Resumo: O presente trabalho tem por objetivo estudar a evolução dos direitos humanos no direito brasileiro. Abordaremos para tanto alguns conceitos básicos em matéria de direitos humanos, ressaltando a importância da diferenciação terminológica entre direitos humanos e direitos fundamentais, bem como as manifestações e os instrumentos de sua efetiva proteção nas Constituições pátrias até a Constituição de 1988.
Palavras-chave: Direitos Humanos. Direitos Fundamentais. Constituição Federal.
Sumário: 1. Introdução. 2. Conceituação e terminologia: Direitos Humanos e Direitos Fundamentais. 3. As gerações de direitos fundamentais. 4. Desenvolvimento histórico-constitucional: a proteção aos direitos humanos nas Constituições brasileiras. 5. A Constituição Federal de 1988. 5.1. As cláusulas pétreas. 5.2. As garantias fundamentais. 6. Conclusão
1. Introdução:
A ideia de direitos humanos tem seu surgimento ligado à necessidade de defesa do cidadão contra as ingerências do Estado, de seus agentes, e também contra os excessos de poder e violações praticadas por entes privados.
Com o escopo de atender aos anseios dos cidadãos neste sentido, foi estabelecido um conjunto de valores intangíveis, os quais terminaram por serem manifestados em instrumentos normativos internos, consubstanciados, nos ordenamentos jurídicos contemporâneos, nas Constituições de cada Estado soberano.
Tais valores, que no início eram tratados como assuntos domésticos de cada Estado, passaram por um processo de internacionalização, de forma a permitir ingerências externas no plano nacional em prol de sua proteção.
Não obstante a grande importância dos mecanismos de proteção próprios da esfera internacional, o presente estudo será voltado à trajetória histórica dos direitos humanos positivados, ou seja, das garantias e direitos fundamentais nas sucessivas ordens constitucionais brasileiras.
2. Conceituação e terminologia: Direitos Humanos e Direitos Fundamentais
O termo “direitos humanos” é um dos mais utilizados na cultura jurídica e na política atual, pelos profissionais do direito e pelos cidadãos. Pode-se dizer que é bem próximo da idéia de Direito Natural, presente nos séculos XVII e XVIII, uma vez que, tal qual este, funciona como uma garantia para a dignidade da pessoa humana e de igualdade entre os seres, além de ter a função reguladora da legitimidade dos sistemas políticos e ordenamentos jurídicos.
Definir direitos humanos não é tarefa fácil. Contudo, todas as definições convergem para algo que, pela própria nomenclatura, é inerente à natureza do homem. Neste sentido, o relator da Comissão de Direitos Humanos (CES – ONU), Charles Malik, afirmava em 1947, que:
“A expressão ‘Direitos do Homem’ refere-se obviamente ao homem, e com ‘direitos’ só se pode designar aquilo que pertence à essência do homem, que não é puramente acidental, que não surge e desaparece com a mudança dos tempos, da moda, do estilo ou do sistema; deve ser algo que pertence ao homem como tal”. [1]
Seriam dotados, portanto, dos caracteres da universalidade e da generalidade, a saber, válidos para todos os homens, em todos os tempos. Entretanto, tais características são de difícil realização e a inobservância se justifica em virtude da diversidade cultural. Critica-se, então, essa suposta universalidade, pois ela é baseada em uma ética universal que não existe e abstrai os homens de seu contexto social, olvidando-se que o ser humano se define por sua cultura.
À guisa de explicação, os direitos humanos seriam conceituados como os direitos supra-positivos, ou seja, os que não resultam de uma concessão da sociedade política, mas constituem prerrogativas inerentes à condição humana.
A princípio, é primordial ressaltar a confusão terminológica e a equivocidade do vocábulo, além do costume dos doutrinadores e dos aplicadores do Direito de utilizarem distintas palavras para expressar o mesmo fenômeno.
