Resumo: O presente artigo objetiva demonstrar a importância, no âmbito de um Estado Democrático de Direito, da liberdade de expressão ou manifestação do pensamento para a participação individual no rumo das decisões políticas. Todavia também será apresentada uma discussão acerca das limitações existentes ao seu exercício, uma vez que a liberdade de expressão não pode ser utilizada como fundamento para permitir a incitação ao ódio ou preconceito, seja de qual natureza for.[1]
Palavras-chave: Liberdade de expressão; racismo e preconceito; limites.
Abstract: This article aims to demonstrate the importance, under a democratic rule of law, freedom of expression or manifestation of thinking for individual participation in the direction of policy decisions. However also presented a discussion of the existing limitations on the exercise, since freedom of expression cannot be used as grounds to allow incitement to hatred or prejudice, whether that nature is.
Keywords: Freedom of expression; racism and prejudice; limits.
Sumário: Introdução. 1. A liberdade de expressão ou manifestação do pensamento. 2. O racismo e a discriminação racial. 3. A liberdade de expressão e o discurso de ódio. Conclusão.
Introdução
A liberdade de expressão é um dos corolários de um Estado Democrático de Direito. De fato, somente em um ambiente, no qual seja permitida a livre manifestação de ideias e opiniões, é possível que o indivíduo exerça a sua cidadania e possa participar das decisões políticas que irão determinar o curso de toda a sociedade.
Entretanto, a referida liberdade tem seus limites. Não se pode permitir, sob o fundamento de se resguardar a liberdade de expressão, que sejam veiculadas manifestações de cunho racista ou preconceituosas, pois estas são ofensivas da imagem, da honra, bem como de todos os demais direitos que compõem a dignidade da pessoa humana, a qual é elevada à dignidade de fundamento da própria República Federativa do Brasil, através do artigo 1º, III, da Constituição Federal.
Partindo desse pressuposto, é evidente que o exercício da liberdade de expressão não é absoluto, devendo observar os princípios que visam à manutenção da ordem pública e dos direitos humanos fundamentais, sobretudo quando se tratar dos meios de comunicação social.
Dessa forma, o presente artigo irá tratar com atenção a questão da limitação da manifestação do pensamento, pois muito embora este também seja considerado um direito fundamental, é necessário que seu exercício esteja de acordo com os demais valores consagrados pela própria Constituição Federal.
1. A Liberdade de expressão ou manifestação do pensamento
Diante dos abusos promovidos pelo Absolutismo e dos ideais liberais e iluministas que influenciaram a Revolução Francesa de 1789, o Constitucionalismo apresentou-se como um movimento político, jurídico e ideológico destinado ao combate do Antigo Regime, por meio de valores que preconizavam a limitação do poder e o respeito aos direitos e garantias fundamentais do indivíduo. Partindo dessa premissa, e considerando a clássica divisão dos direitos fundamentais, a liberdade de expressão apresenta-se como uma liberdade de primeira geração, isto é, uma delimitação da ingerência estatal na esfera autônoma de atuação do indivíduo.
Com efeito, Georg Jellinek aponta que na relação estabelecida entre o sujeito e o próprio Estado, a liberdade de expressão representa um status negativo, ou seja, o espaço que o indivíduo tem para agir livre da atuação do Estado, podendo autodeterminar-se sem a ingerência estatal.
Seguindo a lição de Manoel Gonçalves Ferreira Filho[2], a liberdade de expressão constitui uma das duas facetas da liberdade de pensamento, sendo a outra constituída pela liberdade de consciência. Esta é a liberdade de foro íntimo, liberdade de crença, e considerada inviolável pelo artigo 5º, inciso VI, da Constituição Federal.
Não obstante, o autor[3] também observa que:
“A liberdade de consciência e de crença, porém, se extroverte, se manifesta na medida em que os indivíduos, segundo suas crenças, agem deste ou daquele modo, na medida em que, por uma inclinação natural, tendem a expor seu pensamento aos outros e, mais, a ganhá-los para suas ideias. As manifestações, estas sim, pelo seu caráter social valioso, é que devem ser protegidas, ao mesmo tempo que impedidas de destruir ou prejudicar a sociedade”.
A propósito do tema, John Stuart Mill escreveu que o “indivíduo não responde perante a sociedade pelas ações que não digam respeito aos interesses de ninguém, a não ser ele próprio. Conselho, ensino, persuasão, esquivança da parte de outras pessoas, se para o bem próprio a julgam necessária, são as únicas medidas pelas quais a sociedade pode legitimamente exprimir o desagrado ou a desaprovação da conduta do indivíduo” [4].
