Resumo: Exposição de uma concepção crítica do instituto jurídico da posse, que dê conta dos conflitos possessórios no âmbito rural no país, com uma abordagem para além de meras definições legais e da doutrina tradicional. Resenha crítica do livro: ALBUQUERQUE, Ana Rita Vieira. Da função social da posse e sua conseqüência frente à situação proprietária. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002.
Sumário: 1. Introdução; 2. Precedentes do reconhecimento do direito de posse; 3. A posse no Direito Romano; 3.1. Os romanistas Savigny, Ihering e Saleilles; 4. A posse como fato e direito; 5. A posse agrária; 6. Conclusão
1. Introdução
O presente trabalho consiste em expor uma concepção crítica do instituto jurídico da posse, que dê conta dos conflitos possessórios no âmbito rural no país, com uma abordagem para além de meras definições legais e da doutrina tradicional.
Tal concepção foi abordada no livro Da função social da posse e sua conseqüência frente à situação proprietária (ALBUQUERQUE, 2002).
Cumpre esclarecer que o presente trabalho não se ocupou de exaurir todos os assuntos/categorias abordados no livro em referência, sendo delimitado à abordagem da posse pelos estudiosos clássicos do Direito Romano, e das teses da autora em relação à natureza jurídica do instituto.
A obra resenhada analisa o instituto da posse, desde sua origem no Direito Romano, passando pelas várias posições desde então, até chegar à concepção da posse no sentido mais progressista, que é chamada Teoria Social da Posse, que sustenta as seguintes teses:
1) A posse não é mera situação de fato (a ser complementada pela situação de direito da propriedade), mas é em si situação de direito (direito de posse).
2) A posse tem autonomia frente à propriedade e assim deve ser juridicamente protegida.
3) A posse encontra proteção na Constituição Federal, sendo exigida sua função social.
4) A função social da posse pode ser privilegiada diante da função social da propriedade, caso os dois princípios estejam em colisão, o que tem reflexos na proteção possessória.
2. Precedentes do reconhecimento do direito de posse
O primeiro documento legal que tratou da posse foi o Código de Hamurábi, outorgado pelo rei da Babilônia no século 18 a.C., que já garantia a posse e a usucapião a quem explorasse, por mais de 3 anos, área deixada ao abandono por terceiro.
Em 450 a.C. entrou em vigência a Lei das XII Tábuas, por influência da luta dos plebeus em Roma. A Sexta Tábua se intitula Do direito de propriedade e da posse. Note-se que já havia uma separação entre os dois institutos. Entre enunciados próprios da opressão e atraso da sociedade romana, marcado pelo direito expresso de posse do senhor sobre seus escravos e do homem sobre a mulher, o enunciado nº 5 dispõe sobre o instituto usucapião.
3. A posse no Direito Romano
A posse no Direito Romano perpassa três fases com características próprias, dentro dos três períodos da história romana: a época antiga e republicana (ou pré-clássica); a época clássica imperial; e a época romano-helênica e justinianéia (ALBUQUERQUE, 2002, p. 61).
Na primeira fase, a posse significa senhorio de fato, como um poder sobre a pessoa ou sobre o bem, e o domínio era mais uma soberania política que um direito civil.
Na segunda fase, a posse é confundida com a propriedade. São contemplados os interditos possessórios, bem como se passa a entender a posse com os dois elementos descritos por Savigny (animus e corpus).
Na terceira fase, a posse se vincula ainda mais à propriedade. As posses consideradas revogáveis pelo Estado convalescem em propriedade. Nessa fase, desaparecem os interditos, ficando a proteção da posse por conta da defesa direta.
3.1. Os romanistas Savigny, Ihering e Saleilles
Para estudar a origem do instituto da posse, cabe tomar o debate entre dois jus-civilistas alemães, Savigny e Ihering, ambos se servindo do significado da posse no Direito Romano, e a concepção de Saleilles, diferenciada tanto de Savigny como de Ihering.
