Resumo: Este artigo pretende tecer algumas considerações acerca da Lei nº 9.614/98 que alterou o Código Brasileiro de Aeronáutica (Lei nº 7.565/86), instituindo o chamado “tiro de abate” às aeronaves que entram no espaço aéreo brasileiro sem se identificarem vindo a ser, após os procedimentos necessários, consideradas hostis ao Estado. Trata-se de tema de grande importância face à possível afronta a princípios constitucionais e aos reflexos penais advindos de sua aplicação. Pela análise do tema proposto, fica evidente que a discussão deve ser aprofundada para possibilitar ajustes e evitar cerceamento de direitos fundamentais assegurados constitucionalmente.
Palavras-chave: Tiro de destruição. Lei do Abate. Abate de Aeronaves.
Sumário: 1. Introdução. 2. Lei nº 9.614/98. 3. Decreto nº 5.144/04. 4. Considerações acerca da lei nº 9.614/98. 4.1. Princípio da Inviolabilidade do Direito à Vida. 4.2.Princípio da Proporcionalidade. 4.3. Princípio da Inafastabilidade da Jurisdição. 4.4. Princípios do Juiz Natural e do Devido Processo Legal. 4.5. Princípio da Não Culpabilidade. 4.6. Princípio da Reserva Legal. 5. Responsabilidade legal dos executores do tiro de destruição. Competência para Julgamento. 5.1. Excludentes de Ilicitude e de Antijuridicidade. 5.1.1. Estrito Cumprimento de um Dever Legal. 5.1.2. Exercício Regular de um Direito. 5.1.3. Legítima Defesa. 5.1.4. Estado de Necessidade. 5.1.5. Obediência à Ordem Hierárquica. 6. Conclusão. Referências.
1. INTRODUÇÃO
O objetivo do presente trabalho é fazer uma breve análise acerca da constitucionalidade da Lei nº 9.614/98, conhecida como a Lei do Abate de Aeronaves. Para tanto se abordará sua posição frente a alguns princípios constitucionais.
Ainda será objeto deste trabalho o estudo da responsabilidade legal dos executores da referida Lei averiguando-se a possível subsunção de seus atos ao ordenamento penal.
No desenrolar da abordagem, será demonstrada a posição de alguns doutrinadores sobre os temas apresentados.
Para finalizar, passar-se-á à conclusão retirada do estudo realizado sobre os assuntos propostos com posicionamento sobre a constitucionalidade da citada Lei do Abate de Aeronaves.
O estudo deu-se através da pesquisa doutrinária e legislativa, procurando sempre simplificar o entendimento do assunto abordado, permitindo fácil compreensão dos temas apresentados.
2. LEI Nº 9.614, DE 5 DE MARÇO DE 1998
A Lei nº 9.614, de 5 de março de 1998 alterou a Lei nº 5.565/86 (Código Brasileiro de Aeronáutica), que passou a prever a possibilidade de abater aeronaves suspeitas de tráfico de entorpecentes e drogas afins que venham a ser consideradas hostis e estejam sobrevoando o espaço aéreo brasileiro.
“LEI Nº 9.614, DE 5 DE MARÇO DE 1998
Altera a Lei nº 7.565, de 19 de dezembro de 1986, para incluir hipótese destruição de aeronave.
O PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber que o CONGRESSO NACIONAL decreta e eu sanciono a seguinte Lei:
Art. 1º O art. 303 da Lei nº 7.565, de 19 de dezembro de 1986, passa a vigorar acrescido de um parágrafo, numerado como § 2º, renumerando-se o atual § 2º como § 3º, na forma seguinte:
“Art. 303. (…)
§ 2º Esgotados os meios coercitivos legalmente previstos, a aeronave será classificada como hostil, ficando sujeito à medida de destruição, nos casos dos incisos do caput deste artigo e após autorização do Presidente da República ou autoridade por ele delegada.
§ 3º A autoridade mencionada no § 1º responderá por seus atos quando agir com excesso de poder ou com espírito emulatório.”
Art. 2º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.”
4. DECRETO Nº 5.144, DE 16 DE JULHO DE 2004
A Lei nº 9.614/98 foi regulamentada no governo do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva através do Regulamento nº 5.144/04.
“DECRETO Nº 5.144, DE 16 DE JULHO DE 2004.
Regulamenta os §§ 1o, 2o e 3o do art. 303 da Lei no 7.565, de 19 de dezembro de 1986, que dispõe sobre o Código Brasileiro de Aeronáutica, no que concerne às aeronaves hostis ou suspeitas de tráfico de substâncias entorpecentes e drogas afins.
