Resumo: O ponto nodal para o raciocínio a ser desenvolvido neste artigo corresponde à demonstração da inadequação da penalidade administrativa de multa em desfavor de entidades públicas, propondo-se uma atuação incisiva da Advocacia-Geral da União com vistas à correção do problema que incide principalmente sobre as entidades públicas indutoras do desenvolvimento econômico e social.
Palavras-chave: Desenvolvimento sustentável; Sanção administrativa pecuniária; Advocacia-Geral da União.
Sumário: Introdução; 1. Proteção do meio ambiente e colisão de princípios constitucionais; 2. A repercussão da colisão de valores no serviço público: o caso do Ibama versus entidades públicas desenvolvimentistas; 3. A irracionalidade da multa administrativa em desfavor de entidades públicas desenvolvimentistas; 4. Uma ressalva em favor do órgão ambiental; 5. A correção do problema; Conclusão; Referências
Introdução
Dada a ausência de homogeneidade do interesse público em uma sociedade complexa como a brasileira, as missões institucionais dos variados componentes da Administração Pública podem eventualmente acabar se atritando. Neste sentido, a proteção ao meio ambiente promovida por entidades públicas como o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) é um dos mandamentos constitucionais que mais colidem com outros valores equivalentes defendidos por outros organismos integrantes do Poder Público.
Em decorrência da colisão não conformada de valores, o poder de polícia ambiental frequentemente ocasiona a imposição de sanções de natureza pecuniária em desfavor de entidades públicas desenvolvimentistas. Considerando este fato, o presente artigo busca demonstrar as razões pelas quais não se mostra adequado punir o Poder Público com penalidades de multa, propondo-se ainda uma atuação mais incisiva da Advocacia-Geral da União como forma de compor os interesses postos em jogo e direcionar a Administração Pública Federal para uma atuação mais racional.
1. Proteção do meio ambiente e colisão de princípios constitucionais
A direção normativa de rumos a favor de um Estado Ecológico não se encontra limitada a um ponto geográfico da Constituição da República. Com efeito, é possível encontrar dispositivos que tratam da tutela ambiental ao longo de todo texto constitucional, de tal sorte que a ordem de 1988 se encarregou de pôr outros institutos jurídicos fundamentais em aparente rota de colisão com a demanda de proteção jurídica do meio ambiente.
Contudo, a consagração de direitos supostamente antagônicos não há de causar perplexidades quando encarada sob a ótica de um Estado Democrático de Direito, haja vista que as Constituições democráticas modernas refletem a existência de uma sociedade complexa por excelência, formada por um conjunto variado de grupos sociais com interesses, ideologias e projetos distintos.
Neste sentido, assim como a dignidade da pessoa humana, o pluralismo político representa um fundamento da República Federativa do Brasil, significando não apenas a garantia de um pluralismo político partidário, mas a promessa de coexistência dos múltiplos valores culturais, religiosos, artísticos, econômicos, sexuais, entre tantos outros, que são concebidos por uma variedade de grupos heterogêneos existentes em nossa sociedade.
Conforme o pensamento de Alexy, a existência dessa sociedade plural e de seus múltiplos valores conduz a uma numerosa ocorrência de colisões de princípios assegurados no texto constitucional[1]. Por sua vez, os princípios se expressam no ordenamento jurídico como mandados de otimização que devem ser cumpridos na maior medida possível, segundo as possibilidades fáticas e jurídicas de cada caso[2].
Sob esse aspecto, nenhum princípio se reveste de caráter absoluto, de modo que a concordância prática das diversidades conduz à inevitável utilização de técnicas de ponderação para solucionar os conflitos eventualmente surgidos.
Na lapidar lição de Luís Virgílio Afonso da Silva, “um ato que limita um direito fundamental é somente necessário caso a realização do objetivo perseguido não possa ser promovida, com a mesma intensidade, por meio de outro ato que limite, em menor medida, o direito fundamental atingido”[3].
Por sua vez, os direitos fundamentais possuem, em sua maioria, natureza principiológica e, conforme destaca Emerson Garcia, “exercem uma influência recíproca na delimitação do conteúdo e do alcance do seu potencial normativo, não sendo exagero afirmar que a fixação de limites pode ser mesmo concebida como um pressuposto de sua proteção”[4].
