Resumo: Tendo o texto constitucional de 1988 superado o paradigma autoritário nas relações de trabalho entre a Administração Pública e seu corpo funcional, inovando ao reconhecer aos servidores públicos o direito à sindicalização e à greve, não reconheceu, contudo, o direito à negociação coletiva. Ocorre que a inexistência de previsão constitucional do direito dos servidores públicos à negociação coletiva compromete o direito à greve e à sindicalização, na medida em que se tratam de três institutos complementares voltados à democratização da relação de trabalho.
Introdução
Grande parte da doutrina brasileira sustenta a impossibilidade jurídica da realização de acordos coletivos entre servidores públicos e Estado. A impossibilidade, segundo os estudiosos, é traduzida nos seguintes aspectos: (1) a sujeição da atuação da Administração Pública ao Princípio da Legalidade e ao Princípio da reserva Legal, pois com a atuação estritamente subordinada às disposições legais e à reserva de competência, a Administração não dispõe do mínimo poder decisório nas questões que regulam a relação laboral com seus servidores; (2) o Estado não dispõe dos interesses que representa, considerando-se que age em nome do interesse público; (3) tampouco dispõe dos mecanismos necessários ao cumprimento das cláusulas que têm repercussões financeiras, tendo em vista a vinculação da receita às diretrizes previamente estabelecidas no orçamento.
Em que pese a relevância de tais argumentos, a dinâmica social impõe que se repense a questão, pois já não se concebe a figura do Estado Autoritário, que ignora a existência de conflitos de interesses oriundos do seu corpo de pessoal. Pelo contrário, o conflito de interesses entre funcionalismo público e Estado, representados pela deflagração de movimentos grevistas, são cada vez mais freqüentes.
Ademais, uma leitura hermenêutica da Constituição Federal, aponta para a possibilidade de construção de uma nova leitura sobre a questão, a partir da interpretação do significado do reconhecimento do direito dos servidores públicos à sindicalização e à greve na Carta de 1988.
A verificação da possibilidade de superação dos obstáculos apontados, garantindo-se a conferência de eficácia jurídica aos processos de negociação coletiva entre funcionalismo e Administração Pública, informalmente praticados, constitui, pois, o objeto do presente estudo.
1. A COMPOSIÇÃO COLETIVA DE INTERESSES DOS SERVIDORES PÚBLICOS NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988
1.1.Breves apontamentos acerca da evolução da Administração Pública no Brasil
A análise do direito de negociação coletiva dos servidores públicos deve ser compreendida num contexto histórico. Por tal razão, o item presente visa analisar a evolução histórica da relação de trabalho com o Estado.
1.1.1 Da fase patrimonialista à fase legal ou burocrática
Relativamente à evolução da Administração Pública no Brasil, pode-se dizer que a mesma acompanhou a evolução político-social do país, como forma de negação dos modelos paternalistas pré-burocráticos[1], ocorrendo de forma lenta, não estanque, deslocando-se paulatinamente da concepção patrimonialista – na qual os postos de trabalho na Administração pertenciam ao Chefe do Executivo –, vigente durante toda a República Velha, à atual fase legal ou burocrática, cuja implementação iniciou após a Revolução de 30[2], através do processo conhecido como “Reforma Administrativa da Era Vargas”.
Max Weber[3] foi expoente dos modelos patrimonialista e burocrático de Administração, tendo defendido enfaticamente a superioridade desse último, o qual separa, por princípio, a vida privada da vida profissional dos agentes, de modo a vinculá-los não a uma pessoa ou a um interesse particular, mas sim à persecução de uma finalidade comum e impessoal. A administração burocrática, conforme leciona o próprio Weber, tem sua atividade voltada à ampliação quantitativa e qualificativa dos resultados, utilizando-se, para tanto, de uma estratégia técnica superior à qualquer outra forma de organização administrativa, caracterizada pela “precisão, rapidez, univocidade, conhecimento da documentação, continuidade, discrição, uniformidade, subordinação rigorosa, diminuição de atritos e custos materiais e pessoais (…).”[4]
No Brasil, a evolução da fase patrimonialista para a burocrática na Administração Pública importou em significativo avanço ao longo do tempo, consistente na instituição do concurso público – que, em tese, rompeu com o paradigma de apropriação privada dos cargos pelo governante – e na fixação de atribuições determinadas para cada agente, em cada órgão da Administração. Haveria, assim, uma redução substancial da discricionariedade, até então absoluta, dos agentes políticos[5].
Não obstante, Sérgio Buarque de Holanda[6] assevera que a evolução do modelo patrimonialista para o modelo burocrático de serviço público, talvez tenha ficado restrito ao âmbito estrutural, preservando resquícios da fase patrimonialista no que concerne a alguns critérios de pessoalidade vigentes durante aquela fase. Segundo o historiador, para o funcionário “patrimonial”, a gestão política apresenta-se como assunto de seu interesse particular[7]: as funções, os empregos e os benefícios que obtém, se relacionam a direitos pessoais do funcionário, e não a interesses objetivos, como sucede no verdadeiro Estado burocrático, em que prevalecem a especialização das funções e o esforço para se assegurar garantias jurídicas aos cidadãos.
A escolha dos homens que irão exercer funções públicas, ainda na fase inicial de implementação do modelo burocrático, faz-se de acordo com a confiança pessoal que mereçam os candidatos, e não de acordo com o potencial de trabalho próprio de cada um. Ausente, portanto, a ordenação impessoal que caracteriza a vida num Estado burocrático. No Brasil, pode-se dizer que só excepcionalmente tivemos um sistema administrativo em um corpo de funcionários puramente dedicado a interesses objetivos e fundado nesses interesses. Deste modo, as raízes da burocracia brasileira “contrariamente ao modelo legal-burocrático de administração pública, estruturam-se no bojo de um Estado formalmente público, mas materialmente privado.”[8]
Esse caráter excepcional na impessoalidade do preenchimento dos quadros públicos decorre da manutenção de incontáveis “brechas” na implementação do modelo burocrático de Administração Pública, representadas pela reserva de muitos Cargos de Confiança e de Chefia os quais, até hoje, permitem aos administradores públicos manterem em seu “patrimônio” espaços públicos de grande relevância.
Assim registra Wahrlich, para quem
“O único desvio importante que se pode apontar com relação à obediência a esses modelos se refere ao provimento em comissão das chefias e cargos de direção e assessoramento superior, norma que sem dúvida possibilitava uma brecha na neutralidade e impessoalidade da burocracia, apanágio do modelo de Weber (…)”.[9]
Neste contexto, as Constituições Brasileiras anteriores à Carta de 1988 conservavam um traço marcadamente autoritário no se que referia à possibilidade dos servidores públicos[10] intervirem na relação de trabalho entre eles estabelecida com o Estado.
Até a promulgação da Constituição Federal de 1988, pode-se sustentar, inclusive, que os servidores públicos sequer constituíam uma categoria profissional na verdadeira acepção da palavra, haja vista os fortes resquícios do modelo clientelista de Estado mesmo quando da implementação da fase burocrática, que permitia a contratação de trabalhadores sob os mais diversos regimes jurídicos e a partir de uma vasta gama de razões. Segundo Lima Júnior
“A efetiva profissionalização do servidor, tentada várias vezes, nunca ocorreu e sempre conviveu com a multiplicidade de cargos, de planos salariais especiais e de “trens da alegria”, típicos de final de Administração”[11]
Isto porque a manutenção da possibilidade de contratação de servidores pelos mais diversos regimes jurídicos até a promulgação da Carta de 1988, e a ausência de obrigatoriedade no que referia à realização de processos de seleção para o recrutamento de pessoal, aliadas ao ranço patrimonialista que permitia a contratação por interesses particulares, acarretavam inúmeras e profundas diferenças entre os servidores. Tais diferenças identitárias inviabilizavam a conformação de uma unidade capaz de vinculá-los em torno de interesses comuns, em face da
“pesada herança de um processo de recrutamento e alocações de quadros no funcionalismo público marcado, simultaneamente, por falta de critérios, nepotismo e heterogeneidade na sua constituição”[12].
Tratando das dificuldades de formação de um corpo coletivo homogêneo, em face da existência simultânea de distintos regimes de trabalho na Administração Pública, Ramón Parada, ao analisar a realidade espanhola, que a partir da edição da Ley de Funcionarios de 1964, passou a admitir contratações de servidores sob outro regime que não o estatutário, observa que a coexistência de diversos regimes de trabalho numa mesma esfera operacional impõe “graves diferenciais y por ello inevitables tensiones y conflictos entre los dos colectivos”.[13]
Exemplificativamente, pode-se examinar o quadro delineado na Administração Pública Federal. Até o advento da Constituição Federal de 1988, muitos servidores eram contratados mediante prévia seleção em concurso público, e, neste diapasão, tinham sua relação de trabalho com o Estado regida pela Lei nº 1.711/52, então Estatuto[14] dos Funcionários Públicos. Entretanto, paralelamente a estas contratações, uma significativa parcela de trabalhadores era empregada sem qualquer critério de seleção, muitas vezes com o intuito de suprir necessidades pessoais, próprias dos agentes públicos que autorizavam as contratações ou as executavam.
Desta forma, não fosse a vigência de um modelo constitucional que negava a possibilidade dos servidores públicos comporem coletivamente seus interesses com a Administração, tal hipótese ainda manter-se-ia inviável, seja pela ausência de identidade no interior do corpo funcional administrativo, seja pela falta de garantia que gerava a ausência de independência da maioria destes trabalhadores. Era um sistema que conduzia à manutenção da subserviência dos mesmos frente aos superiores hierárquicos que, assim como dispunham de largo poder decisório na definição das necessidades do serviço público e designação dos indivíduos que iriam suprir tal carência, também dispunham de ampla liberalidade para demiti-los.
A tendência natural do universo dos servidores era a de formação de um espírito corporativo no sentido histórico da expressão. Tendiam a isolar-se, divididos por estamentos com interesses próprios, em busca de vantagens corporativas frente aos demais. Tendências essas hostis à formação de uma identidade coletiva, característica inerente às categorias profissionais.
Sobre a questão, são igualmente relevantes os apontamentos de Alan Supiot, os quais remetem a análise da mesma à “fraternidade”, que designa o vínculo daqueles que, por fé ou vontade, reconhecem entre si um ascendente comum, algo a compartilhar, um conjunto de direitos e deveres, de ajuda e assistência mútua. Não obstante, aduz o autor que tal conceito se presta tanto a integrar os indivíduos e a viabilizar a formatação de uma vontade coletiva, como também para desintegrar, pois “Al definir el círculo de los que consideran que proceden de um mismo autor, la fraternidad excluye, por tal circunstancia, a todos los demás.” [15]
Neste contexto, a fraternidade serve para estabelecer uma oposição entre “eles” e “nós”, da qual se valem os indivíduos para operar a exclusão, pois “”Ellos” se hallan excluídos de los deberes, pero también de los derechos a la ayuda, a la asistencia y al reparto, que caracterizan el círculo familiar.” [16]
Assim, foi a rede de conveniências – marcada pelo corporativismo e pelo clientelismo, para a qual o interesse público não despertava maiores atenções – que praticamente dominou o cenário dos quadros de pessoal da Administração Pública até a fase de abertura política, no início da década de 80, consolidada com o advento da Carta de 1988. Resultado do fenômeno descrito foi o comprometimento da possibilidade dos servidores organizarem-se coletivamente, em face da incompatibilidade de interesses existente entre eles.
