Resumo: O trabalho analisa como o Supremo Tribunal Federal vem buscando resguardar direitos fundamentais, notadamente os direitos de reunião e de liberdade de expressão. E é no exercício desses direitos que a jurisdição constitucional é chamada para resolver os casos de grande complexidade, consistentes na colisão entre direitos fundamentais, de forma a sopesá-los, dando a cada direito seu valor adequado. O artigo examina a decisão adotada pelo Supremo Tribunal Federal por ocasião do julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 187, a chamada “marcha da maconha”. E foi em razão da certeza dos limites da liberdade de expressão e de reunião, explicitadas naquela ação, que a sociedade viu a possibilidade de manifestações ocorridas em junho de 2013.
Palavras-chave: Direitos fundamentais. Liberdade de reunião. Liberdade de expressão.
Abstract: The study analyses how the Brazilian Supreme Court has sought to safeguard fundamental rights, especially the rights of reunion and freedom of expression. And it is in the exercise of those rights that the constitutional jurisdiction is called to judge the cases of great complexity, giving each right its appropriate value. This paper examines the decision adopted by the Supreme Federal Court on the occasion of the trial of the Action of Fundamental Noncompliance with a Fundamental number 187, about the so called “Marijuana march". And it was because of the certainty of the limits of freedom of expression and assembly, explained in that action, that the society saw the possibility of demonstrations in June 2013.
Keywords: Fundamental rights. Freedom of reunion. Freedom of expression.
Introdução
Em junho de 2013, ocorreu uma série de manifestações em São Paulo em razão do aumento da passagem de ônibus. Em poucos dias, outras cidades, inicialmente em apoio à manifestação paulista, realizaram suas próprias passeatas e milhões de pessoas foram às ruas protestar. Foi absolutamente surpreendente a rápida mobilização social, de forma pacífica e lícita.
Atualmente, parece natural que a sociedade se reúna e se manifeste, mas nem sempre foi assim. E isto só foi possível em razão da garantia constitucional da liberdade de reunião e da liberdade de expressão.
Este artigo pretende discutir os direitos de reunião e de expressão, na visão do Supremo Tribunal Federal, à luz de um julgamento proferido pelo Tribunal, que discutiu exaustivamente estes direitos fundamentais. Trata-se da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 187, que debateu os limites do direito de reunião e da liberdade de expressão.
Este tema é relevantíssimo, pois a liberdade de expressão está entre os mais caros direitos fundamentais em um Estado Democrático de Direito, que frequentemente colide com outros direitos constitucionais, entre eles o direito à honra, à vida privada. E, nesta ADPF, o Supremo Tribunal, no seu papel de Corte Constitucional, é chamado a decidir sobre a licitude das chamadas “Marchas da Maconha”.
Este ano a Constituição Federal completa 25 anos, com muitos motivos para comemorar, pois desde sua entrada em vigor vivemos o período democrático mais longo da história da República. E não foram poucos os percalços sofridos até aqui:[1] destituímos um Presidente de forma legítima, observando o devido processo legal; elegemos um Presidente de oposição; realizamos eleições sempre transparentes; superamos escândalos de grande porte, entre eles o da Comissão do Orçamento, o do Esquema de Financiamento Eleitoral e mais recentemente o do chamado Mensalão. Todos os entraves foram superados nos estritos limites da constitucionalidade. Neste breve período histórico, presenciamos o fortalecimento das instituições e exercemos diuturnamente a democracia. É certo que o exercício da democracia requer aprendizado e aperfeiçoamento, processo que estamos todos experimentando juntos — os cidadãos, o poder público, as polícias, os políticos…
O Direito Constitucional vem ganhando importância e proeminência desde a promulgação da Constituição. E é notório, que ele se revela para a sociedade por meio das decisões do Supremo Tribunal Federal, vez que cabe a este Tribunal a guarda da Constituição (artigo 102, caput, da CF). A sociedade tem se interessado cada vez mais pelos julgamentos proferidos pelo STF e, à medida que esse interesse aumenta, a mídia veicula mais informação acerca dos julgamentos, entrevistando especialistas e especulando sobre seus desdobramentos. Com a sociedade pautando a mídia e a mídia aumentando o interesse da sociedade, o Direito (e, notadamente, o Direito Constitucional) passa a fazer parte ainda mais da vida dos cidadãos.
