Resumo: A súmula 584 do Supremo Tribunal Federal e a aplicação do princípio da irretroatividade da lei tributária no imposto sobre a renda. Examina-se a compatibilidade da súmula 584 com o princípio da irretroatividade da lei tributária, através de pesquisa bibliográfica e análise de decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal. Verifica-se o conteúdo do princípio da irretroatividade tributária, e analisa o critério temporal da hipótese tributária do imposto sobre a renda, concluindo-se que para o atendimento do referido princípio é mister que o contribuinte tenha prévio conhecimento da lei que regerá todos os eventos a serem praticados no decorrer do período-base fixado em lei.
Palavras-chave: irretroatividade tributária, súmula 584, imposto sobre a renda.
Abstract: The docket 584 of the Federal Supreme Court and the application of the principle of irretroatividade of tax law on income tax. Examines the compatibility of the docket 584 with the principle of irretroatividade of tax law, through bibliographic search and review of decisions handed down by the Supreme Federal Court. Verifies the content of the principle of tax irretroatividade, and analyzes the temporal criterion of tax hypothesis of income tax, concluding that for the fulfillment of that principle is mister that the taxpayer has prior knowledge of the law that will govern all events to be charged over the base period fixed by law.
Keywords: tax irretroatividade, docket 584, income tax.
Sumário: Introdução. 1. Desenvolvimento do trabalho. 1.1 Breves considerações acerca dos princípios. 1.2 O princípio da irretroatividade das leis. 1.3 O princípio da irretroatividade das leis tributárias. 1.4 A estrutura da hipótese tributária. 1.4.1 Critério material. 1.4.2 Critério temporal. 1.4.3 Critério espacial. 1.4.4 Critério pessoal. 1.4.5 Critério quantitativo. 1.5 A hipótese tributária do imposto sobre a renda. 1.6 “O fato gerador complexo”. 1.7 A Súmula 584 do Supremo Tribunal Federal e o princípio da irretroatividade no imposto sobre a renda. Considerações finais. Referências.
INTRODUÇÃO
O imposto sobre a renda é um tributo de natureza fiscal e que tem repercussão direta, devendo atingir, tanto quanto possível, o maio número de pessoas, em razão do princípio constitucional da universalidade, talhado no artigo 153, § 2°, inciso I da Constituição Federal.
Na medida em que se apresentam como contribuintes deste imposto uma elevada parcela de brasileiros, é de suma importância que os critérios da hipótese tributária do imposto sobre a renda sejam suficientemente claros e incontroversos para que seja garantida a segurança jurídica consagrada pela Constituição Federal.
Entretanto, em que pese à exigência de certeza quanto aos diversos elementos que rodeiam o imposto em questão, é facilmente perceptível que inúmeras controvérsias pairam quanto a sua incidência.
E uma dessas controvérsias refere-se ao momento em que uma lei que aumenta o imposto sobre a renda deve ser aplicada, sem que venha a contrariar o princípio da irretroatividade tributária, consagrado no artigo 150, inciso III, alínea a, da Constituição Federal.
Embora pareça ser de fácil compreensão o tema proposto, é de se considerar que a hipótese tributária do imposto sobre a renda não se aperfeiçoa de modo instantâneo, ou seja, num só ato, demandando a análise de diversos atos praticados no decorrer do período-base fixado em lei, que coincide com o exercício financeiro, para a apuração do quantum devido.
Assim, questiona-se se uma lei que aumenta o tributo em análise pode ser aplicada aos atos já praticados durante o período-base, já que a hipótese tributária será concluída ao final do exercício financeiro?
Neste intento, o presente trabalho faz uma análise do conteúdo do princípio da irretroatividade da lei, bem ainda do princípio da irretroatividade da lei tributária.
Ademais, traz uma visão geral acerca dos critérios da hipótese tributária, em especial o critério temporal, que marca o momento em que a hipótese tributária considera-se ocorrida, especialmente no que toca ao imposto sobre a renda.
Por derradeiro, são analisados os argumentos para a aplicação do verbete da Súmula 584 do Supremo Tribunal Federal que defende a incidência imediata da lei modificadora do imposto sobre a renda aos atos praticados durante todo o período-base, bem ainda é apresentado o contraponto do posicionamento da Suprema Corte.
Assim, o trabalho visa examinar se a lei que altera as regras do imposto sobre a renda deve ser aplicada apenas para os atos praticados no “período-base” seguinte ao da sua publicação, ou se é constitucional a sua aplicação a atos praticados no “ano-base” da sua respectiva publicação.
