Sumário: 1. Introdução 2. Considerações Preambulares sobre as Imunidades Tributárias. 3. Norma Jurídica, Hermenêutica e Elemento Teleológico. 4. A Norma Tributária de Imunidade e o Elemento Teleológico. 5. Conclusões. 6. Bibliografia
Resumo: O presente artigo objetiva analisar a norma jurídica que institui imunidade tributária, enfatizando a sua estrutura lógica, a sua linguagem prescritiva, a sua relação com o exercício do poder de tributar, pelos entes federativos, e o processo teleológico de interpretação, fornecido pela Hermenêutica Jurídica. Concluirá que, na construção da norma jurídica de imunidade, o intérprete sempre terá de levar em conta a origem e o escopo da norma, atingindo um campo de aplicabilidade consentâneo com os valores que a Constituição Federal pretendeu proteger e às liberdades e direitos fundamentais que ela almejou densificar.
Palavras-chave: Norma Jurídica. Imunidade Tributária. Interpretação Teleológica
Abstract: This work aims to examine the norms that establish tax immunity, emphasizing its logical structure, its prescriptive language, its relationship with the exercise of the power to tax, by the federative entities, and the process of teleological interpretation, provided by the Juridical Hermeneutics. Concludes that in the construction of the tax immunity norm, the interpreter must always take account of the origin and scope of such norm, reaching a field of application consistent with the values that the Federal Constitution aimed to protect and with the freedoms and fundamental rights it aimed to densify.
Key-words: Norm. Tax Immunity. Teleological Interpretation
1. Introdução
Como consectário da forma federativa do Estado e da descentralização político-administrativa que a caracteriza, a Constituição Federal atribui às pessoas políticas competência para instituir tributos, em abstrato, mediante lei. Vive-se, com isso, num Estado Tributário, onde a principal fonte de receitas pública é a tributação. Esta, de uma só vez, satisfaz o requisito da descentralização do poder político nas três esferas do federalismo tridimensional pátrio, bem como fornece meios materiais às unidades autônomas para a prestação de seus próprios serviços públicos.
Se, de um lado, é desejável que o indivíduo não enxergue o tributo como um sacrifício, e sim como um contributo para a vida humana em sociedade, de outro, também é preciso mirar a tributação não como uma mera relação de poder, de violência legítima a liberdades e ao patrimônio do indivíduo, mas como genuína relação jurídica cuidadosamente tutelada pela Lei Maior.
Destarte, o poder de tributar sofre limitações, máxime pelos princípios e normas de imunidades que compõem o subsistema constitucional tributário.
Interessa, para este trabalho, analisar as imunidades tributárias, matéria que reside em solo científico fértil, sem se distanciar da sua condição de norma jurídica. Passará, nas linhas que seguem, a observar a estrutura lógica da norma tributária de imunidade, a sua linguagem prescritiva, a sua relação com o exercício da competência tributária e o indispensável processo interpretativo franqueado pela Hermenêutica Jurídica para a correta construção de seu sentido, fundado no elemento teleológico.
2. Considerações Preambulares sobre as Imunidades Tributárias
A atividade financeira estatal é o conjunto de atos de obtenção, gestão e aplicação de recursos públicos necessários ao atendimento das finalidades do Estado. No Brasil, como sói ocorrer nas econômicas capitalistas, a atividade econômica é exercida primordialmente pelos particulares, de sorte que o Estado atua como agente econômico apenas excepcionalmente, ou seja, nas hipóteses expressamente previstas na Constituição e quando necessário a imperativos de segurança nacional e de relevante interesse coletivo, nos termos da lei (art. 173, caput, CF/88).