O exemplo mais emblemático do interesse da sociedade pelo “mundo do Direito” foi o julgamento da Ação Penal 470. As sessões foram transmitidas ao vivo pelas televisões comerciais, com direito a comentaristas traduzindo para o público leigo as expressões técnicas e explicando as questões jurídicas implicadas nas discussões. Durante quatro meses, o julgamento da Ação Penal 470 esteve presente no noticiário quase todos os dias. Nas mídias sociais, todos se transformaram em juristas, com opiniões e torcida.[2] Se costumamos dizer, a respeito do futebol, que o Brasil tem 200 milhões de técnicos, o mesmo se aplicou durante o julgamento da AP 470: nos tornamos um país de 200 milhões de especialistas em Direito!
O interesse da sociedade demonstra o amadurecimento de uma população que se torna consciente de seus direitos e deveres, procurando formas de exercê-los dentro do cenário constitucional. Afinal, conhecer os direitos e garantias constitucionais é o primeiro passo para exercê-los.
A Constituição de 1988 é muito abrangente, dispondo “sobre todos os assuntos”.[3] Em razão disso, a gama de temas que acaba batendo às portas do STF é amplíssima. Assim, constitucionalizou-se uma série de temas que, a rigor, não são naturalmente constitucionais. Os temas são os mais variados: da cultura a índios, da responsabilidade penal da pessoa jurídica à ciência e tecnologia, passando por criança, adolescente, jovem, idoso, e meio ambiente. E trazer uma questão para a Constituição significa tirar a matéria da política e trazer para o Direito. Com isso, judicializou-se a própria vida.[4] A Corte tem sido chamada para dar a última palavra sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo, sobre a demarcação de terras indígenas, sobre a interrupção da gravidez de fetos anencéfalos, sobre a suspensão da tramitação de projeto de lei que viabiliza a criação de novos partidos políticos etc. Certamente, a Constituição tem solução para quase todos os problemas. E assim, diante desta gama incomensurável de temas, cabe ao STF dar a última palavra sobre quase tudo.
Os direitos fundamentais, desde a sua origem, são conquistas do indivíduo e da sociedade frente ao Estado e ganharam particular importância no Direito Constitucional após a hecatombe da Segunda Guerra Mundial. A Constituição Federal foi pródiga ao elencar os direitos fundamentais[5], reservando-lhes lugar de destaque no texto, vez que se encontram logo no primeiro capítulo. O rol de direitos fundamentais insertos no artigo 5º é longuíssimo, gravado com alguns cuidados de modo a deixar clara a sua importância. A Constituição de 1988 conferiu eficácia vinculante imediata aos direitos fundamentais (art. 5º, § 1º da CF)[6], e conferiu-lhes o caráter da imutabilidade (art. 60, § 4º, inciso IV, da CF).[7] Por esta razão, qualquer emenda tendente a abolir determinado direito fundamental terá a sua inconstitucionalidade declarada pelo Poder Judiciário.
No entanto, não basta a enumeração de direitos, mas é necessário que se efetive o acesso a esses direitos. Vale dizer: “A sua efectividade não se basta com uma mera prescrição normativa, mas está, outrossim, dependente de um conjunto de mecanismos processuais que garantam a sua protecção, máxime através da sindicabilidade judicial”.[8] Neste panorama é que a Justiça Constitucional desempenha papel relevante.
No mesmo sentido é a lição de Gilmar Mendes ao afirmar que “não se pode negar, ademais, que a falta de um mecanismo de controle de constitucionalidade pode ser fatal para os direitos e garantias fundamentais, que ficaram, de fato, à mercê da vontade do legislador. É exatamente a proteção judicial e o controle de constitucionalidade que outorgam efetividade a essas garantias”.[9]
De todos os papéis outorgados ao Supremo Tribunal Federal, o mais relevante é o de guardião da Constituição, pois é certo que não há estado democrático de direito, nem democracia, em que não haja proteção efetiva de direitos e garantias fundamentais. E é função da jurisdição constitucional assegurar a supremacia material da Constituição e os direitos fundamentais do cidadão.