Ressalta-se que o desenvolvimento do trabalho se deu a partir de pesquisa bibliográfica, através da análise de livros e artigos jurídicos publicados, acerca do assunto.
Ademais, analisa decisões em processos de controle abstrato de constitucionalidade no Supremo Tribunal Federal, utilizando dados disponíveis nos sítios www.stf.jus.br e www.stj.jus.br e consultando o inteiro teor de decisões.
1. DESENVOLVIMENTO DO TRABALHO
1.1- Breves considerações acerca dos princípios constitucionais
Embora não seja objeto específico do presente trabalho, verifica-se a necessidade de tecer algumas considerações gerais acerca do que seja um princípio, de modo a deixar claro o seu conceito, bem ainda sua classificação.
Muito citado pelos doutrinadores brasileiros, é o conceito de princípio elaborado por Celso Antonio Bandeira de Melo
“Princípio é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico (…) Violar um princípio é muito mais grave do que transgredir uma norma. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do principio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais (…)” (MELLO, 1986, apud BARROSO, 2009, p. 157)
Para Cunha Junior (2009, p. 183)
“O princípio é o veículo dos valores mais fundamentais de uma sociedade. É o ponto de partida, o começo, a origem mesma dessa sociedade. Numa perspectiva jurídica, princípio é o mandamento nuclear de um sistema jurídico, a pedra angular, a norma normarum, o alicerce e fundamento mesmo desse sistema, que lhe imprime lógica, coerência e racionalidade. É a viga-mestra que suporta e ampara o sistema jurídico ou cada um dos subsistemas existentes.”
Já Barroso (2009, p. 157), de forma mais específica, conceitua os princípios constitucionais como
“(…) a síntese dos valores mais relevantes da ordem jurídica. A Constituição, como já vimos, é um sistema de normas jurídicas. (…) Os princípios constitucionais consubstanciam as premissas básicas de uma dada ordem jurídica, irradiando-se por todo o sistema. Eles indicam o ponto de partida e os caminhos a serem percorridos.”
De forma geral, vislumbra a partir dos conceitos apontados que os princípios são os pilares, as bases do sistema jurídico, traçando as diretrizes que norteiam ordenamento jurídico, devendo ser observados pelo legislador na criação de direito novo, bem ainda pelos interpretes e aplicadores do direito.
Ademais, apontam para uma evidente imprescindibilidade de observância, na medida em que irradiam seus efeitos em todo sistema jurídico, contudo, podem apresentar peculiaridades quanto ao raio de sua projeção.
Segundo Barroso (2009, p. 159-160) os princípios constitucionais dividem-se em fundamentais, gerais e setoriais ou especiais, distinguindo-os nos seguintes termos
“Princípios fundamentais são aqueles que contêm as decisões políticas estruturais do Estado, no sentido que a elas empresta Carl Schimitt. (…) São tipicamente os fundamentos da organização política do Estado, correspondendo ao que referimos anteriormente como princípios constitucionais de organização. Neles se substancia a opção política entre Estado unitário e federação, república ou monarquia, presidencialismo ou parlamentarismo, regime democrático etc. (…)
Os princípios constitucionais gerais, embora não integrem o núcleo da decisão política formadora do Estado, são, normalmente, importantes especificações dos princípios fundamentais. Tem eles menor grau de abstração e ensejam, em muitos casos, a tutela imediata das situações jurídicas que contemplam. São princípios que se irradiam por toda a ordem jurídica, como desdobramentos dos princípios fundamentais, e se aproximam daqueles que identificamos como princípios definidores de direitos. (…)
E, por fim, os princípios setoriais ou especiais, que são aqueles que presidem um específico conjunto de normas afetas a determinado termo, capítulo ou título da Constituição. Eles irradiam limitadamente, mas no seu âmbito de atuação são supremos.”
Considerando a divisão mencionada, no presente trabalho será abordado, embora de forma sucinta, um princípio constitucional geral, e de forma mais detalhada, um princípio setorial, a saber, o princípio da irretroatividade e o princípio da irretroatividade tributária respectivamente.
