Diante da lei civil, a reparação de algum dano só terá lugar diante de um ato ilícito. Este é o preceito único que inspira a responsabilidade civil advinda de qualquer ato danoso para alguém que seja lesado – o mandamento legal de que a ninguém é permitido lesar a outrem, seja qual for o fundamento da questão em exame. Nesse sentido, “a menor falta, a mínima destinação, desde que danosa, obriga o agente a indenizar os prejuízos conseqüentes ao seu ato”, lembra o saudoso mestre WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO, em seu Curso de Direito Civil, sobretudo na atualização de sua obra promovida por ANA CRISTINA DE BARROS MONTEIRO FRANÇA PINTO. Duas teorias procuram explicar a responsabilidade do causador do dano em reparar os prejuízos causados, seja pessoalmente, seja por pessoas ou coisas que estejam sob sua subordinação. Pela teoria subjetivista ou clássica, é indispensável que se apure a conduta do autor, gerando para o mesmo a obrigação de indenizar se tiver agido com dolo ou culpa, direta ou indiretamente, real ou presumidamente. Para WILSON MELO DA SILVA, esta teoria exige três condições para a responsabilização do culpado: a existência de um dano, a culpa do autor e a relação de causalidade entre o fato culposo e o mesmo dano. Para a teoria objetiva, fundada no risco, não há necessidade de perquirir a culpa, pois a obrigação de indenizar se funda na relação da causalidade entre o dano e a culpabilidade do responsável. O novo Código Civil, que representa o sistema vigente atual em termos de direito positivo, adotou a teoria subjetiva, ao estabelecer em seu art. 186 que “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”. O mesmo se infere da leitura do art. 933, inciso I do mesmo estatuto civil, pelo qual as pessoas indicadas nos cânones anteriores, “ainda que não haja culpa de sua parte, responderão pelos atos praticados pelos terceiros ali referidos”. A reparação, pois, em nossa lei civil, pressupõe a existência de um ato ilícito, fato gerador de responsabilização civil. Daí, decorre o dever de reparar e também a sede legal da teoria subjetivista. Há fortes indícios, na própria legislação e mais fortemente na doutrina, de que a tendência atual é pela adoção da teoria contrária, a da responsabilização pelo risco. Como sempre esclarece acertadamente WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO, “a tendência atual do Direito, como observa RIPERT, manifesta-se no sentido de substituir a idéia da responsabilidade pela idéia da reparação, a idéia da culpa pela idéia do risco, a responsabilidade subjetiva pela responsabilidade objetiva. O agente deve ser responsabilizado não só pelo dano causado por culpa sua, como também por aquele que seja decorrência de seu simples fato; uma vez que, no exercício de sua atividade, ele acarrete prejuízo a outrem, fica obrigado a indenizá-lo”. Seguem com o festejado mestre, no mesmo sentido, CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA, YUSSEF SAID CAHALI e PAULO LÚCIO NOGUEIRA.
A área de interface entre o Direito Civil e o Direito Penal nesse campo, ocorre diante do problema da influência do ilícito civil como crime que é, na maior parte dos casos, perante a lei penal positiva e, havendo reflexos do julgado penal na esfera civil, a discussão apenas entre as diferentes teorias sobre a ressarcibilidade do ato ilícito não restaria suficiente: o problema de fundo, residiria em se saber se, quando o ato é ao mesmo tempo delito civil e delito penal, onde a sentença proferida num desses juízos repercute decisivamente no outro. A questão exsurge diante do preceito do art. 935 do Código Civil, que também nesse passo seguiu o anterior, que diz: “A responsabilidade civil é independente da criminal, não se podendo questionar mais sobre a existência de fato, ou sobre quem seja o seu autor, quando estas questões se acharem decididas no juízo criminal.” Então, mesmo que a tendência objetivista na questão da responsabilização civil venha a prevalecer um dia – não se perquirindo mais da culpa do agente, mais abrangente do que as estipulações do direito positivo a teoria subjetivista não teria mais vez. Assim, a tomar-se pela lavra da lei, a hipótese de um resultado adotado para a questão, cujo núcleo que não fala em questionamento sobre a existência do fato ou quem quer que seja o autor, este resultado pressuporia necessariamente a adoção da teoria clássica como inspiradora da reparação.
