A obrigação alimentar decorrente da paternidade socioafetiva baseada na posse do estado de filho

Resumo: O presente artigo científico tem como objetivo o estudo do reconhecimento, no ordenamento jurídico brasileiro, da paternidade socioafetiva baseada na posse do estado de filho e suas implicações na esfera da obrigação de prestar alimentos. Para tanto, foi feito um apanhado histórico acerca da evolução da família, da filiação e da paternidade no ordenamento jurídico brasileiro, desde os tempos das Ordenações Filipinas até o Projeto de Lei nº. 2.285/07, até se chegar aos atuais conceitos desses institutos. Também detalhou-se as diversas formas de filiação existentes na ordem jurídica brasileira atual, dando-se uma maior ênfase à filiação socioafetiva baseada na posse do estado de filho, com a apresentação dos elementos materiais e jurídicos que possibilitam o reconhecimento desse tipo de relação na ordem jurídica pátria. Foi realizada, ainda, uma breve explanação a respeito da obrigação alimentar no Código Civil de 2002, juntamente com a análise de decisões jurisprudenciais que confirmam a  possibilidade da prestação de alimentos por pais socioafetivos, quando presentes os requisitos constituidores da posse do estado de filho.[1]


Palavras-chave: Família. Filiação. Paternidade. Posse do Estado de Filho. Alimentos.


Abstract: This research paper aims to study the recognition in the Brazilian legal system, the affective paternity based on state ownership of a child and its influence on the obligation to pay maintenance. For this purpose, will be a historical overview on the evolution of the family, filiation and paternity in the Brazilian legal system, since the time of the Filipinas to the Draft Law. 2.285/07, until reaching the current concepts of these institutes. Also detailed are the various forms of membership exist in the current Brazilian law, giving a greater emphasis on affiliation socioaffective based on state ownership of the child, with the presentation of material and allow the legal recognition of such a relationship in order Legal homeland. Mention is also a brief explanation regarding the maintenance of the Civil Code of 2002, along with analysis of court decisions that confirm the possibility of providing food for parents social-affective, when present requirements are constituted by the state ownership of children.


Keywords: Family. Membership. Fatherhood. Son of state ownership. Food.


Sumário: 1. a evolução da família, da filiação e da paternidade no ordenamento jurídico brasileiro: das ordenações filipinas ao projeto de lei nº. 2.285/2007. 2. o atual conceito de família, de filiação e de paternidade. 3. os diversos tipos de filiação existentes no ordenamento jurídico brasileiro. 4. a posse do estado de filho. 5. a possibilidade da prestação de alimentos por pais socioafetivos, quando presentes os requisitos de validade da posse do estado de filho. 5.1. Uma breve exposição acerca da obrigação alimentar no Código Civil de 2002. 5.2. Análise de decisões jurisprudenciais acerca da possibilidade jurídica da prestação de alimentos por pais socioafetivos, quando presentes os requisitos de validade caracterizadores da posse do estado de filho.


1 INTRODUÇÃO


O presente Artigo Científico tem como finalidade analisar os aspectos da paternidade socioafetiva baseada na posse do estado de filho, apresentando a possibilidade jurídica do reconhecimento desse tipo de relação no ordenamento jurídico brasileiro, bem como os efeitos decorrentes desse reconhecimento, no que diz respeito à obrigação de os pais sociologicamente reconhecidos prestarem alimentos aos filhos afetivos, quando presente a posse do estado.


Para tanto, o trabalho será organizado sob a forma de tópicos, onde será feito, primeiramente, um apanhado histórico acerca da evolução da família, da filiação e da paternidade no ordenamento jurídico brasileiro, desde os tempos das Ordenações Filipinas até o Projeto de Lei nº. 2.285/07, mais conhecido como Estatuto das Famílias, até se chegar aos atuais conceitos desses institutos.


Em um segundo momento, serão detalhadas as diversas formas de filiação existentes no ordenamento jurídico brasileiro, quais sejam, a matrimonial, a extramatrimonial, a adotiva, a jurídica, a biológica e a socioafetiva.


Posteriormente, será dada uma maior ênfase à filiação socioafetiva baseada na posse do estado de filho, demonstrando os seus requisitos de validade – nome, trato e fama – com a apresentação dos pressupostos que possibilitam o reconhecimento desse tipo de relação na ordem jurídica pátria, por meio de análises ao art. 1.593 do Código Civil, à Constituição Federal, aos Enunciados ditados pelo Conselho da Justiça Federal e ao posicionamento do Superior Tribunal de Justiça (STJ) sobre o assunto.


Será feita, ainda, uma breve explanação a respeito da obrigação alimentar no Código Civil brasileiro, bem como sua aplicação no campo da paternidade socioafetiva. A fim de corroborar o entendimento exposto ao longo trabalho, por fim, serão analisadas decisões jurisprudenciais acerca da possibilidade da prestação de alimentos por pais socioafetivos, quando presentes os requisitos constituidores da posse do estado de filho.


O cerne do trabalho será, portanto, o questionamento acerca da possibilidade do reconhecimento da paternidade socioafetiva baseada na posse do estado de filho, para efeitos de prestação de alimentos. Como a legislação brasileira não normatiza, expressamente, nada a esse respeito, pretende-se verificar a validade deste problema procurando-se saber se os Tribunais brasileiros concedem pensão alimentícia a filhos de pais socioafetivos.


Destarte, por não existir, ainda, no ordenamento jurídico brasileiro, previsão legal expressa para a prestação de alimentos por pais socioafetivos, quando presentes os requisitos ensejadores da posse do estado de filho, a principal fonte de pesquisa deste trabalho será os textos jurisprudenciais dos Tribunais brasileiros. Serão, também, utilizados como recursos metodológicos, doutrina, revistas jurídicas e artigos relacionados ao tema. Quanto à amostra da pesquisa, esta se restringe à área cível, mais precisamente do Direito de Família, nos julgados proferidos no território nacional, que dizem respeito ao citado tema. Desse montante, serão escolhidos acórdãos de diversas regiões do país, de forma aleatória. 


Finalmente, a análise desse tema mostra-se relevante pelo fato de proporcionar maiores esclarecimentos aos filhos detentores da posse do estado, a fim de que saibam que podem buscar o Poder Judiciário para obter uma verba alimentar dos pais afetivos. Além do mais, diante de um novo conceito de família que passa a existir nos dias de hoje, com consideráveis mudanças de valores, a paternidade fruto do afeto deve ser apreciada como a matéria prima fundamental nas relações de filiação, devendo, portanto, ser protegida em todos os seus aspectos.


2 A EVOLUÇÃO DA FAMÍLIA, DA FILIAÇÃO E DA PATERNIDADE NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO: das Ordenações Filipinas ao Projeto de Lei nº. 2.285/2007


A família, primeira forma de organização social entre indivíduos, sempre passou e continua a passar por constantes modificações, desde os tempos mais antigos até os dias atuais. Tanto é assim, que a ilustre Diniz (1993, p. 5) traduz, com clareza, o caráter dinâmico inerente ao Direito de Família, preceituando que ele, “contingente como a vida, está longe de ser estático, o que traria, indubitavelmente, como resultado um imobilismo que contrariaria a evolução da civilização ou da sociedade”.


E, para compreender melhor o atual conceito de família, de filiação e de paternidade, mister que se faça uma exposição histórica acerca da evolução desses institutos ao longo dos tempos, no ordenamento jurídico brasileiro, atentando-se, principalmente, às mudanças ocorridas nas relações entre pais e filhos. 


Ainda no direito brasileiro pré-codificado, durante a vigência das Ordenações Filipinas, em meados do século XV, os filhos ilegítimos, que eram aqueles havidos fora do casamento, provindos de um casal impedido de se casar ou que não queria se casar, eram divididos em dois grupos: os naturais ou biológicos e os espúrios. Os primeiros “eram os que nasciam de pais não casados um com o outro, não havendo, todavia, um impedimento que os levasse para a classe dos espúrios” (VELOSO, 1997, p. 8). Já a segunda classe era formada pelos filhos provindos do chamado ‘coito danado e punível’, eis que havia, entre homem e mulher, ao tempo da concepção, alguma das seguintes restrições, enumeradas por Veloso (1997, p. 8):


“I – impedimento de parentesco em grau proibido, denominando-se os filhos incestuosos; II – impedimento resultante de investidura de ordens sacras maiores ou de entrada em ordem religiosa aprovada, classificando-se os filhos como sacrílegos; III – impedimento de vínculo matrimonial, chamando-se os filhos de adulterinos.”