Para Savigny, a posse compreende dois elementos: o subjetivo (animus) e o objetivo (corpus). O animus corresponde à vontade da pessoa de possuir a coisa, não no sentido voluntarista, mas no sentido de a pessoa tomar a coisa para si e ter consciência de possuidora. O corpus corresponde à situação de fato, em que a posse do bem, móvel ou imóvel, é atribuída à pessoa que o detém.
A simples detenção difere-se da posse pelo fato de que aquela não pressupõe o animus, enquanto a posse o pressupõe. O animus do possuidor é o mesmo do proprietário, e corresponde aos poderes que ambos exercem sobre a coisa.
A teoria de Savigny é chamada de teoria subjetiva. Para adquirir a posse, o sujeito tinha de ter contato direto com a coisa (corpus). Para conservá-la, todavia, bastava a manutenção da relação de poder, ainda que à distância.
Quanto à relação entre posse e propriedade, para Savigny a posse já traz um mínimo de autonomia frente à propriedade, porém ainda entendendo a posse como fato e a propriedade como direito.
Como o corpus é elemento essencial da posse, o contato direto com a coisa é considerado indispensável para caracterizar a posse. Quando cessa o poder físico sobre a coisa, acaba a relação possessória.
A posse é vista como busca da sua finalidade, a qual é entendida como meio de coibir a justiça privada, colocando os interditos sob execução do Estado, pensando estar, assim, eliminando a aquisição violenta da posse.
Todavia, em caso de impossibilidade da apreensão física da coisa, esta poderia ser substituída pelo poder de custódia. O dono de uma casa pode ter acesso a qualquer coisa que esteja dentro da casa, podendo se servir de qualquer uma quando entender. Assim, mesmo não estando segurando uma coisa em determinado momento, exerce posse sobre ela.
A posse é sobre a intenção de um indivíduo de exercer um direito próprio de propriedade, e não a propriedade de outrem. A vontade é um elemento essencial. Assim, Savigny exclui a posse do arrendatário, que não considera a coisa como sua, mas admite a posse da coisa roubada ao ladrão.
Para Ihering, O instituto da posse está intimamente dependente do instituto da propriedade, de modo que seu conceito é o seguinte: o possuidor é aquele que exerce sobre a coisa as mesmas atribuições conferidas pelo direito de propriedade.
Para Ihering, a origem da posse é encontrada na Casa Romana, em que o patriarca (pater familias) exercia a posse como poder de coerção.
A teoria de Ihering, chamada de teoria objetiva, é a que fora adota por Clóvis Bevilácqua no Código Civil de 1916. A posição de conservação do direito de propriedade em Ihering é clara: o reconhecimento da posse ao não-proprietário é devido apenas para se reconhecer juridicamente que esse possuidor não-proprietário turbou ou esbulhou a posse do proprietário, ou seja, o reconhecimento da posse vale apenas como prova em favor do proprietário.
Ihering sujeita totalmente a posse à propriedade, entendendo a primeira como o exercício dos poderes inerentes à propriedade. Os interditos possessórios só existem em função da propriedade, e não da posse em si mesma. Não encontra uma plena correspondência entre o poder físico e a vontade, entendendo que a vontade em si mesma é que deve ser protegida, independentemente do poder físico.
A questão das diferenças entre as concepções de Savigny e Ihering está na interpretação que cada um faz do Direito Romano. A teoria de Ihering não é pura reprodução do Direito Romano, pois sofreu influência da filosofia política dominante na sua época, o liberalismo político da burguesia, a qual afirmava o direito de propriedade, não mais pela necessidade de se afirmar a liberdade do indivíduo, mas para conservar sua situação proprietária, impondo, contra quem a agredisse, meios de proteção. Diferentemente do Direito Romano, que não demonstrou ser a posse um instituto jurídico inferior à propriedade, Ihering a considerou como tal, com uma justificação metafísica de que, na natureza, os seres inferiores precederam os superiores (ALBUQUERQUE, p. 60).