Aliás, a própria Constituição Federal não foi conseqüente na terminologia, empregando, em vários momentos, expressões distintas como sinônimas, a despeito de consagrar o termo “direitos fundamentais”. É de se ver: a) direitos humanos (art. 4º, II; art. 5º, § 3º; art. 7º do ADCT); b) direitos e liberdades fundamentais (art. 5º, XLI); c) direitos e liberdades constitucionais (art. 5º, LXXI); d) direitos fundamentais da pessoa humana (art. 17, caput); e) direitos da pessoa humana (art. 34, VII, b); f) direitos e garantias individuais (art. 60, § 4º, IV); g) direito público subjetivo (art. 208, § 1º).
Na realidade, cada um dos termos utilizados para designar os direitos essenciais à pessoa humana tem uma conotação diversa, derivada do contexto histórico, sobretudo, dos interesses e das ideologias da época. Por exemplo, as expressões “liberdades fundamentais” e “liberdades públicas” carregam estreitas ligações com as concepções de tradição individualista, abarcando apenas as liberdades individuais clássicas, os chamados “direitos de liberdade”, olvidando-se dos direitos sociais, econômicos, culturais e ambientais. Além dessas, a expressão “direitos morais” mutila a faceta jurídica desses direitos e cumpre a mesma função que “direitos naturais”, remetendo-nos à dicotomia jusnaturalismo e juspositivismo.
Não obstante, na busca de uma expressão adequada os doutrinadores, em sua maioria, apontam para os “direitos fundamentais”, instrumentos jurídicos, necessariamente submetidos a determinado ordenamento jurídico. Existem normas de direitos fundamentais, pertencentes a um sistema, que situam os sujeitos titulares desses direitos em uma determinada posição, com satisfação aos critérios de validade formal e material.
No entendimento de J. J. Gomes Canotilho, os direitos fundamentais:
“Cumprem a função de direitos de defesa dos cidadãos sob uma dupla perspectiva: (1) constituem, num plano jurídico-objectivo, normas de competência negativa para os poderes públicos, proibindo fundamentalmente as ingerências destes na esfera jurídica individual; (2) implicam, num plano jurídico-subjectivo, o poder de exercer positivamente direitos fundamentais (liberdade positiva) e de exigir omissões dos poderes públicos, de forma a evitar agressões lesivas por parte dos mesmos (liberdade negativa)”. [2]
Todavia, costuma-se aceitar a utilização das expressões “direitos humanos” e “direitos fundamentais” indistintamente, como sinônimas. Tal posicionamento é comum à maioria dos autores, manifestando-se, neste sentido Ingo Wolfgang Sarlet:
“Em que pese sejam ambos os termos (‘direitos humanos’ e ‘direitos fundamentais’) comumente utilizados como sinônimos, a explicação corriqueira e, diga-se de passagem, procedente para a distinção é de que o termo ‘direitos fundamentais’ se aplica para aqueles direitos do ser humano reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional positivo de determinado Estado, ao passo que a expressão ‘direitos humanos’ guardaria relação com os documentos de direito internacional, por referir-se àquelas posições jurídicas que se reconhecem ao ser humano como tal, independentemente de sua vinculação com determinada ordem constitucional, e que, portanto, aspiram à validade universal, para todos os povos e tempos, de tal sorte que revelam um inequívoco caráter supranacional (internacional)”.[3]
Paulo Bonavides, por sua vez, afirma que razões de vantagem didática recomendam, para maior clareza e precisão, o uso das duas expressões com leve variação de percepção, sendo a fórmula “direitos humanos”, por suas raízes históricas, adotada para se referir aos direitos da pessoa humana antes de sua constitucionalização ou positivação nos ordenamentos nacionais, enquanto “direitos fundamentais” designam os direitos humanos quando trasladados para os espaços normativos.[4]
Extrai-se, portanto, a diferenciação entre ambos os termos. Os direitos humanos se identificam com as pretensões morais vinculadas ao indivíduo, que o acompanham independentemente do amparo do ordenamento e os direitos fundamentais, em contrário, são direitos cuja titularidade depende do reconhecimento jurídico dessas pretensões morais, por seu conteúdo e importância, e da articulação efetiva de mecanismos de proteção e garantia.
3. As gerações de direitos fundamentais
Como direitos humanos positivados, os direitos fundamentais encontram-se divididos, em virtude da paulatina evolução, em quatro gerações. As três primeiras correspondem ao lema revolucionário do século XVIII, a saber: liberdade, igualdade e fraternidade.