A propósito, a cedência recíproca operada entre esses direitos, longe de ser uma novidade, já se mostrava previsível desde a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, cujo art. 4° asseverava que “o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem por limites senão aqueles que asseguram aos outros membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos”.
Esse pluralismo de valores consagrados constitucionalmente numa relação não hierarquizada contribui para a formação de um direito contrapontual[5], ou seja, um direito em que os institutos jurídicos já existentes vão se ajustando e se adaptando a outros que surgem naturalmente com a modernização da sociedade.
2. A repercussão da colisão de valores no serviço público: o caso do Ibama versus entidades públicas desenvolvimentistas
Como decorrência da constitucionalização de princípios passíveis de colisão, a execução dos serviços públicos acaba por reproduzir situações em que entidades estatais se contrapõem em litígios que muitas vezes alcançam as raias do Poder Judiciário.
Nesta linha, Luiza Torchia, citada por Odete Medauar, observa que “o interesse público cede passo a interesses heterogêneos e conflituais entre si (…); interesses públicos são fruto de escolhas concretamente determinadas na necessidade e na contingência histórica determinada; daí poderem ser conflitantes e não poder o conflito ser resolvido a priori; daí os estudos sobre a articulação do procedimento e da organização como mecanismo necessário à articulação dos interesses, abandonando-se a configuração da Administração como um aparato monolítico e compacto[6].
Neste sentido, incorporando o comando de proteção ao meio ambiente, o Ibama é uma das entidades públicas que mais litigam contra entes estatais, incluindo órgãos e instituições da Administração Pública Federal, o quais são diversas vezes penalizados mediante a imposição de sanção pecuniária (multa).
Entre as instituições que mais são multadas pelo Ibama estão organismos estatais que visam promover interesses públicos de índole constitucional, principalmente àqueles previstos no art. 3º da Constituição da República. É o caso, por exemplo, do Departamento Nacional de Infra-Estrutura de Transportes (DNIT) e do Ministério da Integração Nacional, que visam precipuamente executar obras com a finalidade de garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e a marginalização, reduzir as desigualdades sociais e regionais, entre tantos outros mandamentos que orientam nossa Federação.
Tem-se, em tais hipóteses, um confronto claro entre a proteção ao meio ambiente e a necessidade de implementar o progresso econômico e social, o qual dá azo à formação de um mandamento de otimização que recebe o multicitado nome de desenvolvimento sustentável. Na prática, significa dizer que a impulsão desenvolvimentista deve levar sempre em consideração o dever de manter hígido o meio ambiente para as presentes e futuras gerações, o que implica, entre outras providências, a necessidade de estudo prévio de impacto ambiental para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação ambiental.
Com efeito, é possível afirmar que a implantação de obras públicas tem como finalidade imediata promover o desenvolvimento econômico-social e reduzir as desigualdades regionais. Todavia, o fim almejado não pode ser obtido a qualquer custo e/ou de qualquer maneira, pois a Administração deve agir sempre na forma da lei (art. 37 da Constituição Federal).
Nesta senda, o processo de concretização da política pública desenvolvimentista deve vir acompanhado do cumprimento concomitante de diversas obrigações de meio, consistentes em deveres determinados por normas constitucionais e legais, que diferem do objeto imediato desejado. Uma dessas obrigações de meio está consubstanciada justamente no dever de observar a legislação ambiental.
Na prática administrativa, é interessante notar que em alguns casos os organismos desenvolvimentistas pretendem imputar a culpa pelo descumprimento da norma protetiva ao próprio Ibama, por sua suposta lentidão em conceder licenças e outras autorizações.
À evidência, tal argumento é inaceitável, dado que, se qualquer deficiência do serviço público estiver prejudicando algum interessado naquela prestação, seja este interessado um particular ou mesmo a Administração Pública, existem diversos outros caminhos a serem trilhados para viabilizá-lo – mas nunca a pura e simples transgressão das normas de proteção ao meio ambiente. Ainda mais nestes casos, em que estão envolvidos componentes da estrutura organizacional de um mesmo ente federado, quando a celeuma pode ser ainda mais facilmente resolvida porque resta aberta mais uma via de composição: a política.