Em virtude dessa regra de liberdade de iniciativa na ordem econômica, e de distanciamento do Estado da condição de monopolista, a tributação apresenta-se como o principal instrumento de obtenção de recursos públicos. Consoante leciona Hugo de Brito Machado (2007, p. 56), o tributo, por isso, é a mais importante arma contra a estatização da economia. Isso porque, sobre representar a principal fonte de recursos públicos, é uma garantia de que o Estado não atuará como agente econômico, a não ser em caráter excepcional e dentro dos limites impostos pela Lei Maior. Por mais paradoxal que pareça, conclui o renomado autor, o tributo é indispensável à existência e à manutenção das economias capitalistas.
Esse poder de tributar, fundamentado na soberania estatal [1], porém, não se revela absoluto e ilimitado. Na Federação Brasileira, por imposição da autonomia político-administrativa das unidades federativas, o poder político de tributar encontra-se desenhado, delimitado pela Constituição Federal, e distribuído entre União, Estados-membros, Distrito Federal e Municípios. O poder de tributar outorgado aos entes que compõem o pacto federativo, expressamente delimitado e desenhado no texto magno, entendido como a competência legiferante de instituir tributos em abstrato, mediante lei em sentido estrito, recebe o nome de competência tributária.
Competência tributária, destarte, tem sede constitucional, o que levou CARRAZZA a nominar a Lei Maior de “Carta das Competências” (2001, p. 414). Ao definir referida competência, a Constituição Federal estabeleceu os arquétipos genéricos das exações, isto é, verdadeiros vetores que orientam e condicionam a validade do exercício do poder de tributar.
Verdadeiramente, não pode haver a criação de um só tributo sem amparo em norma magna de competência, tampouco fora dos limites desta. Isso significa que cada norma de competência tributária encerra um “poder” e, ao mesmo tempo, um “não-poder”. Explica-se: a Carta Magna, por exemplo, em seu artigo 153, inciso III, ao autorizar a União a instituir imposto sobre a materialidade “auferir renda”, vedou que, a esse título, fosse criado um imposto sobre algo que não se amoldasse, perfeitamente, no conceito constitucional de “renda” (princípio ontológico de direito público, segundo o qual o que não estiver permitido estará proibido).
No plexo das normas que compõem o atual subsistema constitucional tributário, há diversos preceitos que dão contornos ao poder de tributar. Como anota Ives Gandra da Silva Martins (2007, p. 251), pela primeira vez, uma Constituição brasileira dedicou seção inteira de um capítulo (arts. 150 a 152, CF/88) ao estabelecimento de direitos e garantias do contribuinte, verdadeiras limitações ao poder de tributar. É justamente nesse terreno constitucional, de limitação de poder, que residem as normas de imunidade tributária. [2]
Roberto Wagner Lima Nogueira, citando Ricardo Lobo Torres, conceitua as imunidades como “limitações ao poder de tributar, fundadas na liberdade absoluta (direitos de liberdade), tornando intocáveis pelo tributo certas pessoas e coisas, se originando nos direitos humanos e absolutos anteriores ao pacto constitucional.” (2005, p.102)
Já na precisa definição de Paulo de Barros Carvalho (2007, p. 203), as imunidades tributárias são normas negativas de competência tributária. Segundo o renomado autor, as imunidades são “a classe finita e imediatamente determinável de normas jurídicas, contidas no texto da Constituição Federal, e que estabelecem, de modo expresso, a incompetência das pessoas políticas de direito constitucional interno para expedir regras instituidoras de tributos que alcancem situações específicas e suficientemente caracterizadas.”.
Importa, para o presente trabalho, a abordagem do fundamento teleológico dessa classe finita de normas constitucionais que estabelecem a incompetência das pessoas políticas para instituir tributos.
3. Norma Jurídica, Hermenêutica e Elemento Teleológico
É cediça a lição doutrinária segundo a qual as normas jurídicas, enquanto elementos que compõem o sistema do Direito Positivo, não se confundem com as leis ou com os textos legais.
