“Liberdade é o direito de fazer tudo aquilo que as leis permitem.”- Charles de Montesquie
INTRODUÇÃO
Na data de 23 de agosto de 2006 adentrou no cenário jurídico nacional a Lei nº11.343[1] a qual institui uma nova sistemática repressiva concernente às ilicitudes envolvendo substâncias estupefacientes, considerando-se estas, consoante o parágrafo único do art. 1º da referida Lei em estudo, aquelas substâncias ou produtos capazes de causar dependência, assim especificados em lei ou relacionados em listas atualizadas periodicamente pelo Poder Executivo da União.
Acabaram sendo revogadas a Lei nº 6.368, de 21 de outubro de 1976, a qual regeu a atuação policial pelo longo interstício temporal de 30 anos, bem como a recente Lei nº 10.409, de 11 de janeiro de 2002.[2] Foi estabelecida, ainda, consoante o art. 74 da Lei em comento,[3] a vacatio legis de 45 dias, entendido citado instituto como sendo o “período entre a data de publicação da nova lei e data da sua entrada em vigor”.[4]
Dessa arte, por que o texto legal é novel e ainda se encontra em incandescente discussão no cenário da doutrina pátria, estabelecer-se-ão, neste escrito, de forma precisa e hialina, aquelas modificações legais advindas especificamente no que tange à atuação da Polícia Judiciária brasileira, deixando-se os demais tópicos remanescentes à vasta gama de trabalhos literários ou científicos que ainda advirão da nossa literatura de doutrina nacional.
Outrossim, vale mencionar que os institutos a serem abarcados nesta dissertação referir-se-ão, exclusivamente, àquelas modificações significativas advindas ao cenário de Polícia Judiciária. Desta forma, deixar-se-á de analisar, ou mesmo de descrever, aqueles institutos outros que, não obstante possuam relevância na atuação policial, deixaram de trazer consigo alguma novidade.
1. A LEI Nº11.343, DE 26 DE AGOSTO DE 2006, E AS ESPECÍFICAS MODIFICAÇÕES RELATIVAS AO LABOR POLICIAL
1.1. Questões relativas à atuação policial frente o usuário de substâncias estupefacientes
A posse de entorpecentes, antes do novato texto, também ensejava, como cominação legal, pena privativa de liberdade. Todavia, agora, consoante o art. 28 da Lei nº11.343/06, a restrição da liberdade ao usuário não encontra qualquer respaldo legal. Com efeito, quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, substâncias estupefacientes sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido, tão-somente, à advertência sobre os efeitos das drogas, à prestação de serviços à comunidade e à medida educativa de comparecimento à programa ou curso educativo.
Assim, apresentado à Autoridade Policial, o usuário será compromissado, nos devidos termos da Lei nº9.099/95,[5] à audiência judicial, elaborando-se termo circunstanciado a respeito. Cabe salientar, ainda, que, em não aceitando o mencionado compromisso de comparecimento à audiência judicial, não mais se imporá prisão em flagrante ao usuário, ao contrário do que rezava a Lei nº9.099/95[6] antes da entrada em vigor da Lei nº11.343/06, pois esta vedou a pena privativa de liberdade ao usuário de entorpecentes.
Por outro lado, às mesmas medidas legais de competência da Polícia Judiciária a que deve submeter-se quem faz utilização de substâncias estupefacientes, subordina-se também quem, para seu consumo pessoal, semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica (art. 28, §1º). Neste ponto, a autoridade policial deve dirigir plena atenção ao elemento normativo consubstanciado no adjetivo “pequena” do tipo penal, a fim de diferenciar o traficante deste modelo de usuário.
Aspecto relevantíssimo, outrossim, é que, mesmo descumprindo as medidas cominadas, o usuário, ainda assim, livre está de repressão à sua liberdade, ocasião em que lhe poderão ser submetidas, tão-somente e sucessivamente, admoestação verbal e multa (Art. 28, §6º).