Consoante explica Walber de Moura Agra, a doutrina moderna prefere o termo dimensão ao termo geração, pois ele sugere que não existe uma alternância nas prerrogativas, mas uma evolução, contribuindo cada fase anterior na elaboração da fase posterior. A terminologia geração poderia produzir um falso entendimento de que uma geração substituiria a outra, sem uma continuidade temporal entre elas. [5]
Esclarece o doutrinador:
“As dimensões de direitos são quantitativas e qualitativas. Uma dimensão posterior incorpora direitos da anterior e acrescenta uma nova densidade de prerrogativas aos cidadãos que até então não existia. Não se pode precisar um término para a evolução dos direitos fundamentais. Ela é infinita, consolidada uma dimensão, imediatamente outra começa a se consolidar. Enquanto o ser humano continuar a produzir valores, as suas necessidades a cada dia se avolumarão, sem se poder precisar um final para a saciedade dos interesses humanos”. [6]
No mesmo sentido, Ingo Sarlet aduz que:
“Num primeiro momento, é de se ressaltarem as fundadas críticas que vêm sendo dirigidas contra o próprio termo “gerações” por parte da doutrina alienígena e nacional. Com efeito, não há como negar que o reconhecimento progressivo de novos direitos fundamentais tem o caráter de um processo cumulativo, de complementariedade, e não de alternância, de tal sorte que o uso da expressão “gerações” pode ensejar a falsa impressão da substituição gradativa de uma geração por outra, razão pela qual há quem prefira o termo “dimensões” dos direitos fundamentais, posição esta que aqui optamos por perfilhar, na esteira da mais moderna doutrina”.[7]
Sem embargo das consagradas opiniões, o termo geração ainda é o mais utilizado em matéria de direitos fundamentais, até mesmo porque, tradicionalmente, é reservado ao termo “dimensões” outro significado nesta seara. [8]
Assim, a primeira geração dos direitos fundamentais é composta dos direitos de liberdade, os quais abrangem os direitos civis e políticos, igualmente chamados de direitos de resistência, de defesa e direitos negativos. São, em geral, direitos contra o Estado, que deve se abster de certas práticas a fim de preservar a esfera de autonomia privada do cidadão.
A gênese dessa geração de direitos foi a resistência (da classe burguesa) contra o Estado opressor, contra os privilégios da realeza, contra o modelo feudal que oprimia a burguesia incipiente. Para a realização dos direitos de primeira geração, bastou o surgimento do Estado de Direito, em que a atuação dos entes estatais deveria ser feita mediante lei, suprimindo a vontade despótica do rei. [9]
Correspondem à fase inicial do constitucionalismo e hoje, já concretizados, todas as Constituições democráticas os reconhecem em toda a extensão.
Em contraposição, a segunda geração dos direitos fundamentais elenca direitos que exigem atividades do Estado, no sentido de atender às necessidades da população. Leciona Walber Agra: “os direitos de segunda dimensão produzem uma simbiose entre o Estado e a sociedade, propiciando que a igualdade saia da esfera formal e adentre na esfera material, garantindo direitos a todos, principalmente àquela parte da população que é carente de recursos”. [10]
Quanto a esses direitos de segunda geração, sintetiza Paulo Bonavides:
“São os direitos sociais, culturais e econômicos bem como os direitos coletivos ou de coletividades, introduzidos no constitucionalismo das distintas formas de Estado social, depois que germinaram por obra da ideologia e da reflexão antiliberal do século XX. Nasceram abraçados ao princípio da igualdade, do qual não se podem separar, pois fazê-lo equivaleria a desmembrá-los da razão de ser que os ampara e estimula”. [11]
A primeira Constituição que garantiu uma longa lista de direitos sociais foi promulgada no México em 5 de fevereiro de 1917. Posteriormente, também a Constituição de Weimar, em 1919, nascida em um período de profundas perturbações, organizou as bases da democracia social, trazendo em seu bojo uma série de disposições sobre educação e direitos trabalhistas e previdenciários.
