Em estudo anterior denominado “PROLEGÔMENOS DE BIODIREITO E BIOÉTICA”, sugerimos a definição de Biodireito como sendo o ramo do direito público, composto por um conjunto de princípios e normas que orientam a conduta do ser humano, diante do avanço tecnológico experimentado pela sociedade moderna, no trato de questões de alta complexidade, concernente ao tratamento médico-científico dispensado aos membros de uma coletividade.
Em simples termos, Biodireito é o ramo do direito público que tem por objeto regular as questões médico-científicas da sociedade atual, preconizando o melhor tratamento possível ao paciente.
Nessa vertente, salta aos olhos a íntima influência desse inovador e importante ramo da ciência jurídica com questões que assolam os mais acalorados debates jurídicos da atualidade, provocando constantes questionamentos sobre qual a melhor forma de cada ordenamento jurídico regulamentar temas como a fertilização in vitro, o aborto, a clonagem, a eutanásia, os transgênicos e as pesquisas com células tronco, bem como a responsabilidade de cientistas em suas pesquisas e suas aplicações.
O presente estudo objetiva abordar uma questão pontual, contribuindo para esse debate e, tão somente, provocar uma reflexão em seus leitores sobre o tema proposto à luz de considerações técnico-jurídicas e, sempre, norteando-se pelo princípio basilar da dignidade da pessoa humana. Trata-se da Eutanásia.
Tal tema, já de longa data, provoca os mais variados debates interdisciplinares, envolvendo estudiosos e cientistas de vários ramos do conhecimento, entre eles, Biotecnologia, Medicina, Direito, Teologia, dentre outros.
Historicamente[1], a questão remonta à civilização greco-romana, passando pelos estudos filosóficos de Thomas More e Francis Bacon, que defendiam a prática da eutanásia ativa entre seus contemporâneos.
Seguiu-se com o tema, tornando-se polêmica e altamente condenável as teses do jurista alemão Binding e do psiquiatra Hoche, que defendiam a eutanásia motivada por questões genéticas, doutrinas essas que eclodiam no contexto da 2ª Guerra Mundial, que nada mais eram do que cortinas cruéis que tentavam acobertar as práticas desumanas e absurdas do sistema hitlerista.
É bem verdade que a presente questão, até os dias de hoje, assola a comunidade científica e provoca amplos debates sobre sua classificação e se haveria algum tipo de eutanásia da qual os sistemas jurídicos devessem convalescer.
Partindo-se para uma definição preliminar, pode-se entender Eutanásia como sendo o procedimento terapêutico que tem por finalidade abreviar, de maneira controlada e assistida por um especialista, a vida de uma pessoa com doença incurável.
O ser humano, neste quadro, encontra-se em altíssimo grau de debilidade, acometido de doença incurável e extremamente tortuosa ou, até mesmo, que já se encontra em estado terminal de saúde, onde a sobrevida somente se mostra possível através de aparelhos médico-hospitalares.
A etimologia da palavra a traduz como sendo a boa morte, aquela que é praticada por motivo piedoso e que visa primordialmente a abreviar o sofrimento da vítima.
A doutrina reconhece tal prática, diante de nosso ordenamento jurídico, como homicídio privilegiado, em sua modalidade por motivo de relevante valor moral.
Segundo o grande doutrinador, Gianpaolo Poggio Smanio[2], o homicídio eutanásico ou eutanásia pode ser definido como o “comportamento que dá lugar à antecipação ou não-adiamento da morte de uma pessoa que sofre de uma lesão ou enfermidade incurável, geralmente mortal, que lhe causa graves sofrimentos ou afeta consideravelmente sua qualidade de vida”. E continua, “o consentimento da vítima em nada altera a tipificação do crime”.