O próprio Ihering procurou criar uma sistematização das diferentes posições sobre a posse; daí surgiram as teorias relativas e as teorias absolutas. As teorias relativas entendem que a posse não existe em si mesma, mas como complemento para o exercício de outros direitos, tendo uma posição inferior na hierarquia de efetividade dos direitos. A posição de Ihering e mesmo a de Savigny se enquadram nessa corrente. As teorias absolutas passam a conceber a posse em si mesma, devendo ter uma proteção em si mesma, independentemente da verificação da propriedade. Entre o poder físico sobre a coisa e a vontade de possuir, o aspecto principal é a vontade de possuir.
Saleilles, que também é um estudioso do Direito Romano, parte da concepção de Ihering para criticá-la. Aqui a existência da posse também não depende da apreensão física, mas a partir disso afasta a dependência da posse para com a propriedade. Os dois institutos se enlaçam no aspecto objetivo, mas não no subjetivo. Traz a preocupação com o aspecto econômico da posse, ou seja, considera a importância da atribuição da posse como condição para o desenvolvimento social e econômico, base para o desenvolvimento da atividade humana, e aí se encontra a atividade de produção.
A produção teórica de Saleilles não é restrita à lógica jurídica (como são as concepções de Savigny e Ihering), pois ele vê além das relações entre o indivíduo e a coisa, para ver as relações entre indivíduos inseridos na sociedade. Daí, entende que
“[…] a posse não é só o fato presente, ou um simples ato externo, que possa prescindir dos atos anteriores que a caracterizam, e da complexidade das relações sociais, já que o direito, em suas origens, é um produto do estado social e não uma abstração lógica”. (apud ALBUQUERQUE, p. 125-126).
Para aprofundar no entendimento da posse no contexto das relações sociais, é preciso romper com a concepção da autonomia absoluta da vontade individual, preconizada nas bases do Direito Privado, resgatada do Direito Romano. Não é possível, numa sociedade marcada por enorme disparidade entre as condições materiais de sobrevivência dos indivíduos, falar em autonomia da vontade individual, como se uma relação entre indivíduo e coisa não tivesse conseqüência para outros indivíduos. A posse de um indivíduo só é legítima se não constituir obstáculo ao desenvolvimento econômico e social da coletividade.
Saleilles não chega ao ponto de considerar a posse na luta de classes, mas já rompe com a visão legalista, dizendo que “há posse apenas quando efetivamente há uma apropriação econômica consciente e querida das coisas” (apud ALBUQUERQUE, p. 128). Essa consciência ele chama de consciência social.
A independência da posse frente à propriedade cria base para a legitimidade da proteção jurídica da posse, pensamento este que legitima hoje a luta dos pobres do campo contra o latifúndio. Daí a poética citação do autor: “A posse tem sido protegida de antigo, não como vanguarda da propriedade ou dos direitos adquiridos, mas como vanguarda dos direitos conquistáveis no porvir” (apud ALBUQUERQUE, p. 130 – tradução nossa, do espanhol).
A visão da posse no contexto social, em que se busca combater a visão do direito como mera abstração e tratar os institutos jurídicos no contexto de sua finalidade, de sua utilidade e das relações sociais, foi abordada também pelos jus-civilistas Perozzi, Barassi, Hernandez Gil, Fernando Luso Soares e Joel Dias Figueira Jr. (ALBUQUERQUE, p. 121-142).
4. A posse como fato e direito
A questão da natureza jurídica da posse enseja a polêmica se ela é meramente fato ou se é direito, o que leva à definição de sua autonomia diante do instituto da propriedade. Se a posse é um direito, pode ser colocada lado a lado com a propriedade, não se entendendo mais como subordinada a esta, rompendo-se com a definição do Código Civil.
A posse como simples questão de fato e subordinada à propriedade está bem exemplificada na doutrina do romanista Ihering, aproveitada por Clóvis Bevilácqua, que deu base para a definição de possuidor do Código Civil brasileiro (arts. 1.196 e 1.204).