A norma jurídica é fruto ou produto de processos de interpretação; é resultado final de processos de construção de sentido. O intérprete do Direito posto, deparando-se com o texto legal (suporte físico), nele identifica enunciados em linguagem prescritiva (artigos, parágrafos, incisos e alíneas). A partir de tais enunciados constrói sentido em uma estrutura lógica hipotético-condicional – a norma jurídica –, que terá em seu antecessor a descrição de um evento hipotético que, se vier a ocorrer no mundo fenomênico, deverá desencadear, automática e infalivelmente, uma determinada conseqüência jurídica traduzida, sempre, num comando expresso por uma conduta humana vedada, obrigatória ou permitida (Lei Deôntica do Quarto Excluído).
Nessa linha, o Professor Paulo de Barros Carvalho (2007, p. 8) assevera que “a norma jurídica é a significação que obtemos a partir da leitura dos textos do direito positivo. (…) é exatamente o juízo (ou pensamento) que a leitura do texto provoca em nosso espírito”.
Assim, o conceito de norma jurídica está umbilicalmente ligado à atividade humana de interpretação da linguagem prescritiva do Direito posto. Nesse contexto, o inolvidável Carlos Maximiliano (1988, p. 106) ensina que, ao contrário do que tradicionalmente se defendia, a interpretação não se decompõe ou fraciona, pois é uma só. Com efeito, a interpretação é uma, e exercita-se por vários processos que se complementam [3], com o emprego de elementos diversos de exegese, como o gramatical ou filológico, o sistemático, o teleológico ou finalístico, o lógico propriamente dito, o sociológico, dentre outros.
Exatamente por isso, Alípio Silveira (1985, p. 77) esclarece que “é uma verdade incontestável, na ciência jurídica, que a interpretação das leis é uma síntese de vários processos afins, sendo por isso inteiramente infundada qualquer contraposição entre os vários elementos ou processos de interpretação.”
Por outro lado, acatando-se a lição do grande Maximiliano (1998, p. 5), alerta-se que não basta conhecer os diversos processos de interpretação para construir as normas jurídicas a partir dos enunciados prescritivos. É necessário reuni-los e, “num todo harmônico, oferecê-los ao estudo, em um encadeamento lógico” (1998, p. 6). À Hermenêutica Jurídica cabe a função de sistematizar os processos de interpretação do Direito. Hermenêutica, pois, não se confunde com interpretação. Nas palavras de Maximiliano, “Esta é aplicação daquela; a primeira descobre e fixa os princípios que regem a segunda. A Hermenêutica é a teoria científica da arte de interpretar” (1988, p. 1).
Nessa atividade de construção de sentido, o intérprete tem por primeiro esforço conhecer a forma externa do texto legal, as acepções dos vocábulos empregados, a letra do dispositivo. Não poderá, entretanto, dar por concluído o processo interpretativo desde logo, fundando-o num único elemento de certeza, o gramatical, pois é o menos seguro. É preciso ir além, empregar outros processos de interpretação e, assim, adentrar um campo mais rico de aplicações práticas. Não se trata, como advertiu François Gény (Silveira, 1985, p. 77), de uma infantil escolha entre a letra da lei e o espírito, pois são inseparáveis: “o objetivo do texto é justamente revelar o espírito”.
Entre os vários processos hermenêuticos, interessa para este trabalho o teleológico, que visa atingir o verdadeiro espírito da lei pela compreensão dos seus fins. Não se trata de indagar a vontade do legislador, mas, numa expressão metafórica, indagar “a vontade da lei”. Anota Maximiliano (1988, p. 151): “Considera-se o Direito como uma ciência primariamente normativa ou finalística; por isso mesmo a sua interpretação há de ser, na essência, teleológica. O hermeneuta sempre terá em vista o fim da lei, o resultado que a mesma precisa atingir em sua atuação prática. A norma enfeixa um conjunto de providências, protetoras, julgadas necessárias para satisfazer a certas exigências econômicas e sociais; será interpretada de modo que melhor corresponda àquela finalidade e assegure plenamente a tutela de interesse para a qual foi regida”.
