A luta diária e perseverante da auditoria-fiscal do trabalho é a garantia de vida digna para a sociedade trabalhadora brasileira

No ano de 1984 ingressava na carreira Auditoria-Fiscal do Trabalho, que naquela época chamava-se Fiscalização do Trabalho.


Iniciei minhas atividades na DTM – Delegacia do Trabalho Marítimo do Estado do Espírito Santo, em Vitória.


O meio ambiente diário era a orla portuária, os navios, os barcos de pesca, as contendas entre os tomadores de serviços (armadores[1], agências de navegação[2] etc.) e os trabalhadores avulsos (estivadores[3], conferentes[4], consertadores de carga[5], vigias de portaló[6], arrumadores[7], pessoal de capatazia[8], trabalhadores de bloco[9]) e as demais contendas havidas entre os empregados das empresas marítimas e todas as demais empresas que, por necessidade do serviço, ingressavam porto adentro, por meio de seus empregados.


Percorria juntamente com os demais colegas de trabalho todo o complexo portuário do Estado do Espírito Santo.


Ficávamos angustiados com a falta de segurança do trabalho portuário. Chagávamos até a paralisar certas operações de carga ou descarga nos navios, por falta de segurança do trabalho. Porém, na maioria das vezes não tínhamos norma em que nos resguardar. Fazíamos as paralisações com base no bom senso e na nossa garra de evitar o acontecimento de um infortúnio.


É originário da Delegacia do Trabalho Marítimo no Estado do Espírito Santo o Auditor-Fiscal do Trabalho José Emílio Magro, um dos participantes do GTT – Grupo Técnico Tripartite que elaborou a Norma Regulamentadora 29 (NR – 29)[10] e a Norma Regulamentadora 30 (NR –  30)[11].


A NR – 29, nos termos de seu item 29.1.1, objetiva regular a proteção obrigatória contra acidentes e doenças profissionais, facilitar os primeiros socorros a acidentados e alcançar as melhores condições possíveis de segurança e saúde aos trabalhadores portuários. 


A NR – 30 tem a finalidade de estabelecer a proteção e a regulamentação da segurança e saúde dos trabalhadores aquaviários, de acordo com o que está estabelecido em seu item 30.1.1.


No ano de 1989 as Delegacias do Trabalho Marítimo foram extintas e fomos remanejados para a Delegacia Regional do Trabalho no Espírito Santo.


Por um lapso de tempo a fiscalização portuária e marítima ficou desmobilizada. 


No ano de 1993, porém, participamos do Curso Especial para Fiscais do Ministério do Trabalho, promovido pela Diretoria de Portos e Costas do Ministério da Marinha, ocorrido no CIAGA – Centro de Instrução Almirante Graça Aranha, no Rio de Janeiro. O curso teve como matérias: Administração do Navio; Direitos e Regulamentos; e Planilha do Navio. Foi um curso preparatório para iniciarmos os trabalhos com a Convenção número 147 da OIT – Organização Internacional do Trabalho.


A convenção 147[12] da OIT estabelece as normas mínimas de marinha marcante. Assim é que, quando a bordo de embarcações estrangeiras os Auditores-Fiscais do Trabalho verificam: pagamento salarial, condições de segurança dos trabalhadores, condições de conforto dos alojamentos, do refeitório, da cozinha, da casa de máquinas, o estado de saúde da tripulação, a quantidade e qualidade dos alimentos existentes nas câmaras frigoríficas etc.


Assim, fizemos diversas incursões em embarcações estrangeiras e por meio das nossas inspeções asseguramos aos tripulantes as condições mínimas de dignidade.


Com a extinção das Delegacias do Trabalho Marítimo no ano de 1989, fomos recebidos na Delegacia Regional do Trabalho pelos nobres colegas Auditores-Fiscais do Trabalho Idálio Gomes da Silva e José Augusto Gomes Espíndula, que naquela época compunham a chefia da fiscalização do trabalho. Citados companheiros nos deram os ensinamentos para iniciarmos as fiscalizações do trabalho nas áreas urbanas e rurais.


Iniciamos então a fiscalização do trabalho nas áreas urbanas (comércio, indústria, prestação de serviços etc.) e nas áreas rurais (agricultura e pecuária).