Contudo, mesmo timidamente, a evolução da fase patrimonialista para a fase burocrática no serviço público revelou o início de uma transformação não apenas estrutural, relativamente à distribuição das funções públicas em “estamentos” hierarquizados, como também política, haja vista a lenta compreensão de que, antes de atender aos interesses pessoais dos governantes, a Administração Pública deveria atender aos anseios sociais que justificavam a existência do Estado. Tornou-se premente, assim, o desenvolvimento de “um tipo de administração que partisse não só da clara distinção entre o público e o privado, mas também da separação entre o político e o administrador público”[17].
1.1.2 A concepção autoritária de Estado e sua influência na relação da Administração com seu corpo funcional
No lento processo de aceitação da idéia de que o Estado tem funções sociais a cumprir, se inseriram também as acepções acerca das suas relações com os cidadãos destinatários dos serviços por ele prestados, bem como com os agentes públicos.
Até a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil, em 1988, os servidores públicos não tinham qualquer possibilidade de interferir na relação de trabalho que mantinham com o Estado, conforme anteriormente referido.[18] A doutrina administrativista anterior à promulgação da Constituição Federal de 1988 é enfática ao rechaçar toda e qualquer possibilidade de organização coletiva dos servidores com vistas a gerar oposição ao Estado. A justificativa, em regra, é a necessária observância, pelos servidores, dos deveres de obediência, hierarquia e legalidade, como também a atuação da Administração voltada única e exclusivamente à persecução do bem comum.[19]
Desta forma, até a promulgação da Carta Cidadã, sequer o direito à sindicalização[20] – mais significativo e fundamental instrumento de composição coletiva de interesses, dentre aqueles reconhecidos como tais pela doutrina moderna – era assegurado ao funcionalismo público.[21]
O suporte teórico desta formatação era uma concepção autoritária de Estado, que não admitia a existência de conflitos de interesse nas relações de trabalho mantidas com o Poder Público e tampouco a possibilidade de se instituir uma relação democrática com o Estado, na qual as partes poderiam acordar ou apenas ajustar a relação que entre si estabelecida, pois, conforme ressalta Ernildo Stein, “sem a participação efetiva de todos na elaboração das instituições, estas sempre se convertem em estruturas de violência e dominação.”[22]
Para Francisco Liberal Fernandes, tal concepção de Estado tem fundamento em quatro aspectos fundamentais. Segundo leciona, a relação laboral no serviço público é composta pela integração de duas faces que podem, inclusive, ser consideradas antagônicas, em que pese ambas se realizarem na pessoa do agente público. São elas: a realidade do trabalhador que presta seus serviços à Administração, que conforma o epicentro das expectativas e anseios deste em relação ao seu espaço social, e o seu condicionamento à qualidade de membro do organismo administrativo, em nome do qual atua no exercício da autoridade pública.[23]
Contudo, a doutrina administrativista clássica reduziu esta dualidade a um monismo, privilegiando o segundo aspecto em detrimento do primeiro, razão pela qual a realização pessoal do agente público passou a ser ignorada nessa relação, abrindo espaço para que a vontade unilateral do Estado passasse a ser a única fonte que a conformava.[24]
O segundo aspecto que contribuiu para a concepção da doutrina clássica foi a redução do agente público à condição de mera peça da máquina administrativa[25], cuja razão de existir não era outra senão a de manter viva e em funcionamento a estrutura a qual pertencia o servidor. Nesta condição, o funcionário deixava de ser detentor de qualquer autonomia ou relevância pessoal para passar a ocupar a condição de sujeito que, portador de alguma capacidade produtiva, servia à Administração, não, contudo, de forma especial, o que importava no fato de que qualquer outro particular, detentor das mesmas capacidades impessoais, pudesse executar as mesmas tarefas sem qualquer prejuízo ao todo, representado pela Administração.
Sob este prisma organicista, a vontade do agente não passava de mera reprodução da vontade do Estado, razão pela qual eventuais conflitos de interesse eram inconcebíveis. Com o tempo, esta visão foi flexibilizada para dar espaço à interpretação segundo a qual a vontade do agente não se confundia com a vontade do Estado, o que possibilitou a conferência de certa autonomia jurídica aos trabalhadores e o vínculo que unia os pólos da relação passou a ser tratado como relação jurídica [26].
O terceiro argumento que conferia sustentabilidade à clássica concepção autoritária de Estado encontrava guarida na desigualdade das partes que compunham a relação de trabalho fixada entre servidores e Administração, pois a
“existência de uma posição de supremacia do ente administrativo relativamente aos seus agentes tornava-se incompatível com o recurso a modelos que pressupunham a paridade, ainda que formal, das partes em presença.”[27]
A essa razão, agregue-se, ainda, a instrumentalidade do agente à consecução do interesse público, e a noção de absoluta soberania da vontade do Estado, que contribuíam para a idéia de que de que a Administração não pudesse se limitar pela eventual obrigação de considerar vontades estranhas à sua.[28]
O último pilar da concepção autoritária de Estado propagava a idéia de que a relação que vinculava o servidor à Administração não tinha caráter patrimonial, diferentemente de relações semelhantes estabelecidas em âmbito privado. Significava dizer que o agente público não trabalhava com vistas à obtenção do resultado econômico daquela relação, e o resultado pecuniário de seus esforços não tinha caráter de contraprestação, mas sim de indenização, ao contrário do trabalhador da iniciativa privada, fator este que, segundo a visão a partir daí concebida, distanciava, definitivamente, as relações de trabalho estabelecidas nas searas pública e privada, principalmente no que referia ao regramento aplicável a cada espécie.[29]
Fernandes[30] ainda leciona que
“(…) segundo a doutrina clássica, o trabalho na Administração não podia ser qualificado como uma actividade laboral em sentido técnico, mas como uma manifestação do exercício da competência que era conferida ao agente com a tomada de posse, constituindo, por isso, o substracto material da função desempenhada; neste contexto afirmava-se ainda que o dever de prestar não se dirigia à satisfação de um crédito, porquanto o Estado não dispunha sobre a actividade dos seus dependentes um direito de natureza obrigacional, mas de caráter público.”
Nesta concepção, o vínculo laboral tinha natureza de fidelidade, de forma que o servidor aderia aos fins institucionais da Administração.
Também com o intuito de explicar o autoritarismo do Estado, no que tange às relações surgidas no âmbito interno da Administração Pública, Rogério Viola Coelho[31] refere que o Estado Iluminista foi concebido a partir de uma nova racionalidade, que substituiu a vontade absoluta do monarca, até então tida como expressão da vontade divina, pela vontade geral do povo.
Neste momento histórico marcado pelo Iluminismo, a racionalidade transcendente deu lugar a uma racionalidade imanente, fruto da vontade do povo, fato este que, por si só, denotava a superioridade dessa nova forma de pensar o Estado.
Não se pode olvidar, contudo, que as pressões da burguesia, orientadas por interesses concernentes à produção capitalista, acabaram por enfocar esta nova racionalidade emergente sob dois postulados específicos: a proteção ao indivíduo e a proteção do seu patrimônio.
Ao eleger tais referências para a sua área de atuação preferencial, o modelo de Estado então emergente acabou por privilegiar a atividade externa do Estado, de modo que foi na sua relação com os cidadãos “o primeiro espaço onde incidiu o direito, abrangendo a legislação primeiramente as relações dela, Administração, com os administrados.“[32]
Disso decorreu uma dicotomia na atuação do Estado, haja vista que, de um lado, quando da sua atuação nos aspectos concernentes à proteção do indivíduo e do patrimônio, ele se movimentava no plano do direito. De outro lado, no que tange às regras de organização interna da Administração Pública, o Estado permaneceu atuando albergado pelo paradigma do não-direito, resguardando, assim, um reduto de livre arbítrio no seu interior e para com aqueles que, neste espaço, exerciam suas funções, de forma que a
“organização e o funcionamento do Estado resistiu à nova racionalidade emanada da vontade geral, persistindo aí a racionalidade do Estado Monárquico, absolutamente autoritário.”[33]
E é justamente neste espaço que até os dias atuais se encontra a Administração Pública, que permaneceu subordinada a uma racionalidade autoritária, mesmo após a limitação da atuação do Estado pelo direito. Segundo o autor
“Em que pese tenha sido grande o avanço produzido nos marcos formais, substancialmente continuou prevalecendo, e até recrudescendo, com as dimensões alcançadas pelo estado Moderno, a concentração do poder no topo da Instituição, na pessoa do Chefe do Poder Executivo. Tudo se passava, e ainda se passa, especialmente nos países periféricos, como se o espírito do monarca absoluto incorporasse de forma recorrente no chefe do Poder Executivo.”[34]
Pertinente, nesse contexto, a lição de Hans Kelsen acerca do tema, para quem tal doutrina
“se nutre na religiosidade presente no senso comum, para conceber o Estado como um ser transcendente à sociedade, como Deus transcende o mundo, e personificando no chefe do Poder Executivo o poder absoluto do monarca.”[35]
1.2 A RUPTURA COM O MODELO CLÁSSICO DE ESTADO NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988
Em que pese a persistência do modelo autoritário de Estado nas relações desse com seus servidores, que determinou o enraizamento de tal concepção em todos os âmbitos da vida social, o fato é que ele foi, paulatinamente, sendo contrastado por novas concepções, gestadas pela dinâmica social e, posteriormente, institucionalizadas pela legislação pertinente, mesmo que de forma não uniforme.
1.2.1. Da lenta extensão de direitos reconhecidos aos trabalhadores da iniciativa privada aos servidores públicos
Muitas inovações foram inseridas a partir do reconhecimento, aos servidores públicos, de alguns dos direitos fundamentais tradicionalmente deferidos apenas aos trabalhadores da iniciativa privada. Essa legitimação conferida pela Constituição de 1988 é incompatível com o modelo autoritário de Estado até então vigente, pois pressupõe uma relativização da prevalência dos interesses da Administração, porquanto estes passaram a encontrar limites nos direitos fundamentais reconhecidos aos seus trabalhadores.
Francisco Fernandes observa que tais avanços ocorreram mediante a importação de alguns institutos típicos das relações privadas de trabalho para a seara pública. Conforme o autor[36],
“A emancipação jurídica conferida pela ordem jurídica à situação profissional do agente do Estado fez com que o ramo do direito especialmente vocacionado para tutelar o trabalho dependente passasse a exercer influência directa sobre o regime da função pública. Neste contexto, o Direito do Trabalho surge imbuído de uma força expansiva que lhe confere uma posição de referente, senão mesmo de garantia, em tudo aquilo que se prende com os direitos fundamentais dos agentes da Administração. Daí a legitimidade para transpor regras e princípios daquele ramo de direito para o sector do emprego público.”
Com efeito, mesmo antes da vigência da Carta de 1988, quando vigorava o rechaço ao direito dos servidores organizarem-se para constituir e manifestar sua vontade coletiva, e, apesar do desencontro de interesses no bojo desta classe, já mencionado, eles encontraram, paulatinamente, subterfúgios na formação de associações de classe[37], calcados no modelo desenvolvido na iniciativa privada, a partir das quais acabou por se formar uma identidade coletiva, já suficientemente amadurecida para suportar a criação de sindicatos de classe quando da promulgação da Carta de 1988.[38]
Com relação ao clientelismo ainda vigente até a promulgação da Constituição de 1988, e às diferenças verificadas entre os servidores públicos, decorrentes da diversidade de regimes, é relevante ressaltar que a superação destes aspectos restou instrumentalizada a partir de dois postulados constitucionais: (a) a acessibilidade dos cargos públicos a todos os cidadãos – mediante aprovação em processo público seletivo -, e (b) a instituição obrigatória de um único regime jurídico para os servidores públicos de cada esfera, que, no caso dos servidores federais, foi institucionalizado em 1990, através da edição da lei 8.112/90 (Regime Jurídico Único dos Servidores Civis da União).