Como direitos que exigem uma atuação do Estado, os direitos de segunda geração foram remetidos à esfera programática por não conterem, em si, os elementos de sua aplicação, embora, assim como os direitos de fundamentais de liberdade, tenham aplicabilidade imediata.
Os direitos de terceira geração são identificados, de forma geral, como sendo o direito à fraternidade (ou solidariedade), abrangendo o direito ao desenvolvimento, o direito à paz, o direito ao meio ambiente equilibrado, direito ao patrimônio histórico, artístico e cultural e à autodeterminação dos povos. É possível, entretanto, que haja outros em fase de gestação, típicos de tal dimensão do direito.
Pode-se falar na globalização desses direitos, pois eles ultrapassam os limites do país. No âmbito internacional, se manifestam nas relações entre os Estados, para que sejam de cooperação, em que a ajuda dos países mais ricos aos mais pobres seja estimulada.
Preceitua Paulo Bonavides:
“Com efeito, um novo pólo jurídico de alforria do homem se acrescenta historicamente aos da liberdade e da igualdade. Dotados de altíssimo teor de humanismo e universalidade, os direitos de terceira geração tendem a cristalizar-se no fim do século XX enquanto direitos que não se destinam especificamente à proteção dos interesses de um indivíduo, de um grupo ou de um determinado Estado. Têm primeiro por destinatário o gênero humano mesmo, num momento expressivo de sua afirmação como valor supremo em termos de existencialidade concreta. Os publicistas e juristas já os enumeram com familiaridade, assinalando-lhe o caráter fascinante de coroamento de uma evolução de trezentos anos na esteira da concretização dos direitos fundamentais”. [12]
Conforme se depreende dos ensinamentos do multirreferido autor, a titularidade passa a ser difusa, pois o destinatário é o homem em termos de gênero humano. Assim, a responsabilidade para a concretização dos direitos de terceira geração também será coletiva, não mais dependendo apenas da atuação estatal, o cidadão adquire especial participação.
É inegável que tais direitos têm sido incorporados nos ordenamentos constitucionais positivos e vigentes de todo o mundo, sendo exemplos a Constituição da República do Chile (art. 19, § 8º), a Constituição republicana da Coréia (art. 35, 1) e a Constituição brasileira (art. 225).
Por fim, a quarta e última geração de direitos fundamentais ainda está em fase de construção teórica. Em linhas gerais são os direitos à democracia, à informação e ao pluralismo e têm por escopo integrar o cidadão nas decisões políticas tomadas pelos entes governamentais, intensificando o grau de democracia.
De acordo com Walber Agra:
“Nessa evolução dos direitos fundamentais chama atenção o relevo que adquirem a democratização da informação e os mecanismos da democracia participativa. A primeira não se caracteriza apenas pela existência de uma mídia plural, sem nenhum tipo de monopólio, mas deve ser concebida como a obrigação que todos os cidadãos têm de tomar consciência dos graves problemas que afligem a coletividade. Os segundos concebem a cidadania em uma extensão muito superior à do voto, abrangendo a interferência direta do cidadão nas decisões governamentais, mediante vários mecanismos jurídicos, como o plebiscito, o recall, o orçamento participativo etc”. [13]
Exemplificando, o mesmo autor cita como direitos de quarta geração: a participação política efetiva, a garantia de institutos da democracia participativa, a liberdade ampla de informação, a pluralidade de informação, o aprimoramento do regime democrático, a manipulação genética, a liberdade de mudança de sexto etc.
4. Desenvolvimento histórico-constitucional: a proteção aos direitos humanos nas Constituições brasileiras
A proteção aos direitos humanos no Brasil está vinculada, diretamente, à história das Constituições brasileiras, marcada por avanços e retrocessos.