No enfrentamento do trabalho desumano encontrado nas carvoarias, transcrevo trecho publicado no Jornal A Gazeta, de 20 de julho de 1997:


Os rostos empoeirados, as mãos calejadas e os corpos cansados denunciam que o forno que proporciona o sustento, também traz a doença e uma rotina desumana de trabalho braçal nas carvoarias do Espírito Santo. Onde meses se passaram desde que a reportagem de A GAZETA visitou as fábricas de carvão vegetal do Estado e constatou que, além das mazelas acima, também existia trabalho de menores e de mulheres grávidas. A Delegacia Regional do Trabalho (DRT) agiu e não se limitou somente em lavrar autos de infração (multar). Convocou os proprietários das firmas que estavam irregulares, orientando-os para que agissem dentro da lei. A reunião surtiu efeito, as carvoarias destruíram as residências insalubres, feitas de lonas pretas e pedaços de madeira e no local foram construídas casas de blocos de cimento. Os donos das carvoarias afastaram da linha de produção as mulheres e as crianças.


No combate à terceirização ilegal por meio das falsas cooperativas de trabalho auxiliamos o Ministério Público do Trabalho a obter sentença favorável para a Ação Civil Pública de Desconstituição da COOPVEG – COOPERATIVA DOS VENDEDORES DA GRANDE VITÓRIA. O fato está registrado no Livro Ministério Público do Trabalho, de autoria do Professor Carlos Henrique Bezerra Leite (2002):


Aos 19 de junho de 1997, realizei, contando com a operosa colaboração dos Fiscais do Trabalho da DRT/ES, inspeção “in loco” no estabelecimento da empresa MERCANTIL REIS MAGOS LTDA., a fim de verificar as condições e métodos de trabalho dos chamados “cooperados” da COOPEVEG. Percorremos todos os setores e departamentos da loja e entrevistamos todos os “cooperados”. Todos eles responderam que não realizavam vendas em nome próprio ou em nome da “cooperativa”. Note-se que a COOPEVEG era cooperativa de vendedores, conforme constava em seu estatuto social. Constatamos que tanto os “cooperados” quanto os empregados da loja exerciam idênticas funções: repositores de mercadorias, conferencistas, embaladores, balconistas de frios, serventes etc. Os “cooperados” disseram que aceitavam aquela situação, porque dependiam de uma colocação para sustento próprio e da família, que não sabiam o que era cooperativismo, nem conheciam a cooperativa COOPVEG; que aderiram à cooperativa para não perder a fonte de alimentos; que trabalhavam além das oito horas diárias, mas não recebiam horas extras. Os Fiscais do Trabalho lavraram o auto de infração de número 0179810759 contra a empresa MERCANTIL REIS MAGOS, capitulado este no artigo 41, ‘caput’, da Consolidação das Leis do Trabalho. Referido documento foi peça fundamental na vitória da mencionada ação civil pública.


Na luta contra o trabalho em condição análoga à de escravo, o jornal A Gazeta (Espírito Santo), de 23 de junho de 1999, publicou:


Quatro Fiscais do Ministério do Trabalho, três Agentes Federais e três Procuradores da União constataram, ontem, na Fazenda Cabeceira 25 de julho, no Município de Santa Teresa – ES, que trabalhadores rurais estavam sendo mantidos em regime de trabalho escravo. Várias irregularidades foram comprovadas pela equipe, como ausência de assinatura nas carteiras de trabalho; crianças exercendo atividade de trabalho; inexistência de alojamento adequado – sem banheiro e sem separação para homens e para mulheres; salários atrasados; retenção de carteiras de trabalho por parte do proprietário da fazenda. Ao todo trinta e oito trabalhadores, entre homens, mulheres e crianças foram libertados e retornaram para Minas Gerais, de onde foram aliciados. Receberam as suas verbas rescisórias e transporte por conta dos proprietários da fazenda, tudo em conformidade com as determinações da Fiscalização do Trabalho.


