Adentraremos, nesse momento, em questões de fácil compreensão, mas que são extremamente lógicas e, por isso, nem sempre tão claras aos operadores do Direito.
Apenas para nos situar, colacionaremos os conceitos que a doutrina nos tem passado sobre a repristinação:
“É o fenômeno jurídico pelo qual uma lei volta a vigorar após a revogação da lei que a revogou.” (PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil – Introdução ao Direito Civil. Teoria Geral de Direito Civil. 21ª ed., v. I, Rio de Janeiro: Editora Forense, 2005.)
Pois bem, definido o que é a repristinação nos cabe fazer uma comparação de muito fácil compreensão e feliz adequação. A repristinação nada mais é do que a ressurreição de uma lei. Nosso ordenamento jurídico não permite ressurreições. Por outro lado, a reencarnação de uma lei é possível e desejável, ou seja, uma nova lei, com novo número, nova data de publicação, novamente votada pelo Congresso Nacional, mas com o mesmo espírito da anterior. Se assim o for, a sistemática jurídica brasileira permite o vigor dessa lei, contudo a ressurreição de uma lei inconstitucional, mesmo que por Emenda Constitucional, não é possível.
Temos, obviamente as exceções. Uma delas é que seja expresso na lei revogadora que a tal artigo de lei ou tal lei está sendo repristinada. A outra forma é por Ação Cautelar em ADIN com efeito ex tunc.
No Município de Goiânia a Procuradoria Municipal vem alegando em ações judiciais que a Lei Complementar Municipal nº 181/2008 autorizou o Município de Goiânia a utilizar da repristinação no caso da cobrança da progressividade do IPTU.
Alguns pontos precisam ficar muito bem claros ao fazer uma análise mais detida dos fatos e teses para poder fazer uma afirmação como essa.
A tese é simples. Eis a sequência dos fatos:
a) O Código Tributário Municipal é de 1975.
b) Em 1988 foi promulgada a Constituição Federal que revogou a parte que legisla sobre IPTU do CTM – Goiânia, ou seja, o artigo 17 inteiro por aplicar a progressão IPTU.
c) Em 2000 veio a Emenda Constitucional nº 29 que autorizou a progressão do IPTU, desde que tivesse caráter social.
d) Em 2008 o Município de Goiânia inventa a Lei Complementar nº 181 afirmando que o artigo 17, que já havia sido revogado, foi “constitucionalizado” e agora se pode aplicar a progressividade.
Pois bem, o que a Lei Complementar 181/2008 quis fazer foi ressuscitar o artigo 17 do CTM – Goiânia, que era inconstitucional, ou seja, tentou repristinar o referido artigo.
Como muito bem sabemos nosso ordenamento jurídico não aceita, de forma alguma, a dita repristinação. Vejamos o que a doutrina tem a nos dizer.
“(…)Como regra geral, o Brasil adotou a impossibilidade do fenômeno da repristinação, salvo se a nova ordem jurídica expressamente assim se pronunciar.”
Grifo original do Autor. (Direito Constitucional Esquematizado, Pedro Lenza. 8ª Edição. Editora Método, página 68)
“(…)tal fenômeno é vedado em nosso ordenamento, em razão do art. 2º, § 3º, da LICC. Desta forma, para que a lei anteriormente abolida se restaure é necessário que o legislador expressamente a revigore.” (PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil – Introdução ao Direito Civil. Teoria Geral de Direito Civil. 21ª ed., v. I, Rio de Janeiro: Editora Forense, 2005.)
Assim sendo, sabemos que não há repristinação no direito brasileiro a não ser que seja expressamente descrito na norma que pretende ser a repristinadora.
A jurisprudência, pelo que se pode verificar, é unânime nesse ponto. Assim, vejamos o que o TJ-GO, Tribunal do Estado em que a lei questionada está em vigor, fala sobre a repristinação.