A posse como direito parte da constatação da relação material entre a pessoa e a coisa, que implica um direito subjetivo, o qual se entende como um “poder que a ordem jurídica confere a alguém de agir e de exigir de outrem determinado comportamento” (Antonio Menezes Cordeiro, apud ALBUQUERQUE, p. 183).
Uma das separações entre a posse e a propriedade está na formalidade contratual, em que a propriedade possui um título escrito, na maioria das vezes legitimado pelo Estado (cartório), que atribui sua titularidade (daí se vê o peso que o Estado tem para a conservação da propriedade).
A posse, por sua vez, representa o privilégio da situação fática. A proteção da posse trata, portanto, de reconhecer direito a essa situação fática, no caso concreto. A posse, hoje, está relacionada a
“[…] um querer pela necessidade do homem de ligar-se à terra e dela tirar seus frutos à medida de suas necessidades, diferentemente da propriedade, que suscitou a idéia de um poder absoluto, tornando-se fonte de exploração do homem sobre o homem, expressão da demasiada liberdade com sacrifício da igualdade entre todos” (ALBUQUERQUE, p. XVIII).
A noção de posse como direito dá maiores condições para um estudo do instituto em face dos casos concretos, sobretudo diante da conflituosa realidade brasileira, na medida em que a visão hegemônica em que se aplica o instituto parte do conceito dogmático de posse, importado do Direito Civil tradicional (Código de Napoleão), ignorante das contradições sociais.
Os obstáculos à noção de posse como direito subjetivo são encontrados numa leitura legalista dos arts. 1.225 e 1.227 do Código Civil brasileiro. O primeiro prevê um rol de direitos reais, não incluindo ali a posse; o segundo dispõe como indispensável o registro do título no Registro Imobiliário para a configuração do direito real, privilegiando a situação formal ante à situação real da relação possessória.
Outros artigos do Código Civil fazem presumir a posse como direito, como o art. 1.210, que dispõe que “o possuidor tem direito a ser mantido na posse em caso de turbação, restituído no de esbulho, e segurado de violência iminente, se tiver justo receio de ser molestado”. Todavia, na prática, esse dispositivo, aplicado em combinação com o art. 927 do Código de Processo Civil, é distorcido em favor do proprietário, sendo prática constante, nas ações “possessórias”, a concessão de liminares com a apresentação apenas do título de propriedade.
A importação dogmática do Direito Civil napoleônico ao Direito Civil brasileiro sedimentou o caráter conservador deste direito. Sua aplicação serve à perpetuação da propriedade das oligarquias latifundiárias e da burguesia especuladora imobiliária nas cidades, interesses os quais provocam a distorção do instituto da posse na aplicação do direito oficial, distorcendo os próprios princípios liberais burgueses, ao identificar a posse com a propriedade.
Albuquerque (p. 194) bem demonstra o que deve ser o instituto da posse dentro do ordenamento jurídico brasileiro, regido pela Constituição:
“A posse, em nossa dimensão territorial, é forma de aproveitamento econômico do solo e forma de produção de riqueza para o possuidor e para toda a sociedade. A posse é forma de ocupação primária, corresponde ao fim último de liberdade e de dignidade da pessoa humana, na medida em que possa estar ligada aos direitos de moradia, possa implementar a erradicação da pobreza e torne efetiva a igualdade entre todos […].”
É de se deixar claro que a doutrina da burguesia consolidada no poder (diferentemente da doutrina da burguesia outrora revolucionária) não desvincula a posse da propriedade, sendo que essa doutrina expressa mesmo a defesa da propriedade dos burgueses, e, conseqüentemente, a ausência de propriedade dos camponeses e do proletariado. A doutrina liberal, portanto, não é suficiente para fundamentar a posse no seu contexto social. Hoje, é uma doutrina conservadora, e está expressa nas origens do Direito Civil brasileiro.