Demonstrou Rudolph von Jhering, segundo leciona Mário Franzen de Lima (LIMA, 1955, p. 33) que “as regras jurídicas e as soluções que elas consagram são essencialmente determinadas pelo fim prático e pelo fim social das instituições”. Assim, consoante o processo teleológico de interpretação, toda prescrição legal tem um escopo a realizar, devendo o intérprete indagar a origem do dispositivo (as circunstâncias que contribuíram para o seu surgimento – occasio legis) e as exigências do bem comum que ela se propõe a satisfazer (a finalidade do dispositivo – ratio juris).
Para auxiliar o intérprete na tarefa de identificar a occasio legis e a ratio juris, Alípio Silveira (1985, p. 245) faz importante diferenciação entre o “porquê” e o “para quê” da lei: “Se a lei é a ordenação da razão, resulta evidente que a razão da lei, o porquê e o para quê, o seu escopo, a sua finalidade, são elementos essenciais ao seu bom entendimento.”. Para o citado autor, o “porquê” relaciona-se com a razão de origem do preceito, ou seja, os múltiplos elementos sociais que lhe deram causa. Já o “para quê” relaciona-se com a razão de escopo, isto é, a finalidade do dispositivo.
Todas essas premissas foram até aqui fixadas para, no tópico seguinte, passar à construção das normas tributárias de imunidade e à análise do seu elemento teleológico.
4. As Normas Tributárias de Imunidade e o Elemento Teleológico
O caminho trilhado até aqui nos permite concluir que as imunidades são normas jurídicas com sede constitucional que estabelecem a incompetência das pessoas políticas para instituir tributos em situações específicas. Tratam-se, em outras palavras, como visto, de normas negativas de competência tributária.
Curiosamente, não há no subsistema constitucional tributário uma só menção à palavra “imunidade” ou a vocábulos derivados, como “imune”. Caprichosamente, o constituinte preferiu utilizar expressões equivalentes, como “é vedado instituir impostos sobre…”; “não incide tal tributo sobre…”; “independentemente do pagamento de tal tributo…”. Prevendo imunidades, a Lei Maior utilizou até mesmo o vocábulo “isento(s)” (art. 153, §4º, inc. II, e art. 195, §7º, CF/88), numa demonstração convincente de atecnia.
Assim, o primeiro esforço do intérprete do texto magno será o de identificar, com redobrada atenção, na imprecisa linguagem prescritiva constitucional, os diversos enunciados que versam sobre imunidade tributária. Eles encontram-se espalhados por vasto texto magno, desde o Título II (“Dos Direitos e Garantias Fundamentais”) até o ADCT (art. 85, que enunciava imunidade de CPMF). Com efeito, eis os enunciados constitucionais que veiculam imunidades tributárias (ALEXANDRE, 2007, p. 168): art. 5º, inc. XXXIV (taxas em geral); art. 149, §2º, inc. I (contribuições sociais e de intervenção no domínio econômico); art. 150, inc. VI, e §2º (impostos em geral); art. 153, §3º, inc. III (IPI); art. 153, §4º, inc. II (ITR); art. 153, §5º c/c ADCT, art. 74, §2º (tributos em geral, salvo a extinta CPMF e o IOF); art. 155, §2º, inc. X (ICMS); art. 155, §3º (impostos em geral, exceto II, IE e ICMS); ART. 156, §2º, inc. I (ITBI); art. 184, §5º (impostos em geral); art. 195, inc. II (contribuição previdenciária); art. 195, §7º (contribuições para o financiamento da seguridade social); e art. 85 do ADCT (extinta CPMF).
Ao analisar um dos enunciados prescritivos constitucionais acima citados, o intérprete empregará os processos ou ferramentas de interpretação fornecidas pela Hermenêutica Jurídica para, assim, “construir” uma norma de imunidade.