As Ordenações faziam, também, distinção entre os filhos naturais de cavaleiros e escudeiros (nobres) e de peões (plebeus), sendo que os filhos naturais destes eram herdeiros dos pais, enquanto que os filhos naturais daqueles não possuíam direito hereditário.


Os filhos espúrios, por sua vez, podiam pleitear a investigação de sua paternidade, porém, essa medida só se destinava a permitir, em seu favor, o recebimento de alimentos, “pois a eles eram vedados quaisquer direitos sucessórios, com relação a seus pais” (BOSCARO, 2002, p. 61).


Após a proclamação da independência, veio a Constituição Imperial de 1824, consagrando o princípio da igualdade de todos perante a lei. Contudo, as dúvidas ainda pairavam sobre os doutrinadores da época, com relação à subsistência da distinção entre nobres e peões, para fins sucessórios, já que as Ordenações ainda permaneciam em vigor.


Essa contradição só chegou ao fim com a promulgação da Lei nº. 463/1847, que “estatuiu que o reconhecimento do pai feito por escritura pública antes de seu casamento era indispensável para que qualquer filho natural pudesse ter parte na herança paterna, concorrendo com os filhos legítimos do genitor” (VELOSO, 1997, p. 10).


Esta lei, contudo, não tratou dos filhos espúrios, sendo que os ilegítimos sucessíveis eram, apenas, os naturais. Ainda que provada a filiação de um espúrio, ele era tido como um estranho ao pai, de quem só podia cobrar alimentos, não possuindo direitos hereditários, embora tivessem a chance de ser nomeados herdeiros por testamento.


Posteriormente, com a entrada em vigor do Código Civil de 1916, embasado na idéia de que só o casamento poderia constituir a família legítima, o reconhecimento de filhos adulterinos e incestuosos tornou-se impossível.


De acordo com Fujita (2009, p. 20), o CC/16:


“[…] classificava a filiação em quatro espécies: a legítima, a legitimada, a ilegítima e a adotiva. A filiação legítima era a concebida na constância do casamento […], valendo, para tanto, a presunção pater is est, […], relativamente aos filhos nascidos 180 dias, pelo menos, depois de estabelecida a convivência conjugal; e em relação aos nascidos dentro dos 300 dias subseqüentes à dissolução da sociedade conjugal, por morte, desquite ou anulação. Eram considerados legítimos os filhos, nascidos antes dos 180 dias de início da convivência conjugal, se o marido, antes de casar, tinha ciência da gravidez da mulher; ou se assistiu, pessoalmente, ou por procurador, a lavratura do termo de nascimento do filho, sem contestar a paternidade.”


A prova da filiação legítima, por sua vez, de acordo com os ensinamentos de Fujita (2009, p. 20), se dava:


“[…] pela certidão de nascimento, inscrito no Registro Civil […], ao passo que na falta, ou defeito do termo de nascimento, podia provar-se a filiação legítima, por qualquer modo admissível em direito: (a) quando houvesse começo de prova por escrito, proveniente dos pais, conjunta ou separadamente; (b) quando existissem veementes presunções resultantes de fatos já certos.”


Contudo (BOSCARO, 2002, p.65),


“[…] apenas ao filho era conferida legitimidade para o ajuizamento de ação de filiação; porém, esta passaria a seus herdeiros, se ele morresse menor ou incapaz e, se iniciada por ele, poderiam os herdeiros dar-lhe prosseguimento, a menos que ele dela desistisse ou a ação fosse julgada extinta.”


A filiação legitimada, por sua vez, vinha disposta no art. 353 do antigo Código Civil e era aquela resultante do casamento dos pais, estando o filho concebido, ou depois de havido o filho. Nos termos do art. 352, os filhos legitimados eram, em tudo, equiparados aos legítimos.


Quanto à filiação ilegítima, dividida em duas classes, a dos filhos incestuosos ou adulterinos e a dos filhos naturais, era proibido o reconhecimento, voluntário ou forçado, dos primeiros, permitindo-se o reconhecimento dos ilegítimos naturais.


A investigação de paternidade estava acessível aos filhos ilegítimos naturais, porém, somente se (FUJITA, 2009, p. 20-21):


“[…] ao tempo da concepção a mãe estivesse concubinada com o pretendido pai; ou se a concepção do filho reclamante coincidisse com o rapto da mãe pelo suposto pai, ou suas relações sexuais com ela; ou se existisse escrito daquele a quem se atribuía a paternidade, reconhecendo-a expressamente.”


Contudo, condicionou, em seu artigo 359, a residência do filho ilegítimo, reconhecido por um dos cônjuges, no lar conjugal, eis que dependia do consentimento do outro cônjuge. Aos filhos incestuosos ou adulterinos, o Código de 1916 os impediu de concorrer à sucessão hereditária e, inclusive, aos alimentos.


Nas palavras de Boscaro (2002, p. 65),


“[…] sob o pretexto de uma suposta preservação da paz familiar (que se entendia que seria abalada com o público reconhecimento de que um adultério ou mesmo de que relações incestuosas teriam sido praticados por um de seus membros), não se reconheciam aos filhos extramatrimoniais direitos elementares à sobrevivência, como alimentos, relegando-os à execração pública, em virtude de um comportamento então tido como altamente reprovável, praticado por seus pais, ao gerá-los e que se convencionou manter em sigilo.”


A última espécie de filiação, qual seja, a adotiva, era disposta nos arts. 368 a 378 do antigo Código e se constituía mediante escritura pública. Ponto interessante nesse tipo de filiação era que “os direitos e deveres decorrentes do parentesco biológico não se extinguiam com a adoção, excepcionando-se o pátrio poder, que era transferido do pai natural para o adotivo” (FUJITA, 2009, p. 21).


Com a análise de todos esses dispositivos, o que pode se observar é que o CC/16 refletia normas que buscavam a preservação da família fundada no matrimônio, tentando resguardá-la de ameaças externas. É certo que muitos desses dispositivos foram reproduzidos pelo atual Código Civil. Contudo, o antigo Diploma não era o meio legal mais moderno para lidar com o Direito de Família, haja vista que era disciplinado por princípios que não mais vigoravam.


Em virtude disso, novas legislações foram sendo confeccionadas, a fim se acompanhar a evolução da sociedade. Uma delas foi a Carta Constitucional de 1937, que mitigou o tratamento dado aos filhos extramatrimoniais, trazendo, por exemplo, a “equiparação entre os filhos legítimos e os naturais, facilitando a estes o reconhecimento e estendendo-lhes os direitos e deveres que em relação aos filhos legítimos incumbiam aos pais” (BOSCARO, 2002, p. 66).


Posteriormente, foi editado o Decreto-lei nº. 4.737/42, preconizando que os filhos havidos pelo cônjuge fora do matrimônio poderiam ser reconhecidos, voluntária ou judicialmente, depois do desquite, estendendo-se a regra, contudo, apenas aos filhos adulterinos.


Em 1949, entrou em vigor a Lei nº. 883, fixando que o reconhecimento de filhos adulterinos poderia se dar após a dissolução da sociedade conjugal, por qualquer modo pelo qual esta viesse a ocorrer, e não só pelo desquite, como previa o Decreto nº. 4.737/42. Contudo, a referida lei conferiu “ao filho havido fora do matrimônio uma situação inferior à dos filhos legítimos” (VELOSO, 1997, p. 46), na medida em que o filho reconhecido teria direito, a título de amparo social, somente à metade da herança que viesse a receber o filho legítimo ou o legitimado.


Determinou, ainda, em seu art. 4º, que o filho ilegítimo poderia acionar o pai, em segredo de justiça, para obter uma pensão alimentícia, mesmo ainda estando vigente o casamento de seu genitor. Nas palavras de Veloso (1997, p. 48):


“O que se condicionou à prévia dissolução da sociedade conjugal foi o reconhecimento, voluntário ou coativo. Mas, para comer, vestir, estudar, enfim, sobreviver com mínimo de dignidade, não teria mais o filho adulterino que esperar até que fosse dissolvida a sociedade conjugal de seu genitor.”


