INTRODUÇÃO
O presente artigo científico tem por objetivo realizar uma breve análise da questão envolvendo a limitação ao direito de propriedade em condomínios edilícios.
CONDOMÍNIO EDILÍCIO
De início, necessário estabelecer o conceito de “condomínio edilício”, de modo a possibilitar uma delimitação do tema central a ser abordado.
Muitos já foram os nomes dados pela lei e doutrina brasileira à propriedade condominial em edifícios no Brasil, sendo que a legislação mais marcante sobre o assunto foi editada em 1964, com a Lei n.º 4.591. Mais especificamente, tem-se que:
No condomínio ‘especial’, criado a partir da Lei 4.591/64, coexistem, de um lado, um condomínio ordinário (denominado voluntário a partir do novo Código) com a divisão do solo em frações ideiais e, ao mesmo tempo, uma outra forma de divisão de propriedade, alcançando a edificação erigida sobre esse mesmo solo, subdividida em ´planos horizontais´ – andares, apartamentos ou qualquer outro tipo de habitação – havendo, ainda, a estremar, e ao mesmo tempo, integrar essas unidades, umas com as outras, partes da edificação que são designadas ´áreas comuns´. Esse conjunto de direitos, sobre uns e outros, e que se denomina como propriedade horizontal.[1]
Dito isto, convencionar-se-á aqui chamar de condomínio edilício o conjunto de propriedades numa edificação composto por partes exclusivas e partes comuns. A adoção da expressão condomínio edilício tem fundamento no fato de ser este o nome adotado pela legislação ora vigente, constante dos arts. 1.331 a 1.358 do Código Civil – Lei n.º 10.406 de 10 de janeiro de 2002[2]. Como o próprio nome já diz, no condomínio várias pessoas possuem o co-domínio (co-propriedade) sobre uma mesma coisa, havendo, contudo, no edilício, a característica distintiva especial de que uma parte do bem sob uma mesma área é de propriedade exclusiva de cada um dos comunheiros, e outra parte é comum.
Enfim, diferentemente da hipótese comum do Direito Civil, no condomínio edilício os proprietários compartilham de forma diferenciada essa propriedade, destinando a todos áreas comuns, mas prevendo também áreas privativas aos seus donos. Justamente em razão de tais características, e principalmente pela dissonância de pensamento entre diversos moradores, é que surgem questões cotidianas que precisam de solução.
A vida em sociedade é fenômeno gerador de inúmeros conflitos; tanto é verdade que mais e mais leis surgem a cada dia com o objetivo de tentar – sem conseguir, a propósito – regular e prever os mais diferentes comportamentos, buscando assim um tratamento equânime para convergir pensamentos dissonantes. Em condomínios edilícios – verdadeira reprodução em miniatura da Sociedade – conflitos divergentes são igualmente cotidianos.
Para que se chegasse ao atual modelo de Sociedade, cada vez mais complexa, operou-se nas últimas décadas no Brasil um êxodo rural de proporções jamais vistas, no qual milhares de famílias decidiram trocar propriedades maiores e mais isoladas do campo por imóveis residenciais aglomerados em centros urbanos. Diz Caio Mario da Silva Pereira, explicando a transição do centro da economia da agricultura para a indústria:
Num rápido vôo por sobre a concepção dominial, desde o direito romano até os nossos dias, com o assinalamento apenas dos momentos históricos mais acentuados e característicos, podemos evidenciar que a cada tipo de organização jurídica haveria de corresponder um tipo de propriedade, e que, trabalhada esta pela concepção política dominante num dado período, recebe o seu impacto e, portanto, reflete-a. Propriedade-família-religião foi a trilogia da Cidade Antiga. Propriedade-política-economia é o tríplice índice de um complexo paralelogamo de forças que seguiu a sua vida na civilização do Ocidente, e ainda hoje traz as tendências para uma nova concepção econômico-jurídica.[3]
Neste cenário, tendo em vista os interesses econômicos que cercam a necessidade de unir grandes quantidades de pessoas (e de força de trabalho) em centros estratégicos para o desenvolvimento do mercado, obviamente o modelo de propriedade rural perdeu seu espaço. Assim sendo, viu-se como necessário, principalmente nos grandes centros, a “verticalização” da propriedade, momento a partir do qual terrenos onde antes cabiam duas ou três famílias passaram a albergar dez ou vinte vezes mais tal quantia, gerando contato constante e implicando no uso comunitário de parte da propriedade. Popularizou-se, assim, a figura do condomínio edilício.