1.2.2. Avanços constitucionais atinentes à composição coletiva de interesses dos servidores públicos civis
A consagração do Estado Democrático de Direito no Brasil, através da promulgação da Constituição Federal de 1988, trouxe instrumentos capazes de realizar não apenas a liberdade individual, como também o postulado da igualdade material, a partir da institucionalização de mecanismos capazes de promover transformações atinentes à diminuição das desigualdades sociais. Neste sentido, Barreto assevera que num Estado Democrático de Direito a Constituição deve ser lida através de “procedimentos interpretativos de legitimação das aspirações sociais.”[39]
Também para os servidores públicos a Constituição aportou consideráveis avanços. Além do reconhecimento de inúmeros direitos e garantias fundamentais, até então assegurados apenas aos trabalhadores do setor privado, o artigo 37, inciso VI da Carta Política também garantiu aos servidores públicos civis “o direito à livre associação sindical”.
Por esse modo, a Carta de 1988 instrumentalizou a intervenção dos servidores nas determinações das suas condições de trabalho, através do reconhecimento do direito à livre associação sindical e do direito de greve da categoria, a ser exercido “nos termos e nos limites definidos em lei específica” (inciso VII, art. 37 da Constituição Federal de 1988).
1.2.3 O Significado do Direito à Sindicalização e à Greve dos Servidores Públicos na Carta de 1988
Ao consagrar tais direitos, o constituinte de 1988 institucionalizou a possibilidade do funcionalismo público interferir nas determinações concernentes às suas condições de trabalho – inclusive através de processos de pressão, rompendo com o autoritarismo na relação de trabalho com a Administração.[40] Hoje, é consensualmente reconhecido que a sindicalização produz o sujeito social, ensejando o exercício da autonomia coletiva de grupos humanos portadores de interesses particulares comuns, atinentes ao exercício de determinada profissão. Por isto, ela é o instrumento hábil a garantir que a relação laboral não será fixada unilateralmente pelo tomador de serviço. Isto porque a constituição da categoria profissional como sujeito social, a relação de trabalho subordinado tende a deixar de ser uma relação de poder para ser fruto da composição dos interesses dos dois pólos que a integram.
É certo que, ao longo da vigência do novo ordenamento jurídico, estas duas inovações foram alvo de muitos debates, nos quais foram analisados os limites e as implicações do reconhecimento dos direitos em questão ao funcionalismo público, mormente no que diz com o direito de greve[41]. Importa-nos, contudo, ressaltar que, não obstante as discussões acerca dos limites do exercício do direito de greve dos servidores, eventuais regulamentações acerca do tema não poderão esvaziar o instituto.
Na linha de reconhecimento e instrumentalização da possibilidade dos servidores intervirem nas suas condições de trabalho, o direito à negociação coletiva[42] parecia estar implícito no texto constitucional, visto que este mecanismo é o instrumento que serve à natural composição dos interesses veiculados pela greve e pelos sindicatos[43].
Entrementes, a este respeito a Constituição Federal de 1988 apresentou-se silente. No que diz com os servidores públicos, a Carta Constitucional, além das disposições expostas, limitou-se a determinar, indiretamente, que a sua relação de trabalho seria conduzida pelas disposições legais, através do conteúdo do caput do artigo 37, que condiciona a atuação da Administração Pública ao Princípio da Legalidade, dentre outros.
O quadro exposto expressa a constatação de Norberto Bobbio, no sentido de que a democracia praticada na atualidade permanece atrelada à concepção originária de democracia, concebida no seio de uma sociedade individualista, que inclusive reprimiu, num primeiro momento, a constituição de organismos sociais capazes de intermediar as relações de poder entre Estado e sociedade, como é o caso dos sindicatos.[44]
Importa aqui destacar que a omissão do legislador constituinte, sobre a possibilidade de negociação coletiva entre sindicato de servidores e Administração Pública, acabou por acarretar grande prejuízo, não só ao avanço das relações de trabalho e, neste passo, ao aperfeiçoamento do serviço público, como também, e principalmente, à harmonia do ordenamento constitucional, que reconheceu a legitimidade da potencialização dos conflitos, através do direito à greve e, contraditoriamente, negou a possibilidade de solução dos mesmos pela via negocial.[45] Gino Giugni ressalta que não é a natureza pública ou privada do vínculo laboral o fator determinante a conflitualidade da relação. O que gera o conflito é uma distribuição desigual de poder, consubstanciada, no caso, pelo reconhecimento do direito de greve da categoria, desacompanhado do correlato direito à negociação coletiva.[46]
No que concerne ao significado histórico do reconhecimento da possibilidade da realização da negociação coletiva na esfera pública, é relevante a lição de Carlos Carrera Ortiz, quando declara que
“El reconocimento de los derechos sindicales en el empleo público, especialmente el derecho de huelga y el de negociación colectiva se hace possible con la quiebra del modelo autoritario de la relación entre la Administración Pública y sus funcionarios, en el que, supuestamente, no existe el conflicto de intereses, ni la paridad siquiera formal entre las partes que se reconocen en el sector laboral, por lo que las ideas de sindicalización y contratación colectiva son completamente extrañas a aquél dado que la regulación y la gestión de dicha relación las lleva a cabo unilateralmente la AP en el marco de su propio ordenamiento interno”.[47]
Diante do contexto jurídico exposto, apresenta especial relevo a análise dos princípios que regem a liberdade sindical, a greve e a negociação coletiva, como manifestações da autonomia da vontade coletiva, a bem de elucidar não apenas seu potencial de alteração do contexto social, como também de reconhecer a necessidade de convivência dos três pilares que a externam nas relações de trabalho.
1.3 A AUTONOMIA DA VONTADE COLETIVA
A análise da negociação coletiva, seja na esfera pública, seja na esfera privada, pressupõe que se esclareça ser ela apenas uma das faces mediante as quais se revela a autonomia da vontade coletiva, esta sim, fundamento onde se legitimam os mecanismos disponíveis aos trabalhadores para a intervenção nas questões que lhes são concernentes, inclusive através de produção normativa. Neste sentido, Carrasco[48] refere que a autonomia da vontade coletiva é um princípio superior no qual se fundamenta a fonte negocial e, portanto, integra outros mecanismos conexos à negociação coletiva, como a organização dos sujeitos, através do exercício da liberdade sindical, que inclui a livre constituição e atuação dos sindicatos, e do exercício do direito de greve.
1.3.1 Interdependência dos mecanismos de formatação e veiculação da autonomia da vontade coletiva
Carrasco leciona que, baseados na autonomia coletiva da vontade, visando fazer valer os postulados desta, a sindicalização, a greve e a negociação coletiva são institutos interdependentes e intrinsecamente vinculados. Afirma o autor que os três institutos estão
“indisolublemente conectadas entre si, de manera que, representado aspectos parciales de esse poder em que consiste la autonomia colectiva, se complementan em aras de hacerlo efectivo. La faculdad de autoorganización, articulada jurídicamente mediante el reconocimiento de la libertad sindical, viene a reforzar la posición del sujeito que, por su naturaleza colectiva, necesita la suficiente cohesión interna como para constituir un verdadero contrapoder social con capacidad negociadora. En definitiva, hay que tener presente que el poder del grupo tiene como presupuesto ineludible su organización. De ello se deduce que una eventual intervención legal en materia de negociación colectiva debe tener en cuenta, inexcusablemente, la conexión de esta con la capacidad autoorganizativa de los proprios sujeitos negociadores. Por su parte, la función negocial, además de ser indicativa de la fuerza de la organización, modula al efecto su propia fisionomía.”[49]
Note-se que a sindicalização e o direito de greve são reconhecidos como direitos instrumentais para composição coletiva de interesses. A negociação coletiva e a greve são os elementos constitutivos da atividade sindical,[50] sem os quais ela resta comprometida, e sua ação fica reduzida à judicialização dos conflitos sociais, ou às manifestações públicas de protesto, estas últimas praticamente inócuas, mormente quando já prevalece no imaginário social a idéia de responsabilização dos servidores pela ineficiência do serviços públicos, amplamente difundida pelos veículos de comunicação de massa, quando do desenvolvimento de políticas de ajuste do Estado[51].
Em verdade, de nada adianta a institucionalização do direito de greve e a atribuição de personalidade jurídica à coletividade dos trabalhadores se, nesta condição, eles não possuem instrumentos que possibilitem a sua intervenção na determinação das condições de trabalho que lhes são impostas, seja de forma pacífica, através da negociação coletiva, seja através da pressão social do movimento paredista[52]. A doutrina universal reconhece ser a negociação coletiva, assim como a greve, constitutiva do conteúdo essencial da liberdade sindical, que nada mais é senão manifestação da liberdade, fundamento da democracia moderna, ao lado da igualdade.
Apenas para melhor elucidar a íntima relação existente entre os três institutos veja-se, por exemplo, a ligação entre a negociação coletiva e a greve[53]. A negociação coletiva, além de função precípua do sindicato, quando atua institucionalmente em prol dos interesses da categoria por ele representada, também é pressuposto para o exercício do direito de greve. A afirmação pode ser comprovada em dois momentos: (1) por ocasião da deflagração do movimento grevista, quando as tentativas de negociação se mostram inexitosas, e (2) por ocasião do encerramento da paralisação, seja em razão da realização de acordo, seja em razão da constatação de impasse. A negociação coletiva é, assim, o instrumento que veicula as pretensões: é através dela que se discutem as expectativas das partes antagônicas na relação de trabalho, e é, também através dela, que se chega a um consenso ou se conclui, definitivamente, pelo fracasso das tentativas de encontrar uma solução pacífica para os conflitos de interesses.
2. A INTERPRETAÇÃO CONFERIDA PELO STF À AUTONOMIA COLETIVA DE VONTADE DOS SEVIDORES PÚBLICOS FRENTE AO ESTADO
2.1 Os Óbices à Negociação Coletiva entre Servidores e Administração: síntese do julgamento veiculado na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 492-1
Em que pese a íntima relação existente entre o direito à sindicalização, à greve e à negociação coletiva, é significativa a parcela de juspublicistas brasileiros que nega a possibilidade de interação entre a Administração Pública e seu corpo funcional.
A manutenção dos postulados do Estado autoritário, no que pertine às relações com seu corpo funcional, está calcada nas seguintes razões, em regra utilizadas pela doutrina: (1) a Constituição Federal não enuncia a negociação coletiva como direito dos servidores públicos; (2) o Princípio da Legalidade e o Princípio da Reserva Legal são significativos óbices à negociação coletiva entre servidores e Poder Público, pois com sua atividade constitucionalmente vinculada às disposições legais e à reserva de competência, a Administração Pública não dispõe do mínimo poder decisório nas questões que regulam a relação laboral com seus servidores, (3) o Estado não dispõe dos interesses por ele representados, considerando-se que age em nome da coletividade e em prol do interesse público, (4) tampouco dispõe dos mecanismos necessários ao cumprimento das cláusulas que têm repercussões financeiras, tendo em vista a vinculação da receita às diretrizes previamente fixadas na previsão orçamentária.