Na obra Gênese dos Direitos Humanos o Professor João Baptista Herkenhoff (2002) trata da dignificação do trabalho humano. Relata a epopéia percorrida pelos nossos antepassados. Afirma que no Antigo Testamento o trabalho é apresentado como castigo. Já no antigo Egito, no terceiro e no segundo milênio antes da Era Cristã, aos operários e artesãos era dado o direito de queixa em juízo e a estes eram garantidas provisões para as suas necessidades essenciais. Na Pérsia um conjunto de textos sagrados – “Avesta Vendidad” – valorizava todos aqueles que praticavam a justiça em face dos trabalhadores. Na Babilônia, por volta do ano 2000 antes da Era Cristã, o Código de Hamurabi estabelecia valores mínimos a serem praticados para os trabalhadores. Na Índia, entre o ano 220 antes da Era Cristã e o ano 100 depois da Era Cristã, segunda as Leis de Manu, o fruto do trabalho pertencia a quem tivesse realizado o trabalho. Entre os astecas predominava o trabalho livre, criador e integrador. No Japão o filósofo Sontoku Ninomiya (1787 a 1856) pregava a dignificação do homem por meio do trabalho. O Novo Testamento da Bíblia, a filosofia etíope e também a dos os incas, afirmam a dignificação do homem por meio do seu trabalho. Em seu notável estudo, o Professor Herkenhoff crê que possamos fixar as seguintes fases do desenvolvimento do trabalho no mundo: fase do homem nômade; da escravidão; da servidão da gleba; do artesanato; das corporações de ofício; do trabalho livre; do trabalho tutelado pelo Estado; e uma fase contemporânea que descortina uma nova concepção de trabalho.


Então, a empresa que precisamos agora nessa fase contemporânea é a empresa cidadã, preocupada com o lucro, mas também com a construção do bem estar social. Um desafio que não pode ser postergado, pois precisa ser enfrentado.


O Professor João Baptista Herkenhoff (2007), através de sua obra Os Novos Pecados Capitais, estuda tais pecados numa perspectiva contemporânea. Sendo estes tradicionalmente considerados: a soberba, a ira, a inveja, a avareza, a preguiça, a gula e a luxúria. A obra alcança o seu brilho ao nos chamar atenção ao paralelismo dado pelo autor, entre o tradicional e o contemporâneo. Assim, temos que a soberba está para a pretensão imperialista; a ira está para a guerra; a inveja está para o complexo de inferioridade; a avareza, para o materialismo; a preguiça está para o individualismo; a gula, para a fome de lucro; e a luxúria está para o consumismo.


Posso afirmar que tenho encontrado em minha faina diária de Auditor-Fiscal do Trabalho muitas empresas que têm conseguido encontrar lucratividade e praticar o princípio da função social do Trabalho: pagam salários dentro do prazo legal, praticam a participação nos lucros e resultados, dialogam com seus empregados, pagam seus encargos sociais, promovem eventos internos e externos envolvendo a comunidade que as circunda, não poluem, respeitam a natureza etc.


Mas, infelizmente, tenho encontrado o oposto disso também. Essas praticam os novos pecados capitais.


A construção dessa fase contemporânea referida pelo Professor Herkenhoff está intrinsecamente ligada aos resultados das atividades da Auditoria-Fiscal do Trabalho, que asseguraram dignidade do trabalho à sociedade brasileira.


Essa fase contemporânea da história vem sendo escrita pela Auditoria-Fiscal do Trabalho, todas as inúmeras vezes que exerce o enfrentamento destemido das injustiças sociais perpetradas contra aqueles que são explorados na utilização de sua mão-de-obra: quando sujeitos às condições análogas á de escravo; quando crianças são encontradas nas piores formas de trabalho (todas as formas de escravidão ou práticas a ela análogas: venda e tráfico de crianças, a servidão por dívida e a condição de servo, a utilização e recrutamento ou a oferta de crianças para a prostituição, a produção de pornografia ou atuações pornográficas, a utilização, recrutamento ou a oferta de criança para a produção e o tráfico de entorpecentes); quando homens e mulheres são assediados moral ou sexualmente no meio ambiente laboral; quando homens e mulheres são submetidos ao labor sem as mínimas condições de saúde e de segurança; quando trabalhadores e trabalhadoras são direcionados para a execução do excesso de jornada de trabalho; todas as ocasiões nas quais o direito fundamental ao trabalho digno, grafado na Constituição Federal Brasileira é desrespeitado.


 



Referências bibliográficas

BRASIL. Segurança e Medicina do Trabalho. São Paulo: Saraiva, 2008.

HERKENHOFF, João Baptista. Gênese dos Direitos Humanos. 2ª ed., São Paulo: Santuário, 2002.

