A licitude e legitimidade no âmbito processual penal da prova cautelar não submetida ao crivo jurisdicional

“O homem mais pobre desafia em sua casa todas as forças da Coroa, sua cabana pode ser muito frágil, seu teto pode tremer, o vento pode soprar entre as portas mal ajustadas, a tormenta pode nela penetrar, mas o Rei da Inglaterra não pode nela entrar”(Lord Chatham)[1].

O caso da Estudante Roberta Jamily foi amplamente divulgado pela mídia em todo o país. Naquela oportunidade, a jovem não concordou em se submeter ao exame de DNA para verificar se sua identidade genética conferia com a da mulher que se apresentava como sua mãe. Assim, um delegado de polícia do estado de Goiás observou que Roberta havia fumado um cigarro e depois jogou ao cinzeiro. Com astúcia e inteligência o delegado promoveu a coleta da bituca para submetê-lo ao dito exame, a fim de descobrir um possível crime de subtração.

Pois bem, não tivesse o delegado executado de ofício a produção do exame, nada haveria de irregular. Palpitante que é este tema, por não ter havido uma real discussão das implicações possíveis, então nosso trabalho neste artigo é de profunda e concentrada visão acadêmica.

Urge, primeiramente, delinear logicamente o assunto, por uma questão didática. Assim, serão elencados como pontos principais de discussão problemática, os seguintes aspectos:

1 – A colheita de provas desprezada por um réu pode em favor do Estado ser aproveitada, sem a ofensa à liberdade pública essencial ao indivíduo ou a própria constituição?

2 – Esta modalidade de produção probatória será ilícita ou ilegítima?

No primeiro questionamento, dando-se apreço à liberdade individual de não produzir prova contra si próprio [2], qualquer prova que fosse colhida sem o prévio consentimento do inquirido ou réu (provas que dependem de seu corpo ou de uma ação) seria ilícita, respeitando-se a previsão do diploma constitucional. Todavia, não é esta uma regra intransponível, visto que o poder do Estado não pode estar atado pela simples vontade do indivíduo, como ocorre, por exemplo, com a interceptação telefônica[3] ocasião em que a autoridade policial, com fundamentos razoáveis de materialidade e ou autoria, requer ao magistrado sua permissão, havendo deste modo uma sobreposição da garantia da inviolabilidade de suas conversas telefônicas [4] em favor da persecutio criminis do Estado.

Não seria razoável que a segurança da inviolabilidade fosse despojada em favor de um interesse meramente particular, visto que este quando em conflito com outro bem individual, nunca ambos devem ser sacrificados e sim comedidos para que não haja perda total do bem para nenhum dos conflitantes, é a clara manifestação do princípio da proporcionalidade.

O mestre Zaffaroni defende a disponibilidade dos bens jurídicos por parte do Estado, porém com ressalvas importantes, como a necessidade de existência da disponibilidade das condições externas da liberdade, já que as internas são totalmente individuais [5]. Temos uma constituição garantista, mas somente o seu aspecto formal não traria materialidade à garantia ou ao direito em pauta, uma vez que a antropocentria , é que deve preponderar e não o interesse do “LOBO” (Estado).

Com toda vênia, mas equivocadamente, o professor Luiz Flávio Gomes, em seu artigo CASO ROBERTA JAMILLY publicado no site do IELF[6] , concedeu à prova produzida pelo delegado de polícia de Goiânia, licitude, uma vez que o cigarro por ela descartado estava destacado de seu corpo, não havendo assim invasão da integridade física da inquirida. Por este argumento, admite ser possível a colheita de provas cautelares, desprezadas pelo acusado sem a necessidade de se auferir a autenticidade e validade pelo judiciário. Não podemos concordar, haja vista que a base probatória constitucional e jurisprudencial do Pretório Excelso nos permite tal interpretação.

Em aresto cabalmente definidor da situação jurídica do procedimento das provas cautelares, o STF em HC 71.371-RS, do Min. Pres. Marco Aurélio Melo[7], concedeu a realização do exame de DNA com material genético da placenta expelida pela cantora mexicana Glória Trevi, operando-se a contraposição dos bens jurídicos (princípio da proporcionalidade), quais sejam: o direito à intimidade e privacidade da cantora e a honra dos servidores públicos da polícia federal, sendo que o particular suportou o gravame de ter seu material investigado em benefício do crédito de todo corpo de agentes federais que estavam sob suspeita. Ainda não é a única demonstração desta tendência[8].