A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE
Paralelamente, seguidas constituições foram garantindo grande proteção ao direito de propriedade e a sua utilização condicionada à observação de sua função social. Tanto é que o texto atual da Carta Maior, ao dissertar sobre as garantias fundamentais, estabelece o direito à propriedade no inciso XXII do art. 5º, mas logo em seguida determina o seu atendimento à função social. Tal tema é novamente abordado pela Constituição de 1988 nos arts. 170, II e III e nos arts. 182, 183 e 184.
Esclarece-se que para o presente texto, adotar-se-á um conceito bem aberto de função social da propriedade. Quer-se com ele enfatizar que não só a propriedade deve obedecer regras elementares de urbanização, mas também que deve ela propiciar o máximo de benefícios à sociedade. Enfim, função social da propriedade deve ser sinônimo de exploração eficiente do imóvel de modo a propiciar o bem-estar da coletividade. Diz Lívia Bacciotti:
O que se pode concluir é que a função social da propriedade não deve ser encarada como uma restrição ao direito da propriedade e sim um meio de recolocá-la em seu verdadeiro objetivo, pois, exemplificadamente, uma propriedade cujo uso seja deturpado ou degenerado, fere a Ordem Jurídica, vez que esta visa o interesse social acima do individual. Objetivando atender especialmente este interesse é que dispôs a CF neste sentido, ou seja, prejudicando o direito de especulação, fruto do individualismo jurídico, tornando a função social, portanto, inseparável do direito de propriedade
(…)
Atribuindo uma função social à propriedade o ordenamento jurídico reage contra desperdícios da propriedade para satisfazer necessidades materiais ou pessoais humanas, atendendo aos anseios sociais, e contribuindo para o desenvolvimento da nação e erradicação da pobreza e desigualdades sociais.[4]
AS LIMITAÇÕES AO DIREITO DE PROPRIEDADE E A FUNÇAO SOCIAL
Feitos tais esclarecimentos iniciais, tem-se que o objetivo que aqui se pretende é justamente o de estabelecer a premissa de que as limitações ao direito de propriedade nos condomínios edilícios podem ter sua legalidade verificada pela análise, ainda que em última instância, da constitucionalidade de seu conteúdo, aí incluída a necessidade de respeito à função social da propriedade. Sobre a utilização da propriedade de acordo com sua função social, escreve Caio Mário:
Sem deixar de ser um direito, com as características de facultas, a propriedade deve ser exercida em sentido social. É o exercício daquele direito que se subordina ao interesse público, e a função social é integrante menos da definição do direito do que ligada ao seu exercício. Toda vez que se esboça um conflito entre o individual e o social, entre o direito de um dono e a conveniência da coletividade, o legislador terá forçosamente de resolve-lo neste último sentido, ainda que com o sacrifico do direito subjetivo. A utilização dos bens apropriáveis estará, na linha de equilíbrio entre a faculdade reconhecida e a conveniência de todos. [5]
Portanto, tem-se que a temática envolvendo a função social da propriedade deve sempre ser levada em consideração quando dúvidas surgirem quanto à legalidade/constitucionalidade de uma limitação criada no regramento interno do micro-sistema social que é um condomínio edilício.
Parte-se do seguinte raciocínio: o direito à propriedade e dever de atendimento desta à sua função social são garantias constitucionais de elevada condição, mormente porque previstas no art. 5º do texto da Carta Maior. Estando assim disposto o texto, conclui-se que a função social da propriedade, tendo em vista sua importância, compreende desde o mais amplo espectro social, seja na propriedade urbana, seja rural, até o específico micro-sistema condominial. Este também deve ter suas regras e referentes fundados na proteção ao direito de propriedade e no atendimento à sua função social.