Tal como ocorre com qualquer norma jurídica abstrata, será a norma da imunidade tributária a significação obtida a partir do texto impresso, formatada mentalmente numa estrutura lógica hipotético-condicional, a qual abrigará, no antecedente normativo (ou descritor), a descrição de um evento abstrato relacionado ao exercício da competência tributária por certa pessoa política, e, no conseqüente normativo (ou prescritor), um mandamento dirigido à mesma pessoa política, traduzido na combinação dos modais deônticos “vedado” (V) e “obrigatório” (O), ou seja, “vedado obrigar” (VO). [4]
Cognomina-se de “hipotético-condicional” citada estrutura lógica porque ela descreverá um evento abstrato relacionado ao exercício da competência tributária, o qual, se e quando ocorrer, fará surgir, de modo infalível e automaticamente, por imputação deôntica, uma conseqüência jurídica que encerrará um regramento da conduta do ente político (no caso, uma proibição). Ou seja, se A ocorrer, então “deve-ser” B; onde “deve-ser” é o conectivo deôntico que une a descrição factual (hipótese) ao regramento da conduta (conseqüente), como ensina, com brilhantismo habitual, Paulo de Barros Carvalho (2007, p. 375).
Toma-se, como exemplo, o enunciado constante no artigo 150, inciso VI, alínea “a”, da Constituição Federal, segundo o qual “É vedado à União, Estados, Distrito Federal e Municípios instituir impostos sobre o patrimônio, renda e serviços, uns dos outros”. Trata-se da imunidade recíproca ou ontológica, cuja norma pode ser assim esquematizada: se “instituir, a pessoa política, um imposto” (antecedente ou descritor), então, deve-ser “vedado fazê-lo sobre o patrimônio, renda e serviços de outra pessoa política” (conseqüente ou prescritor).
No exemplo dado, quando qualquer ente político realizar a materialidade da hipótese de incidência da norma de imunidade, qual seja, quando “instituir um imposto”, surgirá, por imputação deôntica, um regramento de conduta com uma inequívoca proibição. Ao condicionar o exercício da competência tributária, a norma de imunidade estabelece regra a ser seguida pela pessoa política quando da edição de uma outra unidade deôntica, ou seja, de uma norma jurídica que cria um imposto. Por isso, a doutrina é precisa ao classificar a norma da imunidade como “norma de norma”, ou seja, “norma de estrutura” ou “de organização” (CARVALHO, 2007, p. 154).
Porém, nesse processo de construção da norma de imunidade (e de qualquer outra norma jurídica, como visto), o intérprete não poderá se pautar unicamente pelo elemento gramatical dos enunciados prescritivos. Como dito alhures, deverá ir além, empregando, complementarmente, outros processos de interpretação que lhe são colocados à disposição pela Hermenêutica Jurídica, para, assim, adentrar um campo mais rico de significações.
Especial relevo assume, nesse contexto, o elemento teleológico na construção de normas jurídicas.
Importando os ensinamentos de Maximiliano para o estudo do tema (1988, p. 151), é correto dizer que a norma de imunidade tributária sempre enfeixa um conjunto de providências protetoras, julgadas necessárias para satisfazer certas exigências constitucionais. Terá o intérprete da imunidade, portanto, de interpretá-la de maneira que melhor corresponder àquela finalidade e “assegurar plenamente a tutela de interesse para a qual foi regida”. Nessa tarefa, deve o intérprete indagar as circunstâncias que contribuíram para o surgimento do enunciado (occasio legis) e a sua finalidade constitucional (ratio juris), eis que toda norma de imunidade tributária tem um escopo magno a atingir.
Ora, se a imunidade pertence a uma classe finita de normas constitucionais que estabelecem a incompetência tributária das pessoas políticas, em circunstâncias específicas e expressamente ditadas pelo constituinte, é intuitivo concluir que, para o seu bom entendimento, o intérprete deve levar em conta o seu “porquê” e o seu “para quê”.
Assim sendo, o elemento teleológico deverá render grande influência no processo de construção de sentido, servindo como vetor interpretativo na identificação dos elementos informativos que compõem a norma imunizatória.