Esta linha de raciocínio, que aponta para a impossibilidade do acordo coletivo entre servidores públicos e Administração foi expressamente acolhida pelo Poder Judiciário, representado pelo Supremo Tribunal Federal. A manifestação foi proferida por ocasião do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade proposta pelo Procurador-Geral da República contra as alíneas “d” e “e” do art. 240 do Regime Jurídico Único dos Servidores Civis da União[54] (Lei 8.112/90), que asseguravam, ao servidor público, “nos termos da Constituição Federal, o direito à livre associação sindical e aos seguintes direitos, entre outros dela decorrentes:… d) de negociação coletiva; e) de ajuizamento, individual e coletivamente, frente à Justiça do Trabalho, nos termos da Constituição Federal.”
A referida Ação Direta de Inconstitucionalidade, autuada sob o nº 492-1/DF[55], julgada integralmente procedente pelo Supremo Tribunal Federal, por maioria de votos, declarou que a relação de trabalho entre servidor e Estado é de natureza estatutária, o que justifica a impossibilidade dela ser regulada por acordo ou dissídio coletivo. No julgado, o voto vencedor apresenta o significado da natureza estatutária na lição de Antônio Augusto Junho Anastácia, para quem “o regime jurídico único do servidor público é de direito público, cuja relação funcional sob sua regência é unilateral, consubstanciando o regime em uma norma positiva – o estatuto, que alberga os direitos e obrigações dos servidores.”
Por esta razão, que afasta a possibilidade de equiparação entre trabalhadores da iniciativa privada e servidores públicos, o Ministro Carlos Velloso, relator da ação, declarou que é “fácil perceber que a negociação coletiva (alínea d do art. 240) e o direito à ação coletiva (alínea e) é absolutamente inconciliável com o regime estatutário do servidor público.”. Por fim, aduziu que
“A negociação coletiva tem por escopo, basicamente, a alteração da remuneração. Ora, a remuneração dos servidores públicos decorre da lei e a sua revisão geral, sem distinção de índices entre servidores públicos civis e militares, far-se-á sempre na mesma data(CF, art. 37, X e XI). Toda a sistemática de vencimentos e vantagens dos servidores públicos assenta-se na lei, estabelecendo a Constituição isonomia salarial entre servidores da administração direta, isonomia de vencimentos para cargos de atribuições iguais ou assemelhadas do mesmo Poder ou entre servidores do Poder Executivo, Legislativo e Judiciário, ressalvadas as vantagens de caráter individual e as relativas à natureza ou ao local de trabalho (CF, art. 39, §1º.)”
Tais razões levaram o STF a declarar a inconstitucionalidade de dispositivo legal que previa a realização de acordos e dissídios coletivos entre servidores públicos e Administração. Neste sentido são, também, as manifestação do Tribunal Superior do Trabalho[56], órgão máximo da Justiça do Trabalho, competente pela apreciação dos dissídios coletivos dos servidores públicos civis da União, nos termos do dispositivo legal cuja constitucionalidade foi alvo da apreciação do STF.
Estas são as razões que sustentam o posicionamento majoritário, segundo o qual as questões pertinentes aos serviços e aos servidores públicos não podem ser reguladas mediante negociação coletiva, tendo em vista a natureza estatutária da relação e a vinculação da atuação da Administração Pública às disposições legais, fatores estes que afastam a possibilidade em foco.
2. A INTERPRETAÇÃO CONFERIDA PELO STF À AUTONOMIA COLETIVA DE VONTADE DOS SEVIDORES PÚBLICOS FRENTE AO ESTADO
2.1 Os Óbices à Negociação Coletiva entre Servidores e Administração: síntese do julgamento veiculado na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 492-1
Em que pese o respeito que merece a decisão prolatada pelo STF sobre o tema, parece-nos que ela está apoiada numa concepção de Estado superada pela Constituição Federal de 1988. A análise dos óbices suscitados no julgado, para o reconhecimento do direito dos servidores públicos à negociação coletiva, aponta para a limitação da questão ao plano dogmático, vez que os princípios e as normas a ela atinentes não foram resignificados a partir das inovações introduzidas no ordenamento jurídico pela Carta Cidadã. Faltou ao STF, quando do julgamento da questão em foco, sair do impessoal e imbuir-se da “angústia do estranhamento”, a qual permite que nos distanciemos da instância da facilidade, do senso comum, para assumirmos possibilidades de sentido distintas daquela que nos traz a tradição.[57]
Basicamente, pode-se dizer que o julgamento em foco analisou a questão que lhe foi veiculada a partir das garantias à atuação do Estado, apenas. Apesar de a referida ADIn 492-1/DF tratar de direito social de significativo número de trabalhadores – eis que dirigida contra dispositivo legal que consagrava a possibilidade dos mesmos agirem coletivamente -, o STF, na oportunidade em que a apreciou, o fez a partir de uma visão dogmática do tema, limitando-se a reproduzir antigos valores da doutrina juspublicista, como a subordinação da Administração aos Princípios da Legalidade, da Reserva Legal, e às limitações das regras orçamentárias, omitindo-se, assim, de atualizar sua visão de Estado e resignificar os Princípios que regem a atuação da Administração, de modo a compatibiliza-los à Carta Constitucional de 1988 para, só então, julgar a demanda.
Esta resistência do Poder Judiciário de elaborar interpretações “adequadas e prospectivas” já foi denunciada por Cèmerson Clève, para quem a instituição de um novo ordenamento constitucional de nada adianta se “os operadores jurídicos continuam prisioneiros dos paradigmas construídos sob a égide da Constituição adotada pelo regime autoritário.”[58]
O STF acabou por desconsiderar todo o legado histórico e as conquistas do Constituinte de 88 no julgamento em foco, ignorando que “nós assumimos e modificamos, por novos achados de sentido, as perspectivas de significado que nos foram transmitidas com base na tradição e do seu presente em nós.”[59]
A postura adotada pela Corte Constitucional se encaixa nas críticas desenvolvidas por Leonel Ohlweiler[60] à doutrina administrativista, que, em regra, parte do pressuposto de que termos indeterminados, usualmente utilizados – como o são as expressões “estatutário”, “legalidade”, “reserva legal” -, têm um sentido em si mesmos, irretocável, as quais teriam por função solucionar, sozinhos, e satisfatoriamente, todos os conflitos sociais emergentes na seara administrativa. Nas palavras do autor, as
“lições sobre legalidade, por exemplo, continuam a ser tratadas como se elas constituíssem uma substância imutável, uma substância sobre a qual o tempo não exerce nenhum poder, formada por uma substância sublime, indestrutível e imutável.”[61]
Tal premissa, que norteia a produção intelectual na área, acaba por conformar um arcabouço perfeito para a reprodução de antigos dogmas administrativistas, os quais garantem a manutenção do estabilishment social, pois os princípios administrativos são alçados à categoria de dogmas cuja observância se faz obrigatória para a construção de um ideal de “bom administrador”, além de que aprisionam as decisões concernentes ao Poder Público e são “compreendidos como regras despidas de temporalidade e retirados da historicidade”[62].
Relativamente à vinculação do julgamento em foco à dogmática jurídica, não é exagero dizer que o voto prevalecente olvidou que “não há um ser eterno, e transcendente, assim como não há um ser uno, verdadeiro, bom”[63] e desconsiderou, por este modo, a possibilidade de construção do direito a partir de outros prismas que não aqueles fornecidos pela dogmática, estando esta assentada nos referidos “termos indeterminados”[64], cujo conteúdo já está posto e, portanto, não poderiam, naquela concepção, ser revistos, nem ao menos para serem compatibilizados com o programa constitucional então vigente.
Com efeito, o reconhecimento da possibilidade de participação ativa dos servidores nas questões relativas à categoria e, tampouco, o significado social da consagração de tais direitos, foram considerados quando do proferimento do voto do Ministro Relator. Tal aspecto torna-se mais grave se considerarmos que o contexto constitucional no qual foi prolatada a decisão da ADIn 492-1/DF consagrou um modelo de Estado Democrático de Direito, que nas palavras de Lênio Luiz Streck[65]
“(…) é um novo modelo que remete a um tipo de Estado em que se pretende precisamente a transformação em profundidade do modo de produção capitalista e a sua substituição progressiva por uma organização social de características flexivamente sociais, para dar passagem, por vias pacíficas e de liberdade formal e real, a uma sociedade onde se possam implantar superiores níveis de reais de igualdades e liberdades.”
Não é difícil verificar que o Supremo Tribunal Federal desconsiderou todo o programa constitucional de democratização e diminuição das desigualdades sociais, quando do julgamento em foco. Olvidou-se, assim, de utilizar-se do direito como fonte de transformação social, ignorando, portanto, o papel que este deve assumir no modelo de Estado proposto pela Constituição.[66]
Não obstante o referido julgamento tenha ocorrido há mais de 10 (dez) anos atrás – quando poucos tinham a exata noção da amplitude do texto constitucional recentemente promulgado -, ainda hoje ele produz efeitos, pois instalou no imaginário coletivo, a idéia de que o STF já “revelou” a “verdadeira” intenção do legislador acerca do tema, e esta é incompatível com as demais “verdades” expostas na Constituição. Tanto é assim que as inúmeras decisões que se seguiram ao precedente em análise limitaram-se, via de regra, a negar o direito à negociação coletiva, postulado pelos servidores, adotando, como fundamento, o anterior julgamento do STF[67].
Contudo, o significado da inserção do direito dos servidores à negociação coletiva no Regime Jurídico Único dos Servidores Públicos Civis não passou totalmente despercebido. Rogério Viola Coelho assevera que
“(…) ao inserir no artigo 240, alínea “d”, da lei 8.112/90, o direito à negociação coletiva, o legislador ordinário – atento à lição de Gordillo, para quem o Direito deve adaptar-se à evolução da vida social – deu conseqüência ao direito de greve e à livre associação sindical outorgados aos servidores públicos pela nova Carta Política. Por outra parte, ao evoluir para um regime misto, que combina o antigo regime legal com a negociação coletiva – um regime simultaneamente estatutário e negocial – instituiu o único regime compatível com o Estado Democrático de Direito, instaurado pelo artigo 1º da mesma Carta que, inovando as anteriores, inclui a cidadania entre seus fundamentos”.[68]
No que pertine à democratização do Estado, é inegável que o reconhecimento da possibilidade dos servidores organizarem-se coletivamente – seja para o exercício da liberdade sindical, seja para a persecução de um fim específico através da greve – denota uma ruptura com a clássica concepção de Estado, em face da relativização da supremacia da Administração perante os particulares que atuam como agentes públicos, revelada justamente pela institucionalização de mecanismos que instrumentalizam a participação ativa do funcionalismo público nos rumos da Administração, permitindo a oxigenação desta através das idéias, informações e pretensões entre ela e o seu corpo funcional.
Francisco Liberal Fernandes leciona que a admissão da liberdade sindical e da greve aos funcionários públicos, cria obstáculos ao enquadramento do emprego público no modelo normativo clássico, vez que neste não há espaço para a auto-tutela de seus agentes (mesmo porque não são admitidos conflitos de interesses). Segundo tal concepção, a proibição da utilização destes instrumentos destinava-se a impedir o surgimento de organismos habilitados a apresentar oposição ao Estado, de forma que, admitidas tais condutas coletivas, estas passariam a reger-se por uma lógica de conflito e defesa dos interesses da categoria, em detrimento da persecução do interesse geral. A orientação do emprego público no sentido da persecução de finalidades coletivas era incompatível com o reconhecimento da autonomia coletiva dos agentes do Estado. [69]
Ao julgar a possibilidade dos servidores públicos participarem ativamente nos processos de decisão que lhes dizem respeito, o Supremo Tribunal Federal fê-lo a partir da clássica pré-compreensão autoritária de Estado, e seguindo o paradigma liberal-individualista de produção do direito, olvidando-se da tarefa de resignificá-la a partir dos anseios e fatos sociais que culminaram na promulgação da Carta de 1988, pela qual consagrou o Estado Democrático de Direito no Brasil. Faltou, assim, à nossa Corte Suprema, compreender a questão com a disposição de nela encontrar “uma resposta aos questionamentos da nossa era”[70].