Repita-se: o condomínio edilício nada mais é do que a reprodução em menor escala de um cenário social qualquer. Tanto é que, da mesma forma do que numa sociedade específica – um país, por exemplo – no condomínio edilício existe um síndico, que reproduz a figura do Poder Executivo; uma Assembléia Geral que representa o Poder Legislativo; um Conselho que fiscaliza contas (como um Tribunal de Contas, ou como o Ministério Público, por exemplo) e auxilia o síndico em suas decisões (Conselho da República, Ministros, etc.). Igualmente, há tanto na assembléia, quanto no síndico e no conselho, figuras que equivalem ao Poder Judiciário, eis que aplicam sanções frente ao descumprimento de normas, decidem sobre a permissão ou não de obras, alterações e outros pedidos mais.
Há ainda no condomínio edilício uma convenção, como que uma lei suprema, equivalente a uma Constituição, e um regimento interno, muitas vezes destinado a questões menores ou à disciplina pormenorizada do uso da propriedade e da preservação do direito de vizinhança. Tal convenção, atualmente está regulada no art. 1.333 do Código Civil e é verdadeiro “contrato coletivo de natureza normativa, por isso que submete ao seu comando todos aqueles que assumirem alguma posição jurídica, em relação à propriedade autônoma, a que a lei atribui qualificação para sujeitar-se às normas convencionais.”[6]
Enfim, o condomínio edilício é uma micro-sociedade que reproduz, em menor escala, uma série de situações vivenciadas em termos globais. Neste cenário, nada mais certo do que transpor da Constituição Federal ao micro-sistema a necessária observação da função social da propriedade. Por isto, importante frisar a disposição acima mencionada do civilista Caio Mario da Silva Pereira que bem estabelece a existência de uma linha de equilíbrio entre o uso da propriedade e a conveniência de todos, inclusive em se tratando exclusivamente de condomínios. E continua o mencionado autor:
A iniciativa individual imaginou no edifício de apartamentos uma forma nova de domínio, em que a propriedade do solo converte-se em uma quota-parte de uma espaço necessário a certa aglomeração. Desloca-se o conceito dominial da exclusividade para a utilização comum, restando o poder exclusivo reduzido a uma unidade do conjunto, e mesmo assim onerada de pesadas restrições. [7]
Como bem anotado, o deslocamento do direito de propriedade da exclusividade para o uso comum impôs pesadas restrições ao seu uso, sendo portanto correta a existência de limitações ao direito de propriedade. É certo que a instituição de áreas comuns entre os condôminos gera diferentes idéias e interesses quanto à finalidade de sua utilização, razão pela qual a observação da função social da propriedade merece mais uma vez atenção. Isto é, deve a mesma ser utilizada como regra fundamental para a tomada das decisões entre os proprietários comunheiros, de modo a que se possa já de início verificar se as limitações ao direito de propriedade são adequadas ou não.
A questão a ser analisada passa a ser até que ponto a convenção, lei maior interna do condomínio, pode ou não limitar o direito de propriedade, estabelecendo regras quanto ao seu uso e restringindo determinadas condutas.