O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, no uso da atribuição que lhe confere o art. 84, inciso IV, da Constituição, e tendo em vista o disposto nos §§ 1o, 2o e 3o do art. 303 da Lei no 7.565, de 19 de dezembro de 1986,
DECRETA:
Art. 1o Este Decreto estabelece os procedimentos a serem seguidos com relação a aeronaves hostis ou suspeitas de tráfico de substâncias entorpecentes e drogas afins, levando em conta que estas podem apresentar ameaça à segurança pública.
Art. 2o Para fins deste Decreto, é considerada aeronave suspeita de tráfico de substâncias entorpecentes e drogas afins aquela que se enquadre em uma das seguintes situações:
I – adentrar o território nacional, sem Plano de Vôo aprovado, oriunda de regiões reconhecidamente fontes de produção ou distribuição de drogas ilícitas; ou
II – omitir aos órgãos de controle de tráfego aéreo informações necessárias à sua identificação, ou não cumprir determinações destes mesmos órgãos, se estiver cumprindo rota presumivelmente utilizada para distribuição de drogas ilícitas.
Art. 3o As aeronaves enquadradas no art. 2o estarão sujeitas às medidas coercitivas de averiguação, intervenção e persuasão, de forma progressiva e sempre que a medida anterior não obtiver êxito, executadas por aeronaves de interceptação, com o objetivo de compelir a aeronave suspeita a efetuar o pouso em aeródromo que lhe for indicado e ser submetida a medidas de controle no solo pelas autoridades policiais federais ou estaduais.
§ 1o As medidas de averiguação visam a determinar ou a confirmar a identidade de uma aeronave, ou, ainda, a vigiar o seu comportamento, consistindo na aproximação ostensiva da aeronave de interceptação à aeronave interceptada, com a finalidade de interrogá-la, por intermédio de comunicação via rádio ou sinais visuais, de acordo com as regras de tráfego aéreo, de conhecimento obrigatório dos aeronavegantes.
§ 2o As medidas de intervenção seguem-se às medidas de averiguação e consistem na determinação à aeronave interceptada para que modifique sua rota com o objetivo de forçar o seu pouso em aeródromo que lhe for determinado, para ser submetida a medidas de controle no solo.
§ 3o As medidas de persuasão seguem-se às medidas de intervenção e consistem no disparo de tiros de aviso, com munição traçante, pela aeronave interceptadora, de maneira que possam ser observados pela tripulação da aeronave interceptada, com o objetivo de persuadi-la a obedecer às ordens transmitidas.
Art. 4o A aeronave suspeita de tráfico de substâncias entorpecentes e drogas afins que não atenda aos procedimentos coercitivos descritos no art. 3º será classificada como aeronave hostil e estará sujeita à medida de destruição.
Art. 5o A medida de destruição consiste no disparo de tiros, feitos pela aeronave de interceptação, com a finalidade de provocar danos e impedir o prosseguimento do vôo da aeronave hostil e somente poderá ser utilizada como último recurso e após o cumprimento de todos os procedimentos que previnam a perda de vidas inocentes, no ar ou em terra.
Art. 6o A medida de destruição terá que obedecer às seguintes condições:
I – emprego dos meios sob controle operacional do Comando de Defesa Aeroespacial Brasileiro – COMDABRA;
II – registro em gravação das comunicações ou imagens da aplicação dos procedimentos;
III – execução por pilotos e controladores de Defesa Aérea qualificados, segundo os padrões estabelecidos pelo COMDABRA;
IV – execução sobre áreas não densamente povoadas e relacionadas com rotas presumivelmente utilizadas para o tráfico de substâncias entorpecentes e drogas afins; e
V – autorização do Presidente da República ou da autoridade por ele delegada.
Art. 7o O teor deste Decreto deverá ser divulgado, antes de sua vigência, por meio da Publicação de Informação Aeronáutica (AIP Brasil), destinada aos aeronavegantes e de conhecimento obrigatório para o exercício da atividade aérea no espaço aéreo brasileiro.
Art. 8o As autoridades responsáveis pelos procedimentos relativos à execução da medida de destruição responderão, cada qual nos limites de suas atribuições, pelos seus atos, quando agirem com excesso ou abuso de poder.
Art. 9o Os procedimentos previstos neste Decreto deverão ser objeto de avaliação periódica, com vistas ao seu aprimoramento.
Art. 10. Fica delegada ao Comandante da Aeronáutica a competência para autorizar a aplicação da medida de destruição.
Art. 11. O Ministério da Defesa, por intermédio do Comando da Aeronáutica, deverá adequar toda documentação interna ao disposto neste Decreto.