Toma-se como exemplo, novamente, a imunidade ontológica preconizada no artigo 150, inciso VI, alínea “a”, da Lei Maior. Caso o intérprete se atenha, exclusivamente, à literalidade do preceptivo (elemento gramatical ou filológico), e já se dê por satisfeito, chegará à precipitada conclusão de que o comando proibitivo imunizatório veda que os entes políticos instituam somente os impostos que tenham por materialidade a propriedade, a renda e os serviços prestados.
Porém, o exegeta deve ir além. Ao se indagar o “porquê” do preceptivo (Occasio legis), levará o intérprete em conta que a norma é conseqüência da forma de Estado adotada no Brasil: o federalismo, que tem por características inafastáveis a ausência de hierarquia entre as pessoas políticas que compõem o pacto federativo indissolúvel (simetria), bem como a descentralização político-administrativa estatuída pela Constituição Federal. Quanto ao “para quê” (Ratio juris), a imunidade recíproca visa proteger justamente esse pacto federativo, pela salvaguarda da autonomia das pessoas políticas. Caso fossem compelidas a entregar quantia em dinheiro, a título de impostos, uns para outros, os tais entes certamente amargariam a diminuição drástica de suas receitas públicas, com prejuízo de sua autonomia político-administrativa, ferindo o princípio da continuidade dos serviços públicos.
Logo, rompendo a mera literalidade do dispositivo magno, e levando-se em conta que o escopo da imunidade ontológica é a proteção da autonomia político-administrativa dos entes federativos, e conseqüente continuidade dos serviços públicos prestados nas diversas esferas de descentralização do poder, chegará o intérprete à conclusão inarredável de que a tal regra imunizatória abrange todo e qualquer imposto, porque todo e qualquer imposto, em última análise, compromete parcela de um patrimônio, de uma renda ou de um serviço. Esta é a leitura teleológica que se deve empreender na construção da norma. Assim o fez o Supremo Tribunal Federal, ao reconhecer a imunidade recíproca sobre os valores investidos pelos entes federados, e renda correspondente, quanto à cobrança de IOF e IR (Ag Rg 174.808; RE 196.415), bem como ao reconhecer a imunidade recíproca extensiva a certas empresas estatais (ECT e CAERD) que prestam serviços públicos de prestação obrigatória e exclusiva do Estado.
Da mesma forma, o intérprete da imunidade tributária religiosa, preconizada no artigo 150, inciso VI, alínea “b”, da Carta Magna, ao se deparar com o enunciado normativo “vedado instituir impostos sobre templos de qualquer culto”, não poderá se contentar com o elemento gramatical. Caso contrário, construirá norma cujo comando somente vedará a instituição de impostos que incidam sobre o templo como edificação física, benfeitoria, reduzindo a proteção constitucional ao IPTU e ao ITR, caso o “templo físico” esteja localizado, respectivamente, dentro ou fora do perímetro urbano do Município.
Porém, ao indagar a occasio legis ou o “porquê”, o intérprete constatará, no próprio subsistema normativo constitucional, que a República Federativa do Brasil tem por fundamento o “pluralismo político” (art. 1º, inc. V); tem por objetivo fundamental “construir uma sociedade livre, justa e solidária” (art. 3º, inc. I); não tolera discriminações fundadas em religião (art. 3º, inc. IV); estabelece como direito fundamental individual a liberdade de consciência e de crença, assegurando o livre exercício dos cultos religiosos, garantindo, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias (art. 5º, inc. VI); veda a privação de direitos por motivo de crença religiosa (art. 5º, inc. VIII); além de estabelecer a laicidade do Estado (art. 19). Quanto ao “para quê” (ratio juris), a imunidade tributária religiosa tem o escopo de evitar que o poder de tributar seja exercido como poder de subjugar, impedindo que o Estado se utilize da tributação como meio de criar embaraços ao funcionamento das entidades religiosas (ALEXANDRE, 2007, p. 156).