Por outro lado, quando um usuário for apresentado à Autoridade Policial, esta, a fim de não proceder à lavratura de auto de prisão em flagrante pelo crime de tráfico de entorpecentes, mas decidir, tão-só, pela instauração de procedimento relativo a usuário, deverá fundamentar seu decisum, conforme a natureza e a quantidade da substância apreendida, o local e as condições em que se desenvolveu a ação, as circunstâncias sociais e pessoais, bem como a conduta e os antecedentes do agente (art. 28, §2º).
Também vale relatar que adveio direito subjetivo ao usuário com a novel legislação, oportunidade em que este, assim que findar o atendimento policial em torno da ocorrência que o envolveu, na ocasião da sua liberação, poderá requerer seja submetido a exame de corpo de delito, conjuntura em que a Autoridade Policial estará compelida a atendê-lo, ainda que não considere o exame necessário (art. 48, §4º). Certamente, o Legislador inseriu referido dispositivo na legislação, com o intuito de preservar a integridade física do delinqüente perante possíveis abusos de autoridade. Esqueceu-se, porém, o legislador de que não são dispositivos legais os instrumentos aptos a sobrestar abusos possíveis de autoridade. Servem, isto sim, como instrumentos para esse fim, a adequada seleção e preparação por parte do Estado dos seus agentes. De facto, se houver intenção de algum abuso, basta ao policial submeter o usuário a exame de corpo de delito antes da realização da pretendida agressão física.
Quanto à prescrição da atuação estatal em torno do usuário, por outro lado, prescreve ela em 02 anos no tocante à imposição e à execução das penas previstas no estatuto repressivo (art. 30), observado, no tocante à interrupção do prazo, o disposto nos arts. 107 e seguintes do Código Penal.[7]
Como se viu, por fim, no tocante à posse de entorpecentes, não houve a sua descriminalização, mas, isto sim, parcial despenalização, oportunidade em que foi, tão-somente, suprimida a privação da liberdade do usuário, devendo-se a atuação policial frente a posse de entorpecentes permanecer zelosa como dantes.
1.2. Questões relativas à atuação policial frente o tráfico de entorpecentes
O tipo referente ao tráfico de substâncias estupefacientes é um dos melhores exemplos de tipificação múltipla ou de conteúdo variado existente em nosso ordenamento penal. Com efeito, incide no tipo quem importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar. Da mesma forma, ainda incide nas mesmas penas do tráfico quem importa, exporta, remete, produz, fabrica, adquire, vende, expõe à venda, oferece, fornece, tem em depósito, transporta, traz consigo ou guarda, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, matéria-prima, insumo ou produto químico destinado à preparação de drogas. Também incide no tipo quem semeia, cultiva ou faz a colheita, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, de plantas que se constituam em matéria-prima para a preparação de drogas. Por fim, também incide no tipo primário quem utiliza local ou bem de qualquer natureza de que tem a propriedade, posse, administração, guarda ou vigilância, ou consente que outrem dele se utilize, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, para o tráfico ilícito de entorpecentes (art. 33, “caput”, e seu §1º, I, II e III).[8]
Cumpre salientar, bem assim, que induzir, instigar ou auxiliar alguém ao uso indevido de droga constitui, agora, tipo autônomo de crime (33, §2º) cuja pena privativa de liberdade máxima prevista abstratamente é de três anos de detenção, ou seja, bem mais tênue do que aquela cominada para o tipo básico de tráfico.
Importantíssima modificação legislativa, ainda, atine ao fato de que, doravante, não mais é permitido à Autoridade Policial proceder à prisão daquele que oferecer droga, eventualmente e sem objetivo de lucro, à pessoa de seu relacionamento, a fim de juntos consumirem-na, isso se houver o comprometimento por parte de referido autor em comparecer à audiência aprazada nos Juizados Especiais Criminais.
Com efeito, na vigência da legislação anterior, a Autoridade Policial deveria levar a efeito a prisão em flagrante daquela pessoa que incidisse em referida conduta, porquanto haveria ocorrido a caracterização de tráfico ilícito de entorpecentes. Hoje, todavia, está sujeito o autor de mencionado fato às regras dos Juizados Especiais Criminais, cujo procedimento policial a respeito cinge-se ao denominado Termo Circunstanciado,[9] porquanto a pena máxima privativa de liberdade a que estará sujeito não passa, in abstracto, ao montante de um ano de detenção (art. 33, §3º).