“DUPLO GRAU DE JURISDICAO E APELACAO CIVEL. MANDADO DE SEGURANCA. PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS. INSUBSTISTENCIA DAS ALEGACOES. PREJUDICIAL QUE NAO SE CONFUNDE.
I – Omissis.
II – Omissis.
III – Emenda constitucional n. 29/2000. Inaplicabilidade da chamada constitucionalidade superveniente no sistema jurídico brasileiro. Em que pese a nova redação do art. 156, parágrafo 1 da CF/88 dada pela emenda constitucional n. 29, de 13/09/2000, possibilitar hipótese de progressividade de IPTU, diversa da diretamente ligada a função social da propriedade (prevista pelo art. 182, parágrafo 4, II, CF/88), Ao ser editado o Código Tributário municipal em 20/11/1975, não havia a previsão constitucional da pretendida progressividade fiscal do IPTU/ITU, o que veio a ocorrer somente com a referida emenda. Assim, não ha como aceitar a alegação de que a EC 29/00 tenha eficácia convalidante da lei editada anteriormente a Constituição que não foi por ela recepcionada, uma vez que as normas legais originariamente incompatíveis com a Constituição Federal não se convalidam pelo fato de Emenda a Constituição, promulgada em momento posterior, have-las tornado compatíveis com o texto da carta federal, ou seja, não se aplica a chamada ‘constitucionalidade superveniente’, uma vez que no nosso sistema jurídico, somente quando ha tal previsão expressa em lei, e que se admite a convalidação da lei anteriormente revogada, nos termos do art. 2, parágrafo 3 da Lei de Introdução ao Código Civil (repristinação). Remessa obrigatória e apelo conhecidos e improvidos.” (3ª CAMARA CIVEL; DJ 70 de 16/04/2008; ACÓRDÃO: 27/03/2008; PROCESSO: 200800004234; COMARCA: GOIANIA; RELATOR: DES. JOAO WALDECK FELIX DE SOUSA; RECURSO: 16397-0/195 – DUPLO GRAU DE JURISDICAO)
O julgado acima não expressa mais do que o consenso doutrinário e até jurisprudencial sobre a questão. Dessa feita, abaixo segue outra jurisprudência do mesmo TJGO que, de forma mais direta, afirma o mesmo. Verifique-se que a turma julgadora não se ateve a detalhes justamente por ser matéria pacífica.
“APELAÇÃO CÍVEL. MANDADO DE SEGURANÇA. DIREITO LIQUIDO E CERTO. AUSÊNCIA. REPRISTINAÇÃO. 1 – A lei revogada não se restaura por ter a lei revogadora perdido a vigência, havendo repristinação apenas nos casos de previsão expressa do legisla – dor e nas declarações de inconstitucionalidade de lei in abstracto. 2 – Omissis” (1ª CÂMARA CÍVEL; DJ 14782 de 22/06/2006; ACÓRDÃO:16/05/2006; PROCESSO: 200600362790; COMARCA: GOIÂNIA; RELATOR: DES. LEOBINO VALENTE CHAVES; RECURSO: 96982-4/189 – APELACAO CIVEL EM MANDADO DE SEGURANÇA)
Passando ao STJ, Tribunal responsável pela unificação da doutrina infra-constitucional brasileira, temos os seguintes julgados:
“ADMINISTRATIVO. MULTA DE TRÂNSITO. CONTROLADOR ELETRÔNICO DE VELOCIDADE. RESOLUÇÃO N.º 131/2002. DELIBERAÇÃO N.º 34, DE 10.05.2002. RESOLUÇÃO N.º 141, DE 16.10.2002. DELIBERAÇÃO N.º 29/2001. REPRISTINAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. PRECEDENTES. 1. Não há repristinação quando a lei repristinadora não faça alusão expressa a este efeito pretendido, consoante o disposto no art. 2º, § 3º, da Lei de Introdução do Código Civil. Precedentes. 2. (Omissis). 3. Recurso especial provido.” (REsp 833756/RS, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 07/08/2008, DJe 26/08/2008)
Extremamente clara essa jurisprudência. Como sempre estivemos manifestando, a repristinação não é possível em nosso ordenamento jurídico e forma tácita.