Posto isso, verifica-se que a liberdade de consciência ou de crença pode ser concretizada por inúmeras formas, até mesmo pela conduta do indivíduo, sendo que o artigo 5º, inciso VIII, da Carta Magna, determina que ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal imposta por lei aos brasileiros em geral e se recusar a cumprir prestação alternativa.
Sobre esse ponto, Alexandre de Moraes[5] complementa afirmando que:
“Igualmente, o art. 15, IV, da Carta Federal, prevê que a recusa de cumprir obrigação a todos imposta ou prestação alternativa acarretará a perda dos direitos políticos. Dessa forma, dois são os requisitos para privação de direitos em virtude de crença religiosa ou convicção filosófica ou política: não cumprimento de uma obrigação a todos imposta e descumprimento de prestação alternativa, fixada em lei”.
Ademais, outra forma de concretização da liberdade de pensamento é a liberdade de expressão. A Constituição Federal, no artigo 5º, inciso IV, assegura a todos o direito de manifestação do pensamento, desde que o façam sem anonimato, sendo que o inciso IX declara que é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença. Não obstante, o mesmo artigo 5º, no inciso XIV, assegura o direito de acesso a todo tipo de informação que seja necessário ao exercício profissional, possibilitando, assim, uma melhor formação da opinião e de posicionamentos.
Nesse sentido, o artigo 220 e seguintes, também da Carta Magna, determinam que a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, o que expressamente veda qualquer possibilidade de censura (ato estatal necessário para a aprovação do conteúdo expressado em alguma forma de manifestação do pensamento) ou restrição da liberdade de expressão.
No entanto, para que essa liberdade possa realmente expressar as opiniões e convicções de um indivíduo, é imperioso que seja amplamente garantido o acesso à informação, de modo imparcial e livre de quaisquer influências tendenciosas que objetivem a modificação da verdade dos fatos, devendo-se garantir, também, o livre debate de ideias e posições para que cada pessoa possa compreender, da maneira mais clara possível, as opções apresentadas e a suas diversas perspectivas.
Dessa forma, cumpre salientar que a liberdade de expressão é um dos corolários da dignidade da pessoa humana, bem como essencial para que o cidadão possa realmente participar das tomadas de decisões políticas dentro de um Estado Democrático de Direito, pois é essa liberdade que lhe proporciona a possibilidade de avaliar e criticar o desempenho político dos representantes.
Nesse sentido, é lapidar a lição ministrada por Alexandre de Moraes[6]:
“A liberdade de expressão constitui um dos fundamentos essenciais de uma sociedade democrática e compreende não somente as informações consideradas como inofensivas, indiferentes ou favoráveis, mas também aquelas que possam causar transtornos, resistência, inquietar pessoas, pois a Democracia somente existe a partir da consagração do pluralismo de ideias e pensamentos, da tolerância de opiniões e do espírito aberto ao diálogo”.
É imprescindível que a liberdade de expressão seja exercida através de persuasão racional ou espiritual, com a devida exposição concatenada de argumentos e teses que levem o público à reflexão sobre o assunto apresentado, sendo inadmissível qualquer manifestação violenta ou que incentive a violência. Em outras palavras, a liberdade de expressão deve se dar no plano das ideias, no plano conceitual, e não no físico, como nos casos de coação absoluta.
Muito embora o texto constitucional tenha proibido expressamente a censura prévia, ou seja, a necessidade prévia e vinculativa de submissão de um texto ou programa que se pretenda expor ao público em geral, deve-se ressaltar que a sua ausência não obsta a responsabilização cível ou penal daquele que expressa sua opinião em desacordo com os valores consagrados pela sociedade. De fato, a liberdade de expressão, para que seja garantida a manutenção da ordem pública, submete-se a determinados limites que devem ser imperiosamente respeitados.
A liberdade de expressão não pode ser utilizada como meio para lesar a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas. Não pode ser utilizada para ofensas pessoais, para falsa imputação de crimes ou difamação da intimidade alheia, tampouco pode ser utilizada para discriminação de qualquer natureza, seja racial, social, de gênero ou por orientação sexual.