Art. 12. Este Decreto entra em vigor noventa dias após a data de sua publicação.”
4. CONSIDERAÇÕES ACERCA DA LEI nº 9.614/98
A partir da edição da Lei nº 9.614/98 o Código Brasileiro de Aeronáutica (Lei nº 5.565/86) passou a prever a possibilidade de destruição de aeronaves que se encontrem em espaço aéreo brasileiro, sejam suspeitas de tráfico de entorpecentes e drogas afins e sejam consideradas hostis após os procedimentos de interceptação a serem realizados pela Força Aérea Brasileira (FAB).
Segundo o Centro de Comunicação Social da Aeronáutica[i], uma aeronave passa a ser considerada suspeita de tráfico de substâncias entorpecentes ou drogas afins nos seguintes casos:
“a) a que entrar em território nacional, sem plano de voo aprovado, oriunda de regiões reconhecidamente fontes de produção ou distribuição de drogas ilícitas; ou b) a que omitir aos órgãos de controle de tráfego aéreo informações necessárias à sua identificação, ou não cumprir determinações dessas mesmas autoridades, caso esteja trafegando em rota presumivelmente utilizada na distribuição de drogas ilícitas.”
No mesmo artigo, a Aeronáutica esclarece que, ao ser considerada suspeita a aeronave estará sujeita à três medidas coercitivas, realizadas de forma progressiva quando a anterior não obtiver êxito. A primeira medida é de AVERIGUAÇÃO onde se executará reconhecimento à distância, confirmação de matrícula, contato rádio frequência de Área, contato rádio frequência de emergência e sinais visuais; a segunda de INTERVENÇÃO caracterizada pela determinação de mudança de rota e pouso obrigatório; e a terceira de PERSUASÃO consiste em realização de tiros de advertência, com munição traçante, lateralmente à aeronave suspeita.
Em não atendendo a nenhuma das medidas coercitivas descritas a aeronave passará a ser considerada hostil e, então, estará sujeita à medida de DESTRUIÇÂO que deverá ser executada atendendo às exigências rígidas previstas no Regulamento nº 5.144/04.
Como já colocado acima a Lei nº 9.614/98 foi regulamentada através do Decreto nº 5.144/04.
Entretanto a referida Lei merece ser analisada à luz dos princípios constitucionais, uma vez que introduziu alteração significativa no ordenamento jurídico brasileiro.
4.1. Princípio da Inviolabilidade do Direito à Vida.
O artigo 5º da CF/88[ii] dispõe sobre a inviolabilidade do direito à vida, sendo este direito o mais fundamental de todos, pois dele derivam os demais direitos.
Cabe ao Estado a proteção do direito à vida de todos os brasileiros ou estrangeiros que se encontrem em território nacional e esta proteção abrange o direito de permanecer vivo sem que este bem seja interrompido de forma artificial. Assegurando este direito fundamental a CF/88, no art. 5º, inciso XLVII, alínea “a”, proíbe a pena de morte em tempo de paz e esta vedação não pode ser alterada, nem mesmo através de Emenda à Constituição, pois se trata de cláusula pétrea conforme o art. 60,§ 4º, inciso IV.
A única exceção à regra acima vem expressa na própria Lei Maior quando esta autoriza a pena de morte quando o país se encontre em estado de “guerra declarada” [iii]. Ou seja, por se tratar, o direito à vida, do direito primordial sem o qual nenhum outro direito poderá ser garantido, somente a própria ordem constitucional poderá autorizar sua total supressão.
Por outro lado, não há como negar que a Lei nº 9.614/98, ao instituir a possibilidade de abate de aeronaves consideradas hostis ao Estado, está a autorizar, de forma velada, a pena de morte no Brasil, embora a CF/88 proíba cabalmente este tipo de pena, pois, os tripulantes de uma aeronave derrubada em pleno voo certamente não sobreviverão.
Forçoso então concluir-se que a citada norma encontra-se em desarmonia com a Lei Maior, devendo ser reconhecida como inconstitucional.
4.2. Princípio da Proporcionalidade.
Os direitos e garantias fundamentais, algumas vezes, podem apresentar colisão entre si, entretanto sua harmonização deve ser perseguida e para tanto se deve aplicar o princípio da proporcionalidade de forma a que nenhum desses direitos e garantias seja totalmente aniquilado para preservação de outro. As restrições que venham a ser aplicadas em relação a um direito em favor de outro devem ser proporcionais, adequadas e razoáveis.