O que se pode extrair do citado art. 4º, é que a lei se referiu ao filho ilegítimo, ou seja, permitiu tanto aos filhos adulterinos quanto aos filhos incestuosos a possibilidade de promoverem a ação de alimentos.


Em 1962, foi editada a Lei nº. 4.121, estabelecendo o Estatuto da Mulher Casada. Com relação aos interesses dos filhos, esta lei, nas palavras de Fujita (2009, p. 23), promoveu os seguintes ensinamentos:


“(a) No interesse comum do casal e dos filhos, o marido era considerado o chefe da sociedade conjugal, com a colaboração da mulher […]; (b) a mulher casada podia exercer o direito que lhe competisse sobre as pessoas e os bens dos filhos do leito anterior […]; (c) sendo ambos os cônjuges considerados culpados, os filhos menores ficariam com a mãe, salvo se o juiz verificasse que de tal solução pudesse advir prejuízo de ordem moral para eles […]; […]; (e) durante o casamento, o pátrio poder competia aos pais, exercendo-o o marido com a colaboração da mulher, sendo certo que, na falta ou impedimento de um deles, o outro passaria a exercê-lo com exclusividade […]. Em hipótese de divergência entre os pais quanto ao exercício do pátrio poder, deveria prevalecer a decisão do pai, ressalvado à mãe o direito de recorrer ao juiz para solução da divergência […]; (f) a mãe que contraísse novas núpcias não perdia, quanto aos filhos do leito anterior, os direitos ao pátrio poder, exercendo-os sem qualquer interferência do marido […].”


Em termos de evolução legislativa, sequencialmente, tem-se a Lei n. 6.515/77, também chamada, hoje, de antiga Lei do Divórcio. Esta lei “não se limitou a regular o divórcio, mas proporcionou grandes avanços, introduzindo novas regras no direito de família em nosso País” (VELOSO, 1997, p. 76). Nela, o direito de herança foi reconhecido em igualdade de condições, qualquer que fosse a natureza da filiação, ficando, a partir daí, eliminada a discriminação quanto à herança paterna, em relação aos filhos legítimos, naturais e adulterinos.


Bom, até aqui, vigorava a proibição do reconhecimento de filhos adulterinos e incestuosos, nos termos do Código Civil de 1916, admitindo-se, contudo, o reconhecimento dos filhos adulterinos, voluntária ou judicialmente, após a dissolução da sociedade conjugal, qualquer que fosse o motivo, de acordo com a Lei nº 883/49. Na constância do casamento, entretanto, o filho havido fora do matrimônio poderia ser reconhecido em testamento cerrado, regra esta introduzida pela Lei do Divórcio, “que, portanto, só teria eficácia após a morte do declarante, quando, afinal, já estaria dissolvida a sociedade conjugal” (VELOSO, 1997, p. 84).


A Lei nº. 7.250/84 veio, então, acrescentar mais um caso de reconhecimento de filho adulterino, ainda durante a vigência da sociedade conjugal, estabelecendo a condição de que o cônjuge já deveria estar separado de fato há mais de cinco anos contínuos.


Contudo, “apesar de a legislação ordinária ser bem extensa, as maiores mudanças ocorridas com a família e sua importância social se deram com a vigência da Carta Magna de 1998” (BLIKSTEIN, 2008, p. 15). Toda a concepção de família, adotada até agora, foi, então, totalmente repensada e modificada.


Nos seus arts. 226 e 227, a Constituição Federal de 1988 trouxe regras compatíveis com a realidade da sociedade brasileira, escancarando-se de vez a interferência do Estado nas relações familiares. Dentre as principais mudanças introduzidas pela CF/88 no Direito de Família, destacam-se o reconhecimento da união estável entre homem e mulher e a igualdade entre eles no matrimônio; a isonomia de direitos e deveres entre filhos provenientes ou não do casamento ou por adoção, sendo proibido qualquer tipo de discriminação relativa à filiação, dispondo, também, acerca do dever dos pais de assistir, criar e educar os filhos menores, bem como o dever dos filhos maiores de amparar e ajudar os pais na velhice, enfermidade ou carência, além do reconhecimento da família monoparental, formada por um dos genitores mais a sua prole.


Essas mudanças vieram a calhar, pois “já não era mais possível, no final do século XX, conceber-se enganosamente, como única, a família formada por meio das núpcias, e a sua respectiva prole, tratada como ‘legítima’ ” (GUIMARÃES, 2001, p. 16). Confirmando-se esta nova tendência, a Lei nº. 7.841/89 veio para revogar o dispositivo do Código Civil de 1916 que proibia que os filhos adulterinos e incestuosos demandassem o seu reconhecimento.


Já o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), promulgado em 1990, invocou, acertadamente, a proteção integral à criança e ao adolescente.


De acordo com seu art. 26, ficou estabelecido que os filhos havidos fora do casamento poderiam ser reconhecidos pelos pais, de forma conjunta ou separada, qualquer que fosse a origem da filiação, no próprio termo de nascimento, por testamento, por escritura pública ou por outro documento público.


O Estatuto também estabeleceu o reconhecimento do estado de filho como um direito imprescritível, indisponível e personalíssimo, podendo ser exercitado, sem qualquer restrição, contra os pais ou seus herdeiros, observado, claro, o segredo de justiça.


Com relação ao filho adotado, o ECA conferiu-lhe os mesmos direitos e deveres atinentes a um filho legítimo, inclusive com relação aos direitos sucessórios, fazendo-o desligar-se de qualquer vínculo com os pais e parentes biológicos, salvo quanto aos impedimentos matrimoniais.


Já no ano de 2002, eis que surge, após mais de 25 (vinte e cinco) anos de tramitação no Congresso Nacional, o Novo Código Civil Brasileiro, trazendo mais mudanças no âmbito do Direito de Família, as quais, em grande parte, já se encontravam dispostas na CF/88.


A sua primeira grande alteração vem, na opinião de Blikstein (2008, p. 19), estampada no art. 1.511, onde é declarado “explicitamente a igualdade entre homem e mulher na relação matrimonial”.


O atual Código reproduz a norma constitucional que garante a isonomia de direitos e qualificações entre todos os filhos, sejam eles advindos ou não de uma relação de matrimônio, ou por adoção. Ele, também, substituiu as expressões “Do reconhecimento dos filhos ilegítimos” e “filho ilegítimo” por “Do reconhecimento dos filhos” e “filho havido fora do casamento”, respectivamente.


Dispõe, ainda, que o filho reconhecido, enquanto for menor, ficará sob a guarda, e não mais sob o “poder”, como era no CC/16, de quem o reconheceu “e, se ambos os genitores o reconheceram e não houver acordo entre eles, sob a de quem melhor atender a seus interesses” (BOSCARO, 2002, p. 165), e não mais sob a do pai, como dispunha o antigo Código.


Não obstante, outras importantes alterações no âmbito familiar foram feitas pelo CC/02, as quais serão explanadas ao longo do trabalho.


Contudo, apesar dos grandes avanços que o novo Código trouxe, muitos doutrinadores afirmam que ele já nasceu velho, eis que traz disposições ultrapassadas em seu texto, como a repetição da fórmula pater is est, utilizada pelo Código Civil de 1916, bem como se omite diante de algumas situações, como exemplifica Fujita (2009, p. 29):


“Todavia, embora reconhecida a união estável como entidade familiar, quer pela Constituição Federal de 1988 […], quer pelo Código Civil […], este, ao formular as hipóteses de reprodução assistida, somente o faz no plano da constância do casamento, deixando de fazê-lo no ambiente da união estável, dando a falsa ideia de que os filhos não poderiam ser gerados por essas técnicas senão dentro do matrimônio, o que não é verdade.”


Enfim, para finalizar a análise acerca da evolução da família, da filiação e da paternidade no Brasil, cumpre mencionar o Projeto de Lei nº. 2.285/2007, mais conhecido como Estatuto das Famílias, ainda em trâmite, que propõe o desmembramento do Código Civil, na parte relacionada ao Direito de Família, com a formação de um estatuto autônomo.


Nas palavras do próprio autor do projeto, o Deputado Sérgio Barradas Carneiro (2001, p.1-2), o Estatuto das Famílias traduzirá:


“[…] os valores que estão consagrados nos princípios emergentes dos arts. 226 a 230 da Constituição Federal. A denominação utilizada, “Estatuto das Famílias”, contempla melhor a opção constitucional de proteção das variadas entidades familiares. No passado, apenas a família constituída pelo casamento – portanto única – era objeto do direito de família. Optou-se por uma linguagem mais acessível à pessoa comum do povo, destinatária maior dessas normas, evitando-se termos excessivamente técnicos ou em desuso. Assim, por exemplo, em vez de dizer “idade núbil” alude-se a casamento da pessoa relativamente incapaz.”