Por fim, também estará, nesta mesma linha, sujeito ao juizado Especial Criminal, quem prescrever ou ministrar, culposamente, drogas, sem que delas necessite o paciente, ou fazê-lo em doses excessivas ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar cuja pena máxima privativa de liberdade cominada em abstrato não ultrapassa o patamar de dois anos (art. 38).
1.3. Questões relativas à atuação policial frente a constituição do Inquérito Policial
A autoridade policial deverá estar atenta ao fato de que, colaborando para com a investigação policial, ao indiciado cabem benefícios legais, ocasião em que o Delegado de Polícia deverá consignar nos autos do inquérito policial referidas colaborações advindas voluntariamente, a fim de não privar o investigado dos benefícios concedidos à sua pessoa pela Legislação. De facto, se o indiciado ou acusado colaborar voluntariamente com a investigação policial e o processo criminal na identificação dos demais co-autores ou partícipes do crime e na recuperação total ou parcial do produto do crime, no caso de condenação, terá sua pena reduzida de um a dois terços (art. 41).
Nas hipóteses, outrossim, em que o inquérito policial for iniciado por auto de prisão em flagrante, não houve introdução de modificações pela novel Legislação, conjuntura em que a autoridade de polícia judiciária fará, imediatamente, comunicação do ato ao juiz competente, remetendo-lhe cópia do auto lavrado, do qual será dada vista ao órgão do Ministério Público, em 24 (vinte e quatro) horas, bem como, para efeito da lavratura do auto de prisão em flagrante e estabelecimento da materialidade do delito, é suficiente a autoridade policial providenciar o laudo de constatação da natureza e quantidade da droga firmado por perito oficial ou, na falta deste, por pessoa idônea.
Não obstante, no que tange aos prazos legais para a conclusão do inquérito policial, houve significativa transformação, ocasião em que deverá ser ele concluído no prazo máximo de 30 (trinta) dias, se o indiciado estiver preso, e de 90 (noventa) dias, quando solto (art. 51). Além disso, conforme reza o parágrafo único do art. 51, os prazos acima podem ser duplicados pelo juiz, ouvido o Ministério Público, mediante pedido justificado da autoridade de polícia judiciária.
Pertinente, ainda, aos prazos para a remessa das diligências complementares, após o inquérito policial, foi estabelecido o interstício temporal de três dias antes da audiência de instrução e julgamento (art. 52, parágrafo único, I e II).
1.4. Questões relativas à atuação policial frente a infiltração por agentes policiais em tarefas de investigação criminal
Em qualquer fase da persecução criminal relativa aos crimes previstos na nova legislação, é permitida, consoante o seu art. 53, além dos previstos em outras legislações, mediante autorização judicial e ouvido o Ministério Público, a infiltração por agentes de polícia, em tarefas de investigação, constituída pelos órgãos especializados pertinentes, bem como a não-atuação policial sobre os portadores de drogas, seus precursores químicos ou outros produtos utilizados em sua produção, que se encontrem no território brasileiro, com a finalidade de identificar e responsabilizar maior número de integrantes de operações de tráfico e distribuição, sem prejuízo da ação penal cabível.
É importante salientar que, nesta última hipótese, a autorização será concedida desde que sejam conhecidos o itinerário provável e a identificação dos agentes do delito ou de colaboradores.