Pedro Lenza[iv], ao discorrer sobre o princípio da proporcionalidade, nos ensina que:
“Como parâmetro, podemos destacar a necessidade de preenchimento de 3 importantes elementos:
Necessidade: por alguns denominada exigibilidade, a adoção da medida que possa restringir direitos só se legitima se indispensável para o caso concreto e não se puder substituí-la por outra menos gravosa;
Adequação: também chamado de pertinência ou idoneidade, quer significar que o meio escolhido deve atingir o objetivo perquirido;
Proporcionalidade em sentido estrito: sendo a medida necessária e adequada, deve-se investigar se o ato praticado, em termos de realização do objetivo pretendido, supera a restrição a outros valores constitucionalizados. Podemos falar em máxima efetividade e mínima restrição.”
Aplicando-se os elementos acima expostos pode-se dizer que a Lei do Abate não se adéqua ao princípio da proporcionalidade, pois: a destruição da aeronave interceptada não é a única maneira de evitar a entrada de drogas no território nacional; não se irá atingir totalmente o objetivo buscado uma vez que o traficante de drogas, certamente, não se encontrará na aeronave abatida e continuará a introduzir as substâncias no país através de outras aeronaves e/ou outros meios; e quanto à proporcionalidade em sentido estrito pode-se dizer que no confronto entre o direito a segurança, afetada pelo ingresso de drogas no país, e o direito a vida, violado pela morte de tripulantes da aeronave interceptada sem direito ao devido processo legal, não há razoabilidade e adequação.
4.3. Princípio da Inafastabilidade da Jurisdição.
Insculpido no art. 5º, XXXV, da CF/88, estabelece que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de direito.
Nesse sentido, sem maiores ilações, ressalta-se que a Lei nº 9.614/98 afronta o citado princípio constitucional ao autorizar ao Presidente da República ou autoridade por ele delegada a determinar o tiro de destruição de aeronave suspeita de tráfico de drogas e considerada hostil ao Estado brasileiro, sem proporcionar aos seus tripulantes o acesso ao Judiciário com todos os direitos daí decorrentes.
Trata-se de um “julgamento” e uma “sentença” com aplicação de “pena extrema”, exarada por autoridade que não integra o Poder Judiciário e sem que os acusados possam efetivamente se defender da acusação que lhes é imputada.
4.4. Princípios do Juiz Natural e do Devido Processo Legal.
O princípio do juiz natural visa a garantir que somente os órgãos judiciais instituídos constitucionalmente poderão processar e julgar com a imparcialidade assegurada através das garantias institucionais e pessoais previstas na própria Constituição.
Este princípio encontra-se previsto no art. 5º[v], incisos XXXVII e LIII e, v segundo Alexandre de Moraes[vi]:
“O referido princípio deve ser interpretado em sua plenitude, de forma a proibir-se, não só a criação de tribunais ou juízos de exceção, mas também de respeito absoluto às regras objetivas de determinação de competência, para que não seja afetada a independência e imparcialidade do órgão julgador”.
Já o princípio do devido processo legal objetiva a assegurar que os acusados em geral disponham das garantias do contraditório e da ampla defesa possibilitando-lhes opor-se à acusação que lhes é feita com igualdade de condições e com a possibilidade de trazer ao processo sua versão dos fatos.
Nos dizeres no mesmo autor:
“O devido processo legal configura dupla proteção ao indivíduo, atuando tanto no âmbito material de proteção ao direito de liberdade, quanto no âmbito formal, ao assegurar-lhe paridade total de condições com o Estado-persecutor e plenitude de defesa (direito a defesa técnica, à publicidade do processo, à citação, de produção ampla de provas, de ser processado e julgado pelo juiz competente, aos recursos, à decisão imutável, à revisão criminal)”[vii].
Nesse diapasão não resta outra conclusão senão a de que a Lei do Abate fere também estes princípios constitucionais, pois, permite que autoridade, não investida das garantias constitucionais de imparcialidade somente asseguradas aos integrantes do Poder Judiciário, após entender que a aeronave interceptada é hostil ao Estado, determine seu abate com a consequente morte de seus tripulantes, sem que estes possam se defender perante o Poder Judiciário.
4.5. Princípio da Não Culpabilidade.
Também chamado de princípio da presunção da inocência por parte da doutrina, acha-se insculpido no art. 5º, LVII, da CF/88 asseverando que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.
Este princípio tutela a liberdade pessoal e é um dos princípios basilares do Estado Democrático de Direito objetivando a suprimir o arbítrio estatal. Por este princípio o Estado acusador deverá provar a culpabilidade do agente para que somente aí este deixe de ser considerado inocente.