Sendo assim, para a proteção de todos esses direitos essenciais à dignidade da pessoa humana, é fundamental que a liberdade de expressão não seja protegida de forma absoluta, até mesmo quando exercida nos meios de comunicação social, uma vez que estes apresentam enorme poder de alcance e uma monumental potencialidade para causar danos graves e irreversíveis ao indivíduo.
“O texto constitucional repele frontalmente a possibilidade de censura prévia. Essa previsão, porém, não significa que a liberdade de imprensa é absoluta, não encontrando restrições nos demais direitos fundamentais, pois a responsabilização posterior do autor e/ou responsável pelas notícias injuriosas, difamantes, mentirosas sempre será cabível, em relação a eventuais danos materiais e morais” [7].
De fato, os serviços de rádio e TV são considerados públicos por expressa determinação constitucional. Sendo assim, devem ser prestados à população diretamente pelo Poder Público ou mediante autorização, concessão ou permissão do ente federativo competente, no caso a União, devendo ser continuamente avaliados para coibir quaisquer prejuízos que podem ser causados à coletividade.
Nesse sentido, cumpre observar que o artigo 221, da Constituição Federal, preceitua que a produção e a programação das emissoras de rádio e televisão deverão atender aos seguintes princípios:
I – preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas;
II – promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que objetive sua divulgação;
III – regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme percentuais estabelecidos em lei;
IV – respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família.
Por todo o exposto, é evidente que existem limites à liberdade de expressão, devendo-se utilizar os mecanismos políticos e jurídicos que o Estado Democrático de Direito, fundado na dignidade da pessoa humana, coloca à disposição para impedir o seu exercício irresponsável e desmedido.
2. O racismo e a discriminação racial
O racismo consiste na ideologia de que algumas raças ou etnias são superiores a outras em razão de determinadas características físicas, como, por exemplo, a cor da pele, fundamentando discriminações e a submissão de um determinado grupo de pessoas por outras, com a total violação dos direitos humanos fundamentais.
No tocante à discriminação racial, cumpre observar que, embora mantenha estreitas relações com o racismo, com este não se confunde. Trata-se de um fenômeno sociológico concretizado através de condutas ou ações que realizam a distinção ou diferenciação adversa perante uma característica específica e diferente. Uma pessoa pode ser discriminada por causa da sua raça, do seu gênero, orientação sexual, nacionalidade, religião, bem como pela própria situação social.
Com o objetivo de combater essa prática, no ano 1965, a Organização das Nações Unidas (ONU) adotou a convenção internacional sobre a eliminação de todas as formas de discriminação racial. Assim, estabeleceu como Dia Internacional da Eliminação da Discriminação Racial o dia 21 de março.
No ordenamento jurídico brasileiro, o artigo 5º expressamente afasta qualquer forma de discriminação ao afirmar que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.
Não obstante, o inciso XLI prevê que a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais, sendo que, nos termos do inciso XLII, a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei.
Com efeito, em 5 de janeiro de 1989, foi promulgada a Lei nº 7.716, que, além dos dispositivos constitucionais acima citados, também procurou dar efetividade ao preceito estabelecido no artigo 3º, inciso IV, a saber: promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer forma de discriminação.
O artigo 1º da referida Lei, com a alteração dada pela Lei nº 9.459/97, dispõe que serão punidos os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.
Nesse sentido, é importante atentar para o ensinamento de Christiano Jorge Santos[8]:
"Para efeito da Lei 7.716/89, o elemento do tipo de discriminação deve ser interpretado como qualquer espécie de segregação (negativa) dolosa, comissiva ou omissiva, adotada contra alguém por pertencer, real ou supostamente, a uma raça, cor, etnia, religião ou por conta de sua procedência nacional e que visa atrapalhar, limitar ou tolher o exercício regular do direito da pessoa discriminada, contrariando o princípio constitucional da isonomia".
Complementando a explicação da figura típica, Guilherme de Souza Nucci[9] acrescenta que:
"[…] preconceito é a opinião formada, a respeito de algo ou alguém, sem cautela, de maneira açodada, portanto, sem maiores detalhes ou dados em torno do objeto da análise, invariavelmente injustos, provocadores de aversão a determinadas pessoas ou situações".