3. A irracionalidade da multa administrativa em desfavor de entidades públicas desenvolvimentistas
Sem embargo, é certo que o poder de polícia do Ibama tem sempre em conta a promoção de um interesse público que corresponde basicamente àquele positivado no art. 225 da Constituição Federal (defender e preservar o meio ambiente).
Neste sentido, o art. 70 da lei nº. 9.605/98 considera infração administrativa ambiental toda ação ou omissão que viole as regras jurídicas de uso, gozo, promoção, proteção e recuperação do meio ambiente. Mais adiante, o art. 72 da referida lei expressa que as infrações administrativas são punidas, entre outras sanções, mediante a aplicação de multa simples e multa diária.
Partido de uma análise eminentemente teleológica das sanções administrativas, é interessante observar que, pelo menos sob o ângulo da finalidade retributiva da penalidade, não há racionalidade na conduta de impor sanções pecuniárias a entes públicos. É que estes, como já dito, atuam na promoção do interesse público, de modo que as consequências da sanção são muito mais negativas do que positivas para o Poder Público.
Na prática, uma multa imposta a um ente público tem como efeito imediato tão somente desfalcar o seu orçamento, prejudicando a concretização da missão institucional (interesse público) atribuída ao infrator e, consequentemente, lesando toda a coletividade que carece da prestação dos seus serviços. É, portanto, defender um interesse público em detrimento total de outro.
Obviamente, se uma multa acaba sendo paga pelo organismo público infrator, posteriormente ela deverá ser cobrada do agente público que deu causa à infração. Mas, é verdade que isso demanda mais dispêndio de tempo e movimentação da máquina administrativa, sendo certo ainda que o regresso não ocorre pari passu com o pagamento da multa e correspondente desfalque orçamentário, nem provavelmente voltará à mesma rubrica de onde saíram os recursos. Daí porque – existindo outras penalidades possíveis – não se afigura adequado adotar penalidades pecuniárias em desfavor de entidades e órgãos da Administração Pública.
Não se quer dizer, contudo, que se deva fechar os olhos para as ilegalidades perpetradas no exercício da Administração Pública. Desde que não acarretem mais prejuízos do que benefícios para a sociedade, a imposição de penalidades administrativas a entes públicos não só é inequivocamente válida, como também é medida vinculada (ato de ofício) a quem aplica a penalidade – devendo certamente haver um redirecionamento dos seus malefícios (efeito retributivo) para quem deu causa ao gravame.
De todo modo, em última análise, a única retributividade enxergada em casos de aplicação da penalidade pecuniária decorre da apuração da responsabilidade dos agentes públicos envolvidos, que nem de longe deriva imediatamente da sanção administrativa, mas de outros dispositivos legais que não se ligam necessariamente à legislação ambiental (ou qualquer outra atividade de polícia administrativa).
4. Uma ressalva em favor do órgão ambiental
Apesar das considerações expostas no tópico anterior, que se prendem a uma análise eminentemente teleológica da sanção de multa, em várias hipóteses há de se reconhecer que sequer é possível levantar a tese de que o ente ambiental age com desproporcionalidade na escolha da penalidade imputada. Isso porque em alguns casos, a infração administrativa perpetrada não pode ser punida por meio de uma sanção mais branda, haja vista o disposto no art. 5º, §1º, do decreto nº. 6.514/2008. Decerto, vale ainda notar que outras penalidades previstas no art. 72 da lei nº. 9.605/1998 são bem mais gravosas ao interesse público defendido pelos organismos estatais desenvolvimentistas.
De outra parte, cumpre notar que organismo ambiental tem o dever de agir de ofício, uma vez que quem detém poder de polícia está obrigado a agir sob pena de o agente ambiental omisso cometer crime de prevaricação (art. 319 do Código Penal). Significa dizer que o ente ambiental se vê obrigado a penalizar outros entes estatais, não lhe restando outra alternativa.