Com efeito, a proteção dos direitos fundamentais está associada à existência da justiça constitucional. As Cortes constitucionais instituídas em diversos países têm como principal missão a interpretação e a guarda da Constituição. Como os direitos fundamentais, em geral, são previstos nas Constituições, os Tribunais Constitucionais ganham relevância na interpretação e na aplicação desses direitos. Para Hans Kelsen, jurisdição constitucional é a “garantia jurisdicional da Constituição” e “é um elemento do sistema de medidas técnicas que têm por fim garantir o exercício regular das funções estatais”.[10]
O objeto deste estudo é verificar como o Supremo Tribunal Federal vem buscando resguardar direitos fundamentais, notadamente os direitos de reunião e de liberdade de expressão. E é no exercício desses direitos que a jurisdição constitucional é chamada para resolver os casos de grande complexidade, consistentes na colisão entre direitos fundamentais, de forma a sopesá-los, dando a cada direito seu valor adequado. Para analisar estes direitos fundamentais será apreciada a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 187, proposta pela Procuradoria Geral da República, que pleiteou fosse dado ao art. 287 do Código Penal interpretação conforme a Constituição, a fim de “excluir qualquer exegese que possa ensejar a criminalização da defesa da legalização das drogas, ou de qualquer substância entorpecente específica, inclusive através de manifestações e eventos públicos” (ADPF 187/DF, p. 14).
Este artigo tratará de questões extraídas da ADPF 187/DF, que são a jurisdição constitucional exercida pelo Supremo Tribunal Federal, a arguição de descumprimento de preceito fundamental, o controle de constitucionalidade realizado pela interpretação conforme a Constituição, os direitos fundamentais de reunião e de liberdade de expressão e o direito da minoria.
As liberdades de reunião e de expressão e o julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 187.
As questões constitucionais difíceis (hard cases) trazem valores constitucionais contrapostos. Como se sabe, não há valores absolutos. Nem a vida é um valor absoluto, havendo previsão constitucional para a pena de morte e previsão legal para o aborto e a legítima defesa. Deste modo, a questão da compatibilização de direitos em confronto passa, necessariamente, pela análise do caso concreto.
Este artigo analisa uma decisão paradigmática de controle de constitucionalidade que teve repercussão midiática, principalmente nas redes sociais pois, como já afirmado, cada vez mais frequente o interesse da sociedade pelas decisões do Supremo Tribunal Federal.
A “Marcha da maconha”
Nos anos de 2009, 2010 e 2011, alguns estados da federação proibiram manifestação pública a favor da descriminalização do uso de drogas — manifestações estas que ficaram conhecidas como “marchas da maconha”.[11]
Um exemplo: passeata defendendo esta causa foi proibida na cidade de São Paulo, por meio de decisões do Tribunal de Justiça do Estado. Alegou-se que se tratava de crime de “incitação ao crime” previsto no artigo 287 do Código Penal.[12] A decisão que proibiu a manifestação no ano de 2010 afirmou que:
“Enquanto não houver provas científicas de que o ‘uso da maconha’ não constitui malefícios à saúde pública e que a referida substância deva sair do rol das drogas ilícitas, toda tentativa de se fazer uma manifestação no sentido de legalização da ‘maconha’ não poderá ser tida como mero exercício do direito de expressão ou da livre expressão do pensamento, mas sim, como sugestão ao uso de estupefaciente denominado vulgarmente ‘maconha’, incitando ao crime, como previsto no artigo 286, do Código Penal, ou ainda, como previsto na lei especial, artigo 33, 2º, da Lei 11.343/2006.”[13]
De outro lado, nos anos de 2010 e 2011, marchas da maconha ocorreram livremente no Estado do Rio de Janeiro.
A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental e interpretação conforme.
Em 2007, foi proposta, pela Procuradoria Geral de República, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF 187, que veio a ser julgada em 15 de junho de 2011.
Apontamos algumas características da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, a fim de verificar a adequação da medida adotada. Com efeito, a referida ação foi incialmente prevista no artigo 102, § único na Constituição Federal e, em razão da Emenda Constitucional n. 3, de 17 de março de 1993, transformada em § 1º, sem que sua redação fosse alterada. É neste único parágrafo no texto constitucional que há referência a este instituto, que só teve aplicação efetiva com a regulamentação trazida pela Lei n. 9882, de 3 dezembro de 1999.[14]
Trata-se de medida judicial que tem por objeto evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público, de competência exclusiva do Supremo Tribunal Federal. É certo que não há definição de preceito fundamental, seja na Constituição, seja na lei específica, cabendo à doutrina e, em última análise, ao STF, sua enunciação.