No Estatuto, dentre as varias considerações que faz, atribui a mesma dignidade e a mesma proteção a todas as entidades familiares, sem hierarquia entre elas. Com relação à filiação, esta é tratada de maneira igual, não importando se sua origem é biológica ou socioafetiva, procurando-se (CARNEIRO, 2007, p. 3-4):


“[…] distinguir com clareza, para se evitar as contradições jurisprudenciais reinantes nesta matéria, o que é dever de registro do nascimento, reconhecimento voluntário do filho, investigação judicial de paternidade ou maternidade e impugnação da paternidade e da maternidade ou da filiação. Nenhuma impugnação deve prevalecer quando se constatar a existência de posse de estado da filiação, consolidada na convivência familiar duradoura. A presunção da paternidade e da maternidade, antes fundada na necessidade de se apurar a legitimidade do filho, passou a ser radicada na convivência dos pais durante a concepção, sejam eles casados ou não.”


3 O ATUAL CONCEITO DE FAMÍLIA, DE FILIAÇÃO E DE PATERNIDADE


Diante das considerações feitas acerca da evolução desses três institutos ao longo do ordenamento jurídico brasileiro, pode-se, agora, então, delimitar o conceito de cada um deles.


Com a introdução de uma nova ordem constitucional, em 1988, houve uma ampliação no conceito de entidade familiar, eis que foi consagrada, como já visto anteriormente, uma especial proteção não só a família constituída pelo matrimônio, mas, também, à união estável entre homem e mulher e à família monoparental.


A família, a cada dia que passa, vem se afastando mais e mais da ideia de casamento. Como bem explicita Dias ([2008], p. 1),


“[…] o divórcio e a possibilidade de novo casamento, o reconhecimento da existência de outras entidades familiares, bem como a liberdade de reconhecer filhos havidos fora do casamento ensejaram verdadeira transformação no próprio conceito de entidade familiar.”


A legislação ordinária não chega a definir o conceito legal de família, existindo, contudo, uma passagem do Estatuto da Criança e do Adolescente que se limita a identificar a família natural como sendo aquela formada pelos pais, ou qualquer um deles, e seus descendentes.


Hodiernamente, contudo, a família deve ser compreendida como uma entidade pluralizada, não vinculada mais ao protótipo de casamento, sexo e procriação. Assim, ante indefinição legal do que vem a ser a família nos dias atuais, Dias colaciona seus principais requisitos constituidores ([2008], p. 2):


“Induvidosamente são o envolvimento emocional, o sentimento de amor, que fundem as almas e confundem patrimônios, fazendo gerar responsabilidades e comprometimentos mútuos, que revelam a presença de uma família. Assim, não se pode deixar de reconhecer que é o afeto que enlaça e define os mais diversos arranjos familiares.”


Diniz, por sua vez, ao analisar o tema, estabelece três acepções para o termo “família”. A primeira, denominada de amplíssima, “abrange todos os indivíduos ligados pelo vínculo de consaguinidade e afinidade, incluindo estranhos” (2010, p. 16); a segunda acepção é chamada de lata, restringindo-se, apenas “aos cônjuges e seus filhos, parentes da linha reta ou colateral, afins ou naturais” (2010, p. 16) e a terceira é designada de restrita, compreendendo, “unicamente, os cônjuges ou conviventes e a prole […] ou qualquer dos pais e prole” (2010, p. 16).


Partindo-se dessa idéia de família, pode-se traçar, então, o conceito de filiação, termo originário do latim filiatio, que significa a descendência de pais a filhos.


A filiação, assim como a família, também passou, e continua a passar, por significativas transformações. Blikstein (2008, p. 45) afirma que ela “é a relação existente entre o filho e seus pais, independente da condição de concepção”.


Contudo, o melhor conceito encontrado para este instituto foi o dado por Fujita (2009, p. 10), que, no seu entender, afirma que ela é


“[…] o vínculo que se estabelece entre pais e filhos, decorrente da fecundação natural ou da técnica de reprodução assistida homóloga (sêmen do marido ou do companheiro; óvulo da mulher ou da companheira) ou heteróloga (sêmen de outro homem, porém como o consentimento do esposo ou companheiro; ou o óvulo de outra mulher, com a anuência da esposa ou companheira), assim como em virtude da adoção ou de uma relação socioafetiva resultante da posse de estado de filho.”


Corroborando com este entendimento, Diniz (2010, p. 454) preceitua que:


“Filiação é o vínculo existente entre pais e filhos; vem a ser a relação de parentesco consangüíneo em linha reta de primeiro grau entre uma pessoa e aqueles que lhe deram a vida, podendo, ainda, […], ser uma relação socioafetiva entre pai adotivo e institucional e filho adotado ou advindo de inseminação artificial heteróloga.”


Na medida em que há essa ampliação no conceito de filiação, o Direito também expande “o conceito de paternidade, que passou a compreender o parentesco psicológico, que prevalece sobre a verdade biológica e a realidade legal” (DIAS, [2008], p. 5), não podendo mais ser buscado, apenas, nas verdades biológica ou jurídica, mas, também, na realidade social.


4 OS DIVERSOS TIPOS DE FILIAÇÃO EXISTENTES NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO


Para melhor compreender o instituto da paternidade socioafetiva baseada na posse do estado de filho é necessário que se faça uma breve explanação acerca dos diversos tipos de filiação existentes no ordenamento jurídico brasileiro. São elas: a matrimonial, a extramatrimonial, a adotiva, a jurídica, a biológica e a socioafetiva.


A filiação matrimonial, de acordo com Dias (2010, p. 458), “é a que se origina na constância do casamento dos pais, ainda que anulado ou nulo” e mesmo que não tenha sido declarado putativo, ou seja, independe da declaração da existência ou não da boa-fé de ambos os cônjuges ou de somente de um.


A fim de estabelecer as hipóteses legais de filiação matrimonial, o atual Código traz, em seu art. 1.597, a presunção legal juris tantum da paternidade, traduzida pela expressão pater is est. Segundo Fujita apud Pereira (2009, p. 37), esta norma se fundamenta na ideia de que “o casamento pressupõe as relações sexuais dos cônjuges e fidelidade da mulher; o filho que é concebido durante o matrimônio tem por pai o marido de sua mãe. E, em consequência, presume-se filho o concebido na constância do casamento dos pais”.


Assim, presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos nascidos 180 (cento e oitenta) dias, pelo menos, depois de estabelecida a convivência conjugal, decorrendo essa regra, por exemplo, do fato de existirem alguns casamentos que são realizados por meio de procuração.


Também os filhos nascidos nos 300 (trezentos) dias, ou seja, nos 10 (dez) meses subsequentes à dissolução da sociedade conjugal por morte, nulidade ou anulação do casamento são considerados concebidos na constância do matrimônio, isso porque a gestação não vai além desse prazo. “Por conseguinte, o filho que nasceu 10 meses após a dissolução da sociedade ou do vínculo conjugal é considerado matrimonial, pois poderia ter sido concebido no último dia de vigência do enlace matrimonial” (DIAS, 2010, p. 460-461).


A terceira espécie de presunção diz respeito aos filhos havidos por fecundação artificial homóloga, ainda que o marido já tenha falecido, tendo em vista a proteção constitucional da família monoparental.


Os filhos havidos a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentes, isto é, aqueles que sobraram quando da transferência para o útero da mulher, decorrentes de concepção artificial homóloga, também são considerados concebidos na constância do casamento, assim como os havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que haja a prévia autorização do marido, o que reforça, ainda mais, a natureza socioafetiva do parentesco, surgindo uma situação curiosa, na medida em que “de um lado, será reconhecido como pai aquele que não forneceu seu espermatozóide para a fertilização. De outro lado, não será considerado pai aquele que doou o seu sêmen” (FUJITA, 2009, p. 43-44).


Fujita (2009, p. 44) acredita que, apesar de o Código Civil não mencionar a fecundação heteróloga com o uso do sêmen do marido e o óvulo de uma terceira, seria perfeitamente possível a hipótese, “em virtude do avanço que a medicina e a engenharia genética experimentam na contemporaneidade”, desde que, claro, haja a anuência prévia da esposa.