Desnecessário discorrer que a citada Lei nº 9.614/98, fere de morte este princípio ao mandar “executar” os tripulantes da aeronave considerada hostil sem que o Estado tenha provado, perante o Poder Judiciário, a sua culpabilidade, assegurando-lhes a ampla defesa e o contraditório através do devido processo legal.
4.6. Princípio da Reserva Legal.
O princípio da reserva legal diz respeito à obrigatoriedade de que certas matérias somente possam ser tratadas através de lei oriunda do Poder Legislativo, único com legitimidade para editar leis.
É o caso da Lei do Abate que determina: esgotados os meios coercitivos legalmente previstos, a aeronave será classificada como hostil, ficando sujeita à medida de destruição (…), ou seja, os meios coercitivos a que será submetida a aeronave interceptada deverão ser estipulados através de lei editada pelo Poder Legislativo.
Nos dizeres do doutrinador Jorge César de Assis[viii]:
“(…) da forma como está proposta, a sujeição à medida de destruição da aeronave considerada hostil, somente será possível, ex vi legis, após <esgotados os meios coercitivos legalmente previstos>, vale dizer aqueles que estiverem previstos em outra lei, lei formal, gerada a partir do processo legislativo referido no art. 59 e seguintes da Carta Magna, não podendo em hipótese alguma ser regulamentado por Decreto Presidencial (…)”.
Assim, diante da regulamentação da Lei do Abate através de Decreto Presidencial (Decreto nº 5.144/04), esta nem mesmo pode ser aplicada, pois os meios coercitivos empregados pela FAB para interceptar aeronaves consideradas suspeitas ainda não foram objeto de ato legislativo.
5. RESPONSABILIDADE LEGAL DOS EXECUTORES DO TIRO DE DESTRUIÇÃO
Ultrapassadas as considerações acima passar-se-á à analise da responsabilidade dos agentes envolvidos na execução da medida extrema autorizada pela Lei nº 9.614/98.
5.1. Competência para Julgamento
Nos termos da Lei nº 12.432/11, a competência para julgar as ações decorrentes da aplicação da “Lei do Abate” será da Justiça Militar da União.
“LEI Nº 12.432, DE 29 DE JUNHO DE 2011
Estabelece a competência da Justiça Militar para julgamento dos crimes praticados no contexto do art. 303 da Lei nº 7.565, de 19 de dezembro de 1986 – Código Brasileiro de Aeronáutica, alterando o parágrafo único do art. 9º do Decreto-Lei nº 1.001, de 21 de outubro de 1969 – Código Penal Militar.
A PRESIDENTA DA REPÚBLICA
Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:
Art. 1º O parágrafo único do art. 9º do Decreto-Lei nº 1.001, de 21 de outubro de 1969 – Código Penal Militar, passa a vigorar com a seguinte redação:
“Art. 9º (…)
Parágrafo único. Os crimes de que trata este artigo quando dolosos contra a vida e cometidos contra civil serão da competência da justiça comum, salvo quando praticados no contexto de ação militar realizada na forma do art. 303 da Lei nº 7.565, de 19 de dezembro de 1986 – Código Brasileiro de Aeronáutica.” (NR)
Art. 2º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação”.
Assim, em ocorrendo o efetivo abate de uma aeronave em decorrência da aplicação da Lei nº 9.614/98, diante da morte de seus ocupantes, um Inquérito Policial Militar, obrigatoriamente, será instaurado para investigar os fatos, pois, a princípio, estes poderão enquadrar-se no tipo penal militar de homicídio.
Encerradas as investigações, caberá ao Ministério Público Militar, após a análise das provas colhidas, oferecer denúncia ou requerer o arquivamento do Inquérito.
A Auditoria da Justiça Militar da União competente para conhecer e julgar o feito, entende-se que será aquela com jurisdição sobre o lugar onde ocorrer a queda da aeronave abatida, aplicando-se, por analogia, o artigo 90 do Código de Processo Penal Militar que se refere ao local onde ocorrer o pouso da aeronave militar ou militarmente ocupada[ix].
O citado dispositivo legal se refere à aeronave militar ou militarmente ocupada porque antes do advento da “Lei do Abate”, em caso de crimes a bordo de aeronaves civis a competência era sempre da Justiça Federal. Quanto à segunda parte do referido dispositivo legal, como salienta o doutrinador Jorge César de Assis[x], será de difícil ocorrência porque, nos dias atuais, os lugares inacessíveis em nosso país são poucos e, se a aeronave cair em um lugar distante, a Auditoria com jurisdição sobre o local certamente terá melhores condições de executar as diligências necessárias ao deslinde do feito.