A forte influência da ausência de tal resignificação se denota dos fundamentos utilizados para declarar a inconstitucionalidade da norma apreciada, os quais giraram em torno das prerrogativas do Estado, apenas, sem revelar qualquer indício da análise do tema a partir da perspectiva dos servidores públicos, dos cidadãos usuários dos serviços executados pelos mesmos ou da complexidade da realidade social brasileira, pontuada pelas mais agudas diferenças, que ensejaram a munição dos mais diversos segmentos sociais com instrumentos voltados à realização do postulado da igualdade material.
A função transformadora do direito não foi, portanto, observada pelo Supremo Tribunal Federal quando da prolação da decisão em foco. Pelo contrário, aquela Corte de Justiça perpetuou, na ocasião, o paradigma liberal-individualista-normativista que, ainda hoje, sustenta a dogmática jurídica vigente, sob a justificativa de que a nova realidade não cabe nos antigos dogmas – ou “termos indeterminados”[71] – do direito administrativo.
A respeito do tema, relevante a contribuição de Lênio Luiz Streck[72], quando leciona:
“O direito brasileiro e a dogmática jurídica que o instrumentaliza está assentado em um paradigma liberal-individualista que sustenta essa desfuncionalidade, que, paradoxalmente, vem a ser a sua própria funcionalidade. Ou seja, não houve ainda, no plano hermenêutico, a devida filtragem – em face da emergência de um novo modo de produção de Direito representado pelo Estado Democrático de Direito – desse (velho/defasado) Direito, produto de um modo liberal-individualista-normativista de produção de direito, entendendo-se como modo de produção de Direito, para os limites desta abordagem, a política econômica de regulamentação, proteção e legitimação num dado espaço nacional, num momento especifico, (…)”
Destarte, o paradigma liberal-individualista-normativista de enxergar o direito, freqüentemente utilizado nos tribunais, revela-se desconexo com o reconhecimento da necessária funcionalização do mesmo – a partir da instauração, ao menos formal, do Estado Democrático de Direito, com a Carta de 1988 – através do qual se impôs a visão do fenômeno jurídico sob um enfoque interdisciplinar.
Partindo-se, então, da necessária premissa de uma nova leitura do direito, a análise de cada caso concreto na sua historicidade, é obrigatória em qualquer circunstância. Há que se entender e interpretar a cultura do povo no seio do qual a norma foi produzida, seus valores e sua psicologia, para avaliar a relevância das soluções apontadas, de modo a adotar aquela que melhor se amolde aos anseios sociais.
Pertinentes, sobre a questão, as palavras de Leonel Ohlweiler:
“Fazer a coisa acontecer não reside em aceitar simplesmente aquilo que chega por uma dada tradição, um conjunto de idéias e opiniões revestidas de naturalidade – o habitus dogmaticus no Direito Administrativo. O pensar hermenêutico é aquele dotado de caráter especulativo, contrário à posição do dogmatismo, não se entregando direta e acriticamente ao conjunto de posições dominantes, destacando-se antes pelo seu aspecto de saber refletir, como alude Hans-Georg Gadamer. A linguagem da poiesis, aquela que cria o novo, o inédito, é que possibilitará o autêntico acontecer dos princípios constitucionais da Administração Pública, uma linguagem assumindo-se como instauradora de mundo, e não fundada no labor de reprodução de um algo previamente fixado.”[73]
Trata-se, assim, de (re)pensar e (re)discutir o direito administrativo a partir das diretrizes democráticas e materialmente igualitárias, inerentes ao Estado Democrático de Direito inaugurado no Brasil pela Constituição Federal, a bem de que não se continue a reproduzir decisões como a proferida na ADIn 492-1/DF, baseada que foi em dois vetores principais, a saber: de um lado, uma concepção anacrônica de Estado; de outro, a questão analisada com um olhar eminentemente dogmático, que tinha, de antemão, respostas prontas para a questão nas já tradicionais expressões da doutrina administrativista – como “reserva legal”, “legalidade”, etc… – as quais guardam, segundo este olhar, um sentido em si mesmas. Isto se diz porque
“(…) não há como construir-se uma concepção principal de regime administrativo sem uma profunda análise do próprio existir humano, daquilo que vem sendo experienciado como compreender jurídico. As grandes dificuldades de superar os postulados lógico-formais que engendraram a idéia de Administração Pública é fruto, também, da ausência de problematização do conjunto de pré-juízos que tem alimentado as construções teóricas preponderantes sobre o tema”.[74]
A postura em questão decorre do fato de que o Direito Administrativo, na esteira da formação do pensamento moderno, nasceu e se desenvolveu de categorias simbólicas, produzidas pelo racionalismo cientificista, que determinou a estruturação do conhecimento a partir de “categorias matemáticas”, determinantes na compreensão do sentido das práticas administrativas, as quais possibilitam o acesso à verdade. Desse modo, no que tange aos princípios que norteiam a atividade da Administração Pública “busca-se, cada vez mais, até mesmo como modo-de-ser necessário para ultrapassar a irracionalidade absolutista, um grau de certeza e precisão, além da forma de apreender o real”.[75]
A superação do atual modo de produção do direito se impõe pelas razões críticas a seguir sintetizadas por Leonel Ohlweier[76]:
“O Direito Administrativo, em especial a tarefa doutrinária de criação dos critérios para o controle dos termos indeterminados, passa pela explicitação dos conceitos, trabalho de sistematização, elaborando uma rede de circulação de sentido através de “pacotes significantes” A conseqüência é que as decisões jurisprudenciais não são trabalhadas como possibilidades de sentidos. O processo de sistematização implica transforma-las em falas absolutas e desveladoras do único sentido possível. A hermenêutica dos termos indeterminados, desta maneira, deixa de possuir o necessário caráter inovador e interrogativo das práticas jurídicas, constituindo-se em uma mera “instância do já dito”, buscando um “sentido-primeiro” contido nos textos legais.”
Relevante ressaltar que o julgado anteriormente analisado não é caso singular. Não se ignora que os princípios regentes da atuação da Administração são, também, uma garantia para o indivíduo e para a coletividade. Não é raro, porém, que o STF utilize os princípios da legalidade, da reserva legal e aqueles que orientam o gasto de valores públicos como escudo para atender a reivindicações individuais e mesmo coletivas. Ademais, não raro, tais “óbices” são facilmente superados quando o contexto fático o impõe ao administrador ou mesmo quando, para este, tal superação é interessante, seja para atender metas de governo, seja para atender interesses particulares.
2.2.2 Possibilidades dos “termos indeterminados”
Sobre do alcance do conteúdo dos princípios que regem a atuação da Administração, Remedios Roqueta Buj[77], ao analisar situação muito semelhante ocorrida na Espanha (a qual se terá oportunidade de tratar adiante), assevera que o Princípio da Reserva Legal não é incompatível com a negociação coletiva, vez que o mesmo, ao contrário do que comumente se afirma, é relativo, e não absoluto, visto que a lei não precisa regular todos os aspectos da relação de trabalho, sendo perfeitamente possível a remissão a outros expedientes de organização interna da Administração Pública, como é o caso de Ordens de Serviço, Portarias, dentre outros.
Com efeito, no Brasil tais expedientes são freqüentemente utilizados para ordenar questões concernentes a horário de trabalho, divisão e forma de execução de determinadas tarefas, etc… O equívoco, aqui, estaria em reduzir a complexidade da relação de trabalho ao aspecto meramente remuneratório, conforme o fez o Relator da ADIn 492-1/DF, para quem
“A negociação coletiva tem por escopo, basicamente, a alteração da remuneração. Ora, a remuneração dos servidores públicos decorre da lei e a sua revisão geral, sem distinção de índices entre servidores públicos civis e militares, far-se-á sempre na mesma data (CF, art. 37, X e XI). Toda a sistemática de vencimentos e vantagens dos servidores públicos assenta-se na lei, estabelecendo a Constituição isonomia salarial entre servidores da administração direta, isonomia de vencimentos para cargos de atribuições iguais ou assemelhadas do mesmo Poder ou entre servidores do Poder Executivo, Legislativo e Judiciário, ressalvadas as vantagens de caráter individual e as relativas à natureza ou ao local de trabalho” (CF, art. 39, §1º)[78].
De outro lado, mesmo tratando a negociação coletiva do aspecto remuneratório da relação de trabalho – o qual está, efetivamente, submetido à reserva legal -, ainda resta espaço para compatibilização da demanda social com o ordenamento jurídico, conforme já ocorre no plano fático, o que será oportunamente analisado.
Remédios Buj também desconstitui a tese de incompatibilidade da negociação coletiva em face da subordinação da atuação administrativa ao Princípio da Legalidade. No seu magistério, tal princípio é justamente um dos fundamentos da negociação coletiva para os servidores públicos, pois o mesmo impõe que a Administração observe a totalidade do ordenamento constitucional, o qual garante aos servidores o exercício da liberdade sindical. Da mesma forma, relativamente às determinações legais atinentes à persecução do interesse público, pondera que o interesse público não está desvinculado dos interesses individuais e coletivos, eis que está a serviço dos cidadãos, e não o inverso, de forma que a criação de vias negociais com o corpo de servidores não atenta contra o interesse público. Pelo contrário, atende ao interesse comum de democratização do Estado[79]. No seu magistério
“Es decir, que aquella capacidad convencional se halla justificada desde la perspectiva de posibilitar la efetividad Del principio de participación – en este caso referidaa la negociación colectiva funcionarial -, pues la definición de los intereses generales se produce por la incorporación a los mismos de los intereses sectoriales y, por tanto, aunque la Administración “sirve con objetividad” dichos intereses generales, su determinación es el resultado de un proceso de fluidez y constante puesta en práctica de los mecanismos participativos.”[80]
Em suma, no entender da autora, os princípios constitucionais atinentes à questão podem ser todos eles compatibilizados com a edição de um texto legal que regulamente o exercício da liberdade sindical dos servidores, através da negociação coletiva. Desta forma, restará observada a tradicional exigência de estrita observância legal nas questões relativas à Administração sem, em nome disto, sacrificar outro princípio constitucional, qual seja, a garantia da liberdade sindical aos servidores. Nada disto poderá ser alcançado, contudo, enquanto a Administração não se despojar de sua tradicional posição de supremacia.
3. A SUPERAÇÃO DOS OBSTÁCULOIS: UMA ABORDAGEM CRÍTICA A PARTIR DO MODELO DE ESTADO INAUGURADO PELA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 E A PRÁTICA ADOTADAC PELOS MOVIMENTOS GREVISTAS
A verificação da possibilidade de superação dos óbices persistentemente apontados pela doutrina e jurisprudência, como impeditivos da negociação coletiva entre servidores e Administração, pode ser efetuada a partir da análise da evolução da mesma questão no ordenamento jurídico espanhol.
3.1. Uma abordagem crítica a partir do paradigma espanhol
Assim como o Brasil, a Espanha demorou a reconhecer o direito desta categoria de trabalhadores à sindicalização. Até a promulgação da Constituição de 1978, os servidores públicos espanhóis estavam em situação expressamente diferenciada dos trabalhadores em geral, para os quais o direito à sindicalização já era, há muito, devidamente reconhecido.