“REPRISTINAÇÃO DA LEI DELEGADA N.º 13/92. INVIABILIDADE. ART. 2.º, § 3.º, DA LEI DE INTRODUÇÃO AO CÓDIGO CIVIL. PRECEDENTES. 1. Omissis. 2. Omissis. 3. Omissis. 4. O ordenamento jurídico vigente não ampara a repristinação tácita de normas revogadas, conforme dispõe o art. 2º, § 3º, da Lei de Introdução ao Código Civil, razão pela qual é manifestamente infundada a pretensão do restabelecimento da GAE, com base na tese de que a Lei Delegada n.º 13/92 fora respristinada pelo fato de a Lei n.º 11.091/2005 não ter expressamente extinguido a GAE. 5. Agravo regimental desprovido.” (AgRg no REsp 1060695/PR, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 05/02/2009, DJe 09/03/2009)
Mais clara ainda é a jurisprudência abaixo colacionada que afirma que não é possível haver a “ressurreição” da norma:
“No tocante ao mérito, o art. 22, inciso I, da Lei n.º 8.212/92, teve sua redação alterada pelo art. 25, § 2º, da Lei n.º 8.870/94, que veio a ser declarado inconstitucional pelo STF (ADIn n.º 1.103-1/DF). No entanto, não há que se falar na ressurreição da referida norma antecedente, tendo em vista a inadmissibilidade da repristinação em nosso ordenamento jurídico, nos termos do disposto no art. 2º, § 3º da LICC” (STJ, REsp 445455/BA -2002/0082108-8, Relatora Ministra Laurita Vaz, DJ 03.02.2003).
Dessa feita, não há mais qualquer tipo de discussão referente ao assunto no STJ, motivo pelo qual passaremos à jurisprudência do STF que, igualmente, entende de forma pacífica que não pode haver repristinação no direito brasileiro que não seja expressa.
O próprio STF assim já decidiu para que não pairem dúvidas a respeito desse assunto.
“Agravo regimental. – Não tem razão o agravante. A recepção de lei ordinária como lei complementar pela Constituição posterior a ela só ocorre com relação aos seus dispositivos em vigor quando da promulgação desta, não havendo que pretender-se a ocorrência de efeito repristinatório, porque o nosso sistema jurídico, salvo disposição em contrário, não admite a repristinação (artigo 2º, § 3º, da Lei de Introdução ao Código Civil). Agravo a que se nega provimento.” (AGRAG-235800/RS; Rel. Ministro Moreira Alve; DJ 25/06/99, p. 16; 1ª Turma)
Pois bem, ficou claro que o STF entende que não é admissível a repristinação tácita, apenas expressa.
Contudo, apenas para finalizar a exposição jurisprudencial, havemos por bem colacionar uma jurisprudência do STF que julga exatamente o mesmo caso da Lei Complementar 181/2008 de Goiânia, contudo trata-se aqui de uma Lei Complementar do Município de Porto Alegre que tentou repristinar a Lei.
“AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. IPTU. ALÍQUOTA PROGRESSIVA. DECLARAÇÃO INCIDENTAL DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEGISLAÇÃO ANTERIOR. REPRISTINAÇÃO. Município de Porto Alegre. IPTU. Alíquota progressiva. LC 7/73, na redação dada pela LC 212/89. Inconstitucionalidade da norma superveniente. Hipótese anterior à promulgação da EC 29/2000. Agravo provido, para determinar a subida dos autos principais, para melhor exame.” (AI 465922 AgR / RS – RIO GRANDE DO SUL; AG.REG.NO AGRAVO DE INSTRUMENTO; Relator(a): Min. EROS GRAU; Julgamento: 23/11/2004; Órgão Julgador: Primeira Turma)
Como se vê acima, trata-se do mesmo caso. O Município de Porto Alegre criou a Lei Complementar 212/89 para “constitucionalizar” a progressividade do IPTU. Obviamente que se tratava de repristinação tácita, algo veementemente vedado pela nossa legislação e sistemática jurídica. O STF julgou que houve a repristinação e sua vedação.