5.2. Excludentes de Antijuridicidade e de culpabilidade
Ao analisar a conduta dos agentes executores do tiro de destruição autorizado pela Lei nº 9.614/98, deve-se ter em conta tanto a conduta do agente que efetivamente dispara contra a aeronave interceptada como a conduta da autoridade que ordena a medida, que, de acordo com o Decreto nº 5.144/04, é o Comandante da Aeronáutica por delegação do Presidente da República.
O Código Penal Militar prevê situações que excluem a antijuridicidade ou a culpabilidade da conduta dos agentes envolvidos no fato que, em tese, configura delito militar.
O artigo 42 do Código Penal Militar enumera o estado de necessidade justificante, a legítima defesa, o estrito cumprimento do dever legal e o exercício regular de direito como excludentes de antijuridicidade e os artigos 38 alínea “b” e 43 do mesmo diploma legal contemplam a obediência hierárquica e o estado de necessidade exculpante como excludentes de culpabilidade.
5.2.1. Estrito Cumprimento de um Dever Legal
O estrito cumprimento de um dever legal configura-se quando ocorre o confronto de um dever legal e de um direito, sendo que este direito atacado está em grau inferior ao dever do agressor. Alguns exemplos citados pela doutrina são, a conduta do carrasco que executa a pena de morte e do carcereiro que mantém o preso encarcerado.
Quanto à conduta do piloto da aeronave interceptadora deve-se verificar se sua conduta ocorre em decorrência de obediência hierárquica ou pelo estrito cumprimento de um dever legal. Nas palavras de Jorge César de Assis[xi]:
“Em um primeiro momento nos parece que a ação do piloto estará se dando em obediência à ordem hierárquica (e aí se submete à verificação da própria validade da ordem), sendo essa circunstância preferível à da excludente do ‘estrito cumprimento do dever legal’, por não ser crível imaginar-se que a Lei do Abate teria o condão de transformar o piloto militar autor do disparo de destruição em executor de uma pena sem o devido processo legal, isento de qualquer verificação.”
Em relação à conduta do superior que deu a ordem para o abate entende-se que não esteja amparada pela excludente do estrito cumprimento do dever legal, porque aos ocupantes da aeronave interceptada não foi dada a oportunidade de submeterem-se ao devido processo legal, com respeito à ampla defesa, perante o Poder Judiciário, único com jurisdição para decretar uma pena.
Não se pode dizer que o executor mediato da medida esteja cumprindo um dever legal.
5.2.2. Exercício Regular de um Direito
Age no exercício regular de um direito o agente que atua para salvaguardar um direito legítimo e regular. Não pode, entretanto, visando salvaguardar dito direito utilizar-se de meios proibidos em lei.
Cezar Roberto Bitencourt[xii] ensina que: “qualquer direito, público ou privado, penal ou extrapenal, regularmente exercido, afasta a antijuridicidade. Mas o exercício deve ser regular, isto é, deve obedecer a todos os requisitos objetivos exigidos pela ordem jurídica”.
Tratando-se de tiro de destruição ordenado e executado em decorrência da aplicação da Lei do Abate, inconstitucional diante das análises acima, não se pode entender presente a excludente do exercício regular de um direito, nem na conduta do mandante, nem na conduta do executor, pois, a morte dos ocupantes da aeronave interceptada não se enquadra em ações permitidas pela ordem jurídica.
5.2.3. Legítima Defesa
O artigo 44 do Código Penal Militar define a excludente de legítima defesa:
“Art. 44. Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem”.
A legítima defesa se funda no instinto de sobrevivência inerente ao ser humano. Entretanto, para configurar-se devem estar presentes os requisitos expressos no ordenamento jurídico: meios moderados e necessários; injusta agressão atual ou iminente; e defesa de direito próprio ou de outrem.
Parece que a ação dos executores do tiro de destruição não encontra respaldo na excludente de legítima defesa.
Embora a mens legis da Lei do Abate seja impedir a entrada de substâncias entorpecentes e drogas afins no território nacional, o que justificaria o requisito da defesa de direito próprio ou de outrem e até mesmo, forçando um pouco a situação, o requisito de injusta agressão atual ou iminente uma vez que a aeronave interceptada é suspeita de tráfico, o mesmo não se pode dizer a respeito do requisito legal de utilizar os meios moderados e necessários para afastar a agressão.
O simples fato dos ocupantes da aeronave interceptada não responderem aos comandos advindos da aeronave interceptadora não justifica o tiro de destruição, a menos que aquela esteja armada e atire contra a aeronave militar.