Com o emprego do elemento teleológico, o intérprete da norma de imunidade tributária religiosa atingirá o seu escopo, ultrapassando a literalidade da linguagem prescritiva, e assim, ao término do processo de construção de sentido, chegará à conclusão de que a imunidade abrange todo o patrimônio, todas as rendas e todos os servidos das entidades religiosas, desde que relacionados com suas finalidades essenciais. Isso, justamente para se evitar a submissão destas ao Estado e o embaraço de suas atividades. Outra não foi a conclusão, por teleologia, a que chegou o Sodalício Supremo (RE 325. 822).
No caso da imunidade tributária dos partidos políticos, sindicatos de trabalhadores e entidades educacionais e assistenciais sem fins lucrativos (art. 150, inc. VI, alínea “c”, CF/88), os escopos normativos residem, respectivamente, na proteção ao pluralismo político e à liberdade partidária (arts. 1º, inc. V; e 17); à liberdade de associação profissional ou sindical (art. 8º); ao direito à educação e à cultura (art. 205); e ao direito de amparo à família, maternidade, infância, adolescência, velhice, dentre outros elementos que norteiam a assistência social (art. 203).
Nesse aspecto, foi justamente o emprego do elemento teleológico que levou o Supremo Tribunal Federal a editar o seguinte enunciado de Súmula no 724: “Ainda que alugado a terceiros, permanece imune ao IPTU o imóvel pertencente a qualquer das entidades referidas pelo art. 150, VI, c, da Constituição, desde que o valor dos aluguéis seja aplicado nas atividades essenciais de tais entidades”. Vê-se que a “regra do reinvestimento” consagrada pelo Supremo visa justamente atingir o escopo da norma, que é favorecer a proteção dos direitos individuais, sociais e políticos, retro elencados.
Encerrando a análise das principais imunidades tributárias, assim consideras aquelas disciplinadas no artigo 150, inciso VI, da Lei Maior, chega-se à designada imunidade tributária cultural, segundo a qual é vedado às pessoas políticas instituir impostos sobre ‘livros, jornais, periódicos e o papel destinado a sua impressão.”
Mais uma vez, a teleologia descortina ao intérprete do enunciado constitucional a occasio Legis ou origem do instituto, o seu “porquê”, que no caso é a consagração, pela Constituição, do acesso à educação e à cultura (art. 205), bem assim da liberdade de expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença (art. 5º, inc. IX). A ratio juris, escopo da imunidade ou seu “para quê”, nesse sentir, só pode ser, sob as óticas do autor e do leitor, a salvaguarda de tais direitos fundamentais, barateando o acesso à informação, à cultura e à educação, demais de impedir que o poder de tributar seja utilizado tiranamente como via alternativa para a censura.
Exatamente por isso, o Supremo Tribunal Federal, em mais um julgamento que prestigiou o elemento teleológico das imunidades tributárias, sedimentou a orientação segundo a qual “a imunidade tributária sobre livros, jornais, periódicos e o papel destinado à sua impressão tem por escopo evitar embaraços ao exercício da liberdade de expressão intelectual, artística, científica e de comunicação, bem como facilitar o acesso da população à cultura, à informação e à educação.” Ao adotar tal premissa, a Corte Suprema asseverou não ser dado ao intérprete do preceptivo magno indagar a “qualidade cultural” ou o “valor pedagógico” de uma determinada publicação, para o fim de reconhecer ou afastar a aplicação da norma de imunidade, já que a Lei Maior não fez ressalvas quanto ao valor artístico ou didático. Do contrário, estar-se-ia a pavimentar a trilha da censura, ferindo de morte justamente a Ratio juris do enunciado.
No mais, está claro, portanto, que toda e qualquer imunidade “objetiva claramente impedir, por motivos que o constituinte considera de especial relevo, que os poderes tributantes, pressionados por seus ‘deficits’ orçamentários, invadam áreas que, no interesse da sociedade, devam ser preservadas” (MARTINS, 2007, p. 294). Daí por que Regina Helena Costa (2001, p. 117) assevera que a interpretação das normas de imunidade tributária deve ser executada de sorte a efetivar o princípio ou liberdade por ela densificado e, portanto, de molde a conferir máxima eficácia à liberdade por ela protegida.