HERKENHOFF, João Baptista. Os Novos Pecados Capitais. Rio de Janeiro: José Olympio, 2007.

Jornal A Gazeta. Vitória – ES, ed. de 20 de julho de 1997, p 22.

Jornal A Gazeta. Vitória – ES, ed. de 23 de junho de 1999, p. 22.

LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Ministério Público do Trabalho. 2ª ed., São Paulo: LTr, 2002.

SÜSSEKIND, Arnaldo. Convenções da OIT e outros Tratados. 3ª ed., São Paulo: LTr, 2007.


Notas:

[1] Armadores são os proprietários das embarcações.

[2] Agências de navegação são as empresas contratadas pelos armadores para a efetivação dos contratos de transporte das cargas, ou seja, são as agências de navegação que irão viabilizar a preparação dos navios para as viagens, no que se refere aos contratos de trabalho com os tripulantes, abastecimento, carregamento e descarregamento das mercadorias, dentre outras atividades.

[3] Estivadores são trabalhadores portuários avulsos, que têm como faina diária a movimentação de mercadoria a bordo das embarcações, nos porões, durante as operações de carga e de descarga. 

[4] Conferentes são trabalhadores portuários avulsos, que realizam a conferência das mercadorias a serem carregadas ou descarregadas da embarcação.

[5] Consertadores de cargas são trabalhadores portuários avulsos, que realizam o conserto da carga que tenha sofrido algum tipo de avaria.

[6] Portaló é o nome que se dá à porta de entrada do navio. A escada de acesso ao navio, que fica apoiada no cais, termina numa entrada da embarcação. Essa entrada recebe o nome de portaló. Vigias de portaló são os trabalhadores avulsos que vigiam referidas entradas das embarcações.

[7] Arrumadores são trabalhadores portuários avulsos que arrumam a carga no costado do navio, para que ela seja guindada para bordo.

[8] Pessoal de capatazia – trabalhadores portuários avulsos que arrumam a carga a borda das embarcações, para que ela seja descarregada.

[9] Trabalhadores de bloco são aqueles que executam reparos de pequena monta na embarcação. Nos dias atuais, praticamente não existe mais este tipo de trabalho nos portos brasileiros.

[10] Esta norma foi aprovada pela Portaria 53, de 17 de dezembro de 1997 e com redação determinada pela Portaria 158, de 10 de abril de 2006. A Lei 8.630, de 25 de outubro de 1993, regulamentada pelo Decreto 1.886, de 29 de abril de 1996, dispõe sobre o regime jurídico da exploração dos portos organizados e das instalações portuárias. A lei 7.719, de 27 de novembro de 1998, dispõe sobre normas e condições gerais de proteção ao trabalho portuário e institui multas pela inobservância de seus preceitos.

A NR – 29 tem como espeque internacional a Convenção OIT 152, que trata da segurança e higiene dos trabalhos portuários.

[11] Esta norma foi aprovada pela Portaria 34, de 04 de dezembro de 2002. A referida portaria criou a Comissão Permanente Nacional do Setor Aquaviário – CPNA, com o objetivo de acompanhar a implantação da NR – 30 e propor as adequações necessárias.

A NR – 30 possui o amparo internacional da Convenção OIT 147, que trata das normas mínimas da marinha mercante.

[12] A Convenção 147 da OIT foi aprovada na 62a. reunião da Conferência Internacional do Trabalho (Genebra – 1976), entrou em vigor no plano internacional em 28.11.1981. No Brasil, foi aprovada pelo Decreto Legislativo n. 33, de 25.10.1990, do Congresso Nacional; foi ratificada em 17 de janeiro de 1991; promulgada através do Decreto n. 447, de 07.02.1992; e entrou em vigência nacional em 17 de fevereiro de 1992.

Informações Sobre o Autor

José Carlos Batista

Auditor-Fiscal do Trabalho. Graduado em Direito pela UFES. Curso de Especialização em Direito Civil e Direito e Processo do Trabalho pela PUC Minas. Autor de artigos jurídicos. Livro publicado pela Ltr: A Empreitada na Indústria da Construção Civil, o Acidente de Trabalho e a Responsabilidade Civil, em co-autoria com o Auditor-Fiscal do Trabalho e Professor Jair Teixeira dos Reis.


Equipe Âmbito Jurídico

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