São inúmeras as condutas que podem caracterizar os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Contudo, nos termos do artigo 3º e seguintes, da Lei nº 7.716/89, são tipificadas as condutas consistentes em:
– Impedir ou obstar o acesso de alguém, devidamente habilitado, a qualquer cargo da Administração Direta ou Indireta, bem como das concessionárias de serviços públicos;
– Negar ou obstar emprego em empresa privada;
– Deixar de conceder os equipamentos necessários ao empregado em igualdade de condições com os demais trabalhadores;
– Impedir a ascensão funcional do empregado ou obstar outra forma de benefício profissional;
– Proporcionar ao empregado tratamento diferenciado no ambiente de trabalho, especialmente quanto ao salário;
– Recusar ou impedir acesso a estabelecimento comercial, negando-se a servir, atender ou receber cliente ou comprador;
– Recusar, negar ou impedir a inscrição ou ingresso de aluno em estabelecimento de ensino público ou privado de qualquer grau;
– Impedir o acesso ou recusar hospedagem em hotel, pensão, estalagem, ou qualquer estabelecimento similar;
– Impedir o acesso ou recusar atendimento em restaurantes, bares, confeitarias, ou locais semelhantes abertos ao público;
– Impedir o acesso ou recusar atendimento em estabelecimentos esportivos, casas de diversões, ou clubes sociais abertos ao público;
– Impedir o acesso ou recusar atendimento em salões de cabelereiros, barbearias, termas ou casas de massagem ou estabelecimento com as mesmas finalidades;
– Impedir o acesso às entradas sociais em edifícios públicos ou residenciais e elevadores ou escada de acesso aos mesmos;
– Impedir o acesso ou uso de transportes públicos, como aviões, navios barcas, barcos, ônibus, trens, metrô ou qualquer outro meio de transporte concedido;
– Impedir ou obstar o acesso de alguém ao serviço em qualquer ramo das Forças Armadas;
– Impedir ou obstar, por qualquer meio ou forma, o casamento ou convivência familiar e social;
– Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito.
Não obstante os efeitos condenatórios previstos pelos artigos 91 e 92, do Código Penal, o material apreendido, em função da divulgação de conteúdo discriminatório ou preconceituoso, pelos meios de comunicação ou instrumentos de propaganda, deve ser destruído por qualquer meio determinado pelo juiz, conforme preceitua o §4º, do artigo 20, da Lei nº 7.716/89.
3. A liberdade de expressão e o discurso de ódio
Com relação à liberdade de expressão e sua limitação em razão de discursos e preconceitos raciais, famoso é o incidente ocorrido entre as décadas de 1980 e 1990, em função da polêmica ocasionada pelos escritos do industrial e também escritor revisionista Siegfried Ellwanger. Com efeito, o referido autor publicou obras históricas revisionistas sobre os acontecimentos da Segunda Guerra Mundial que causaram sérias perturbações em grupos étnicos e raciais minoritários que denunciavam a prática de racismo.
Na época, o autor alegou que apenas estava descrevendo e desvendando mentiras históricas que durante décadas haviam sido contadas, além de que os judeus não representavam realmente um grupo racial distinto, uma vez que não apresentavam um conjunto de características genéticas específicas, além de que estava simplesmente exercendo o direito constitucionalmente garantido da liberdade de manifestação do pensamento. Entretanto, um imenso número de judeus e outros grupos étnicos e raciais sentiram-se ofendidos com tais declarações e alegaram a apologia a ideais neonazistas e preconceitos raciais.