Não é exagerado, portanto, concluir que as imunidades tributárias são verdadeiras cláusulas pétreas. Não são um fim em si mesmas. Ao contrário, encerram sempre um fundamento teleológico nobre, de servirem como instrumentos para a proteção e densificação de certos direitos e garantias individuais, e também de outros valores que a Carta Magna considerou serem insusceptíveis de abolição ou redução por emenda (art. 60, §4º, CF). Outra não foi a conclusão amplamente majoritária a que chegaram diversos doutrinadores de escol, no XXX Simpósio Nacional de Direito Tributário, dedicado ao tema da segurança jurídica, que teve como conferencista inaugural José Carlos Moreira Alves, conforme se verifica na bem elaborada obra “Limitações ao Poder Impositivo e Segurança Jurídica”, coordenada pelo eminente Professor Ives Gandra da Silva Martins (São Paulo: RT, 2005).
5. Conclusões
A competência tributária é um poder político, fundado na soberania estatal e outorgado aos entes que compõem o pacto federativo, para instituir tributos em abstrato, mediante unidades deônticas inaugurais. Esse poder de tributar, devidamente delineado, desenhado pelo constituinte, sofre severas limitações no texto constitucional, que na verdade lhe dão contornos, máxime pelos princípios e normas de imunidades que compõem o subsistema constitucional tributário.
As imunidades são uma classe finita e bem delineada de normas jurídicas previstas no texto constitucional, que estabelecem a incompetência das pessoas políticas para instituir determinados tributos em determinadas situações. Por consistirem em normas jurídicas, não se confundem com os enunciados transcritos no texto prescritivo do Direito posto, eis que são frutos ou produtos da atividade humana de produção de sentido, de interpretação por meio de diferentes processos ou ferramentas sistematizadas pela Hermenêutica Jurídica.
A norma imunizatória, assim com qualquer outra norma jurídica abstrata, como bem leciona Paulo de Barros Carvalho, deve ser construída pelo exegeta numa estrutura lógica hipotético-condicional, cujo antecedente descreverá um evento abstrato relacionado ao exercício da competência tributária por um ente político. Estará o antecedente ou descritor ligado, pelo conectivo “dever-ser”, a um conseqüente normativo que prescreverá, por imputação deôntica, uma conduta à mesma pessoa política, consubstanciada na combinação dos modais deônticos “vedado” e “obrigado” (VO), ou seja, “vedado obrigar”. Imunidade, portanto, encerra uma proibição às pessoas políticas; é “norma negativa de competência”.
Nesse processo de construção de sentido, o intérprete não poderá se ater unicamente ao elemento gramatical dos preceptivos constitucionais que versam sobre imunidades. Deverá ir além, e assim ultrapassar a letra fria da linguagem do Direito posto para atingir o seu espírito, o seu escopo, alcançando um solo mais rico de aplicabilidades, em consonância com a harmonia do sistema jurídico. Nesse sentir, toda norma de imunidade deve ser construída levando-se em conta o seu elemento teleológico, indagando-se o seu “porquê” (occasio legis) e o seu “para quê” (ratio juris), como prelecionam Carlos Maximiliano e Alípio Silveira.
O elemento teleológico das imunidades revela a sua nobre finalidade precípua, qual seja, servir como instrumento para a salvaguarda de direitos e garantias individuais, e outros valores que a Constituição Federal expressamente consagrou como insusceptíveis de abolição ou redução por meio de emenda constitucional. E, por densificarem e conferirem maior efetividade a tais valores magnos, o escopo das imunidades tributárias as eleva à condição de cláusulas pétreas, como reconhece festejada doutrina.
Mestrando em Direito Negocial pela Universidade Estadual de Londrina. Especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET). Professor de Direito Tributário da Universidade Norte do Paraná (Unopar). Procurador da Fazenda Nacional.
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