No julgamento da ADPF 33, o Min. Relator Gilmar Mendes, afirmando ser muito difícil indicar a priori os preceitos fundamentais que desafiam a arguição de descumprimento de preceito fundamental, aponta os direitos e garantias fundamentais previstos no artigo 5º — dentre outros, os princípios protegidos pela cláusula pétrea previstos no artigo 60, § 4º, da Constituição, a saber: a forma federativa, a separação dos Poderes de Estado e o voto direto, secreto, universal e periódico. É preciso incluir nesta lista os chamados princípios sensíveis, cuja violação autoriza a decretação de intervenção federal nos estados-membros. [15]
A referida ADPF 187, de Relatoria do Ministro Celso de Mello, pleiteou que fosse dada ao artigo 287 do Código Penal interpretação conforme a Constituição Federal, de modo a excluir qualquer leitura que possa ensejar a criminalização da defesa da legalização das drogas, inclusive manifestações e eventos públicos.
O princípio da interpretação conforme a Constituição é fundamentalmente um mecanismo de controle da Constituição, vez que sua principal função é assegurar um razoável grau de constitucionalidade das normas no exercício de interpretação das leis. Assim, frente a uma norma que admita mais de uma interpretação, o juiz ou tribunal devem buscar aquela mais adequada aos valores constitucionais.[16] Vale dizer, diante de uma norma que admita mais de uma interpretação válida, que o intérprete deve adotar a que mais se coadune com a Constituição. Segundo Luís Roberto Barroso, o princípio da interpretação conforme a constituição “abriga, simultaneamente, uma técnica de interpretação e um mecanismo de controle de constitucionalidade”.[17] E o referido autor afirma que “permite que o intérprete, sobretudo o tribunal constitucional, preserve a validade de uma lei que, na sua leitura mais óbvia, seria inconstitucional”. E continua:
“Trata-se de uma atuação ‘corretiva’ que importa na declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto. Figura próxima, mas não equivalente, é a da interpretação conforme a Constituição para declarar que uma norma válida e em vigor não incide sobre determinada situação de fato. Em qualquer caso, o princípio tem limite as possibilidades semânticas do texto.”[18]
Deste modo, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 187 pretendia, sem declarar a inconstitucionalidade do artigo 287 do Código Penal, que a Suprema Corte admitisse a manifestação pública a favor do consumo da maconha, o que à primeira vista podia parece ser ilegal, como vinham se manifestando vários tribunais. Entrou na discussão também o artigo 33, § 2º da Lei n. 11.343/2006.[19]
Neste sentido, requereu a Procuradoria Geral de Justiça, autora da ADPF, que fosse dado ao art. 287 do Código Penal interpretação conforme a Constituição, “de forma a excluir qualquer exegese que possa ensejar a criminalização da defesa da legalização das drogas, ou de qualquer substância entorpecente específica, inclusive através de manifestações e eventos públicos”. Afirmou a proponente, entre outros pontos, que “na presente ação, não se objetiva questionar a política nacional de combate às drogas adotada pelo legislador brasileiro. Almeja-se, isto sim, afastar uma interpretação do art. 287 do Código Penal que vem gerando indevidas restrições aos direitos fundamentais à liberdade de expressão (art. 5º, incisos IV e IX, e 220 CF) e de reunião (art. 5º, inciso XVI, CF)” (fl. 3).
A ação foi julgada pelo Supremo Tribunal Federal,[20] que enfrentou a questão dos limites da liberdade de expressão e reunião — dois valores caríssimos à democracia ou, nas palavras de Celso de Mello, relator do processo, “tema de magnitude inquestionável”. Discutiu-se na ação apenas a constitucionalidade da realização de manifestações ou eventos públicos em que se faça a defesa explícita da descriminalização de substâncias entorpecentes. E, nesse sentido, foi a manifestação inicial do Relator:
“Antes de fazê-lo, contudo, desejo enfatizar que este processo de controle de constitucionalidade não tem por objetivo discutir eventuais propriedades terapêuticas ou supostas virtudes medicinais ou, ainda, possíveis efeitos benéficos resultantes da utilização de drogas ou de qualquer substância entorpecente específica, mas, ao contrário, busca-se, na presente causa, proteção a duas liberdades individuais, de caráter fundamental: de um lado, a liberdade de reunião e, de outro, o direito à livre manifestação do pensamento, em cujo núcleo acham-se compreendidos os direitos de petição, de crítica, de protesto, de discordância e de livre circulação de idéias.”
O direito fundamental de reunião está previsto no artigo 5º, inciso XVI, da Constituição Federal, que assim o determina: “todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente”. Esclarece o Ministro Celso de Mello em seu voto que
“trata-se de prerrogativa impregnada de caráter instrumental, qualificando-se, enquanto liberdade de ação coletiva, como importante meio de consecução e realização dos objetivos que animam aqueles que se congregam, para um fim específico, em espaços públicos ou privados (fls. 16 do voto).”