O acontecimento levou o próprio Supremo Tribunal Federal a rever o método de ponderação quando diante de situações conflitantes que envolviam direitos e garantias fundamentais. De fato, na análise do caso concreto, entendeu a Corte Suprema que a obra publicada por Ellwanger não poderia estar disponível no mercado por abordar posições que poderiam ensejar o ódio antissemita. Eis a ementa do Habeas Corpus nº 82.424 / RS – Rio Grande do Sul:
“HABEAS-CORPUS. PUBLICAÇÃO DE LIVROS: ANTI-SEMITISMO. RACISMO. CRIME IMPRESCRITÍVEL. CONCEITUAÇÃO. ABRANGÊNCIA CONSTITUCIONAL. LIBERDADE DE EXPRESSÃO. LIMITES. ORDEM DENEGADA. 1. Escrever, editar, divulgar e comerciar livros "fazendo apologia de idéias preconceituosas e discriminatórias" contra a comunidade judaica (Lei 7716/89, artigo 20, na redação dada pela Lei 8081/90) constitui crime de racismo sujeito às cláusulas de inafiançabilidade e imprescritibilidade (CF, artigo 5º, XLII). 2. Aplicação do princípio da prescritibilidade geral dos crimes: se os judeus não são uma raça, segue-se que contra eles não pode haver discriminação capaz de ensejar a exceção constitucional de imprescritibilidade. Inconsistência da premissa. 3. Raça humana. Subdivisão. Inexistência. Com a definição e o mapeamento do genoma humano, cientificamente não existem distinções entre os homens, seja pela segmentação da pele, formato dos olhos, altura, pêlos ou por quaisquer outras características físicas, visto que todos se qualificam como espécie humana. Não há diferenças biológicas entre os seres humanos. Na essência são todos iguais. 4. Raça e racismo. A divisão dos seres humanos em raças resulta de um processo de conteúdo meramente político-social. Desse pressuposto origina-se o racismo que, por sua vez, gera a discriminação e o preconceito segregacionista. 5. Fundamento do núcleo do pensamento do nacional-socialismo de que os judeus e os arianos formam raças distintas. Os primeiros seriam raça inferior, nefasta e infecta, características suficientes para justificar a segregação e o extermínio: inconciabilidade com os padrões éticos e morais definidos na Carta Política do Brasil e do mundo contemporâneo, sob os quais se ergue e se harmoniza o estado democrático. Estigmas que por si só evidenciam crime de racismo. Concepção atentatória dos princípios nos quais se erige e se organiza a sociedade humana, baseada na respeitabilidade e dignidade do ser humano e de sua pacífica convivência no meio social. Condutas e evocações aéticas e imorais que implicam repulsiva ação estatal por se revestirem de densa intolerabilidade, de sorte a afrontar o ordenamento infraconstitucional e constitucional do País. 6. Adesão do Brasil a tratados e acordos multilaterais, que energicamente repudiam quaisquer discriminações raciais, aí compreendidas as distinções entre os homens por restrições ou preferências oriundas de raça, cor, credo, descendência ou origem nacional ou étnica, inspiradas na pretensa superioridade de um povo sobre outro, de que são exemplos a xenofobia, "negrofobia", "islamafobia" e o anti-semitismo. 7. A Constituição Federal de 1988 impôs aos agentes de delitos dessa natureza, pela gravidade e repulsividade da ofensa, a cláusula de imprescritibilidade, para que fique, ad perpetuam rei memoriam, verberado o repúdio e a abjeção da sociedade nacional à sua prática. 8. Racismo. Abrangência. Compatibilização dos conceitos etimológicos, etnológicos, sociológicos, antropológicos ou biológicos, de modo a construir a definição jurídico-constitucional do termo. Interpretação teleológica e sistêmica da Constituição Federal, conjugando fatores e circunstâncias históricas, políticas e sociais que regeram sua formação e aplicação, a fim de obter-se o real sentido e alcance da norma. 9. Direito comparado. A exemplo do Brasil as legislações de países organizados sob a égide do estado moderno de direito democrático igualmente adotam em seu ordenamento legal punições para delitos que estimulem e propaguem segregação racial. Manifestações da Suprema Corte Norte-Americana, da Câmara dos Lordes da Inglaterra e da Corte de Apelação da Califórnia nos Estados Unidos que consagraram entendimento que aplicam sanções àqueles que transgridem as regras de boa convivência social com grupos humanos que simbolizem a prática de racismo. 10. A edição e publicação de obras escritas veiculando idéias anti-semitas, que buscam resgatar e dar credibilidade à concepção racial definida pelo regime nazista, negadoras e subversoras de fatos históricos incontroversos como o holocausto, consubstanciadas na pretensa inferioridade e desqualificação do povo judeu, equivalem à incitação ao discrímen com acentuado conteúdo racista, reforçadas pelas conseqüências históricas dos atos em que se baseiam. 11. Explícita conduta do agente responsável pelo agravo revelador de manifesto dolo, baseada na equivocada premissa de que os judeus não só são uma raça, mas, mais do que isso, um segmento racial atávica e geneticamente menor e pernicioso. 12. Discriminação que, no caso, se evidencia como deliberada e dirigida especificamente aos judeus, que configura ato ilícito de prática de racismo, com as conseqüências gravosas que o acompanham. 13. Liberdade de expressão. Garantia constitucional que não se tem como absoluta. Limites morais e jurídicos. O direito à livre expressão não pode abrigar, em sua abrangência, manifestações de conteúdo imoral que implicam ilicitude penal. 14. As liberdades públicas não são incondicionais, por isso devem ser exercidas de maneira harmônica, observados os limites definidos na própria Constituição Federal (CF, artigo 5º, § 2º, primeira parte). O preceito fundamental de liberdade de expressão não consagra o "direito à incitação ao racismo", dado que um direito individual não pode constituir-se em salvaguarda de condutas ilícitas, como sucede com os delitos contra a honra. Prevalência dos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade jurídica. 15. "Existe um nexo estreito entre a imprescritibilidade, este tempo jurídico que se escoa sem encontrar termo, e a memória, apelo do passado à disposição dos vivos, triunfo da lembrança sobre o esquecimento". No estado de direito democrático devem ser intransigentemente respeitados os princípios que garantem a prevalência dos direitos humanos. Jamais podem se apagar da memória dos povos que se pretendam justos os atos repulsivos do passado que permitiram e incentivaram o ódio entre iguais por motivos raciais de torpeza inominável. 16. A ausência de prescrição nos crimes de racismo justifica-se como alerta grave para as gerações de hoje e de amanhã, para que se impeça a reinstauração de velhos e ultrapassados conceitos que a consciência jurídica e histórica não mais admitem. Ordem denegada.