A convenção de fato é a lei maior dentro do condomínio edilício, e por lei tem o poder de regulamentar questões internas para a boa convivência dos moradores comunheiros. Tem um caráter real, e assume-se que todos os que adquirem parte do domínio ali existente comprometem-se a cumprí-lo. Tem também um caráter estatutário, já que não só obriga os proprietários, mas também todos aqueles que adentrarem tal propriedade privada. Diz J. Nascimento Franco:
Ao traçar as normas de utilização do edifício, nas suas partes privativas e nas de uso comum, a Convenção visa resguardar, em proveito de todos, o patrimônio condominial, o bom nível do edifício e a moralidade do ambiente, num sistema de normas que, mais rigorosamente do que as decorrentes do direito de vizinhança, objetivam garantir a todos os ocupantes das unidades autônomas sossego, tranqüilidade e segurança. Daí o entendimento segundo o qual representa a vontade dos que a elaboraram, assim como constitui ato normativo, de caráter estatutário.[8]
Tais disposições convencionais, sejam contratuais ou estatutárias, podem – e muitas vezes devem – limitar o direito de propriedade dos comunheiros de modo a garantir o bom uso do bem comum, assegurando um equilíbrio entre direitos e deveres, não permitindo que o direito de propriedade de um se sobreponha ao direito dos demais. Continuando:
Há, ainda, o dever de cumprimento daquelas disposições aprovadas pelos próprios condôminos na Convenção do Condomínio, as quais constituem lei particular do agrupamento dos integrantes deste, e estão sujeitos a estrita obediência. Se ali constar que a porta externa do edifício se feche a determinada hora, ou que determinadas pessoas não podem circular pelo hall social, ou usar o elevador social, ou que nenhum condômino tem a faculdade de manobrar seu carro na garagem comum, o que não podem permanecer crianças nos corredores, os condôminos e seus locatários, todos os habitantes, em suma, são obrigados a tais preceitos, sob as sanções impostas no mesmo regulamento ou convenção. Trata-se, é bem verdade, de normas restritivas da liberdade individual, mas, da mesma forma que toda vida em sociedade impõe a cada um limitações à sua atuação livre em benefício do princípio social de convivência, assim também naquele pequeno agrupamento de pessoas, que compõem uma comunidade especial, adotando como normas convenientes à tranqüilidade interna desta certas limitações à liberdade de cada um em proveito da melhor harmonia do todo, têm aquelas restrições e limitações um sentido de princípio de disciplina social interna, de natureza cogente a todos os que penetram no círculo social restrito.[9]
Todavia, a questão envolvendo o conteúdo da convenção não parece ter resposta simples quando nela passam a ser previstas disposições que limitam o direito de propriedade em verdadeiro confronto com a legislação ordinária e constitucional.
Nestas hipóteses, as disposições estatutárias da convenção não podem prevalecer. Isto porque, por mais necessário que seja o respeito às regras internas e à autonomia da vontade dos “contratantes” que decidiram impor ainda mais limitações à sua propriedade privada comum, tais disposições convencionais não podem ultrapassar um limite tal que viole o direito de propriedade do condômino ao ponto de desrespeitar a sua função social e outros princípios constitucionais. Observe-se:
Concordam, praticamente, todos os operadores do direito com a natureza jurídica contratual normativa da convenção, essencialmente, uma declaração conjunta de vontade dos condôminos destinada a produzir efeitos por prazo indeterminado ou até que seja modificada. Também não se questiona o fato de que a fonte primeira do direito, em matéria condominial, é a lei que tem caráter geral e só, em seguida, a convenção emanada da vontade da maioria e na conformidade dos dispositivos legais, torna-se igualmente obrigatória, mas tão somente para aquelas pessoas alcançadas pelo estatuto daquela comunidade.
Havendo divergência entre a convenção e a lei, esta haverá de prevalecer, já que não será válida a declaração unilateral ou coletiva de vontade contrariando o comando legal maior. Assim, quando houver dissenso, entre o que dispõe a convenção e o que preceitua a lei, resolver-se-á na conformidade do comando maior.[10]
Portanto, o primeiro limite para o conteúdo da convenção – e conseqüentemente aos direitos relativos à propriedade nela insertos – está na lei ordinária, sendo que tal matéria tem sua regulamentação atualmente no Código Civil – Lei n.º 10.406/2002.
Inicialmente, ao falar sobre os direitos dos condôminos, as disposições do Código Civil são um tanto genéricas, limitando-se o art. 1.335 do referido diploma a estabelecer o direito de “usar, fruir e livremente dispor de suas unidades”, bem como “usar das partes comuns conforme a sua destinação, e contanto que não exclua a utilização dos demais compossuidores”. A realidade, todavia, mostra que tal texto geral está longe de resolver qualquer conflito ou estabelecer de forma clara os limites à propriedade que a convenção pode trazer em seu conteúdo.