A liberdade de reunião e a de livre expressão do pensamento
Como já afirmado, é assegurado o direito de reunião de forma pacífica, sem armas e em locais abertos ao público, que poderá ser exercido independentemente de autorização do Poder Público, sendo necessário apenas seja comunicado a fim de não frustrar outra reunião, anteriormente convocada para o mesmo local, bem como prévio aviso à autoridade administrativa, para as providências necessárias à efetiva realização do evento.
Reunião, nas palavras de Manoel Gonçalves Ferreira Filho, é “o agrupamento de pessoas, organizado, porém descontínuo, destinado à manifestação de idéias”.[21] A reunião deve ter fins pacíficos, razão pela qual há determinação constitucional para que ocorra sem armas. Embora a Constituição não mencione, a reunião deve ter fins lícitos,[22] pois manifestantes que se reúnem para depredar bens públicos e privados, obviamente, não têm garantia constitucional.
Com efeito, é patente que a garantia da liberdade de reunião abrange tanto a obrigação negativa de não-intromissão por parte dos poderes públicos, quanto uma obrigação positiva de proteção frente à intromissão de terceiros (contramanifestantes, por exemplo, que possam vir a frustrar a manifestação). Assim, é obrigação do Poder Público assegurar a realização da reunião convocada, que pode ocorrer na forma de passeatas, procissões, paradas, marchas, comício e desfile, devendo os manifestantes participar da reunião de forma consciente.
Afirmou o STF que o direito de reunião
“enquanto direito-meio, atua em sua condição de instrumento viabilizador do exercício da liberdade de expressão, qualificando-se, por isso mesmo, sob tal perspectiva, como elemento apto a propiciar a ativa participação da sociedade civil, mediante exposição de idéias, opiniões, propostas, críticas e reivindicações, no processo de tomada de decisões em curso nas instâncias de Governo.”[23]
É visível que o direito de reunião está ligado a outro da maior importância em sociedades democráticas: o ligado à manifestação do pensamento. Como afirmou o cartunista Millôr Fernandes: “Livre pensar é só pensar”! E é direito fundamental “só pensar”. A liberdade de expressão está prevista na Constituição, no artigo 5º, incisos IV “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”, XIV “é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional”, bem como no artigo 220 “A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição”.
A liberdade de expressão é um dos direitos mais importantes dentre os direitos fundamentais e é uma conquista que vem sendo forjada ao longo dos séculos. São facetas da liberdade de expressão diversas espécies de liberdades, entre elas a de comunicação, a de imprensa, as de informações e artísticas — todas elas estão asseguradas constitucionalmente. A garantia da liberdade de expressão tutela a opinião, convicção, comentário, crítica, piada e julgamento sobre qualquer pessoa ou sobre qualquer assunto, seja ele relevante ou não, interessante ou não, valoroso ou não.[24] Não cabe ao Estado fazer um juízo de valor e afirmar o que é de bom gosto ou não, o que é de interesse público ou não, mas sim à sociedade, que deverá fazer um julgamento a posteriori daquilo que lê ou assiste. A liberdade de expressão é um anteparo a eventual censura que o Estado pretenda exercer.
E, segundo o Ministro Marco Aurélio, a liberdade de expressão tem precedência sobre outros princípios constitucionais
“No sistema de liberdades públicas constitucional, a liberdade de expressão possui espaço singular. Tem como único paralelo em escala de importância o princípio da dignidade da pessoa humana. Na linguagem da Suprema Corte dos Estados Unidos, se “existe uma estrela fixa em nossa constelação constitucional, é que nenhuma autoridade, do patamar que seja, pode determinar o que é ortodoxo em política, religião ou em outras matérias opináveis, nem pode forçar os cidadãos a confessar, de palavra ou de fato, a sua fé nelas (West Virginia Board of Education v. Barnette, 319 US 624, 1943). O Tribunal norte-americano assentou, no precedente referido, não haver circunstância que permita excepcionar o direito à liberdade de expressão. Isso porque, acrescento, tal direito é alicerce, a um só tempo, do sistema de direitos fundamentais e do princípio democrático – genuíno pilar do Estado Democrático de Direito. Explico.