Já a filiação extramatrimonial, nas palavras de Fujita (2009, p. 45), “é aquela que decorre de pessoas que não querem casar ou que se encontram impedidos de casar em razão de casamento anterior ou de parentesco próximo”, podendo ser classificada em natural ou espúria.


Os filhos extramatrimoniais naturais são aqueles que descendem de pais entre os quais não havia qualquer impedimento matrimonial à época da concepção. Já os espúrios, são os oriundos da união entre homem e mulher entre os quais existia, no momento da concepção, impedimento matrimonial, sendo divididos em adulterinos e incestuosos.


Os adulterinos são os que nascem da união entre pessoas impedidas de se casar em virtude de casamento anterior, ou seja, são resultantes de um adultério. Ressalve-se que o filho adulterino pode resultar de adultério bilateral, caso descenda de homem casado e mulher casada, porém não entre si, ou de adultério unilateral, se concebido por um homem casado e uma mulher livre e desimpedida, ou seja, solteira, viúva ou divorciada, caso em que será adulterino a patre, ou por um homem livre ou solteiro e uma mulher casada, sendo, então, adulterino a matre.


Os incestuosos, por sua vez, são aqueles nascidos de homem e mulher que, em virtude de parentesco natural, civil ou afim, não podiam contrair matrimônio à época da concepção.


Importante observar que os filhos havidos fora do casamento, independente de serem naturais ou espúrios, de acordo com o art. 227, § 6º da Constituição Federal, que preconiza o princípio da igualdade jurídica entre todos os filhos, possuem os mesmos direitos que são assegurados aos filhos matrimoniais e aos adotivos.


Contudo, ao filho extramatrimonial não é aplicada a presunção pater is est, reservada, apenas, aos filhos matrimoniais. Como bem leciona Gonçalves (2010, p. 326), “embora entre ele e seu pai exista o vínculo biológico, falta o vínculo jurídico de parentesco, que só surge com o reconhecimento. Se tal ato não se realiza voluntariamente, assegura-se ao filho o reconhecimento judicial por meio da ação de investigação de paternidade”.


Quanto à filiação adotiva, Diniz (2010, p. 522), fazendo um apanhado das definições formuladas pelos principais doutrinadores da área de Direito de Família, define a adoção como:


“[…] o ato jurídico solene pelo qual, observados os requisitos legais, alguém estabelece, independentemente de qualquer relação de parentesco consangüíneo ou afim, um vínculo fictício de filiação, trazendo para sua família, na condição de filho, pessoal que, geralmente, lhe é estranha.”


Tendo sua origem baseada na necessidade que pessoas sem filhos tinham em dar continuidade à família, o instituto da adoção, hoje, no Brasil, rege-se pela Lei nº. 12. 010/2009, sendo, no entendimento dos mais renomados doutrinadores, uma ficção jurídica, na medida em que possibilita a constituição de um laço de parentesco de 1º grau em linha reta entre adotante e adotado, originando, portanto, uma relação de parentesco civil entre ambos.


Na esteira do preceituado pelo art. 227, §§ 5º e 6º da Carta Magna, a adoção é definitiva e irrevogável, na medida em que desvincula totalmente o adotado dos seus pais sanguineos, exceto no que diz respeito aos impedimentos matrimoniais, sendo gerados verdadeiros laços de parentesco entre adotado e família do adotante.


Assim, pode-se dizer que por meio da adoção surge uma verdadeira filiação socioafetiva, “porquanto aqueles que se colocam na condição de pai ou de mãe, na realidade, não possuem essa qualidade no plano biológico, ou seja, não são genitor ou genitora” (FUJITA, 2009, p. 53).   


A filiação jurídica, também chamada de legal, por sua vez, é o vínculo existente entre pais e filhos, reconhecido pela lei. Hoje, de acordo com o que preceitua o Código Civil, a paternidade jurídica pode ser imposta por presunção, na medida em que consagra o brocardo pater is est quanto aos filhos concebidos na constância do casamento.


Contudo, o referido Diploma não prende mais a filiação somente ao instituto do casamento, na medida em que não deve haver mais distinção entre os filhos, devido à consagração do princípio constitucional da isonomia, preocupando-se, também, em reconhecer a condição de filho àquele que preenche os requisitos constantes em seus diversos dispositivos. Assim, a filiação jurídica pode ser natural ou de outra origem, como a adoção, a reprodução assistida heteróloga ou a socioafetiva, na medida em que o próprio Código Civil permite, em seu art. 1.593, o estabelecimento do parentesco natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem.


Fujita apud Venosa (2009, p. 61), ilustra “que a filiação jurídica busca garantir a identificação pessoal relativamente à identidade biológica, mas nem sempre a identidade genética amolda-se à identidade jurídica”.


Quanto à filiação biológica ou natural, pode-se dizer que é aquela que se estabelece através dos laços de sangue entre pais e filhos, ou seja, possui sua origem na consanguinidade. De acordo com Dias (2009, p. 330), essa modalidade de filiação deve ser compreendida como “uma verdade biológica, comprovável por meio de exame laboratorial que permite afirmar, com certeza praticamente absoluta, a existência de um liame biológico entre duas pessoas.”


Essa relação de sangue pode-se dar pela reprodução natural ou carnal, envolvendo a relação sexual entre homem e mulher com a consequente concepção, independentemente de sua origem, ou seja, não interessando se ocorreu dentro ou fora do matrimônio ou entre noivos e namorados. Pode se dar, também, por meio das técnicas de reprodução humana assistida, tendo como base não a cópula, mas “um conjunto de técnicas que têm como fim provocar a gestação mediante a substituição ou a facilitação de alguma etapa que se mostre deficiente no processo reprodutivo” (SCARPARO, 1991, p. 5), podendo ser homóloga, envolvendo materiais genéticos de ambos os cônjuges ou companheiros ou heteróloga, sendo utilizado o material genético de terceira pessoa.


Ressalte-se que, neste último caso de reprodução, ao terceiro doador do material genético será conferida a paternidade biológica, porém, esta não é reconhecida legalmente, sendo a condição de pai atribuída, na forma socioafetiva, ao esposo ou companheiro da mulher que teve seu óvulo fecundado pelo sêmen do terceiro.


Por fim, cabe falar da filiação socioafetiva que, nas palavras de Fujita (2009, p. 70), “é aquela consistente na relação entre pai e filho, ou entre mãe e filho, ou entre pais e filho, em que inexiste liame de ordem sanguinea entre eles, havendo, porém, o afeto como elemento aglutinador”.


Este tipo de filiação se manifesta de diferentes formas, dentre elas, na adoção, na técnica de reprodução assistida heteróloga e na posse do estado de filho.


5 A POSSE DO ESTADO DE FILHO


A filiação decorrente da posse do estado de filho, foco principal deste trabalho, conceitua-se como “uma relação afetiva, íntima e duradoura, caracterizada pela reputação frente a terceiros como se filho fosse, e pelo tratamento existente na relação paterno-filial, em que há o chamamento de filho e a aceitação do chamamento de pai” (BOEIRA, 1999, p. 60).


Geralmente, a comprovação da posse do estado de filho se dá por meio de relatos testemunhais, entretanto, devem ser obedecidos alguns requisitos de validade, quais sejam: “o filho de possuir o nome do pai (nomem), deve ser tratado como filho daquele pai (tractatus) e deve comportar-se e ser enxergado socialmente como filho daquele pai (fama)” (BLIKSTEIN, 2008, p. 114).


Dessa forma, com relação ao primeiro requisito identificador da posse do estado de filho, o indivíduo sempre deve ter usado o nome do pai ao qual considera como tal. Contudo, a doutrina majoritária reconhece que o fato de o filho nunca ter usado o patronímico paterno, na maioria das vezes por ser fruto de um relacionamento extraconjugal, não torna impossível o reconhecimento da posse do estado de filho, na medida em que estejam presentes os demais pressupostos de validade – o trato e a fama, a fim de corroborar a verdadeira paternidade. 