Em seguida, o art. 1.336 do Código Civil determina obrigações ao condômino, entre elas a de não utilizar da edificação de maneira prejudicial ao sossego, salubridade e segurança dos demais, bem como não violar os bons costumes. Não obstante a delimitação aqui comece a ficar mais clara, surgem por outro lado novos conceitos que variam conforme o lugar e o tempo. O que era sossego décadas atrás hoje já se mostra inatingível. Da mesma forma, sossego para um morador de metrópole é um conceito muito diferente para um morador de um pequeno condomínio numa cidadezinha do interior. A respeito do tema:
Ponto crucial que tem causado embaraços a condôminos e aos intérpretes é se definir quais os atos ou atividades são capazes de prejudicar o sossego, salubridade e segurança dos possuidores, isto é, o que representa o ‘uso nocivo’ e, ainda, quê ou quais situações, em tese, atentariam contra os ‘bons costumes’. Afinal, o que são os bons costumes? Há alguma definição que se aplique indistintamente a todas as regiões e a qualquer circunstância? Não há como responder objetivamente essas questões, salvo se, a recomendação, for para que seja usado o bom senso que é o senso comum, o entendimento médio que deve prevalecer nas relações, em geral, e em especial no direito de vizinhança.[11]
De fato, a utilização do bom senso, do critério do bonus pater familiae é instrumento adequado a auxiliar a solução de casos como estes, mas nem sempre se mostra suficiente.
Um exemplo cada vez mais comum mostra-se bem característico para retratar os problemas envolvendo a limitação da propriedade em condomínios edilícios: a limitação ao direito de locação do imóvel. Mais precisamente, tem-se que alguns condomínios têm passado a adotar em suas convenções restrições ou vedações ao direito de locação das unidades habitacionais que os compõem, a maioria ao argumento de que tais atividades comprometem a segurança do edifício, com o aumento da circulação de pessoas estranhas ao local, bem como pelos danos causados às áreas comuns em mudanças repetidas e descuidadas. Neste cenário, pergunta-se: pode a convenção limitar o direito de propriedade do condômino ao ponto de impedi-lo de locar sua unidade a terceiros?
Veja que por ambos os lados existem os mais diversos fundamentos, inclusive de índole constitucional, a referendar a pretensão inscrita na norma interna do condomínio. Se se trata de um comando previsto por comum acordo entre os proprietários, numa assembléia que reúne as características legais e com o quorum necessário para tanto,[12] pode ser encarado como ato jurídico perfeito, cuja autonomia de vontade merece prevalecer.
Por outro lado, trata-se de uma severa restrição ao direito de propriedade, cuja legalidade já é questionável diante da simples leitura do texto raso do Código Civil. Ora, se tem o proprietário o direito de usar, fruir e livre dispor de suas unidades, não poderia a convenção realizar tamanha limitação. Entretanto, essa mesma lei, que estabelece liberdades ao proprietário da unidade condominial, também prevê o direito da convenção em regular a matéria. E não só isso, tal lei também estabelece o dever de uso da propriedade sem prejuízo à segurança, conceito este manifestamente aberto a várias interpretações.
Buscando então resposta no texto constitucional, pode o interessado escorar-se na função social da propriedade para derrubar a restrição prevista na Constituição. Ora, restringir o direito à locação do bem impõe ao proprietário uma limitação severa ao direito de propriedade, a qual inclusive lhe acarreta ônus poucos razoáveis em termos econômicos. Isto porque, não obstante deixar o proprietário de auferir renda de sua propriedade – e obtenção de renda a partir da propriedade é um primado ainda vigente na atual sociedade capitalista – estará o mesmo obrigado a custear as despesas do bem, tarefa esta que provavelmente incumbiria ao locatário.
Tal locatário, por sua vez, em razão da disposição convencional restritiva, fica proibido de utilizar-se de um bem para moradia (direito este também de ordem constitucional, inserido no art. 6º da Carta Maior), pelo simples fato de não ter recursos financeiros suficientes para adquirir a propriedade em si, não obstante tenha condições de locá-lo mensalmente. Ou seja, tem condições de adquirir a posse temporária do bem – melhor distribuindo a utilização do espaço urbano já tão disputado – mas vê-se impedido de fazê-lo em razão de uma restrição decidida pelos demais comunheiros.