Tal decisão já seria suficiente para arrematar e enterrar de vez o assunto já que não pode haver a repristinação que o Município tanto quer.
No Recurso Extraordinário nº 357950 o Min. Carlos Ayres Brito votou negando provimento à tese da convalidação das leis por emendas constitucionais, com o sintético argumento:
“Uma lei ordinária que ofende a Constituição não é perdoada jamais por essa Constituição e não pode ser perdoada por uma emenda.”
Se não pode ser perdoada por uma constituição nem por uma emenda, porque seria perdoada por uma Lei complementar Municipal?
Nesse sentido nos fala Celso Antônio Bandeira de Melo.
“Dessarte, seus efeitos poderão ser impugnados e desaplicada tal regra. Para que venham a irromper validamente no universo jurídico efeitos correspondentes aos supostos na lei originariamente inválida, será necessário que, após a Emenda, seja editada nova lei, se o legislador entender de fazê-lo e de atribuir-lhe teor igual, pois, só então, será compatível com o enquadramento constitucional vigente.” (Leis Ordinariamente Inconstitucionais Compatíveis com Emenda Constitucional Superveniente”, in RDA – 215/58-98)
Da mesma forma nos propõe Juliano Taveira Bernardes:
“no Brasil, porém, não havendo como o legislador convalidar a não-recepção de normas préconstitucionais, resta incabível qualquer interpretação que conduza à conversão de tais normas anteriores em normas atuais. Nada obstante, a lei mais recente é capaz de repristinar a legislação pré-constitucional, desde que o faça expressamente (LICC, art. 2º, §3º)” (in Controle Abstrato de Constitucionalidade – Elementos materiais e princípios processuais”, Ed. Saraiva, 2004, p. 206).
Mas continuemos na argumentação, agora não só jurisprudencial, mas seguindo a linha de raciocínio e passando para a Lei que, informa-se, é superior à doutrina e à jurisprudência e pode falar por si, dependendo dos Tribunais apenas para sua interpretação e adequação ao caso concreto.
A norma do § 3º do art. 2º do Decreto-lei nº 4.657, de 04/09/1942 (Lei de Introdução ao Código Civil), in verbis:
“LICC:
Art. 2º. Omissis.
§ 3º – Salvo disposição em contrário, a lei revogada não se restaura por ter a lei revogadora perdido a vigência.”
A situação é clara, o artigo é direto e determinante ao fato que aqui se discute. A Lei revogada, aqui no caso o Código Tributário Municipal de Goiânia especificamente em seu artigo 17, não pode ser restaurado e ressurgir das profundezas por uma Emenda Constitucional quiçá por uma Lei Complementar Municipal que quer lhe conceder vigência após ter sido revogada pela Lei Maior, a Constituição. Totalmente absurdo.
Se a lei foi revogada, entende-se como regra geral, que não serve mais à sociedade, dessa forma, não teria sentido de ela voltar a viger, ou seja, ressuscitá-la, repristiná-la.
Sabemos que a incompatibilidade de uma norma infraconstitucional com uma Constituição que venha a vigorar, no caso a de 1988, faz com que essa norma desapareça do ordenamento jurídico para sempre, definitivamente. Não há possibilidade de uma Emenda Constitucional simplesmente se conceder o poder de ressurreição de normas, muito menos uma Lei Complementar Municipal como é o caso da vontade do Município de Goiânia.
Advogado militante, consultor jurídico, especialista em Direito Público, especializando em Docência do Ensino Superior, sócio fundador do escritório Costa & Sousa Advogados Associados S/S e Costa & Sousa Eventos Jurídicos, confeccionou e publicou vários artigos científicos nas mais respeitadas revistas jurídicas de alcance nacional e em portais jurídicos na internet
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