O pai também precisa tratar o filho como tal, contribuindo para sua formação como ser humano. Sobre essa condição, Nogueira (2001, p. 216) expõe que:


“O trato é o elemento clássico de maior valor para que se estabeleça a ‘posse de estado de filho’, pois é o tratamento que os pais dispensam a seu filho, assegurando lhe manutenção, educação, instrução, enfim, contribuindo de maneira efetiva para a formação dele como ser humano, que demonstra força para informar a ‘posse de estado de filho’.”


O terceiro e último elemento caracterizador da posse do estado de filho, qual seja, a fama, é representado pela exteriorização desse ‘estado’, onde o público conhece e considera um indivíduo como sendo filho de uma determinada pessoa, ou seja, “é o reconhecimento, por terceiros, das ações constantes que evidenciam a relação. Pais e filho agem, portanto, perante a sociedade, como se fossem uma entidade familiar” (GOMES, 2008, p. 36).


Contudo, essa tríplice exigência só se torna completa com a constituição do requisito temporal, que é, mais que todos os outros elementos, a característica principal e a condição para a existência da posse do estado de filho. Nas palavras de Boeira (1999, p. 65), “a posse de estado revela uma situação que só pode existir com o tempo (repetição de índices diários). O fator ‘tempo’ condiciona, ao mesmo tempo, a existência e a força da Posse de Estado”. Assim, a posse do estado de filho deve se revelar constante e sem interrupção.


Nesse contexto, Fachin (1999, p. 309) observa que:


“[…] o valor socioafetivo da família é uma realidade da existência. Ela se “bonifica” com o transcorrer do tempo. Não é um dado e sim um construído. Se o vínculo genético é um dado, a posse do estado é um construído. Viver juntos, sem liame jurídico prévio, o que mantém esta condição é ser possuidor de um estado.”


Portanto, “o nome, o tratamento e a fama, assim, quando demonstrados, e associados a um lapso temporal a ser analisado exclusivamente no caso concreto, são os requisitos que dão guarida ao reconhecimento da posse do estado de filho” (GOMES, 2008, p. 36).


Esse tipo de filiação, contudo, não se encontra expressamente prevista no ordenamento jurídico brasileiro, mas é plenamente aceita pela doutrina civilista nacional como sendo uma modalidade de constituição de paternidade.


São vários os argumentos apresentados pela doutrina que evidenciam a presença da paternidade socioafetiva baseada na posse do estado de filho dentro do ordenamento jurídico pátreo. Dentre eles, e talvez o principal, encontra-se a disposição do art. 1.593 do atual Código Civil, in verbis: “o parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consaguinidade ou outra origem”.


O termo ‘outra origem’ abriu precedentes sem tamanho para o reconhecimento de uma paternidade diferente da biológica, ou seja, a socioafetiva, baseada no afeto, “segundo a qual uma pessoa é recepcionada no âmbito familiar, sendo neste criada e educada, tal como se da família fosse” (GONÇALVES apud FACHIN, 2010, p. 297). Os doutrinadores vêm, efetivamente, utilizando-se dessa interpretação, fazendo com que, inclusive, a jurisprudência pátria também adote esta forma de interpretação mais ampla.


Ainda, nas palavras de Gonçalves apud Fachin (2010, p. 297), o art. 1.593 acolheu:


“[…] a paternidade socioafetiva, fundada na posse de estado de filho, aduzindo que essa verdade socioafetiva não é menos importante que a verdade biológica. A realidade jurídica da filiação não é, portanto, fincada apenas nos laços biológicos, mas na realidade de afeto que une pais e filhos, e se manifesta em sua subjetividade e, exatamente, perante o grupo social e a família.”


A Constituição Federal brasileira, também, apesar de não fazer referência explícita à paternidade socioafetiva baseada na posse do estado de filho, traduz, em seu Capítulo VII, a sua ampla preocupação com a valorização do afeto como objeto fundamental dos núcleos de convivência familiar.


Importante mencionar, igualmente, alguns enunciados elaborados pelo Conselho da Justiça Federal, aprovados nas Jornadas de Direito Civil, consolidando o entendimento doutrinário a respeito da viabilidade do reconhecimento da paternidade socioafetiva, inclusive, a baseada na posse do estado de filho, quais sejam:


“Enunciado nº. 103: o Código Civil reconhece, no art. 1.593, outras espécies de parentesco civil além daquele decorrente da adoção, acolhendo, assim, a noção de que há também parentesco civil no vínculo parental proveniente quer das técnicas de reprodução assistida heteróloga relativamente ao pai (ou mãe) que não contribuiu com seu material fecundante, quer da paternidade socioafetiva, fundada na posse do estado de filho.


Enunciado nº. 108: no fato jurídico do nascimento, mencionado no art. 1.603, compreende-se, à luz do disposto no art. 1.593, a filiação consangüínea e também a socioafetiva.


Enunciado nº. 256: a posse do estado de filho (parentalidade socioafetiva) constitui modalidade de parentesco civil.”


Por fim, cumpre destacar que o próprio Superior Tribunal de Justiça, a quem compete a uniformização da jurisprudência em se tratando de lei federal, já se posicionou sobre o tema, admitindo a existência da filiação socioafetiva decorrente da posse do estado de filho:


“REGISTRO CIVIL. RECONHECIMENTO DE PATERNIDADE VIA ESCRITURA PÚBLICA. INTENÇÃO LIVRE E CONSCIENTE. ASSENTO DE NASCIMENTO DE FILHO NÃO BIOLÓGICO. RETIFICAÇÃO PRETENDIDA POR FILHA DO DE CUJUS. ART. 1.604 DO CÓDIGO CIVIL. AUSÊNCIA DE VÍCIOS DE CONSENTIMENTO. VÍNCULO SOCIOAFETIVO. ATO DE REGISTRO DA FILIAÇÃO. REVOGAÇÃO. DESCABIMENTO. ARTS. 1.609 E 1.610 DO CÓDIGO CIVIL.


1. Estabelecendo o art. 1.604 do Código Civil que “ninguém pode vindicar estado contrário ao que resulta do registro de nascimento, salvo provando-se erro ou falsidade de registro”, a tipificação das exceções previstas no citado dispositivo verificar-se-ia somente se perfeitamente demonstrado qualquer dos vícios de consentimento, que, porventura, teria incorrido a pessoa na declaração do assento de nascimento, em especial quando induzido a engano ao proceder o registro da criança.


2. Não há que se falar em erro ou falsidade se o registro de nascimento de filho não biológico efetivou-se em decorrência do reconhecimento de paternidade, via escritura pública, de forma espontânea, quando inteirado o pretenso pai de que o menor não era seu filho; porém, materializa-se sua vontade, em condições normais de discernimento, movido pelo vínculo socioafetivo e sentimento de nobreza.


3. “O reconhecimento de paternidade é válido se reflete a existência duradoura do vínculo socioafetivo entre pais e filhos. A ausência de vínculo biológico é fato que por si só não revela a falsidade da declaração de vontade consubstanciada no ato do reconhecimento. A relação socioafetiva é fato que não pode ser, e não é, desconhecido pelo Direito. Inexistência de nulidade do assento lançado em registro civil” (REsp n. 878.941-DF, Terceira Turma, relatora Ministra Nancy Andrighi, DJ de 17.9.2007).


4. O termo de nascimento fundado numa paternidade socioafetiva, sob autêntica posse de estado de filho, com proteção em recentes reformas do direito contemporâneo, por denotar uma verdadeira filiação registral – portanto, jurídica -, conquanto respaldada pela livre e consciente intenção do reconhecimento voluntário, não se mostra capaz de afetar o ato de registro da filiação, dar ensejo a sua revogação, por força do que dispõem os arts. 1.609 e 1.610 do Código Civil.


5. Recurso especial provido.”


(Resp 200401746167; Rel. João Otávio de Noronha; STJ; Órgão julgador: 4ª Turma; Data da Decisão: 05/11/2009; Publicação: DJE Data: 23/11/2009 RBDFS Vol.: 00013 pg: 00130 RT Vol.: 00893 pg: 00194)


6 A POSSIBILIDADE DA PRESTAÇÃO DE ALIMENTOS POR PAIS SOCIOAFETIVOS, QUANDO PRESENTES OS REQUISITOS DE VALIDADE DA POSSE DO ESTADO DE FILHO


6.1 Uma breve exposição acerca da obrigação alimentar no Código Civil de 2002


Os alimentos, segundo a lição de Gonçalves apud Gomes (2010, p. 481), “são prestações para satisfação das necessidades vitais de quem não pode provê-las por si. Tem por finalidade fornecer a um parente, cônjuge ou companheiro o necessário à sua subsistência”.