A valorização do espaço e do debate públicos assim como a afirmação de que a realização do homem ocorre com a participação na vida pública da cidade constituem o que veio a ser rotulado por Benjamim Constant como “liberdade dos antigos” (A liberdade dos antigos comparada à dos modernos, 2001). Nesse sentido, a democracia compreende simplesmente a possibilidade de ir a público e emitir opiniões sobre os mais diversos assuntos concernentes à vida em sociedade. Embora a versão de democracia de hoje não seja idêntica à adotada pelos gregos, citada por Constant, o cerne do que se entende por governo democrático encontra-se, ao menos parcialmente, contido nessa ideia de possibilidade de participação pública. E o veículo básico para o exercício desse direito é a prerrogativa de emitir opiniões livremente”[25]
A liberdade de expressão não é absoluta. Ela encontra limites no que diz respeito ao seu conteúdo, não se admitindo, no Brasil, o chamado discurso de conteúdo discriminatório ou racista (“hate speech”). Esta questão foi enfrentada pela Suprema Corte em outra decisão paradigmática, no HC 82.424/RS[26], quando o escritor e sócio de editora Siegfrieg Ellwanger pretendeu obter ordem de habeas corpus, depois de condenado pela prática do crime de racismo. Em julgamento memorável, negou-se a concessão da ordem por sete votos a três, mantendo-se a condenação do livreiro. Naquela oportunidade, afirmou o Ministro Gilmar Mendes:
“Não se pode atribuir primazia absoluta à liberdade de expressão, no contexto de uma sociedade pluralista, em face de valores outros como os da igualdade e da dignidade humana (…). É certo, portanto, que a liberdade de expressão não se afigura absoluta em nosso texto constitucional. Ela encontra limites também no que diz respeito às manifestações de conteúdo discriminatório ou de conteúdo racista. Trata-se, como já assinalado, de uma elementar exigência do próprio sistema democrático, que pressupõe a igualdade e a tolerância entre os diversos grupos.”
É certo, pois, que as liberdades de reunião e de expressão são traços distintivos das sociedades democráticas.
O Congresso nacional é a casa das maiorias e o STF das minorias.
Os direitos fundamentais são garantias de todos os cidadãos ou, de uma forma mais ampla, são garantias dos indivíduos, sejam tais direitos de interesse da maioria ou de uma pequena minoria que, embora minoria, não os terá limitados por tal motivo. Com efeito, o direito de reunião é assegurado às maiorias para que profiram suas opiniões, suas ideias, suas reivindicações, mas a minoria também tem este mesmo direito assegurado. E, na realidade, é a minoria que precisa ver garantido o seu direito, pois proferir ideias que são consensuais não gera conflitos e discussões. São justamente os grupos minoritários que precisam ter assegurado com maior veemência seu direito de reunião. Em uma sociedade democrática como a nossa, a minoria precisa ter espaço para poder externar suas opiniões, suas ideias, suas propostas. Ou ainda, seu desagrado, sua discordância, sua insatisfação com o estado das coisas. As opiniões majoritárias geralmente são conhecidas e disseminadas. E encontram pouca resistência para serem propaladas. Em regra, são acolhidas com entusiasmo pelos meios de comunicação. Não geram mal-estar, não desagradam, não chocam, não são atrevidas. As minorias, por sua vez, encontram pouco espaço social para se manifestar livremente. E é saudável para a democracia o dissenso, bem como a introdução no cenário social de novas ideias, novas propostas, novos discursos. Verifica-se que é a veiculação de ideias contramajoritárias que enriquece o debate, vindo a modificar a opinião pública.
Segundo Geraldo Ataliba citado pelo Ministro Celso de Mello em seu voto:
“O principal papel da oposição é o de formular propostas alternativas às idéias e ações do governo da maioria que o sustenta. Correlatamente, critica, fiscaliza, aponta falhas e censura a maioria, propondo-se, à opinião pública, como alternativa. Se a maioria governa, entretanto, não é dona do poder, mas age sob os princípios da relação de administração.”[27]
Em outra decisão paradigmática, também da relatoria do Ministro Celso de Mello, na RE 477.554 AgR/MG, também se discutiu o papel contramajoritário do STF:
“Trata-se, na realidade, de tema que, intimamente associado ao debate constitucional suscitado nesta causa concerne ao relevantíssimo papel que compete a esta Suprema Corte exercer no plano da jurisdição das liberdades: o de órgão investido do poder e da responsabilidade institucional de proteger as minorias contra eventuais excessos da maioria ou, ainda, contra omissões que, imputáveis aos grupos majoritários, tornem-se lesivas, em face da inércia do Estado, aos direitos daqueles que sofrem os efeitos perversos do preconceito, da discriminação e da exclusão jurídica.”[28]
As mudanças são a marca da sociedade pós-moderna. As inovações tecnológicas e o progresso que as acompanha implicam mudanças sociais. Ademais, a sociedade brasileira avançou significativamente nas últimas duas décadas em índices sociais. É natural que uma sociedade mais instruída, com uma qualidade de vida melhor e mais ciente de seus direitos e deveres passe a se preocupar com a vida em sociedade e consequentemente, se interesse pela política.