O marco para institucionalização da composição coletiva de interesses na Espanha foi a promulgação da Constituição de 1978, que, em seu artigo 28, reconheceu que “todos tienen derecho a sindicarse libremente. La ley poderá limitar o exceptuar el ejercicio de este derecho a las Fuerzas o Institutos armados a los demás Cuerpos sometidos a disciplina militar y regulará las peculiaridades de su ejercicio para los funcionarios públicos”.
Além de reconhecer o direito dos funcionários públicos à sindicalização, a Constituição Española foi além, traçando diretrizes para o alcance da liberdade sindical, que, no texto constitucional determina “el derecho a fundar sindicatos y a afiliarse al de su elección, así como el derecho de los sindicatos a formar confederaciones y a fundar organizaciones sindicales internacionales o afiliarese a las mismas”, e resguardou a liberdade individual do trabalhador, estabelecendo que “nadie podrá ser obligado a afiliarse a un sindicato.”
O expresso reconhecimento do direito do funcionalismo público espanhol à sindicalização, na Constituição Espanhola de 1978, apontava para a possibilidade de utilização do acordo coletivo como instrumento para a composição coletiva de interesses anunciada pela sindicalização. Não obstante, a perspectiva de construção de um panorama absolutamente novo ficou prejudicada pelo conteúdo do artigo 103.3 da Constituição, que estabelece que “la Administración Pública sirve con objetividad los intereses generales y actúa de acuerdo con los principios de eficacia, jerarquía, descentralización, desconcentración y coordinación, con sometimiento pleno a la ley al derecho”, bem como que “La ley regulará el estatuto de los funcionarios públicos, el acceso a la función pública de acuerdo con los princípios de mérito y capacidad, las peculiaridades del ejercicio de su derecho a sindicación, el sistema de incompatibilidades y las garantias para la imparcialidad en el ejercicio de sus funciones”. A fixação de reserva legal em matéria relativa ao funcionalismo público, assim como a sujeição da atuação da Administração Pública Espanhola ao Princípio da Legalidade acabaram por determinar um impasse para a possibilidade de negociação coletiva entre servidores e Administração, numa conjuntura semelhante à brasileira.
A partir deste contexto, surgiram na Espanha várias interpretações distintas sobre a possibilidade em comento, dentre as quais destacam-se: (1) aquela segundo a qual o texto constitucional Espanhol não reconhece e nem, tampouco, nega a possibilidade dos servidores público negociarem coletivamente com a Administração, ele apenas remete a questão à competência de lei regulamentar; (2) uma segunda, decorrente da interpretação sistemática da Constituição, segundo a qual o direito à negociação coletiva dos servidores é decorrência lógica da institucionalização da liberdade sindical, consagrada através do artigo 28.1 da Constituição e, finalmente, (3) a mais audaciosa, que entende ser o artigo 37.1, que consagra a negociação coletiva entre os trabalhadores em geral e os empresários, extensível aos servidores públicos.
Provocado a manifestar-se a respeito, o Tribunal Constitucional Espanhol inicialmente afastou a possibilidade do reconhecimento da negociação coletiva entre sindicatos de servidores públicos e Administração porque a negociação coletiva não estava, na Constituição Espanhola, expressamente contemplada pelo conceito de “liberdade sindical”. A mais representativa decisão neste sentido é a de número STCO 57/1982. Segundo o entendimento ali consubstanciado, a configuração da negociação coletiva como instrumento inerente à liberdade sindical estava condicionada ao advento de uma lei que tratasse de assim dispor, conforme determinou o texto constitucional quando submeteu as “peculiaridades” do funcionalismo à regulamentação por lei específica.
No entanto, em que pese este posicionamento, o Tribunal Constitucional não se escusou da função de, em seus julgados, traçar alguns critérios definidores do conteúdo e do alcance da expressão “liberdade sindical”. Ao pronunciar-se sobre o conteúdo da liberdade sindical, esta sim, expressamente reconhecida aos servidores públicos, o Tribunal declarou que “el derecho constitucional de libertad sindical comprende no solo el derecho de los indivíduos a fundar sindicatos ya a afiliarse al de sú elección, sino asimismo el derecho a que los sindicatos fundados – y aquellos a los que la afiliación se haya hecho – realicen las funciones que de ellos es dable esperar, de acuerdo com él carácter democrático Del Estado y com las coordenadas que a esta institución hay que reconocer, a las que se puede sin dificultad denominar “contenido esencial” de tal derecho”.[81]
Em que pese a limitação destas decisões, a partir das discussões e debates jurídicos produzidos naquele contexto, foi editada a lei orgânica 11, de 02 de agosto de 1985, que definiu e unificou o conteúdo da expressão “liberdade sindical”, tanto para os trabalhadores da iniciativa privada, quanto para o funcionalismo público. Conforme a exposição de motivos da referida lei, esta “pretende unificar sistemáticamente los precedentes y posibilitarán desarrollo progresivo y progresista del contenido esencial del derecho de libre indicación reconocido en la constitución, dando un tratamiento unificado en un texto legal unico que incluya el ejercicio del derecho de indicación de los funcionarios públicos a que se refiere el artículo 103, 3, de la constitución y sin otros limites que los expresamente introducidos en ella.” Adiante, o texto legal reconhece, em seu art. 2º, que “el ejercicio de la actividad sindical en la empresa o fuera de ella, que comprenderá en todo caso, el derecho a la negociación colectiva, al ejercicio del derecho de huelga, al plantamiento de conflictos individuales y colectivos…”
A partir do reconhecimento de que a liberdade sindical compreende a negociação coletiva, inclusive para o funcionalismo público, foi editada a lei 9/1987, cujo capítulo III, que dispõe acerca de “la negociación colectiva y la participación em la determinación de las condiciones de trabajo” foi posteriormente alterado pela lei 7/1990. Em suma, os referidos textos legais institucionalizaram e regulamentaram a participação dos servidores públicos nas suas condições de trabalho, mediante a negociação coletiva. De acordo com a legislação espanhola, poderão ser objeto de negociação coletiva os seguintes temas:
1. Reajustes e aumentos remuneratórios do funcionalismo público;
2. Processo de elaboração e oferta de empregos públicos;
3. A classificação dos postos de trabalho;
4. Determinação dos programas de promoção e qualificação de pessoal;
5. Sistemas de ingresso e ascensão na carreira pública;
6. As propostas de direito sindical e de participação dos funcionários;
7. Medidas sobre a saúde do trabalhador;
8. Todas as matérias afetas ao acesso à carreira pública, retribuição e seguridade social, e as condições gerais de trabalho dos servidores, cuja regulação deva ser objeto de lei;
9. As matérias de índole econômica, de prestação de serviços, de natureza sindical, assistencial, e todas aquelas pertinentes à determinação das condições de trabalho do funcionalismo ou mesmo à relação de trabalho que estes estabelecem com a Administração.
De outro lado, as decisões administrativas de caráter organizacional, as questões referentes ao exercício de direitos dos cidadãos perante os funcionários públicos, assim como aquelas referentes ao procedimento de formação dos atos administrativos estão excluídos da obrigatoriedade de negociação. No que refere aos procedimentos da negociação coletiva entre o funcionalismo público e a Administração espanhola, importante ressaltar que, estes, podem gerar pactos ou acordos coletivos. Os acordos versam sobre matérias de competência do Conselho dos Ministros, Conselho do Governo de Comunidades Autônomas ou Pleno das Entidades Locais. A sua validade e eficácia estão condicionadas à expressa e formal aprovação do órgão da Administração no âmbito respectivo. A aceitação dos termos do acordo, pelo órgão do governo correspondente, expressada através da publicação do seu conteúdo no Boletim Oficial do Estado, é suficiente para garantir a sua eficácia jurídica. Não se ignora o fato de que, ao governo, resta a “última palavra”, no que toca à validade e eficácia jurídica do acordo. Não obstante, depois de aprovado formalmente, este passa à categoria de norma jurídica elaborada na via negocial.
O pacto, de outro lado, vincula as partes sem a necessidade de aprovação pelo governo. Esta dispensa é viabilizada pelas matérias sobre as quais versam os pactos, pois estes são celebrados apenas em relação às matérias correspondentes ao âmbito competencial de um órgão administrativo específico, que dispõe de certa autonomia funcional, gerencial e territorial. As questões passíveis de determinação por pacto são, sem dúvida, mais específicas e de menor complexidade, se comparadas àquelas que são objeto de acordo.
A partir destes dados, não é difícil constatar que algumas matérias passíveis de determinação pela via da negociação coletiva podem esbarrar nos impeditivos anteriormente suscitados pelos doutrinadores como óbices à negociação coletiva entre sindicatos de servidores e a Administração Pública espanhola, seja em razão das repercussões financeiras, seja em razão da reserva legal, ou mesmo da sujeição da Administração ao Princípio da Legalidade. Entretanto, estes argumentos acabaram por ser afastados de plano, em razão da sistemática ditada pelos textos legais para a implementação dos acordos coletivos. A este respeito, o Tribunal Constitucional vem declarando que o Estado está obrigado ao cumprimento dos acordos coletivos, não pela realização ou pelo conteúdo do acordo em si, mas sim em razão da necessária aplicação das Leis 11/1985 e 9/1987 que, respectivamente, (1) reconhece expressamente que a negociação coletiva integra o conteúdo da expressão “liberdade sindical”, e (2) regulamenta a negociação coletiva entre sindicatos de servidores e Administração Pública, bem como que as determinações dos Acordos e Pactos vinculam as partes. Desta forma, em relação à subordinação da atuação estatal ao Princípio da Legalidade, esta exigência acaba por ser cumprida pela via indireta suscitada pelo Tribunal Constitucional.
Em relação à limitação imposta pela reserva legal, esta acabou por ser superada porque, as matérias de maior complexidade, geralmente aquelas reservadas à lei específica, são objeto de Acordos, cuja validade e eficácia estão sujeitas à aprovação final do órgão destinatário das questões acordadas, em que pese a participação dos sindicatos de trabalhadores nas formulações. Por fim, no que toca à questão orçamentária, esta também acabou por ser superada porque o Governo da Espanha não apresenta resistências em relação ao cumprimento dos Pactos e Acordos que, reconhecidamente, têm eficácia jurídica. Em razão disto, o Governo apresenta a proposta de lei orçamentária já com a reserva de verbas destinadas ao cumprimento das determinações da negociação coletiva.
3.2 Dos fundamentos que sustentam a possibilidade da realização de acordo coletivo entre servidores e o Poder Público a partir de uma leitura hermenêutica da Constituição Federal de 1988
Ao reconhecer o direito de livre associação sindical e o direito de greve aos servidores públicos, a carta de 1988 institucionalizou a garantia de que as condições de trabalho não são ditadas unilateralmente pelo empregador, mas que, pelo contrário, também serão fruto da composição de interesses dos dois pólos que compõe a relação de trabalho, em razão do reconhecimento da existência de conflitos em seu âmago. A este respeito, aliás, a doutrina reconhece que
“No Brasil, os governantes, antes mesmo da Carta Política e já na última fase da ditadura militar, vêm reiteradamente reconhecendo a legitimidade dos conflitos coletivos dos servidores com a Administração e sentando à mesa de negociações. É bem verdade que o fazem informalmente, sem renunciar em definitivo à faculdade de acionar o direito autoritário professado pelos juristas tradicionais e aplicado pelos tribunais conservadores, direito que preservam como uma reserva técnica para o exercício da repressão quando o confronto se agudiza ou se prolonga”.[82]
Contudo, mesmo diante de tal quadro, o STF negou a possibilidade dos servidores públicos participarem das determinações das suas condições de trabalho que a sua relação de trabalho quando do julgamento da ADIn 492-1/DF, nos termos expostos no capítulo segundo.