A primeira Constituição do Brasil, a Constituição Imperial de 1824, proclamou os direitos fundamentais nos 35 incisos de seu art. 179. Apesar de outorgada, mostrou-se uma Constituição liberal, elencando direitos semelhantes aos encontrados nos textos constitucionais dos Estados Unidos e da França, pregando a inviolabilidade dos direitos civis e políticos. A efetivação de tais direitos foi prejudicada, contudo, pela criação do Poder Moderador que concedia ao imperador poderes constitucionalmente ilimitados, interferindo no exercício dos demais Poderes.[14]
A Constituição Republicana de 1891 manteve, em seu art. 72, composto de 31 parágrafos, os direitos fundamentais especificados na Constituição de 1824. Além disso, no rol de direitos e garantias fundamentais, previu o instituto do habeas corpus, anteriormente garantido tão somente em nível de legislação ordinária, e com a rígida separação entre o Estado e a Igreja houve intensa liberdade de culto a todas as pessoas.[15]
Observe-se, também, que houve uma ampliação na titularidade dos direitos fundamentais, pois eles passaram a ser garantidos “a brasileiros e estrangeiros residentes no país” (art. 72, caput), enquanto a Constituição de 1824 os reconhecia somente aos “cidadãos brasileiros” (art. 179).[16]
Uma lista de direitos fundamentais, semelhante àquela especificada na Constituição de 1981, pode ser encontrada na Constituição de 1934. Destaque-se importante inovação ocorrida: com a ruptura da concepção liberal do Estado, foram positivados nos textos constitucionais elementos sócio-ideológicos, típicos da segunda dimensão. Foram estatuídas normas de proteção ao trabalhador, tais como a proibição de diferença de salário em razão de sexo, idade, nacionalidade ou estado civil, proibição de trabalho para menores de 14 anos de idade, repouso semanal remunerado, limitação da jornada a 8 horas diárias, estipulação de um salário mínimo, entre outras, e também foram criados os institutos do mandado de segurança e da ação popular (art. 113, incs. 33 e 38).
A Constituição de 1937, inspirada na Carta ditatorial polonesa de 1935, instaurando o Estado Novo, reduziu os direitos e garantias individuais, empreendendo a desconstitucionalização do mandado de segurança e da ação popular, os quais foram restaurados e ampliados com a Constituição de 1946, bem como os direitos sociais.[17]
Em seguida, a Constituição de 1946 foi derrubada com a ditadura e a próxima Carta, a de 1967, trouxe inúmeros retrocessos, suprimindo a liberdade de publicação, tornando restrito o direito de reunião, estabelecendo foro militar para os civis, mantendo todas as punições e arbitrariedades decretadas pelos Atos Institucionais, etc.
No âmbito dos direitos sociais, o constituinte de 1967 continuou retrocedendo: reduziu a idade mínima de permissão para o trabalho para 12 anos, restringiu o direito de greve, acabou com a proibição de diferenciação de salários por motivos de idade e de nacionalidade, recompensando o trabalhador com ínfimas vantagens, como por exemplo, o salário-família.
A partir de 17 de outubro de 1969, a Constituição brasileira de 1967 sofreu significativa e substancial reforma, através de emendas aditivas, modificativas e supressivas. Contudo, doutrinadores[18] sustentam que, a rigor, vigorou apenas até 13 de dezembro de 1968, quando foi baixado o Ato Institucional nº 5, o qual repetiu todos os poderes discricionários conferidos ao presidente pelo AI-2 e ainda ampliou a margem de arbítrio, deu ao governo a prerrogativa de confiscar bens e suspendeu a garantia do habeas corpus nos casos de crimes políticos, contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia popular.
O AI-5, então, não se coaduna com a doutrina dos direitos humanos, tampouco a Emenda de 1969, que incorporou em seu texto as medidas autoritárias dos Atos Institucionais.
Por fim, após enérgica luta do povo brasileiro pela volta ao Estado de Direito, a Constituição brasileira de 1988, conhecida por “Constituição Cidadã”, veio para proteger os direitos do homem, sendo uma das mais avançadas do mundo neste sentido, merecendo destaque em tópico apartado.
5. A Constituição Federal de 1988
Iniciado o processo de redemocratização, depois de 21 anos de regime ditatorial, foi convocada pela Emenda Constitucional n. 26, em 27 de novembro de 1985, a Assembléia Nacional Constituinte, a qual desembocou na promulgação da Constituição brasileira de 1988, propiciando um significativo avanço no que se refere aos direitos e garantias fundamentais, pois pela primeira vez, na história do constitucionalismo pátrio, a matéria foi tratada com a devida relevância. [19]
A sedes materiae é o Título II, que trata “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”, regulamentando os direitos individuais, coletivos, sociais e políticos, assim como as respectivas garantias.[20] Não obstante, a Constituição de 1988 refere-se aos direitos fundamentais em diversas partes de seu texto, não se caracterizando pela sistematicidade, exempli gratia, os direitos fundados nas relações econômicas foram insertos nos artigos 170 a 192.