(HC 82424, Relator(a): Min. MOREIRA ALVES, Relator(a) p/ Acórdão: Min. MAURÍCIO CORRÊA, Tribunal Pleno, julgado em 17/09/2003, DJ 19-03-2004 PP-00017 EMENT VOL-02144-03 PP-00524)”
Ademais, é forçoso observar que a comunidade internacional não mais restringe o conceito de raça a uma concepção natural ou científica, mas considera aspectos históricos e culturais que possuem o condão de distinguir e individualizar a pessoa, sendo que tais aspectos também devem ser protegidos.
Nessa perspectiva, o artigo 13 do Pacto de São José da Costa Rica, no § 2º, preceitua que a liberdade de pensamento e de expressão não pode estar sujeita à censura prévia, mas existem responsabilidades ulteriores que devem ser expressas em lei que assegurem o respeito aos direitos ou à reputação das demais pessoas. Ainda, o § 5º do mesmo artigo 13 (Dec. n° 678, de 6.11.1992, no Brasil), observa que a lei deve proibir toda a propaganda a favor da guerra, bem como toda apologia ao ódio nacional, racial ou religioso que constitua incitação à discriminação, à hostilidade, ao crime ou à violência.
Esse também é o posicionamento adotado pela Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, que no artigo 29, §§ 1° e 3º, expressa sobre os deveres de toda pessoa para com a comunidade em que o livre e pleno desenvolvimento de sua personalidade, é possível, pelos quais foi consagrado que no exercício dos direitos e liberdades, toda pessoa estará sujeita apenas às limitações determinadas em lei, cujos critérios exclusivos devem assegurar o devido reconhecimento e respeito dos direitos e liberdades de outrem.
Por fim, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de 1966 (Dec. n° 592, de 6 de julho de 1992), artigo 20, §2º, dispõe: “Será proibida por Lei qualquer apologia de ódio nacional, racial ou religioso, que constitua incitamento à discriminação, à hostilidade ou à violência”.
Sendo assim, verifica-se que para a comunidade internacional, bem como para a jurisprudência brasileira, a prática do crime de racismo não se restringe à discriminação em função de características genéticas distintas, mas também quando ocorre por diferenças históricas e culturais, evidenciando uma verdadeira abordagem sociológica da questão, devendo ser combatida qualquer manifestação de pensamento ou discurso que constitua incitação ao ódio ou preconceito de qualquer natureza.
Conclusão
Diante de tudo o que foi exposto, e conforme já foi tratado no início, é evidente que o entendimento doutrinário e jurisprudencial brasileiro entende que a liberdade de expressão não pode ser utilizada como meio para lesar a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas. Não pode ser utilizada para ofensas pessoais, para falsa imputação de crimes ou difamação da intimidade alheia, tampouco pode ser utilizada para discriminação de qualquer natureza, seja racial, social, de gênero ou por orientação sexual.
Desta forma, para a proteção de todos esses direitos essenciais à dignidade da pessoa humana, considerada fundamento da República Federativa do Brasil, é fundamental que a liberdade de expressão não seja protegida de forma absoluta, até mesmo quando exercida nos meios de comunicação social, ainda mais quando estes são utilizados para a promoção do ódio racial ou preconceitos de qualquer natureza.
Fica comprovado, portanto, que a liberdade de expressão do pensamento não é absoluta, encontrando restrições nos demais direitos fundamentais, com os quais deve se adequar o seu exercício.
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