O ato ilícito aqui é o pivô da questão. Sabe-se que na esfera penal, há conexão entre o que se chama de ato ilícito ( na esfera civil ) e o que se tem como delito ou crime, em termos penais. Para alguns autores, a distinção entre ambos não existe, como é o caso do saudoso jurista baiano ORLANDO GOMES. Para outros, como SALEILLES, a responsabilidade está nos elementos materiais do delito civil que não precisam ser fixados legislativamente, pois resultam de toda violação de um interesse privado tutelado pelo Direito. Notadamente, a questão não é simples, pois diante das diversas correntes jurisprudenciais, quer-se saber o fundamento efetivo da influência do julgado criminal sobre a esfera civil da reparação numa acepção doutrinária. O magistério de ORLANDO GOMES, em sua obra Obrigações, fazia a hermenêutica própria do texto do art. 1525 da antiga lei civil substantiva como sendo a do texto correlato dos arts. 63 e seguintes do Código de Processo Penal brasileiro, in verbis: “Consiste o problema em saber se, quando o ato é ao mesmo tempo delito civil e delito penal, a sentença proferida num desses juízos repercute decisivamente no outro. Não há dificuldade na sua solução, senão quando a sentença criminal absolve. Duas tendências doutrinárias adversas se desenvolveram, inspiradas nas considerações de MERLIN e TOULLIER. Para o primeiro, a sentença proferida no juízo criminal faz coisa julgada no civil, quanto à existência do delito e a sua imputação. Em consequência, não é mais permitido disputar no juízo civil sobre a existência do fato, ou a autoria do delito. Ocorreria, para esse autor, a coisa julgada, por haver identidade de causa, de objeto e de partes. Justificava este derradeiro requisito com a alegação de que o Ministério Público é o representante de toda a sociedade. TOULLIER impugnou essa doutrina, demonstrando em sua réplica, que faltavam os requisitos para que se pudesse atribuir à sentença criminal o efeito de coisa julgada. Dois dos três requisitos não se preenchem: a identidade das partes e a identidade do objeto. Mas TOULLIER não se limitou à impugnação. Pretendeu justificar a absurda tese de que a sentença criminal não deve ter qualquer influência no cível. A ser admitida, “comprometeria até a seriedade das decisões judiciais”. E acrescenta ainda: “A decisão preferida no juízo criminal tranca o juízo civil toda vez que declara inexistente o fato imputado ou disser que o acusado não o praticou”. Quando, porém, como bem esclareceu MENDES PIMENTEL, “a absolvição criminal teve motivo peculiar ao direito ou ao processo penal, como a inimputabilidade do delinqüente ou a prescrição da ação penal, a sentença criminal não obsta ao pronunciamento civil sobre a reparação do dano”. Foi esta a doutrina aceita pelo legislador pátrio ao declarar que não se pode mais questionar sobre a existência do fato, ou quem seja seu autor, quando estas se acharem decididas no crime. Voltando à errônea técnica espelhada por MERLIN, o Código de Processo Penal dispõe que faz coisa julgada no cível a sentença penal que reconheceu ter sido o ato praticado um estado de necessidade, em legítima defesa, em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular do direito. Dar-se-ia mais corretamente, como disse AGUIAR DIAS que, “nesses casos, a sentença criminal produz efeito preclusivo sobre a reparação do dano. Quando a sentença penal condena, sua influência sobre a ação civil é peremptória. A própria sentença criminal pode ser executada no Juízo civil, se do crime resultou dano”.