Segue o suso mencionado mestre e doutrinador, ao lecionar acerca dos vários tipos de eutanásia que o Direito e as Ciências Médicas reconhecem[3]. São eles:
I – eutanásia ativa: consiste na realização de condutas positivas com a finalidade de concretizar o evento morte a alguém, eliminando ou aliviando o seu sofrimento. Este gênero comporta duas espécies:
a) eutanásia ativa direta – quando o autor possui como objetivo primário o encurtamento da vida do paciente, por exemplo, com sufocação;
b) eutanásia ativa indireta – quando o autor possui como objetivo primário aliviar o sofrimento do paciente e o como objetivo secundário, abreviar o curso vital do paciente, por exemplo, ministrando medicação que alivia a dor, mas que inevitavelmente causará a morte. Nesse caso, é também chamada de eutanásia pura ou genuína.
A eutanásia ativa é considerada homicídio privilegiado.
II – ortotanásia: ocorre quando há omissão ou supressão do tratamento médico de reanimação do paciente, encontrando-se este em estado de coma profundo e irreversível, terminal ou vegetativo.
Importante atentarmos para a etimologia da palavra, que nos remete ao conceito de morte natural, normal, certa ou justa, morte ocorrida no momento oportuno, sem sofrimento.
Muito embora seja considerada forma de homicídio privilegiado pela doutrina e jurisprudência, há projeto de alteração do Código Penal (Anteprojeto do Código Penal de 1998) no sentido de se passar a considerar tal conduta como atípica. É a redação do projeto:
“Art. 121. §4º – “Não constitui crime deixar de manter a vida de alguém por meio artificial, se previamente atestada por dois médicos a morte como iminente e inevitável, e desde que haja consentimento do paciente ou, em sua impossibilidade, do cônjuge, companheiro, ascendente, descendente ou irmão”.
Nesse ponto, importante alertarmos que se mostra como atípica a conduta daquele que desliga os aparelhos que sustentam a vida vegetativa e puramente mecânica do ser humano, uma vez atestada inequivocadamente e sob os critérios legais e científicos, que a morte cerebral sobreveio. Assim o é, em razão do conceito de morte perante o ordenamento jurídico pátrio, ser o da morte cerebral.
III – distanásia: etimologicamente considerada, a distanásia representa a morte anômala, lenta e dolorosa. Pode ser definida como sendo o prolongamento do processo terapêutico que causa extremo desconforto e diminuição na qualidade de vida do paciente que, inexoravelmente, culminará com o evento morte. Trata-se de conduta desumana, de inegável afronta ao princípio da dignidade da pessoa humana.
Afasta-se de plano, a figura do homicídio privilegiado podendo até mesmo ser considerado homicídio qualificado a depender do procedimento empregado.
IV – eutanásia econômico-social: trata-se de conduta vil, sendo configurada como homicídio qualificado por motivo torpe. Retrata a conduta que objetiva eliminar da sociedade pessoas que não teriam serventia ao meio em que vivem, segundo critérios fixados pelo déspota ou ditador. Ideologia absurda e desumana que possui como nascedouro os sistemas de governo autoritários e sanguinários.
V – eutanásia eugênica: na mesma vertente da modalidade anterior, de ideologia vil e desumana, seria a espécie de eutanásia que visa eliminar as pessoas com anomalias genéticas. Irrefutável a sua tipificação como homicídio qualificado.
No direito comparado, vale citar que o direito europeu continental trata do tema com semelhanças, porém variadas soluções entre seus diversos ordenamentos jurídicos. Casos há de atenuação da pena e até mesmo de isenção total pelo comportamento típico, como ocorre nos diplomas criminais da Inglaterra, Holanda, Suíça, Áustria, Noruega e Itália. O Código Penal Português, por exemplo, em seu artigo 134 fixa a limitação da pena entre seis meses a um ano, quando presente o pedido do paciente e de um a cinco anos quando a conduta for movida por qualquer tipo de relevante valor social ou moral, de acordo com seu artigo 133[4].
Ora, como exposto, a questão é polêmica e suscita constantes questionamentos já de longa data, nos mais variados ordenamentos jurídicos, ao longo da história da humanidade.