Em seu artigo 5º, traz um extenso rol de direitos, preponderando as chamadas liberdades individuais, direitos do cidadão contra o Estado. Ao lado destes, prescreve também direitos coletivos e deveres individuais coletivos. O art. 6º define os direitos sociais a serem concretizados por todos os órgãos estatais. O art. 7º eleva os direitos dos trabalhadores a nível constitucional, o que traz relevantes conseqüências dogmáticas, como a incidência do dever estatal de tutela, sendo que a omissão ou não cumprimento deste dever pelo Estado dá azo a ações constitucionais. [21]
Consoante observa Ingo Sarlet, sobre a Constituição de 1988:
“A marca do pluralismo se aplica ao título dos direitos fundamentais, do que dá conta a reunião de dispositivos reconhecendo uma grande gama de direitos sociais, ao lado dos clássicos, e de diversos novos direitos de liberdade, direitos políticos, etc. Saliente-se, ainda no que diz com este aspecto, a circunstância de que o Constituinte – a exemplo do que ocorreu com a Constituição Portuguesa – não aderiu nem se restringiu a apenas uma teoria sobre direitos fundamentais, o que teve profundos reflexos na formação do catálogo constitucional destes”. [22]
Mais adiante, afirma o autor:
“A amplitude do catálogo dos direitos fundamentais, aumentando, de forma sem precedentes, o elenco dos direitos protegidos, é outra característica preponderantemente positiva digna de referência. Apenas para exemplificar, o art. 5º possui 78 incisos, sendo que o art. 7º consagra, em seus 34 incisos, um amplo rol de direitos sociais dos trabalhadores. (…) Neste contexto, cumpre salientar que o catálogo dos direitos fundamentais (Título II da CF) contempla direitos fundamentais das diversas dimensões, demonstrando, além disso, estar em sintonia com a Declaração Universal de 1948, bem assim com os principais pactos internacionais sobre Direitos Humanos, o que também deflui do conteúdo das disposições integrantes do Título I (dos Princípios Fundamentais)”.[23]
O constituinte de 1988, ademais, previu uma inovação, ao dispor, no art. 5º, § 2º que “Os direitos e garantias expressos nesta constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais de que a República Federativa do Brasil seja parte”. Assim, houve uma ampliação do bloco de constitucionalidade[24], cuja intenção foi proteger, in continenti, os direitos humanos, ou seja, além dos que estão escritos no texto constitucional, incluindo-se os direitos decorrentes dos tratados, pactos, cartas, convênios, protocolos, entre outros.
5.1. As cláusulas pétreas
Uma das normas mais importantes da Constituição de 1988, dentro da temática dos direitos fundamentais, é a que implantou o sistema das cláusulas pétreas, fixadas no art. 60, § 4º, da Lei Maior.