Por outro lado, se o objetivo da Lei é impedir a entrada de substâncias entorpecentes e drogas afins no território brasileiro o simples acompanhamento da aeronave interceptada seria suficiente para, em aterrissando, pois o combustível irá acabar e o pouso será inevitável, agentes em terra procederem à revista e prisão dos ocupantes, se for o caso. E, caso a aeronave cruze a fronteira do país, o objetivo da Lei estará assegurado, ou seja, a entrada das substâncias ilegais no país será impedida.
Reagir à fuga de uma aeronave suspeita com um tiro de destruição não pode ser considerado um meio de ação moderado e necessário.
5.2.4. Estado de Necessidade
O Código Penal Militar adota a teoria diferenciadora em relação ao Estado de Necessidade, ou seja, contempla no artigo 43[xiii] o Estado de Necessidade justificante, onde o bem ou interesse sacrificado é de menor valor que o bem protegido e no artigo 39[xiv] o Estado de Necessidade exculpante em que o bem ou interesse sacrificado é de igual ou superior valor do que o salvo.
Entretanto, para a configuração da excludente do Estado de Necessidade, em qualquer das modalidades previstas na Lei Castrense, exige-se como um dos requisitos legais que o mal não pudesse ser evitado por outro meio.
Como já referido acima, não se pode afirmar que a entrada das substâncias ilegais em território brasileiro não possa ser evitada empregando-se outros meios menos graves que o tiro de destruição contra a aeronave suspeita.
5.2.5. Obediência à Ordem Hierárquica
O artigo 38[xv] do Código Penal Militar, a alínea “b” e seus parágrafos prevêem a excludente de culpabilidade em decorrência de atos praticados em estrita obediência à ordem direta de superior hierárquico em matéria de serviços.
Segundo ensinamento de Jorge Alberto Romeiro[xvi]:
“Sendo a obediência o fundamento básico da disciplina, esteio das Forças Armadas, como bem explícito no art. 163 do CPM, erigido em crime a insubordinação definida como recusar obedecer a ordem de superior hierárquico ‘sobre assunto ou matéria de serviço’, não poderia logicamente deixar de dispor, por outro lado, o código, como fez no art. 38, b, não ser ‘culpado quem comete o crime… em estrita obediência a ordem direta de superior hierárquico, em matéria de serviços’(…) O militar só pode e deve desobedecer a ordem direta de superior hierárquico, em matéria de serviço, sem incorrer no crime de insubordinação, se ela ‘tem por objeto a prática de ato manifestamente criminoso”’.
Nesse diapasão resta analisar as condutas do mandante e do executor do tiro de abate da aeronave considerada hostil ao Estado brasileiro.
Quanto ao superior que ordena a medida não há dúvidas que responderá pelo ato, cabendo ao Judiciário analisar se a conduta está amparada por alguma excludente legal.
Em relação ao piloto da aeronave interceptadora que efetivamente executa o tiro de destruição, a princípio pode parecer que está isento de culpa por ter agido em obediência à ordem hierárquica.
Entretanto, a excludente aplica-se somente quando a ordem do superior hierárquico não é manifestamente criminosa e, diante das considerações acima que levam à conclusão de que a Lei do Abate é inconstitucional, além de ainda não estar devidamente regulamentada, a ordem de destruição advinda da aplicação da referida Lei é manifestamente criminosa, uma vez que determina a derrubada da aeronave interceptada com a consequente morte de seus tripulantes. Assim, o piloto deverá ser processado e julgado, juntamente com o superior que ordenou o tiro de destruição, perante a Justiça Militar da União.
6. CONCLUSÃO
Após a análise procedida acerca da Lei nº 9.614/98, pode-se dizer que a mesma afronta vários princípios constitucionais.
Embora o legislador justifique a inserção da Lei do Abate no ordenamento jurídico brasileiro como sendo um avanço no combate ao tráfico de drogas, argumentando que a maior parte de substâncias entorpecentes e drogas afins entram no país através do espaço aéreo, não se pode deixar de avaliar a constitucionalidade da referida lei, bem como sua real necessidade diante das várias possibilidades que o Estado possui para combater o narcotráfico.
Nossa Constituição contempla a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil e também determina que o país reger-se-á, em suas relações internacionais, pela prevalência dos direitos humanos entre outros princípios.
Da mesma forma, no Título II, ao prever os direitos e garantias fundamentais, entre outros contempla a inviolabilidade do direito à vida; a proibição de pena de morte, salvo em caso de guerra declarada; a inafastabilidade de lesão ou ameaça de direito da apreciação pelo Poder Judiciário; garantia de que ninguém será processado ou sentenciado senão pela autoridade competente; ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória; e que a todos é assegurado o devido processo legal com o contraditório e a ampla defesa.