Uma sociedade democrática e plural deve garantir a todos a livre manifestação de ideias, encontre ou não respaldo na opinião da maioria. Muitas vezes, novas ideias são o embrião para futuras mudanças. Este é o processo histórico. É verdade que nem toda nova ideia é boa, mas ela pode ser aperfeiçoada. Ou mesmo trazer a certeza de que aquela ideia antiga não deva ser desprezada apenas por ser antiga, pois, ao final de um estudo ou de um debate, pode-se chegar à conclusão de que, apesar de antiga, ainda é a melhor. Uma coisa é certa: não é possível o progresso de uma sociedade democrática sem o debate de ideias novas e de novas propostas. Para tanto, o debate precisa ser livre.
E cabe ao Supremo Tribunal Federal, na sua função contramajoritária da jurisdição constitucional no Estado Democrático de Direito, assegurar às minorias os seus direitos fundamentais de liberdade de reunião e de expressão. Afirma o decano da Suprema Corte que
“Concerne ao relevantíssimo papel que ao Supremo Tribunal Federal incumbe desempenhar no plano da jurisdição das liberdades: o de órgão investido do poder e da responsabilidade institucional de proteger as minorias contra eventuais excessos da maioria ou, até mesmo, contra abusos perpetrados pelo próprio Poder Público e seus agentes.” (grifos no original) [29]
É dever do STF aplicar a Constituição, ainda que contra a opinião majoritária. Essa é a natureza de uma Corte Constitucional.
As decisões contramajoritárias têm um papel educativo no tocante às questões fundamentais para a sociedade e acabam por “desencadear todo um processo público de construção participativa de solução para os problemas enfrentados”.[30]
E estas opiniões também encontram amparo na Constituição Federal. Desta forma, o Supremo Tribunal Federal, no seu papel de Corte Constitucional, tem o dever de proteger o direito de manifestação de uma minoria que, caso não seja protegida, pode vir a ser suplantada pela maioria. E o direito de manifestação da minoria não diz respeito à qualidade da sua opinião. Isto é, ideias inadequadas, estúpidas, ou desprezíveis aos olhos de alguns, ainda assim podem ser manifestadas. E é preciso que encontrem lugar na sociedade, sendo efetivadas pelo direito, no caso o STF, no papel de Corte Constitucional.
É preciso ressalvar que o Supremo Tribunal no exercício de jurisdição constitucional tem sido chamado com relativa frequência a decidir de forma contramajoritária. Podem ser mencionados o reconhecimento jurídico da união estável de pessoas do mesmo sexo (ADPF 132/RJ e ADIn 4.277/DF) e a autorização para interrupção da gravidez de fetos anencéfalos (ADPF 54/DF).
As manifestações de junho de 2013
Para o Ministro Celso de Mello,
“a praça pública, desse modo, desde que respeitado o direito de reunião, passa a ser o espaço, por excelência, do debate, da persuasão racional, do discurso argumentativo, da transmissão de idéias, da veiculação de opiniões, enfim, a praça ocupada pelo povo converte-se naquele espaço mágico em que as liberdades fluem sem indevidas restrições governamentais.”[31]
Atualmente, e como se viu nestas últimas manifestações espontâneas ocorridas em junho passado, em diversas cidades do Brasil as redes sociais foram a antessala da praça pública.
A manifestação ocorrida no dia 7 de junho passado tinha por objetivo a redução das passagens de ônibus na cidade de São Paulo. Pretendia-se a redução de vinte centavos, aumento determinado pelo Prefeito do Município. A primeira manifestação foi violentamente reprimida pela Polícia Militar.[32] Notícias de violência contra jornalistas, fotos de manifestantes agredidos e relatos de pessoas que presenciaram agressões ganharam os jornais, os noticiários e principalmente as redes sociais.