5. A correção do problema
No exercício do poder de polícia, a Administração Pública deve moldar sua atuação sancionatória segundo um dos ramos do Direito que poderia ser denominado de direito penal administrativo ou direito administrativo sancionatório, o qual “tende ao estabelecimento das infrações administrativas, necessárias para o funcionamento da Administração Pública, e o seu adequado regime de sanções”[7].
No uso deste ramo do Direito, o devido processo administrativo e a proteção dos direitos do suposto infrator ostentam peculiaridades quando uma entidade da Administração Pública Federal é apenada em razão de infração administrativa ambiental. É que a defesa do Poder Público não deve ser feita pelos próprios gestores da entidade penalizada, mas por integrantes da Advocacia-Geral da União (AGU), face o disposto no art. 131 da Constituição Federal de 1988, o qual confere àquela instituição a competência para representar a União não apenas na esfera judicial, mas também extrajudicial.
Na prática, o dispositivo em questão é rotineiramente descumprido, de sorte que bastas vezes as entidades públicas são apenadas com sanções pecuniárias e cumprem estas penalidades naturalmente, sem que a Advocacia-Geral da União tome conhecimento do ocorrido. O resultado é manifestamente desastroso para o interesse público: desfalca-se o orçamento da entidade e pode ser ignorado o dever de apurar a responsabilidade administrativa dos gestores que deram causa à infração ambiental.
A par do afastamento destes efeitos negativos, se o mandamento constitucional fosse observado com a devida atenção dos gestores públicos, a composição dos conflitos seria feita em curto espaço de tempo e com menos atritos, na medida em que a competência representativa da AGU é comum para ambas as partes em litígio. Dada essa peculiaridade, parece evidente a vocação daquela instituição para agir como um terceiro organismo da Administração Público Federal, capaz de assumir a figura de mediador de conflitos e promotor de práticas conciliatórias no âmbito administrativo[8].
Diante da irracionalidade de se aplicar a penalidade de multa contra entidades integrantes do Poder Público, conforme demonstrado alhures, o caminho natural a ser adotado para a defesa do interesse público deve ser o de buscar um entendimento conciliatório com o órgão ambiental com vistas à formalização de termo de ajustamento de conduta que consubstancie a conversão das multas impostas em serviços de preservação, melhoria e recuperação da qualidade do meio ambiente, na forma do art. 72, §4º, da lei nº. 9.605/1998[9].
A esse respeito, não há dúvidas de que o deferimento de eventual pleito de conversão de penalidade representa ato que se insere no poder discricionário da autoridade ambiental, isto é, trata-se de uma faculdade conferida à autoridade administrativa de se orientar livremente quanto à oportunidade e conveniência de deferir ou não o pedido. Isso implica dizer que a conversão pretendida perpassa necessariamente pela demonstração séria e inequívoca da mudança de postura da entidade infratora frente ao órgão ambiental, o que ocorrerá com naturalidade se gestores públicos forem devidamente instados a responder processos administrativos instaurados a partir da atuação imparcial da AGU.
Conclusão
Conforme se observa, a imposição de multa contra entidades públicas em decorrência do poder de polícia ambiental tem como efeito imediato tão somente desfalcar o orçamento destinado a concretizar adequadamente a missão institucional atribuída ao sujeito infrator. Deste modo, chega-se a uma solução manifestamente inadequada de responder o prejuízo a um interesse público (proteção ao meio ambiente) com o desfalque de outro interesse público (o defendido pelo ente infrator), prejudicando a toda coletividade.
Deste modo, as infrações ambientais perpetradas por entidades estatais devem, sempre que possível, ser apenadas com sanções que não venham a prejudicar o exercício regular das suas funções. Por outro lado, quando a aplicação da sanção de multa for inevitável em razão do engessamento do ordenamento jurídico, o problema, no âmbito da União, deve ser corrigido com uma atuação mais incisiva da Advocacia-Geral da União, entidade responsável pela representação judicial e extrajudicial de ambas as partes envolvidas no conflito, a qual deve diligenciar pela conversão de multas em serviços de preservação, melhoria e recuperação da qualidade do meio ambiente
Procurador Federal. Graduado em Direito pela UFPE. Pós Graduado em Direito Público. Consultor Jurídico do Ministério da Integração Nacional
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