Indo além da visão liberal burguesa impregnada no ordenamento jurídico brasileiro, há que se questionar as condicionantes da caracterização da posse, presentes no Código Civil, que são a posse justa (condição objetiva) e a posse de boa-fé (condição subjetiva), colocadas em abstrato. Essas definições não levam em conta as contradições sociais, ou seja, a existência de milhões de despossuídos, sobretudo no meio rural, que anseiam na posse a própria sobrevivência. Pelo Código Civil, não existe como condição caracterizadora da posse a necessidade, que é o que gera o próprio direito (WOLKMER, 1997, p. 144).
O próprio termo posse justa enseja uma ironia. Posse justa é a que não for violenta, clandestina ou precária (art. 1.200 CC). A tomada de um latifúndio por camponeses pobres sem terra, ainda que seja para sua própria sobrevivência e para nela produzir, é considerada posse violenta, e, portanto, injusta. E considera-se justa, simplesmente por possuir um título de propriedade, a posse de latifundiários que nada produzem para o aproveitamento coletivo do povo brasileiro e exercem a violência consistente na exploração do trabalho alheio.
A concepção de posse justa sofre avanços com os princípios característicos do Direito Agrário, o que será tratado no próximo tópico desta monografia. A posse justa fica vinculada ao cumprimento da função social.
Igualmente quanto à posse de boa-fé (art. 1.201 CC). Será considerado de má-fé o possuidor que produz numa terra para a própria sobrevivência e nela fixa moradia e constitui família, mas sabe que aquela porção de terra é parte de propriedade alheia.
O Direito Civil brasileiro, não só em sua dogmática, mas, sobretudo em sua aplicação, não rompeu com a visão individualista, conservadora e formalista das relações privadas, tal como é a visão de Ihering sobre a posse. O Código Civil de 2002, ainda que tenha albergado, quanto à propriedade, alguns dispositivos relativos à função social, não provocou grandes mudanças na tutela da posse exercida pelo Poder Judiciário. Assim, nos meios mais progressistas de estudantes, professores e profissionais de Direito, está ganhando respaldo a linha de Constitucionalização do Direito Civil, que tem como expoente no Brasil o professor e Procurador Regional da República Gustavo Tepedino, e, em nível mundial, o italiano Pietro Perlingieri. TEPEDINO (acesso via internet) insiste na necessidade de se aplicar diretamente no Direito Civil os dispositivos e princípios constitucionais, “seja em obediência às escolhas político-jurídicas do constituinte, seja em favor da proteção da dignidade da pessoa humana, princípio fundante do ordenamento”. Assim, reduz-se a distância entre o Direito Público e o Direito Privado. Fala-se, paralelamente à constitucionalização, em publicização do Direito Privado, como um processo de intervenção na legislação infraconstitucional, sujeitando a autonomia da vontade ao interesse público (PESSOA, acesso via internet).
5. A posse agrária
A definição de posse agrária está intimamente relacionada aos princípios instituídos pelo Direito Agrário. Uma definição apropriada do Direito Agrário é a de Marcelo Dias VARELLA (1997, p. 267): “Direito agrário é o conjunto de normas e princípios que visam regular e desenvolver a atividade agrária e promover o bem-estar da sociedade”. Outra definição mais extensiva, mas que, todavia, não enfatiza a questão dos princípios, é a de João Bosco Medeiros de SOUZA (apud VARELLA, 1997, p. 265):
“[…] ramo autônomo da ciência jurídica que, composto de normas e institutos oriundos do direito público e do direito privado, objetiva a regulamentação de direitos e obrigações concernentes à propriedade, posse e uso da terra e à atividade rural, visando a justiça social.”
O Direito Agrário como ramo autônomo do Direito é bem mais recente que o Direito Civil, inclusive, surgiu do próprio Direito Civil, mas diante da necessidade de regular as relações civis estritamente agrárias, cedendo à pressão popular trazida pelo problema agrário brasileiro, ou seja, a precariedade da vida dos camponeses e das respectivas relações de trabalho e o caráter coletivo dos conflitos agrários.
