo, é o Ministério Público órgão do Estado, velando o legislador constituinte por conferir-lhe prerrogativas (antes só reconhecidas à magistratura) que lhe assegurassem a necessária independência no exercício da superior função que lhe entregou a Carta da República. O exame destas prerrogativas (art. 128, I, da Constituição Federal) revela a preocupação do legislador constituinte, em tornar os membros do Parquet imunes a influências e pressões originadas, de regra, no seio da Administração Pùblica.
Disto se depreende que nem sempre são coincidentes os interesses defendidos e tutelados pelo Ministério Público e aqueles patrocinados pela Administração Pública. A prática, aliás, demonstra o sem-número de vezes em que o Ministério Público atua contra a Administração Pública, promovendo medidas na área cível e criminal, que confrontam o exercício do poder pelo administrador.
Não é de desprezar-se, portanto, a hipótese em que o entendimento do Ministério Público contrarie os interesses da Administração Pública quando à dedução da ação penal, não se podendo admitir que o Estado, por sua Administração, se visse tolhido em seu direito de ver submetida à apreciação do Poder Judiciário lesão que entenda ter ocorrido a direito seu, no caso de inércia ou inação da representação do Ministério Público.
Não hesitamos, portanto, em admitir que, em se tratando de crime definido na Lei (como, de resto, em qualquer crime cometido contra interesse ou patrimônio da Administração Pública), a inércia do Ministério Público, na propositura da ação penal pública autoriza ao Estado, por sua Administração, o exercício da ação penal privada subsidiária, hipótese em que ele se equipara ao particular (como em tantas outras, aliás), assim como o exercício da faculdade de recorrer, prevista no artigo 598 do Código de Processo Penal, nos casos em que o órgão de atuação do Ministério Público se conforme com a decisão proferida na ação penal, mas cujo desfecho a Administração Pública repute incompatível com o interesse público.(grifei) [15]
Assim, caracterizada a efetiva distinção de interesses e de atuação entre o Ministério Público e os entes da Federação, bem como a evidente possibilidade destes serem sujeitos passivos imediatos de crimes (ex: artigos 312/327 do CP), resta categoricamente demonstrada a legitimidade dos aludidos entes de, através de seus procuradores, proporem a ação privada subsidiária da pública, com relação aos crimes em que figurem como vítimas (sujeito passivo imediato), em havendo omissão do Parquet, lembrando, nesse ponto, que a aludida ação fora elevada à categoria de garantia constitucional, conforme visto no item anterior.
Realce-se, ainda, que se a melhor doutrina tem admitido, inclusive, a propositura da ação subsidiária da pública até mesmo nos chamados crimes vagos, quanto mais naqueles tipos penais em que o ente público é de pronto identificado como vítima.
A esse respeito, e para corroborar ainda mais as afirmativas acima, é de se transcrever parte da tese apresentada e aprovada pelo Ilustre Procurador da República em Goiás, Dr. Anastácio Nóbrega Tahim Júnior, no 13º Congresso Nacional do Ministério Público, onde cita, inclusive, o Código de Defesa do Consumidor, que prevê a titularidade da ação subsidiária até mesmo por órgão da administração pública sem personalidade jurídica:
“…..não se pode deixar de ter presente que a ação penal privada subsidiária é privada, apenas, subsidiariamente. Traz ela, como pano de fundo, toda a principiologia que inspira e informa as ações penais públicas. Em se tratando de ação pública em sua essência, pois, como qualquer uma outra, seu móvel não é um interesse particular da vítima, mas o interesse público que anima e justifica a própria repressão criminal.
Parece insustentável, portanto, que esse interesse público e princípios como o da obrigatoriedade e da indisponibilidade, por exemplo, possam não ser reconhecidos a ponto de cair no vazio a persecução penal quando inerte o Ministério Público, em casos que tais; tão somente pelo fato de se ter, como sujeito passivo, uma dada coletividade…
Assim, quer tenha o crime, como sujeito passivo, uma pessoa individualmente considerada e determinada, quer uma coletividade destituída de personalidade jurídica, é possível concluir, com extrema razoabilidade, que há identidade de razão jurídica entre ambas as situações, a justificar a aplicação dos mesmos princípios e dispositivos.
É dizer, qualquer que seja o delito, se inerte o Ministério Público quando do oferecimento de denúncia, estará aberto o caminho para a ação penal privada subsidiária, por quem detenha a necessária legitimidade…..”
……….
Corroborando a tese aqui esboçada, no sentido de que a ação penal privada subsidiária da pública também tem ampla aplicação nos crimes que comprometem toda uma coletividade – e a de consumidores não poderia passar ao largo dessa disciplina -, a Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990, atribuiu legitimidade ativa para aquela causa também aos legitimados indicados no artigo 82, incisos III (as entidades e órgãos da administração pública, direta ou indireta, ainda que sem personalidade jurídica, especificamente destinados à defesa dos interesses e direitos protegidos pelo CDC) e IV (as associações legalmente constituídas há pelo menos um ano e que incluam entre seus fins institucionais a defesa dos interesses e direitos protegidos pelo CDC) da mesma lei, nos termos de seu artigo 80.
Conclusão:
……….
I – a ação penal privada subsidiária da pública tem, também,plena aplicação nos chamados crimes vagos; aqueles em que o sujeito passivo é uma coletividade destituída de personalidade jurídica;
II – em caso de inércia do Ministério Público no oferecimento de denúncia em casos que tais (crimes contra a incolumidade pública ou mesmo contra o meio ambiente, por exemplo), a ação penal de iniciativa privada subsidiária da pública poderá ser proposta por todo aquele que puder se identificar, ao lado da coletividade a que pertence, como sendo o titular do bem jurídico tutelado pela norma penal;
III – a noção de coletividade lesionada e, conseqüentemente, de indivíduos que a integra, para os fins de ação penal privada subsidiária da pública, deve-se prender à idéia de sujeito passivo. A extensão desses conceitos, portanto, vai até onde houver titularidade do bem jurídico penalmente protegido; e
Quanto aos crimes vagos que interessem às relações de consumo, a legitimidade ativa para a causa é, sem prejuízo da pertencente ao ofendido, também conferida aos legitimados indicados no art. 82, incisos III (as entidades e órgãos da administração pública, direta ou indireta, ainda que sem persolnalidade jurídica, especificamente destinados à defesa dos interesses e direitos protegidos pelo CDC) e IV (as associações legalmente constituídas há pelo menos um ano e que incluam entre os seus fins institucionais a defesa dos interesses e direitos protegidos pelo CDC) da Lei n. 8.078/90). (grifo nosso) [16]
Tem-se, assim, que a legitimidade do Estado para a propositura da ação subsidiária fundamenta-se, também, pela aplicação do disposto no art. 3º do Código de Processo Penal c/c art. 82, III da Lei 8.078/90.
CONCLUSÃO
A Constituição Federal assegura ao Estado-Administração, através de seus procuradores, a legitimidade para a propositura da ação penal privada subsidiária da pública, com relação aos crimes que causam lesão ao seu patrimônio, em havendo caracterizada omissão do Parquet.
Procurador do Estado de Rondônia, Pós-Graduando em Direito Constitucional pela Avec – Associação Vilhenense de Educação e Cultura
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