Como se vê, a modificação advinda liga-se intimamente a uma melhor e específica descrição legal da autuação policial atinente ao retardo das abordagens de polícia judiciária frente o tráfico ilícito de entorpecentes, porquanto a Lei nº 9.034, de 3 de maio de 1995,[10] já previa similitude quanto às hipóteses de organizações criminosas bem como no que tange ao instituto da delação premiada. Aliás, vale também recordar que a Lei nº8.072, de 25 de julho de 1990,[11] já previa, da mesma forma, em seu artigo 8º, parágrafo único, o instituto da delação premiada.[12]
1.5. Questões relativas à atuação policial frente a destinação das substâncias estupefacientes apreendidas
Como modificação expressiva neste contexto de novidades, vale mencionar que, doravante, a autoridade policial dispõe do interstício temporal não superior a trinta dias, a fim de dar a destinação determinada pela norma às apreensões de entorpecentes, ou seja, a incineração. Todavia, deverá manter à disposição do processo penal, no que for pertinente à prova, de amostra suficiente (art. 32, §1º).
Ponto importante nesta novel seara é que a queima do material deverá ser precedida de autorização judicial, bem como deverá ser assistida, in loco, pelo representante do Ministério Público, bem como por autoridade sanitária competente. O ato aqui descrito, ainda, deverá ser precedido de perícia no exato local da incineração.
No que se refere à autorização judicial, infere-se que deverá ser conferida pelo juízo competente para o julgamento do processo penal vinculado à apreensão da substância estupefaciente, porquanto é o julgador do caso in concreto quem deverá decidir acerca da conveniência de destruição do objeto do crime.
Dessarte, caso haja remessa do material, por ser vultosa a sua quantidade, à capital do Estado, v.g., como ocorre no Rio Grande do Sul/RS, deduz-se que o Diretor do Departamento Policial respectivo somente deverá levar a efeito o ato de incineração após a autorização do juízo competente, ou seja, daquele juiz responsável pelo processo em trâmite naquela comarca do interior onde houver ocorrido a conduta típica e antijurídica que se apura.
Nessa sistemática, parece ser mais plausível que a autoridade policial responsável pela presidência do inquérito policial próprio do local do ilícito é quem deverá, prévia ou concomitantemente à remessa da substância estupefaciente à Capital, já oficiar ao juízo competente representando pela autorização judicial necessária à sua incineração. Efetivamente, havendo o exíguo lapso temporal de trinta dias para a realização do ato de incineração, a diligência acima descrita parece ser a mais adequada.
Por outro lado, vale lembrar, é a autoridade policial quem presidirá o ato de incineração, embora deva haver a presença in loco de um representante do Ministério Público. Outrossim, toda a diligência deverá ser formalmente circunstanciada.
Por fim, no que tange à previsão de perícia no local da incineração (art. 32, §2°), presume-se que o legislador resolveu evitar possíveis fraudes, oportunidade em que, se não houvesse perícia, tornar-se-ia possível a substituição da substância estupefaciente por outra sem tamanho valor. Efetivamente, havendo perfídia de algum agente policial, seria teoricamente possível substituir a cocaína, p. ex., por algum outro pós de cor, assim como a maconha por outra erva similar de cor esverdeada.
CONCLUSÃO
Pelo que se expôs, pois, da análise do texto legal ora estudado, especificamente quanto àqueles novéis sinais atinentes a modificações de real significado no cenário do labor policial, percebe-se que andou acertadamente o legislador, perfazendo com minúcia o novo cenário de repressão policial à utilização indevida de substâncias estupefacientes em nossa sociedade.
Embora, todavia, como se viu, haja pontos de desconfiança do legislador pertinentes à atuação da Polícia Judiciária, como, v.g., o direito subjetivo do usuário em requerer o auto de exame de corpo de delito seu, bem como a presença do Ministério Público e a realização de perícia no local das incinerações, é de melhor tom interpretarem-se referidos dispositivos no sentido de que adveio, respectivamente, com a novel legislação, maiores seguranças à integridade física da pessoa e à saúde pública, prismas esses que nunca devem ser olvidados na elaboração de qualquer norma.
Delegado de Polícia Civil no RS. Doutorando em Direito (UMSA). Mestre em Integração Latino-Americana (UFSM). Especialista em Direito Penal e Processo Penal (ULBRA). Especialista em Direito Constitucional Aplicado (UNIFRA). Especialista em Segurança Pública e Direitos Humanos (FADISMA)
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