A noção do Direito Agrário é mais influenciada pela realidade social que a noção tradicional e predominante do Direito Civil. Trata-se de uma doutrina informada pelo discurso humanista da Constituição Federal de 1988[1].
Assim,
“a propriedade, de modo distinto do direito civil, não é mais garantida de forma irrestrita, ilimitada, mas submetida a obrigações legais, não é mais um direito do indivíduo, mas um encargo social” (VARELLA, 1997, p. 260).
A posse agrária é a posse da terra, marcada pela realidade brasileira de imensa concentração do território agrário sobre o sistema latifundiário, que historicamente privou os camponeses de suas terras e os tratou (e os trata) como intrusos em suas próprias terras; que determina a produção agrária nacional e se apropria dela para direcionar à exportação, enquanto milhões de brasileiros são pobres e vivem em situação de fome.
A posse agrária, assim, não pode se limitar à noção civilista tradicional e formal da posse. Na definição de Getúlio Targino LIMA, é
“o exercício direto, contínuo, racional e pacífico, pelo possuidor, de atividades agrárias desempenhadas sobre os bens agrários que integram a exploração rural a que se dedique, gerando a seu favor um direito de natureza real especial, de variadas conseqüências jurídicas, e visando ao atendimento de suas necessidades e da humanidade” (1992, p. 84).
Assim, a posse agrária, para se caracterizar, exige uma efetiva ligação entre a pessoa e a terra através do trabalho, sendo essa ligação considerada no contexto social, ou seja, sendo observadas as implicações dessa posse para os demais indivíduos da sociedade. Assim, como já entende a doutrina jus-agrarista, e mesmo a doutrina civilista mais avançada, a posse só se constitui legítima se for cumprida a sua função social; a função social é um pressuposto elementar da tutela possessória, e, conseqüentemente, do direito de propriedade (VARELLA, 1997, p. 256; TOURINHO NETO, 2000, p. 183; RUSCHEL, 1997, p. 154-155; PERLINGIERI, apud SILVEIRA, 1998, p. 14; CUNHA, 2000, p. 258; ALFONSIN, 2000, p. 209; CINTRA JÚNIOR, 2000, p. 298), conforme se verá no capítulo seguinte. Essa definição é uma das teses desta monografia, a qual será fundamental para comprovar a ilegitimidade da reintegração de posse do latifúndio em conflito agrário coletivo sem verificação da função social.
Ainda hoje, a legislação agrarista não regulamentou de forma clara a posse agrária, de modo a diferenciá-la da posse civil e servir de parâmetro para as decisões judiciais em matéria de conflitos agrários. Isso, porém não é justificativa pertinente para que os juízes apliquem a concepção privatista de posse nesses casos, pois este seria um argumento legalista, e até mesmo pelo que dispõe o art. 4° da Lei de Introdução ao Código Civil: “quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais do direito”, e o art. 126 do CPC: “O juiz não se exime de sentenciar ou despachar alegando lacuna ou obscuridade na lei. No julgamento da lide, caber-lhe-á aplicar as normas legais; não as havendo recorrerá à analogia, aos costumes e aos princípios gerais do direito”.
6. Conclusão
O presente trabalho, tomando a importante contribuição científica da obra Função Social da Posse e sua conseqüência frente à situação proprietária, logrou abordar uma concepção crítica do instituto da posse. Buscou-se uma ruptura com o conceito tradicional de posse, que exclui as relações sociais dela decorrentes e suas repercussões, restringindo a uma apreciação hermética de uma suposta relação entre pessoa e coisa.
A abordagem crítica da posse é de grande importância, sobretudo para o trato dos conflitos possessórios no âmbito rural, conflitos estes que se sobressaem como um dos grandes problemas sociais a serem resolvidos pela sociedade brasileira, marcada pela concentração fundiária.
Advogado em Goiânia. Pós-graduando em Direito Agrário (UFG). Pós-graduando em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho (UFG).
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