A base da decisão do STF, como se infere é a aplicação do princípio da proporcionalidade dos bens jurídicos tutelados, sendo à luz do explanado, constitucional a posição do pretório, haja vista um órgão jurisdicionado ter conferido validade ao pedido de produção probatória.

Desta feita, registra-se no caso de Roberta, uma falha processual de, ilegitimidade (p.401)[9] e não licitude da prova, levando-se em consideração, a necessidade de aferição de validade de todos os aspectos utilizados na colheita da prova pelo delegado de polícia, por um magistrado competente, operando-se a conferência de autenticidade da prova, requisito este essencial até na escuta telefônica; até pela aberração jurídica de que os autos do inquérito ficam apensados ao do processo, o que acaba por influenciar quem decide. Assim o é, pois o procedimento instaurado na delegacia não precede de contraditório, ao contrário é um processamento inquisitivo – não se coaduna com o processo penal e constitucional da prova.

A autenticidade dar-se-ia, se, o delegado houvesse formulado à um magistrado o pedido de realização do exame para conservação do material genético. Assim ter-se-ia efetivado o princípio do devido processo legal[10] e o contraditório, já que são corolários do sistema constitucional de provas.

Já a licitude, não foi afetada porquanto as diligências no sentido de se buscar a comprovação de crimes, é atributo necessário e inerente ao trabalho policial, sem o qual este perderia seu objeto de trabalho.

Posto isso, fica a indagação: O exame de material genético é menos merecedor de garantia que a escuta telefônica, quebra de sigilo bancário, já que ambos estão sob o mesmo manto jurídico constitucional, o da inviolabilidade da intimidade e da privacidade?

Segundo René Ariel Dotti, a intimidade caracteriza-se como a esfera secreta da vida do indivíduo na qual este tem o poder legal de evitar os demais (p.210) [11]. Ora, o que há de mais íntimo do que o seu próprio código genético – o que nem mesmo quem porta conhece, não pode por outro antes ser conhecido, sob pena de uma devassa na vida do se humano.

Respeitando o pensamento oposto que são por muitos festejados doutrinadores adotados, a afirmação à resposta abriria uma possível porta em que o Estado com o aparato que possui, pudesse investigar nossos códigos genéticos e quem sabe, até mesmo não se interessar em aprovar em concurso público, candidato que possa vir a ter doença que o invalide para o trabalho em tempos futuros, eximindo-se assim de aposentar pessoas que não poderão trabalhar tempo suficiente para “merecerem” aposentadoria.

Destarte, deixo a todos muito mais um texto reflexivo do que de conteúdo doutrinário, atentando-nos de que a figura de um réu é a nossa própria imagem e semelhança, por isso, merecem ser processados, merecem mais, obrigatoriamente devem ser processados de forma humana, digna e que respeite todo o plexo do ordenamento jurídico vigente, seja ele constitucional ou ordinário.

Notas:
[1] MORAIS, Alexandre de, Direito Constitucional, 9.ed. São Paulo: Atlas, 2001.
[3] Lei n.º 9296/96.
[4] Princípio da intimidade e da privacidade art. 5.º, X da CF.
[5] ZAFFARONI, Raúl Eugênio. Manual de Direito Penal Brasileiro. 3. ed. Revista dos Tribunais . São Paulo.
[8] STJ – RHC. Prova. Sigilo de correspondência. Violação. A violação de correspondência, com maltrato à liberdade de pensamento resguardada pela Constituição Federal somente se concretiza quando se tratar de ‘correspondência fechada’. De outro lado, a apreensão de documento, representado por minuta de carta já remetida, mediante autorização judicial, não representa afronta ao direito assegurado pelo art. 5.º, X da CF (intimidade da vida privada, etc.) porque idêntica proteção é reservada à honra das pessoas.” (RHC 6.719 – SP – DJU de 8-6-98, p. 178).
[9] “Pode-se afirmar assim, que são totalmente inadmissíveis no processo civil e penal tanto as provas ilegítimas, proibidas pelas normas de direito processual, quanto as ilícitas, obtidas com violação das normas de direito material” (Mirabete, Júlio Fabrini, Código de Processo Penal Interpretado. 8.ª ed. São Paulo: Atlas, 2001.
[10] Art. 5.º, LIV da Constituição Federal.
[11] SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 19 ed. São Paulo: Malheiros, 1999.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Claudemir Liuti Jr.

 

Acadêmico do Curso de Direito da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul; Trabalho orientado por Luiz Alberto Safraider, professor de Direito Penal na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul e Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de Mato Grosso do Sul.

 


 

Equipe Âmbito Jurídico

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