O atual Código Civil regula, em seus arts. 1.694 e 1.695 a matéria referente a quem possui o dever de alimentar e a quem detém o direito de pleitear a prestação alimentícia. Desta forma, pode-se dizer que a obrigação alimentícia possui três pressupostos, quais sejam: o vínculo de parentesco, o casamento ou a união estável e a necessidade do alimentando associado às possibilidades do alimentante.


Destarte, com relação ao vínculo de parentesco associado à filiação, que é o que realmente interessa para o presente trabalho, Gonçalves (2010, p. 520) traz seu posicionamento:


“É indeclinável a obrigação alimentar dos genitores em relação aos filhos incapazes, sejam menores, interditados ou impossibilitados de trabalhar e perceber o suficiente para a sua subsistência em razão de doença ou deficiência física ou mental. A necessidade, nesses casos, é presumida. Obviamente, se o filho trabalha e ganha o suficiente para o seu sustento e estudos, ou possui renda de capital, não se cogita de fixação da verba alimentícia, ainda que incapaz. Se trabalha e não percebe o suficiente, a complementação pelos genitores é de rigor.” 


Ademais, a ideia de ‘alimentos’, aqui, possui uma conotação bastante ampla, na medida em que abrangem, além do necessário ao sustento do filho, a manutenção das suas condições sociais e morais, como o vestuário, o transporte, a diversão, a habitação e a educação.


A fundamentação da obrigação de prestar alimentos, por sua vez, encontra-se calcada nos princípios da dignidade da pessoa humana e da solidariedade social e familiar, destacando-se como um dever personalíssimo de caráter assistencial e não indenizatório.  


Diniz (2010, p. 591), inclusive, atenta para o fato de a obrigação de prestar alimentos não ser confundida com os deveres familiares de sustento e assistência que o marido tem em relação à sua esposa e vice-versa e os pais para com seus filhos menores, na medida em que afirma que:


“A obrigação alimentar é recíproca, dependendo das possibilidades do devedor, e só é exigível se o credor potencial estiver necessitado, ao passo que os deveres familiares não têm o caráter de reciprocidade por serem unilaterais e devem ser cumpridos incondicionalmente.”


6.2 Análise de decisões jurisprudenciais acerca da possibilidade jurídica da prestação de alimentos por pais socioafetivos, quando presentes os requisitos de validade caracterizadores da posse do estado de filho


Trazendo-se, agora, todo esse breve entendimento acerca da obrigação da prestação alimentícia para o campo da socioafetividade, alguns tribunais pátrios vêm adotando a posição de que esse dever também deve se estender aos filhos socioafetivos, incluindo aqueles possuidores do estado de filho.


Um dos principais argumentos adotados pelos doutrinadores e pela jurisprudência a fim de permitir a transposição da obrigação alimentar para o campo da socioafetividade, é, sem dúvidas, o princípio da igualdade da filiação, instituído pela Carta Magna, em seu art. 227, § 6º, ao proibir quaisquer designações discriminatórias com relação aos filhos, independente de sua origem.


Conforme já exposto, a doutrina e a jurisprudência majoritária entendem que a filiação socioafetiva baseada na posse do estado de filho constitui-se em um modo de parentesco, na medida em que o Código Civil abre brecha para este entendimento, quando faz referência ao termo ‘outra origem’. Somando-se a isto, baseiam-se, também, nos posicionamentos emanados pelo STJ, nos Enunciados promovidos pelo CJF e na preocupação assente da Constituição Federal em proteger o instituto da filiação.


Assim, reconhecida a filiação socioafetiva decorrente da posse do estado de filho, já que não deve haver discriminação relativa à filiação, todos os filhos, independente de sua origem, devem ser tratados igualmente, sendo cabível ao filho socioafetivo, portanto, tudo aquilo que também cabe às outras espécies de filiação, inclusive, a possibilidade do recebimento de pensão alimentícia pelo pai afetivo.


A ilustre Dias (2007, p. 469), seguindo esta mesma linha de pensamento, corrobora:


“Quando se fala em obrigação alimentar dos pais sempre se pensa no pai registral, que, no entanto, nem sempre se identifica com o pai biológico. Como vem, cada vez mais, sendo prestigiada a filiação socioafetiva – que, inclusive, prevalece sobre o vínculo jurídico e o genético –, essa mudança também se reflete no dever de prestar alimentos. Assim, deve alimentos quem desempenha as funções parentais.”


Azevedo (2008, p. 52) também possui o mesmo entendimento, na medida em que preceitua caber ao ordenamento jurídico brasileiro “a aceitação e disposição legal do estado de filho afetivo em sua plenitude, com todos os direitos e deveres advindos dessa relação, para ambas as partes, morais e patrimoniais”.


Sobre o assunto, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul já possui posicionamento:


“AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE ALIMENTOS. INTEMPESTIVIDADE. REQUISITO DO ART. 526 DO CPC. NEGATIVA DA PATERNIDADE.


[…] Negativa da paternidade. A obrigação alimentar se fundamenta no parentesco, que é comprovado pela certidão de nascimento. O agravante alega não ser o pai biológico do menor. Enquanto não comprovar, não se pode afastar seu dever de sustento. A rigor, mesmo esta prova não será suficiente, pois a paternidade sócio-afetiva também pode dar ensejo à obrigação alimentícia.”


(AI nº 70004965356; Rel. Des. Rui Portanova; TJRS; Órgão Julgador: 8ª Câmara Cível; Data do Julgamento: 31/10/2002)


Assim é que a filiação socioafetiva baseada na posse do estado de filho, uma construção doutrinária e jurisprudencial, felizmente, vem sendo amplamente reconhecida perante os Tribunais brasileiros, inclusive, diante do STJ, como já exposto anteriormente. Contudo, a questão da imposição do dever de prestar alimentos aos pais socioafetivos, quando presentes os requisitos anunciadores da posse do estado de filho, ponto crucial deste trabalho, ainda é pouco discutida nos tribunais pátrios.


Nesse sentido, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul é pioneiro no assunto, trazendo à baila a questão da prestação de alimentos por pais socioafetivos, quando caracterizada, no caso concreto, a posse do estado de filho. Senão veja-se:


“ALIMENTOS. DESERÇÃO. PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. ADEQUAÇÃO DO QUANTUM.


1. Cuidando-se de ação de alimentos, onde se discute a capacidade econômica do alimentante, o qual alegou insuficiência de recursos e pediu a gratuidade, a ausência de preparo não induz à deserção, sendo razoável conceder a dispensa do preparo.


2. Estando provado o vínculo jurídico de filiação, a alegação de inexistência do liame biológico é irrelevante e vazia, pois não paira dúvida alguma sobre o vínculo socioafetivo, decorrente da posse do estado de filho, nem que o alimentante era o provedor do núcleo familiar.


3. Os alimentos se destinam ao atendimento das necessidades dos filhos, que são presumidas, dentro da capacidade econômica do alimentante. Recurso desprovido.”


(AI nº. 70007798739; Rel. Des. Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves; TJRS; Órgão Julgador: 7ª Câmara Cível; Data do Julgamento: 18/02/2004)


Neste julgado, o recorrente pretendia a reforma da decisão exarada nos autos da ação de alimentos movida por seus três filhos, menores, representados por sua mãe, que fixou alimentos provisórios no valor de 30% (trinta por cento) sobre os seus rendimentos líquidos.


Em suma, ele sustentou que dois não eram seus filhos biológicos, sendo que quando passou a viver com a genitora deles, ambos já haviam nascido, sendo fruto de relacionamento anterior da mulher. Mesmo assim, registrou os filhos em seu nome, porém, alegou que não possui nenhum vínculo paterno-filial com os menores.


Os recorridos, por sua vez, afirmaram que o próprio agravante exigiu registrar os menores e tê-los como filhos, como condição para o casal viver junto, assim o fazendo durante os 6 (seis) anos de convivência com a mãe das crianças.


Analisando o mérito da demanda, o eminente Desembargador constatou o descabimento da pretensão recursal, tendo em conta que o vínculo jurídico entre pai e filhos foi provado, havendo veementes indicações da paternidade socioafetiva baseada na posse do estado de filho, considerando que a ruptura da vida em comum com a ex-mulher não lhe retiraria o dever de manter os filhos que gerou ou, pelo menos, que assumiu de forma plena, mantendo-lhe, ainda, a obrigação de prestar alimentos.