Impõe-se uma restrição material ao Poder Constituinte Reformador, como uma manifestação, nas palavras de Ingo Wolfgang Sarlet, da chamada “eficácia protetiva” dos direitos fundamentais, pois não se permitem alterações na Constituição que desvirtuem o conteúdo desses direitos. Nas palavras do referido autor:
“A existência de limites materiais justifica-se, portanto, em face da necessidade de preservar as decisões fundamentais do Constituinte, evitando que uma reforma ampla e ilimitada possa desembocar na destruição da ordem constitucional, de tal sorte que por detrás da previsão destes limites materiais se encontra a tensão dialética e dinâmica que caracteriza a relação entre a necessidade de preservação da Constituição e os reclamos no sentido de sua alteração”. [25]
Ademais, logo adiante observa:
“Com efeito, se a imutabilidade da Constituição acarreta o risco de uma ruptura da ordem constitucional, em virtude do inevitável aprofundamento do descompasso em relação à realidade social, econômica, política e cultural, a garantia de certos conteúdos essenciais protege a Constituição contra os casuísmos da política e o absolutismo das maiorias (mesmo qualificadas) parlamentares. Os limites à reforma constitucional, de modo especial, os de cunho material, traçam, neste sentido, a distinção entre o desenvolvimento constitucional e a ruptura da ordem constitucional por métodos ilegais (neste caso, inconstitucionais), não tendo, porém, o condão de impedir (mas evitar) a frustração da vontade da Constituição, nem o de proibir o recurso à revolução, podendo, em todo caso, retirar a esta máscara da legalidade”. [26]
No mesmo sentido, para Gilmar Mendes, as cláusulas pétreas traduzem, em verdade, um esforço do constituinte para assegurar a integridade da Constituição, obstando que eventuais reformas provoquem a destruição, o enfraquecimento ou impliquem profunda mudança de identidade, pois a Constituição contribui para a continuidade da ordem jurídica fundamental, à medida que impede a efetivação do término do Estado de Direito democrático sob a forma de legalidade. [27]
Estando resguardadas contra as reformas constitucionais, para alguns autores, são normas “super-fundamentais”. [28] Não obstante, o legislador constituinte atribuiu o mesmo valor jurídico a todos os direitos fundamentais, preconizando a fundamentalidade formal, ou melhor, preceituando a inexistência de hierarquia entre os direitos estabelecidos na Constituição, quaisquer que sejam.
Cumpre esclarecer, entretanto, a imprecisão terminológica do legislador, ao prever no art. 60, § 4º, IV que não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir “os direitos e garantias individuais”. Ora, é equivocado apegar-se à literalidade do dispositivo, deixando à margem da proteção outros direitos e garantias que não sejam os individuais. Portanto, a doutrina é uníssona em afirmar que o inciso IV vai além das liberdades públicas clássicas de primeira geração. Desse modo, como explica Uadi Lammêgo Bulos:
“(…) o inciso IV cumpre ser concebido como elemento protetor dos direitos e garantias fundamentais. O qualificativo “individuais”, se tomado na sua acepção literal, gramatical ou filológica, gera problemas muito complexos, dentre os quais a própria possibilidade de supressão de garantias intocáveis, sob o argumento de se estar empreendendo correções constitucionais. Acabaríamos esbarrando na tese da dupla revisão, inadmissível, do ponto de vista jurídico. (…)
Sendo assim, além das liberdades públicas tradicionais, os direitos sociais, econômicos, coletivos, difusos e individuais homogêneos não poderão ser objeto de emendas tendentes a aboli-los, quiçá, modificá-los, adaptando-lhes a esta ou àquela contingência. Ou se faz uma nova Constituição, ou se cumpre a que já foi promulgada, desde 5 de outubro de 1988, com os seus óbices, imperfeições, atecnias, vícios, virtudes, inovações, avanços e minúcias”. [29]
De modo bastante genérico, essas vedações materiais – equivalentes às cláusulas pétreas – já estavam presentes naquelas velhas constituições do século passado. Com a Segunda Grande Guerra Mundial elas proliferaram, em decorrência das mudanças de regime, a exemplo da Alemanha, onde a ordem jurídica se consolidou através da subversão dos processos de reforma constitucional. [30]
As cláusulas pétreas, portanto, são universais. Há muito tempo vêm consolidadas nos mais diversos ordenamentos constitucionais, a exemplo das Cartas albanesa de 1925 (art. 141), francesa de 1946 (art. 95), italiana de 1947 (art. 139), grega de 1951 (art. 108) e portuguesa de 1976 (art. 290)[31], e constituem instrumento indispensável à proteção dos direitos e garantias fundamentais e do Estado Democrático de Direito.
5.2. As garantias fundamentais
As garantias fundamentais correspondem às disposições que objetivam prevenir ou corrigir violações aos direitos fundamentais protegidos pelo ordenamento jurídico.
Observam-se, no corpo da Constituição, normas que enunciam direitos e normas que prescrevem os instrumentos para assegurá-los. Não raras vezes, encontram-se ambas inseridas em um mesmo dispositivo. Aliás, a Constituição de 1988 não separa com exatidão os direitos das garantias fundamentais, elencando-os, indistintamente, em seu Título II (Dos Direitos e Garantias Fundamentais).