Ao analisar-se a postura adotada pelo Supremo Tribunal Federal, pode-se dizer que foi na manifestação deste Tribunal a respeito da matéria que se estabeleceu a atual diferença no tratamento deferido à questão, quando se compara a situação brasileira à espanhola.
Conforme descrito anteriormente, o cenário jurídico espanhol[83] era muito semelhante ao cenário brasileiro, no que tange às disposições constitucionais objetivas acerca da matéria. Tanto em um quanto em outro país, a Constituição vigente silencia sobre a negociação coletiva entre servidores e administração. No entanto, o divisor de águas veio justamente quando os Tribunais responsáveis pela guarda do texto constitucional foram provocados a manifestar-se sobre a questão. Ao apreciá-la, o Tribunal Constitucional Espanhol declarou, expressamente, que a negociação coletiva dos servidores públicos não poderia ser tratada mediante a aplicação análoga dos dispositivos que regulamentam a questão no setor privado.
Contudo, diferentemente do que fez o STF, o Tribunal Constitucional espanhol, no exercício da sua função de interpretar e resguardar a vigência do ordenamento constitucional, não declarou a ilegalidade dos processos negociais entre os pólos da relação de trabalho estatutária, não obstante tenha o mesmo, num primeiro momento, afastado tal possibilidade.
Nesta linha, o Tribunal Constitucional[84] foi, aos poucos, consolidando a sua interpretação acerca do conteúdo da expressão “liberdade sindical”, reconhecida pela Constituição Espanhola ao funcionalismo público, determinando que ela é ampla, e deve abranger todas as formas de composição coletiva de interesses. A partir disto, a comunidade jurídica reuniu esforços no sentido de legalizar os julgados do Tribunal Constitucional Espanhol e do movimento surgiu a Lei 11/85[85], que, ao definir o alcance da expressão “liberdade sindical”, incluiu a negociação coletiva dentre as atividades sindicais por ela abrangida. A partir deste reconhecimento, foi editada a Lei 9/1987[86] (com a redação que lhe conferiu a lei 7/1990[87]) que regulamentou a negociação coletiva no setor público. Além disso, nas ocasiões em que foi compelido a apreciar a validade e eficácia dos pactos e acordos firmados no setor público frente às imposições do Princípio da Legalidade, invocado como limitador da exigibilidade do que fora coletivamente convencionado, o Tribunal Constitucional Espanhol determinou que tal princípio era, justamente, um dos imperativos ao cumprimento do conteúdo das convenções coletivas, em razão dos textos legais que alçaram a negociação coletiva à condição de direito dos servidores públicos.
O Supremo Tribunal Federal, por outro lado, ao apreciar a questão, o fez de forma muito mais restrita e, pode-se dizer, até mesmo retrógrada, limitando-se a apreciá-la sob o enfoque dos impeditivos suscitados, sem considerar o significado do reconhecimento, na Constituição de 1988, do direito de sindicalização e greve para os servidores públicos.
Note-se que, quando da provocação do STF à apreciação da questão, esta se encontrava muito mais evoluída no Brasil do que se encontrava na Espanha no mesmo momento histórico, pois o ordenamento jurídico brasileiro já contava com uma previsão legal para a realização da negociação coletiva nos sindicatos dos servidores públicos, previsão esta, aliás, contida em texto legal[88] vigente a partir de dezembro de 1990, o que significa reconhecer que ele foi elaborado na esteira da Carta de 1988.
Diante desta realidade, o Supremo Tribunal Federal poderia, assim como fez o Tribunal Constitucional Espanhol, interpretar o conteúdo constitucional atinente à matéria a partir de uma perspectiva hermenêutica, reconhecendo a legalidade da negociação coletiva no setor público, vez que o art. 240 da lei 8.112/90 estava em conformidade com o modo-de-ser da Constituição, a qual fornece um conjunto de indícios formais que conduz a tal conclusão, dentre os quais pode-se citar os seus artigos 8º, inciso VI, 9º, 37, incisos VI e VII (direito de sindicalização e greve), a participação dos servidores públicos nas determinações das suas condições de trabalho. Tal reconhecimento poderia ter ocorrido mediante interpretação conforme, por exemplo.
Quanto aos impeditivos representados pelo Princípio da Legalidade, o Princípio da Reserva Legal, bem como pelas imposições e limitadores das leis orçamentárias, estes de fato haviam de ser considerados quando da apreciação da constitucionalidade do artigo 240 da Lei 8.112/90. No entanto, não poderiam estes ter ensejado o esvaziamento do conteúdo da liberdade sindical reconhecida aos servidores. Pelo contrário, tais impeditivos poderiam ter ensejado a remessa da regulamentação da questão à lei específica que tratasse de regular a negociação coletiva dos servidores a partir destas limitações. Poderiam, de outro lado, ter limitado as hipóteses de negociação às questões cujo conteúdo pudesse ser definido sem, em contrapartida, esbarrar nos obstáculos suscitados.
Isto se diz porque a moderna doutrina constitucional ensina que o ordenamento constitucional deve ser interpretado de forma a compatibilizar ao máximo os princípios que a Carta Maior veicula, de forma a evitar que a aplicação de algum princípio anule por completo a vigência de outro princípio constitucional.
No caso, a tese segundo a qual os Princípios da Reserva Legal e da Legalidade impedem a negociação coletiva, em face da impossibilidade de concessão de eventuais acréscimos remuneratórios aos servidores, é de se ressaltar que tais argumentos não subsistem a uma análise mais atenta pois, em primeiro lugar, nem todos os processos de negociação coletiva envolvem postulações de acréscimos remuneratórios, e, em segundo lugar, tais questões devem ser apreciadas a partir da tão em voga ponderação principiológica, de forma a compatibilizar com tais princípios a liberdade sindical dos servidores e a democratização do Estado, questões também elevadas à seara constitucional.
Aliás, no que tange ao espaço deferido ao Princípio da Reserva Legal no ordenamento jurídico, interessante a lição de Rogério Viola Coelho, eis que o mesmo denuncia que esta tendência de deslocamento do poder normativo do Poder Legislativo para o Poder Executivo (bem representada pelo princípio em questão) no que concerne às questões vinculadas aos servidores públicos, é prova do resquício do autoritarismo estatal.
Conforme o autor
“A tendência de deslocamento do poder normativo nesta matéria do Parlamento para o Chefe do Poder Executivo se expressa ao nível das Constituições, com particular intensidade nos países periféricos. As leis relativas a organização dos serviços públicos passam a ser de iniciativa exclusiva do Chefe do Poder executivo, o mesmo ocorrendo com aquelas que regulam as relações de trabalho com o Estado. Por outro lado, o Parlamento é cerceado na apresentação de emendas aos projetos oriundos do Executivo nestas matérias. Por último, a edição de medidas provisórias ganha uma dimensão inusitada.”[89]
3.2.1 Negociação coletiva entre servidores públicos regidos pelo regime da Consolidação das Leis do Trabalho e a Administração
A edição da lei 9.962/2000 – na esteira da Reforma Administrativa implementada pela Emenda Constitucional nº 19 – que institucionalizou a possibilidade de admissão de pessoal na forma de emprego público na esfera da União, mediante a contratação de pessoal pelo regime da Consolidação das Leis do Trabalho, exige uma breve análise acerca da possibilidade de negociação coletiva entre tal espécie de servidores e a Administração Pública.
A este respeito, o Poder Judiciário já declarou, em diversas ocasiões, que quando a Administração contrata pelo regime da Consolidação das Leis do Trabalho, a mesma despe-se das prerrogativas das quais goza como empregadora na qualidade de ente público. Contudo, conforme assevera Orlando Teixeira da Costa[90], quando a relação entre Estado e funcionário é regida por um estatuto, este fica compelido a seguir as regras, que são unilateralmente impostas pela Administração Pública. Sendo, de outro lado, de regime contratual tal relação, as partes podem, teoricamente, estipular livremente convenções a ela atinentes, contanto que as mesmas não contrariem as disposições de proteção ao trabalho. Contudo, apesar da existência de disposição legal neste sentido, o fato é que o contrato celebrado com a Administração representa “mero contrato de adesão”, não obstante sujeite-se o Estado-empregador, nesta condição, à tutela do trabalho como qualquer empresário.
A considerar este ponto de vista, nesta circunstância, o Poder Público estaria equiparado a um empregador comum e, deste modo, estaria obrigada à negociação coletiva.
Contudo, parece-nos que tal raciocínio não se presta a, por si só, desbancar os impeditivos suscitados pela doutrina e pela jurisprudência, eis que os mesmo foram, basicamente, extraídos da natureza jurídica da Administração e aos princípios que regem sua atuação, de modo que os mesmos remanescem mesmo quando a Administração contrata pelo regime celetista[91], eis que, nesta condição, ela não se desvincula da subordinação ao Princípio da Legalidade, da Reserva Legal, dos limites orçamentários, dentre outros[92].
Neste sentido, Remédios Roqueta Buj[93], ao analisar a questão do direito dos servidores à negociação coletiva, ressalta que
“la doctrina há advertido que la principal dificuldad para el reconocimiento de la negociación colectiva em el ámbito funcionarial no reside tanto em los funcionarios públicos cuanto em la própria Administración. Los factores que han obstaculizado la identificación del derecho de la negociación colectiva de los funcionarios con anterioridad a la Constituición y que, en buena medida, aún lo condicionan, derivan de su insersión en una estructura organizativa, que cuenta con un empleador – la Administración Pública – sometido a unos principios que impregnan la relación de empleo públicos con sus funcionarios.”
Diferente, contudo, é o entendimento esposado por Luiz de Pinho Pedreira da Silva, para quem, tratando-se de empregados público, deve prevalecer a natureza do vínculo laboral, o qual atrai as disposições constitucionais que lhe são atinentes, e que reconhecem aos trabalhadores regidos pela CLT o direito à negociação coletiva, inscrito no artigo 7º incisos III, XII e XXVI[94].
3.2.2 Objetos de negociação coletiva cujo conteúdo não esbarra nos impeditivos argüidos
Conforme brevemente referido nas linhas acima, a declaração de inconstitucionalidade da previsão legal para a realização de negociação coletiva no setor público acabou por inviabilizar, também, o exercício deste direito em esferas que não implicavam nos óbices suscitados pelo Supremo Tribunal Federal. É o caso, por exemplo, das questões relativas às condições de trabalho que não têm natureza econômica e, portanto, repercussão financeira que encontrem obstáculos na lei de diretrizes orçamentárias, no Princípio da Legalidade ou mesmo na Lei de Responsabilidade Fiscal, tão em voga nos dias atuais.
Pelo contrário, a negociação coletiva pode tratar sobre temas que se restrinjam ao caráter social da relação de trabalho[95], como é o caso, por exemplo, das especificações das condições do trabalho concernentes à distribuição da carga horária[96], qualificação de pessoal e definição de planos de ingresso e ascensão na carreira, dentre outros[97], assim como daquelas cuja determinação ocorre mediante atos normativos infralegais (portarias, provimentos, ordens de serviço, regulamentos) muito utilizados no serviço público.