Por outro lado, a própria Constituição, em seu artigo 60, § 4º, inciso IV, proíbe, até mesmo através de Emenda Constitucional, a abolição dos direitos e garantias individuais nela contemplados.
Assim sendo, é evidente que a Lei do Abate é totalmente inconstitucional, pois, como já analisado no decorrer deste trabalho afronta todos os direitos e garantias enumerados.
A citada lei permite que os tripulantes da aeronave interceptada sejam executados, em verdadeira “pena de morte”, determinada por autoridade delegada sem que tenham sido devidamente processados perante o Poder Judiciário, sendo-lhes assegurado o devido processo legal com as garantias daí advindas. O simples fato de não atenderem às ordens dos tripulantes da aeronave interceptadora não pode ser suficiente para alicerçar uma condenação à pena extrema.
É evidente que, caso a aeronave venha a atravessar a fronteira do país impossibilitando que a FAB continue a perseguição, o objetivo de evitar que as drogas entrem no território nacional já estará alcançado.
Ademais, é perfeitamente possível detectar a entrada de aeronaves suspeitas de tráfico, interceptando-as, como sempre foi feito pela FAB, porém sem a necessidade de abatê-las, além de aumentar a fiscalização e destruição de pistas clandestinas destinadas ao pouso das mesmas.
Até mesmo Tratados Internacionais que contemplam direitos e garantias fundamentais, aos quais o Brasil aderiu, estão sendo desrespeitados, podendo levar o país a responder perante Cortes Internacionais pela violação dos compromissos internacionais assumidos, caso venha a abater uma aeronave suspeita de tráfico, ocasionando a morte de seus tripulantes.
Seria aconselhável que o Brasil aprimorasse suas relações diplomáticas com os países vizinhos visando à assinatura de Tratados de cooperação para interceptação de aeronaves suspeitas, possibilitando assim, sua perseguição mesmo quando cruzassem a fronteira. Dessa forma a captura de seus tripulantes seria possível quando a aeronave aterrissasse.
Capturarem-se os tripulantes de uma aeronave suspeita sem derrubá-la é a forma mais humana e inteligente de agir, pois, além de poupar vidas, torna possível a utilização de meios lícitos, como interrogatório, processamento legal e utilização de delação premiada visando à descoberta dos “chefões” do tráfico, já que nas aeronaves que transportam as substâncias jamais estará o traficante e sim os “mulas” utilizados para a entrada de drogas no país.
Por todo o exposto, conclui-se que a Lei do Abate, promulgada em 1998 e regulamentada através de Decreto Presidencial em 2004, em total ilegalidade, uma vez que a própria Lei determina que os procedimentos para interceptação e abate de aeronave considerada hostil devem estar previstos em outra lei, deve ser declarada inconstitucional, cabendo aos legitimados interporem a competente Ação Direta de Inconstitucionalidade sob pena de, futuramente, os executores da medida extrema virem a ser processados e julgados por atos criminosos emanados com respaldo em uma lei que não poderia fazer parte de nosso ordenamento jurídico.
Frise-se que um dos argumentos utilizados para sustentar a necessidade da citada Lei é de que, em alguns casos, é indispensável que a FAB venha a abater aeronaves clandestinas que invadem o espaço aéreo brasileiro, porém, salvo melhor juízo, nesses casos extremos a FAB poderá agir e seus integrantes estarão protegidos pelas excludentes de antijuridicidade ou de culpabilidade já previstas em nosso ornamento jurídico não se fazendo necessário uma lei que autorize o abate sempre que a autoridade responsável, ao seu arbítrio, entenda ser necessário.
Para finalizar, cita-se o posicionamento do Brigadeiro do Ar Teomar F. Quírio em artigo publicado na Revista Aerovisão nº 205[xvii]:
“(…) poderá haver o caso de que uma dessas aeronaves bandidas tenha autonomia suficiente para cruzar todo o nosso espaço aéreo e entrar em um país vizinho sem que possamos fazer nada para forçá-la a pousar. Nesse caso, se tivermos acordos diplomáticos e operacionais com esses países, um caça da Força Aérea do país vizinho assume o acompanhamento e assim sucessivamente até o pouso dessa aeronave em algum lugar – uma hora o combustível dela vai acabar e vai ter que pousar. Friamente e profissionalmente falando, nós da Força Aérea estaremos cumprindo nossa missão.”
Especialista em Direito Militar pela Universidade Castelo Branco, RJ. Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Pelotas, RS. Analista Judiciária da Justiça Militar da União, desde 2000, atualmente lotada em Porto Alegre/RS
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