No entanto, como salienta CARLOS ROBERTO GONÇALVES, em sua obra Responsabilidade Civil, as duas jurisdições são de independência relativa, numa separação quase absoluta quanto ao campo jurisprudencial, “pois para evitar que um mesmo fato tenha julgamentos discrepantes, reconhecendo-se, por exemplo, sua existência numa justiça e sua inexistência em outra, pode, em certos casos, haver influência, no cível, da decisão proferida no crime e vice-versa”, sobretudo na questão que envolva a responsabilidade de terceiros co-autores ou co-causadores do ilícito no eventual julgado penal. Tais citações fazem referência expressa ao que vem determinado no art. 64 e seguintes do Código de Processo Penal. E mais, continua o insigne magistrado, “ de maior consistência jurídica, entretanto, os argumentos de ADA PELLEGRINI GRINOVER, já mencionados, com suporte na teoria de LIEBMAN sobre a coisa julgada e harmonizados com o art. 472 do Código de Processo Civil, com os princípios constitucionais do devido processo legal e com as conquistas da moderna ciência processual. Com efeito, o novo art. 935 do Código Civil não indica necessariamente a indiscutibilidade do fato e da autoria quanto a terceiros, tal qual o Código de 16. E essa indiscutibilidade, a ser tão amplamente entendida, ainda infringiria regras de aplicação direta e imediata, que defluem da Lei Maior, constituindo aquele conjunto de garantias que tutelam as partes em juízo. Desse modo, em observância a preceitos constitucionais e processuais, a exegese dos arts. 74, I, do Código Penal de 1940 ( art. 91,I, do atual), 64 do Código de Processo Penal e 935 do atual Código Civil só pode ser uma, em harmonia exatamente com a teoria de LIEBMAN e mais uma vez demonstrando a aplicabilidade desta ao julgado penal: a autoridade da coisa julgada, em sua imutabilidade, só atinge as partes; o terceiro, civilmente responsável e juridicamente prejudicado pela eficácia natural da sentença, que como ato estatal se lhe impõe, poderá em novo processo discutir livremente a sentença condenatória proferida em processo de que não participou, para afastar os efeitos nocivos da condenação. Não só no que tange à sua responsabilidade civil – que na ação penal não foi assentada -, mas também no que se refere ao reconhecimento do fato e da autoria, que pode Ter resultado de uma atitude processual insatisfatória”.
A sentença penal condenatória, faz sempre e na maioria das vezes, coisa julgada na esfera civil, não admitindo que se questione mais sobre a culpa do condenado – que é parte interessada, e que deverá ressarcir o prejuízo causado. Como dispõe o art. 63 do Código de Processo Penal, transitada em julgado a sentença condenatória, poderão promover-lhe a execução no juízo cível, para efeito de reparação do dano, o ofendido, seu representante legal ou seus herdeiros. Também o art. 91, inciso I do Código Penal, dispõe, como efeito da condenação, tomar certa a obrigação de indenizar o dano resultante do crime. Nesse sentido também, a jurisprudência referente a 16, ainda válida: “reconhecida na esfera criminal a culpa do causador do acidente por decisão transitada em julgado, vedado é o reexame dessa culpabilidade no juízo civil, como resulta da norma do art. 1525 CC” (RT 580/153, 584/236). “Contudo”, cita com propriedade PAULO LUCIO NOGUEIRA, “é de se observar que a decisão absolutória no crime pode também fazer coisa julgada no cível, quando fundada em alguma justificativa legal (art. 65 CPP), ou quando reconhecida a inexistência do crime (art 66 CPP), ou quem seja seu autor (o anterior art. 1525 CC)”. Inegável, se faz o efeito absolutório no cível, como assevera ADA PELLEGRINI GRINOVER, e o julgado criminal se impõe perante a esfera civil pela própria eficácia e autoridade de que se reveste a coisa soberanamente julgada no crime. ALEXANDRE SANTOS MIRANDA, em conhecida monografia intitulada “Da eficácia preclusiva panprocessual dos efeitos civis da sentença penal”, faz oportuníssimas considerações sobre o tipo de influência que a sentença penal exerce sobre a presunção civil, pois o dito reflexo não significa coisa julgada no cível (a teor do art. 63 do CPP), que não permite que o juiz penal condene o réu na reparação do dano civil em alguns casos. Trata-se pois da chamada “eficácia preclusiva panprocessual da coisa julgada material do processo criminal, atribuída excepcionalmente pela lei, que impede o juízo cível de decidir novamente sequer as questões de fato já decididos no processo penal, ainda que a ação civil tenha objeto discrepante do objeto seguinte”.
À guisa de conclusão, entendemos que a influência do julgado criminal sobre a eventual responsabilidade civil do agente causador do ato ilícito é segura quanto as partes envolvidas, e, também, sobre as questões de fato já alcançadas pela sentença, sobretudo porque, nesse passo, a lei nova seguiu a velha codificação. Não o é, entretanto, quanto a terceiros, que poderão discutir livremente a questão em outro processo, mormente se condenatório o provimento jurisdicional, atingindo a discussão não só a eventual responsabilidade civil, mas também o reconhecimento do fato e da sua autoria.
Advogado, Doutor em D. Civil pela USP, Pesquisador do CNPq e Professor Adjunto de D. Civil da Fac. Direito da Universidade Federal de Goiás (UFG)
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