Em livro publicado com o intuito de orientar a comunidade do trabalho acerca da relevância dos processos de negociação coletiva, a Organização Mundial do Trabalho refere que, para melhorar a qualidade de vida dos trabalhadores, esse meio de composição coletiva de interesses pode versar sobre inúmeros temas, a bem de contribuir na qualidade da saúde física e mental dos trabalhadores.
Há, ainda, o exemplo de países como Estados Unidos, Japão e Peru, nos quais a negociação coletiva é reconhecida aos servidores públicos, sendo vedados, contudo, processos de composição coletiva de interesses que envolvam salários[98].
Aliás, mesmo considerando as razões elencadas no item anterior, não há obstáculo jurídico que impeça que um sindicato de servidores negocie com a Administração o envio de um projeto de lei ao competente órgão legislativo[99], ou mesmo a reserva de verba orçamentária no exercício posterior para viabilizar a concessão de reajuste.
Neste caso, não se ignora, seria estabelecida uma espécie de negociação coletiva tripartite, pois o Poder Legislativo fatalmente comporia a relação através da apreciação do projeto de lei proposto. A vantagem desta hipótese seria o pressuposto de atendimento do interesse público nas determinações das negociações coletivas, vez que o legislador, nesta condição, atua em nome da coletividade que ele representa.
3.2.3. Imposições da dinâmica social: a composição coletiva de interesses no quotidiano da relação entre funcionalismo e Administração Pública
A estes apontamentos, agregue-se, ainda, o fato de que, não obstante os argumentos jurídicos que negam não só a possibilidade, como também a existência da negociação coletiva no setor público, não se pode ignorar que a dinâmica social vem impondo tal prática.[100] A concretização desta possibilidade vem se verificando constantemente. Exemplo recente verificou-se quando os servidores das Instituições Federais de Ensino conquistaram uma série de reivindicações através de processo de negociação informal.
No ano de 2001, depois de um longo período de greve, durante o qual a Federação dos Sindicatos de Trabalhadores das Universidades Brasileiras (FASUBRA) permaneceram negociando, informalmente, o atendimento das reivindicações do movimento, e frente à imperiosa necessidade de garantir a continuidade dos serviços públicos prestados pela categoria, o Governo Federal cedeu e concordou em deferir a boa parte das pretensões da categoria, as quais tinham caráter eminentemente financeiro.
Mesmo inserido num contexto jurídico que nega a possibilidade de composição coletiva de interesses no serviço público, o governo federal, após longos períodos de negociação, acabou por encontrar uma solução, contemporizando as expectativas dos servidores e os limitadores legais à sua atuação: atendeu à parte das reivindicações dos servidores mediante o comprometimento, perante estes – devidamente formalizado – de um projeto de lei de iniciativa do agente competente (no caso, o Presidente da República) ao Congresso Nacional, contendo todas as cláusulas acordadas na mesa de negociações composta no período da greve. Deste projeto, surgiu a Lei nº 10.302, de 31 de outubro de 2001, que dispôs acerca dos mais variados temas, como vencimentos (art. 1º), carreira (art. 2º) e progressão funcional (art. 4º). Este processo representa a prática de uma solução já sugerida por José Maria Alencar[101] para contornar as dificuldades decorrentes da iniciativa exclusiva do Chefe do Executivo para propor leis[102] que disponham acerca da “criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica ou aumento de sua remuneração”.
Este fato, corriqueiro, aliás – vez que esta é fórmula usualmente utilizada para pôr termo aos movimentos grevistas exitosos – comprova que a negociação coletiva no setor público é possível e que os impeditivos legais são artificiais e destoam da realidade. De acordo com Rogério Viola Coelho, os impeditivos sustentados pela doutrina acabam revelando-se impotentes diante da realidade, a qual se impõe às normas e acaba por resolver as demandas sociais “à margem e até mesmo contra o direito professado pelos juristas”.[103]
É claro que, nestas circunstâncias, o Administrador se reserva a possibilidade de descumprir o que foi legitimamente acordado, considerando-se que, caso a Administração não cumpra a sua parte, os sindicatos não contarão com a tutela judicial, vez que o Poder Judiciário brasileiro já declarou que a negociação coletiva entre servidores públicos e Administração é inconstitucional.
Outro inconveniente desta praxe é o fato de que, ante a ausência de institucionalização da negociação coletiva no serviço público, a Administração Pública, ao atender as exigências de determinada categoria, o faz num contexto de inexistência de um programa ou planejamento relativo ao futuro do funcionalismo, e na urgência decorrente do necessário restabelecimento dos serviços públicos suspensos em razão dos movimentos grevistas que impõem o processo de negociação. Ante a inexistência de um programa que trate de considerar as reivindicações totalidade dos servidores – cujos interesses são usualmente defendidos por sindicatos distintos -, compatibilizando-as, a Administração trata dos interesses destes de forma compartimentalizada, o que importa no fato de que, não raro, atendidas as exigências da base de um determinado sindicato, as outras ficam a descoberto, pois não foram consideradas nos processos de negociação das categorias que alcançaram a fase negocial anteriormente.
É de registrar-se, contudo, que, ao contrário do voluntarismo e espontaneidade sob os quais são operadas as negociações coletivas na esfera federal, a questão tem merecido tratamento institucional em alguns estados e municípios. A este respeito pode-se analisar o recente exemplo do processo de negociação coletiva que norteou a instituição do Sistema de Assistência à Saúde para os Servidores Estaduais de Pernambuco (SASSEPE) [104], nos anos de 2000 e 2001. O objeto da negociação é a reforma da assistência à saúde e previdência dos servidores públicos daquele Estado. Conforme a descrição realizada por Eliane Cruz[105] tais negociações, que posteriormente ficaram restritas à questão da assistência à saúde dos servidores, foram realizadas pelos sindicatos de servidores, de um lado, e pela Secretaria Estadual da Administração, de outro. A questão da legitimidade das mesas de negociação foi contemplada através da participação, além de representantes do movimento sindical e de representantes do estado de Pernambuco, de representantes do Ministério Público, da Assembléia Legislativa e do Tribunal de Contas do Estado.
Exitosa a negociação, as deliberações naquela oportunidade acordadas foram encaminhadas à Assembléia Legislativa na forma de projeto de lei. Aprovado, os termos do acordo, institucionalizados na forma de lei estadual, prevalecem e são aplicados até os dias atuais.
Importante ressaltar, outrossim, que as dificuldades oriundas das limitações financeiras foram operadas a partir de dados e estudos oficiais, realizados pela Fundação Getúlio Vargas, que cuidaram de dimensionar os gastos necessários. A partir do domínio da realidade financeira, bem como das implicações orçamentárias do objeto do acordo, as partes chegaram a um consenso que não implicou no déficit dos cofres públicos.
Além da experiência narrada, também serve de exemplo a Mesa Estadual de Negociação do SUS[106], no Estado do Rio de Janeiro, instituída e instalada em 1999, que tem por objeto a instituição de uma política de recursos humanos para a Secretaria Estadual de Saúde daquele Estado, a fim de atender às crescentes demandas no setor. O funcionamento da Mesa de Negociações está pautado num regimento interno constituído no decurso do processo de negociação e devidamente registrado em cartório. Dentre as conquistas do processo de negociação destacam-se (1) a contratação de pessoal mediante a homologação de concurso anteriormente realizado e a abertura de novos concursos, (2) manutenção do emprego de servidores que já trabalhavam nos hospitais da rede pública estadual, (3) criação de gratificações que cuidaram melhorar os salários dos servidores, (4) elaboração de plano de carreira, cargos e salários para os servidores da área, (5) instituição de Mesa de Negociação Coletiva para os servidores da rede pública Municipal, (6) o afastamento da prestação de serviços através da terceirização.
No que tange à questão orçamentária, a experiência do Estado do Rio de Janeiro pouco tem de novidade. A Secretaria Estadual da Saúde é apenas informada do limite do orçamento de que dispõe. Dentro desta realidade, a verba orçamentária é distribuída de acordo com os projetos elaborados que não recebem verba específica ou complementar, portanto. Importante ressaltar, outrossim, que, quando necessário, as deliberações acordadas são transformadas em resoluções da Secretaria Estadual da Saúde e devidamente publicadas na imprensa oficial.
Tais experiências denotam o caráter eminentemente social das negociações coletivas, entendimento este que se coaduna com o posicionamento defendido por Manuel Correa Carrasco, para quem
“En efecto, y a diferencia de la perspectiva normativista, para el sociologismo, el reconocimento de la relevância jurídica de la negociación colectiva, sin embargo, no dependeria en ningún caso de que el Estado efectuase una declaración explícita al respecto: la juridicidad sería inmanente al fenómeno social una vez considerado, siendo consecuencia de los equilibrios de poder que surjan de forma autónoma entre los grupos sociales enfrentados (trabajadores y empresarios). Por lo tanto, no sería preciso ningún tipo de apoderamiento o delegación ex profeso de poder normativo a los sujetos negociadores, para que éstos puedan crear normas vinculantes entre ellos”.[107]
Diante de tal cenário, que contraria e supera os obstáculos suscitados pelo STF quando do julgamento da questão, não há como se negar que a negociação coletiva é um fenômeno social, que se impõe ao ordenamento jurídico.
Considerações finais
Conforme visto, os impeditivos usualmente suscitados pela doutrina, segundo os quais não existe a possibilidade de realizar-se acordo entre a Administração e os servidores públicos, podem ser afastados mediante a construção de contrapontos específicos. Nem todos os acordos coletivos têm natureza econômica, e, portanto, repercussão financeira que encontre obstáculos na lei de diretrizes orçamentárias. Ademais, a relação de trabalho é composta dos mais diversos aspectos, sendo que muitos deles são regulamentados por normas infralegais, como Portarias, Decretos, Regulamentos, entre outros. De outro lado, a atuação da Administração deve ser guiada pelo interesse público, e não pela indisponibilidade dos interesses coletivos, o que, em tese, ultrapassa o óbice segundo o qual a Administração não pode acordar com os sindicatos de servidores porque não dispõe dos interesses sobre os quais acordou. Por fim, mesmo considerando os impeditivos de caráter financeiro, e, especificamente, os limitadores impostos pela sujeição da Administração ao Princípio da Legalidade, nada obsta que, em razão do processo de negociação coletiva com os sindicatos, a Administração, através do agente competente, se obrigue ao envio de um projeto de lei ao correspondente órgão legislativo, e também à reserva de verba orçamentária no exercício posterior para viabilizar a concessão de reajuste, prática esta que, aliás, vem sendo freqüentemente adotada ao final de movimentos grevistas, como condição do retorno dos servidores às suas atividades laborais.
Apesar do Supremo Tribunal Federal negar a possibilidade em questão, através da declaração de inconstitucionalidade do dispositivo legal que continha tal previsão, o fato é que os sindicatos de servidores e a Administração Pública negociam quotidianamente, desde as questões mais simples, até as mais complexas, em razão das imposições da dinâmica social. À toda evidência, diante da celebração fática de acordos coletivos entre servidores e Poder Público, o que resta é a regulamentação de tais atos, a fim de evitar, como sói acontecer, que os trabalhadores fiquem à mercê da boa vontade dos administradores para verem cumprido o que foi anteriormente acordado.
Deste modo, os impeditivos tradicionalmente argüidos pela doutrina merecem uma revisão, à luz da prática adotada e dos argumentos supra referidos, a fim de que se verifique a possibilidade dos acordos coletivos entre servidores e Administração serem formalmente constituídos de efeitos jurídicos, que garantam a sua efetividade.
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