Nesta matéria, a doutrina consagra a lição de Rui Barbosa, segundo o qual é possível distinguir as disposições constitucionais meramente declaratórias, que positivam os direitos e a estes reconhecem existência legal, das de natureza assecuratórias, que protegem os direitos e limitam o poder. [32]
No atinente às garantias fundamentais, Uadi Lammêgo Bulos apresenta a seguinte classificação:
“1ª) garantias fundamentais gerais: vêm convertidas naquelas normas constitucionais que proíbem os abusos de poder e todas as espécies de violação aos direitos que elas asseguram e procuram tornar efetivos. Consignam técnicas de limitação das arbitrariedades do Poder Público, contra toda e qualquer forma de discriminação à pessoa humana. Esboçam-se através de princípios insculpidos pelo constituinte, eg., princípio da legalidade (art. 5º, II), princípio da liberdade (art. 5º, IV, VI, IX, XIII, XIV, XV, XVI, XVII etc.), princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional (art. 5º, XXXV), princípio do juiz e do promotor natural (art. XXXVII e LIII), princípio do devido processo legal (art. 5º, LIV), princípio do contraditório (art. 5º, LV), princípio da publicidade dos atos processuais (arts. 5º, LX e 93, IX) etc.
2ª) garantias fundamentais específicas – são as garantias propriamente ditas, porquanto são estas que instrumentalizam, verdadeiramente, os direitos, fazendo valer o conteúdo e a materialidade das garantias fundamentais gerais. Através das garantias fundamentais específicas os titulares dos direitos encontram a forma, o procedimento, a técnica, o meio de exigir a proteção, incondicional, de suas prerrogativas. Veja-se o exemplo do habeas corpus, do mandado de segurança, do mandado de segurança coletivo, do mandado de injunção, do habeas data, da ação popular, da ação civil pública – lídimos instrumentos de tutela constitucional, concedidos pela constituição aos particulares e, em alguns casos, a uma pluralidade de indivíduos, a fim de terem, ao seu dispor, institutos de natureza processual. Estes, vertidos em normas constitucionais, encarregam-se de manter o respeito e a exigibilidade dos direitos fundamentais do homem. Numa palavra logram o caráter instrumental, propiciando a obtenção de vantagens e benefícios que defluem dos direitos que visam tutelar”.[33]
Paulo Bonavides, de outra forma, elucida as chamadas garantias institucionais, definidas como “a proteção que a Constituição confere a algumas instituições, cuja importância reconhece fundamental para a sociedade, bem como a certos direitos fundamentais providos de um componente institucional que os caracteriza”.[34] Como exemplos de garantias institucionais, vide as normas que protegem a propriedade (art. 5º, XXII), a herança (art. 5º, XXX) e o Tribunal do Júri (art. 5º, XXXXVIII).
Destarte, feitos os devidos esclarecimentos, restringimo-nos a ilustrar a importante diferenciação entre direitos e garantias fundamentais, sendo estas últimas um meio de proteção àqueles, porquanto uma análise mais apurada das diversas espécies de garantias escapa à finalidade do presente trabalho.
6. Conclusão:
Observa-se que desde a primeira constituição brasileira, outorgada em 1824, já havia uma nítida preocupação com a inviolabilidade dos direitos fundamentais. Esta Carta, em que pese não ter sido democraticamente promulgada, proclamou os direitos civis e políticos nos 35 incisos de seu artigo 179.
Sem embargo de sua importância como início do amparo a tais direitos no ordenamento jurídico pátrio, somente com a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, a chamada “Constituição Cidadã”, é que pode se falar em efetiva proteção aos direitos fundamentais no Brasil.
Como se vê, a Constituição Federal de 1988, além de arrolar direitos individuais, também elenca vasto rol de direitos coletivos, sociais, direitos de nacionalidade e direitos políticos, os quais podem ser encontrados também fora de seu corpo, define as garantias aptas à proteção de tais direitos e torna-os intangíveis, vedando alterações que reduzam a esfera do cidadão.
Procuradora Federal. Pós-graduada em Ciências Penais
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