É nesse contexto que surge o Biodireito, tentando fornecer instrumentos para melhor analisar a questão da eutanásia, sob o ponto de vista jurídico, científico e humanitário.
Possui esse inovador ramo do direito público vários princípios que podem e efetivamente contribuem no bojo desse debate.
Em um primeiro momento pode-se citar o princípio da autonomia, que possui duas faces: em uma vertente, preconiza que ao paciente deve ser dada liberdade de escolha em submeter-se ou não a determinado tratamento medicamentoso; ou ainda, submeter-se ou não a determinado procedimento cirúrgico. Tal regra, inclusive, está consubstanciada no artigo 15, do Código Civil brasileiro.
“Art. 15. Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica.”
De outra via, leciona o princípio da autonomia, que ao médico é assegurada liberdade de atuação em suas pesquisas, escolhendo de acordo com seu conhecimento técnico-científico qual será o melhor tratamento a ser ministrado, visando sempre e, primordialmente, a melhor condição de vida ao paciente, sob os menores custos e riscos possíveis.
Em paralelo, mostra-se o princípio da beneficência (ou princípio da não-maleficência), que leciona o dever do profissional da área médica de ministrar ao paciente o melhor tratamento possível, buscando sua cura ou, no mínimo, uma melhora substancial em sua condição de vida, ponderando-se riscos e benefícios e evitando tratamentos desnecessários e tortuosos.
Nessa linha, há que ser mencionado o princípio do consentimento livre e informado. Trata-se da expressão máxima da relação de confiança a ser construída entre médico e paciente, sendo recomendável que este tudo esclareça àquele, em linguajar técnico, porém acessível e de fácil compreensão.
E ainda, como prisma basilar de fundamentação do Biodireito, e referência essencial no debate acerca da eutanásia, mostra-se o princípio da dignidade da pessoa humana.
Diante das atrocidades cometidas pelo homem contra o próprio homem, seja em tristes momentos da história, como nas grandes guerras mundiais, seja no dia a dia onde milhões perecem de fome em condições insustentáveis de subsistência, o princípio da dignidade da pessoa humana veicula um papel de notável importância no debate internacional, sobretudo em questões polêmicas como a do caso em tela.
A dignidade da pessoa humana é um valor em si mesmo e não um meio; representa objetivo primordial de toda e qualquer atividade humana. A vida humana não pode ser objeto de barganha, de somenos importância ou de comportamentos municiados de crueldade e desrespeito.
Não se trata de direito renunciável, negociável ou, como intentam alguns, até mesmo de um direito. Afigura-se sim, como um valor inerente ao ser humano.
Pergunta-se: Há limite para o livre-arbítrio do ser humano sobre seu próprio destino? Pode o homem decidir sobre as condições que ele entende ser dignas no crepúsculo de sua vida? Quando inexistente a consciência e a vontade, quais serão os legitimados para realizar essa escolha, esse juízo de valor?
Essas questões estão no cerne da temática aqui apresentada. Em ledo engano incorre aquele que acredita serem tais questões de fácil solução; em ingênuo patamar se encontra aquele que analisa o tema sob óptica singular. A questão da eutanásia merece reflexão profunda, cuidadosa e multidisciplinar. O Biodireito oferece princípios balizadores às tomadas de decisão realizadas pelas autoridades e pelos Estados soberanos no cenário internacional.
Outrossim, conforme prometido no começo desse estudo, não ousaremos marcar a presente questão com o crivo da definitividade, asseverando ser este ou aquele o posicionamento correto, mas tão somente realizamos um apelo para que a postura a ser assumida seja pautada naquilo que talvez seja a característica exponencial da natureza do ser humano, qual seja, a sua própria humanidade.
Advogada. Pós graduada em Direito Tributário pela PUC/SP e Direito Processual Civil pela Faculdade de Direito Damásio de Jesus
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