Em decisão mais recente, o TJRS assim considerou:


“APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. PROVA.


A falta de conclusão positiva da perícia de DNA realizada, com baixa probabilidade da paternidade em razão de o investigado ser falecido e das partes que se submeterem não terem sido as preferenciais para resultado mais concludente, não deve prevalecer se o restante do complexo probatório é conclusivo quanto à atribuída paternidade, restando demonstrada pela prova oral, e posse de estado de filha, ensejando o reconhecimento da filiação.


ALIMENTOS. Não é ultra petita e não afronta o art. 460 do CPC a sentença que fixa alimentos em percentual diverso daquele postulado na petição inicial, se existir elementos de prova nos autos demonstrando a exatidão do percentual fixado.


Mérito. Os alimentos devem vigorar da citação, a qual deve ser suportada pela sucessão do investigado até a data da fixação dos alimentos provisórios nos autos.


AJG. Os ônus do processo são do espólio e não dos herdeiros. Inexistindo nos autos demonstração do acervo patrimonial deixado pelo falecido, tendo aplicação o art. 1.997 do CC, não há como avaliar pretensão de incapacidade do espólio em arcar com os ônus do processo.


REJEITARAM A PRELIMINAR E NEGARAM PROVIMENTO Á APELAÇÃO.”


(AC nº. 70034001164; Rel. Des. André Luiz Planella Villarinho; TJRS; Órgão Julgador: 7ª Câmara Cível; Data do Julgamento: 11/08/2010; Publicação: Diário da Justiça do dia 19/08/2010).


Aqui, a Sucessão do recorrente insurgiu-se contra a sentença que, nos autos da ação de investigação de paternidade cumulada com pedido de alimentos, julgou procedente o pedido da autora, devidamente representada por sua mãe, declarando a requerente como filha do falecido, o qual a Sucessão representa, além de fixar alimentos em 50% (cinquenta por cento).


A apelante argumentou que não havia prova, nos autos, da paternidade do falecido, capaz de gerar o benefício da prestação alimentícia, visto que o exame de DNA realizado deu negativo. Alegou, ainda, que o juízo de primeiro grau baseou-se, apenas, em provas testemunhais em detrimento da prova técnica.


Contudo, apesar de o exame de DNA ter dado negativo, foi reconhecida a existência da posse do estado de filha com base em outros elementos de prova constantes dos autos, como a testemunhal, onde foi constatado que o falecido tratava a autora como filha e, inclusive, que essa relação era notória ante as pessoas próximas da requerente, mantendo-se, assim, a condenação em alimentos.


O TJ do Estado de Minas Gerais também traz posicionamento acerca da prestação de alimentos por pais socioafetivos, estando presente a posse do estado de filho:


“ANULAÇÃO DE REGISTRO CIVIL – NEGATÓRIA DE PATERNIDADE – INEXISTÊNCIA DE VÍNCULO BIOLÓGICO – ERRO – LAÇO SÓCIO-AFETIVO ENTRE PAI E FILHO – “POSSE DE ESTADO DE FILHO” – APLICABILIDADE. – Comprovada a vinculação socio-afetiva entre pai e filho, não é possível a anulação do registro civil, tampouco a desconstituição de paternidade.”


(AC nº. 1.0024.08.957343-0/001; Rel. Des. Silas Vieira; TJMG; Órgão Julgador: 3ª Câmara Cível; Data do Julgamento: 02/09/2010; Data da Publicação: 23/09/2010)


Neste caso, o requerente sustentou que foi compelido a registrar a criança em seu nome, afirmando que a menor, logo após saber que não era, de fato, sua filha, estreitou laços afetivos com o pai biológico, o qual demonstrou interesse em regularizar a paternidade. Assim, pleiteou o reconhecimento da negativa de sua paternidade e a exclusão da obrigação de pagar alimentos, contudo, o Desembargador Relator reconheceu a existência do vínculo afetivo entre o apelante e a menor, baseando-se na comprovação da existência da posse do estado de filha, eis que presentes seus requisitos de validade, quais sejam, o nome, o trato e a fama, mantendo, assim, a obrigação de prestar alimentos pelo pai socioafetivo.


7 CONCLUSÃO


Neste trabalho, verificou-se, através de uma exposição histórica, que os institutos da família, da filiação e da paternidade sofreram constantes mutações, desde os tempos de um Brasil mais antigo até os dias atuais, acabando-se por eliminar séculos de discriminação, baseados em um modelo de família hierarquizada e formada unicamente pelo casamento, que diferenciava, de forma repugnante, os filhos, dependendo de sua origem.


 Por meio dessa exposição histórica, pôde-se chegar aos conceitos desses três institutos na atualidade, estando todos eles interligados à idéia da presença da afetividade, com a exclusão do pensamento de que o casamento é a única forma de se constituir uma família.


Foram abordados, também, os diversos tipos de filiação existentes no ordenamento jurídico brasileiro, quais sejam: a matrimonial, a extramatrimonial, a adotiva, a jurídica, a biológica e a socioafetiva, sendo que esta última manifesta-se de diferentes formas, dentre elas, na adoção, na técnica de reprodução assistida heteróloga e na posse do estado de filho.


Ressalte-se que a filiação socioafetiva baseada na posse do estado filho, foco principal deste trabalho, configura-se como uma construção doutrinária e jurisprudencial, visto que a legislação pátria não a prevê expressamente. Desta forma, foram descritos os requisitos de validade da posse do estado de filho – nome, trato e fama – na medida em que foram apresentados os argumentos utilizados pela doutrina e pela jurisprudência que reconhecem a presença desse tipo de filiação no ordenamento jurídico brasileiro.


Assim é que, para demonstrar a viabilidade jurídica da filiação socioafetiva, foi analisado o art. 1.593 do CC/02, que abre brecha para o reconhecimento desse tipo de filiação, quando faz referência ao parentesco de outra origem, bem como a CF/88, no ponto em que fica evidenciada a sua ampla preocupação com a valorização do afeto como objeto fundamental dos núcleos de convivência familiar. Foram considerados, também, os Enunciados elaborados pelo CJF e o posicionamento do STJ, reconhecendo a existência da paternidade socioafetiva baseada na posse do estado de filho no ordenamento jurídico pátrio.


Foi abordado, brevemente, nesse contexto, o instituto dos alimentos no Código Civil de 2002, fazendo-se uma transposição das suas regras e características para o campo da paternidade socioafetiva baseada na posse do estado de filho, chegando-se a conclusão de que, ante o princípio constitucional da igualdade de filiação e do reconhecimento da paternidade socioafetiva baseada na posse do estado de filho, é devido aos filhos afetivos todos os direitos conferidos aos demais tipos de filiação, em especial os alimentos.


Corroborando este entendimento, foram analisadas jurisprudências do Tribunal de Justiça dos Estados do Rio Grande do Sul e de Minas Gerais reconhecendo a existência da filiação socioafetiva baseada na posse do estado de filho e concedendo pensão alimentícia aos filhos afetivos, quando assente a posse do estado.


Portanto, a filiação afetiva baseada na posse do estado de filho, apesar de não ser expressamente prevista no ordenamento jurídico brasileiro, não se encontra desamparada, quando presentes os requisitos que autorizam seu reconhecimento, cabendo a ela todos os direitos e deveres inerentes às demais filiações existentes, inclusive, no que diz respeito à possibilidade de os filhos receberem pensão alimentícia dos pais afetivos.


As decisões jurisprudenciais vêm, pouco a pouco, reconhecendo a existência da filiação socioafetiva e o seu direito de receber alimentos. Assim, a partir dessas construções jurisprudenciais, o caminho para a normatização expressa da filiação socioafetiva baseada na posse do estado de filho está aberto, inclusive, no campo da obrigação alimentar.


 


Referências:

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Notas:

[1] Artigo Científico apresentado ao Centro de Ensino Unificado de Teresina – CEUT, como requisito parcial para a obtenção do título de Bacharel em Direito. Orientadora: Profª Esp. Ana Letícia Anarelli Rosati Leonel.

Informações Sobre o Autor

Suyane Lara Lopes Paes Landim Sena

Acadêmica de Direito do Centro de Ensino Unificado de Teresina – CEUT;


Equipe Âmbito Jurídico

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