Some-se a isso o fato de que num país com imenso défict habitacional como o Brasil, não parece nenhum pouco de acordo com o princípio da função social da propriedade uma cláusula em convenção que limite o direito do proprietário em locar o bem para terceiros, seja impedindo totalmente a atividade, seja impondo multa ou contribuição para a hipótese. Afinal, não é somente um direito, mas também um dever constitucional a observação da função social da propriedade, a qual certamente não resta cumprida quando um imóvel fica sem uso e sem gerar frutos em razão da limitação imposta na convenção.
Recorde-se que acima foi estabelecido que no presente texto o conceito de função social da propriedade era adotado num sentido lato, numa acepção de que a propriedade deve garantir à sociedade – e não só ao indivíduo proprietário – o máximo de retorno. No exemplo em comento – limitação do direito de locação – tal função não resta cumprida. Neste caso, o direito da pequena coletividade condominial resta superado pelo direito da sociedade em geral em ver cumprida a plena utilização do bem, socializando-se o acesso de forma irrestrita ao uso pacífico e sadio de propriedades em condomínios edilícios não só àqueles que tem condições de adquirir tal bem, mas também àqueles cujos limites financeiros permitem apenas sua locação. Assim:
Uma concepção nova de propriedade surge, erigida em função social. Os bens são dados aos homens, que os devem usar em termos que correspondam a esta concessão. O exercício da propriedade tem por limite o cumprimento destes deveres e o desempenho de sua função. Se um indivíduo explora o bem de seu domínio fora desta órbita, afronta um dever superior e sai da linha de conduta compatível com a organização social.[13]
Ou seja, no atual cenário político-econômico, a propriedade deve ser sinônimo de rentabilidade e não de ônus. Contrariar isso é contrariar a Constituição. Não havendo prejuízo de grande ordem, imediato e plenamente constatável, com a locação aos demais condôminos, tal direito não poder ser negado, devendo portanto o condomínio lançar mão de outros instrumentos legais para coibir os eventos que a regra pretendia evitar. Tais instrumentos existem e estão na legislação. Deve o condomínio, portanto, procurar a aplicação de uma resposta adequada à cada hipótese apresentada, a qual não pode, de forma alguma, ferir uma série de direitos constitucionais do condômino e de outros integrantes da sociedade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Do acima exposto, denota-se que a existência de limitações ao uso da propriedade nos condomínios edilícios é tema sempre polêmico e cuja interpretação deve levar em conta, caso a caso, o valor dos interesses em questão.
Com efeito, se é certo que a convenção do condomínio é instrumento poderoso de legislação interna do bem comum, mormente por se tratar regulamentação de uma propriedade privada – o que revela um direito muito maior aos comunheiros de decidir o que é melhor para si dentro de uma propriedade cujo acesso e utilização de áreas comuns pode ser severamente limitado – certo é também que tal instrumento deve respeitar regras de hierarquia superior, aí incluída a legislação ordinária e a constitucional.
Nesta última seara, ganha relevo o instituto da função social da propriedade, que se apresenta como instrumento adequado ao estabelecimento de critérios para diferenciar uma regular limitação ao direito de propriedade nos condomínios edilícios de uma verdadeira afronta a princípios constitucionais protetores de tal direito.
Ao estabelecer a necessidade de exploração adequada da propriedade de modo a garantir o maior retorno social possível, a função social da propriedade apresenta-se como elemento adequado a servir de baliza na interpretação da legalidade da limitação prevista numa convenção de um condomínio edilício. Partindo-se de tal premissa constitucional e de observação obrigatória, pode o intérprete atingir de forma mais fácil e coerente o resultado pretendido na busca da solução ao caso concreto que lhe for apresentado a respeito do tema.
advogado, especialista em Direito Processual Civil pela FUNJAB/UFSC, Mestrando no Curso de Pós-graduação em Ciências Jurídicas da Universidade do Vale do Itajaí – CPCJ/UNIVALI
Graduado e Mestre em Direito; Graduado em Ciência da Computação; Mestre e Doutor em Engenharia de Produção; Professor da Graduação das disciplinas: de Direito das Coisas e Informática Jurídica, na Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI; Professor do Mestrado da disciplina Propriedade como princípio constitucional, no Curso de Pós-Graduação em Ciência Jurídica – CPCJ/UNIVALI.
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