Aqui é preciso fazer uma anotação: violências ocorridas nesta primeira manifestação não são novidade na periferia de São Paulo e nos rincões do Brasil. A violência da Polícia nas favelas nem mais é registro da imprensa. Ocorreu que a Polícia Militar empregou contra a classe média o mesmo tratamento dispensado à classe baixa. A classe média não está acostumada a relacionar-se com a polícia do outro lado do balcão. E, em nossa opinião, este foi o estopim da mobilização de um número impressionante de manifestações que tomaram o país. O papel das redes sociais nas manifestações de junho de 2013 merece um estudo aprofundado que não é o objetivo deste trabalho.
Por algum motivo, que os sociólogos ainda procuram investigar, a população se mobilizou como há muito não se via e foi para as ruas protestar. A última grande mobilização social que tomou as ruas foi a dos “caras pintadas”, durante a presidência de Fernando Collor de Mello em 1992. A insatisfação da sociedade com o Presidente da República, naquela época, resultou em um processo de impeachment e, consequentemente, em sua renúncia.
A sociedade foi para a rua manifestar sua insatisfação “contra tudo e contra todos”. A característica mais marcante e atual destas passeatas foi a “pauta difusa”. Se o embrião das manifestações foi o aumento das passagens de ônibus, as outras que se sucederam apresentaram uma “pauta difusa”. Cada pessoa foi para a rua com seu cartaz, com sua lista pessoal de reivindicações. Uma das frases que melhor representou os “ideais” da manifestação foi “Não é só por vinte centavos. É por direitos!”.
Se as manifestações registradas pela história do Brasil aconteceram por motivos determinados, como a revolta da vacina (que ocorreu em 1904 no Rio de Janeiro, pois a população revoltou-se contra a campanha de vacinação obrigatória contra a varíola imposta pelo governo federal), a manifestação pelas “diretas já” (que pretendia a eleição direta para a presidência da república) e o citado impeachment de Fernando Collor, as manifestações de junho não tinham um objetivo único, mas objetivos de toda ordem.
Atordoados com o barulho das ruas, muitos pleiteavam a organização das reclamações, esquecendo que vivemos em uma sociedade pós-moderna. Bauman ficaria orgulhoso da representação da pós-modernidade destas passeatas. Em uma sociedade complexa, em que as certezas se derreteram, se liquefizeram (inclusive a certeza da organização de uma pauta única), a sociedade organizada cansou de repetir que seria preciso organizar líderes e pleitos para que fossem atendidos pelos Prefeitos, Governadores e pela Presidente da República. Mas não saiu das ruas a indicação de líderes.
O direito de reunião está ligado à livre manifestação de pensamento. Pessoas reúnem-se para, entre outras atividades, manifestar suas ideias, o que no Brasil é feito de forma livre e democrática. Reúnem-se para se mostrarem a favor do consumo de maconha, contrárias ao aumento do ônibus, contrárias ao destino de verbas para construção de estádios para os jogos da Copa do Mundo, para pleitear verbas para a construção de hospitais, contrários à aprovação da PEC 37.[33]
Conclusão
As manifestações de junho demonstram que os vinte e cinco anos de Constituição já fizeram brotar nos indivíduos a noção de cidadania. Foram cidadãos que, inconformados com os rumos políticos e sociais, conseguiram protestar licitamente demonstrando suas indignações.
Os direitos fundamentais foram exercidos na sua amplitude, de forma alegre, efetiva e ordeira.[34] A sociedade reuniu-se na “praça pública” para debater, para argumentar, para transmitir ideias, veicular opiniões e assim, as ruas de várias cidades do Brasil, ocupadas pelo povo, converteram-se “naquele espaço mágico em que as liberdades fluem sem indevidas restrições governamentais”.[35]
Seguramente, estas manifestações apontam para o caminho das liberdades de reunião e de expressão. E o povo teve a certeza de que, em uma democracia, pode livremente exercer seu direito de protesto, de crítica e de discordância.
E assim, assiste-se à construção da democracia no Brasil. Aos poucos, o caminho se torna mais claro. Há uma Constituição que dispõe sobre direitos fundamentais e a Justiça Constitucional, com seus mecanismos próprios, garante acesso a estes direitos. Assiste-se à Constituição passar de uma ideia, de uma aspiração, para a efetivação de direitos. E, assim, deixamos cada vez mais distante um passado de repressão, de limitação de direitos e de autoritarismo.
Doutora e Mestre em Direito Processual Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC/SP
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