Neste sentido é a lição de Pessoa (2003, p. 86-87)
“Assim, o princípio da irretroatividade inserido no art. 5°, XXXVI, da CF, trata-se de um princípio geral de direito, pois aplica-se indistintamente a vários ramos do direito (penal, tributário, administrativo, comercial civil etc.). No entanto, a irretroatividade da norma tributária não seria exatamente um princípio geral do direito, assim como também não é o princípio da irretroatividade da lei penal, pois só pode considerar-se geral aquele princípio que tem aplicação em diversos ramos do direito, e tampouco possui a categoria de um princípio fundamental (v. g. legalidade), pois sua ausência não ameaça a existência do Estado Constitucional de Direito, tanto é assim que vários sistemas jurídicos subsistem apenas com a previsão do princípio geral do direito da irretroatividade das leis, situados exclusivamente no âmbito infraconstitucional sem vincular o legislador ordinário, mas apenas o juiz e do poder regulamentar.”
1.2 – O princípio da irretroatividade das leis
Historicamente, o princípio da irretroatividade da lei foi veiculado em todas as Constituições brasileiras, desde 1824, com exceção da Constituição de 1937, de regime autoritário.
Nas Constituições de 1824 e 1891 havia previsão explícita do princípio da irretroatividade (RIBEIRO, 2009, p. 93).
Contudo, a partir da Constituição de 1934, ressalvada a Constituição de 1937, o princípio da irretroatividade da lei passou a ser declarado de forma implícita, através da garantia do direito adquirido (RIBEIRO, 2009, p. 93).
A consagração do princípio da irretroatividade da lei na Constituição Federal de 1988, mesmo que de forma implícita, encontra-se no artigo 5°, inciso XXXVI, nos seguintes termos: “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”.
Sem dúvida o princípio da irretroatividade da lei esta ligado diretamente a outro princípio constitucional de enorme importância para o regime democrático, que é o princípio da segurança jurídica, esculpido no artigo 5°, caput da Constituição Federal.
Nesta senda, explica Ribeiro (2008, p. 235) que
“A segurança jurídica no plano do direito objetivo, que encontra seu mais intenso grau de efetividade no plano da legalidade, possui também uma dimensão temporal, representada pela necessidade do ordenamento jurídico oferecer previsibilidade para nortear a conduta do cidadão, cuja liberdade de ação esta relacionada com a capacidade de mensurar os efeitos jurídicos dos seus atos, a partir do conhecimento prévio das normas que o regulam.”
Extrai-se que o princípio da segurança jurídica, sob o seu prisma temporal, exige que o sistema jurídico possua mecanismo que confira ao indivíduo um grau de certeza nas relações jurídicas e que possibilite antever os efeitos jurídicos de seus atos.
Assim, como decorrência deste aspecto temporal do princípio da segurança jurídica, encontra-se na Constituição Federal o princípio da irretroatividade da lei, que afirma ter a lei efeitos prospectivos, no sentido de que a lei só deve atingir atos posteriores a sua edição.
A lei é editada para reger atos futuros, não sendo correta a sua aplicação a atos que antecedem o seu ingresso no ordenamento jurídico, sob pena de instaurar uma instabilidade nas relações jurídicas.
Entretanto, isto não quer dizer de modo absoluto, que não haja efeitos retroativos em determinadas leis.
O Ministro Moreira Alves, em seu voto proferido na ADI 493/DF, destaca a lição de Mattos Peixoto acerca dos graus de retroatividade
“Dá-se a retroatividade máxima (também chamada restitutória, porque em geral restitui as partes ao ‘status que ante’), quando a lei nova ataca a coisa julgada e os fatos consumados (transação, pagamento, prescrição). Tal é a decretal de Alexandre III que, em ódio à usura, mandou os credores restituírem os juros recebidos. À mesma categoria pertence a célebre lei francesa de 2 de novembro de 1793 (12 brumário do ano II), na parte em que anulou e mandou refazer as partilhas já julgadas, para os filhos naturais serem admitidos à herança dos pais, desde 14 de julho de 1789. A carta de 10 de novembro de 1937, artigo 95, parágrafo único, previa a aplicação da retroatividade máxima, porquanto dava ao Parlamento a atribuição de rever decisões judiciais, sem excetuar as passadas em julgado, que declarassem inconstitucional uma lei.
A retroatividade é média quando a lei nova atinge os efeitos pendentes de ato jurídico verificados antes dela, exemplo: uma lei que limitasse a taxa de juros e fosse aplicada aos vencidos e não pagos.
Enfim a retroatividade é mínima (também chamada de temperada ou mitigada), quando a lei nova atinge apenas os efeitos dos atos anteriores produzidos após a data em que ela entra em vigor. Tal é, no direito romano, a lei de Justiniano (C.4, 32, ‘de usuris’, 26, 2 e 27 pr.), que, corroborando disposições legislativas anteriores, reduziu a taxa de juros vencidos após a data da sua obrigatoriedade. Outro exemplo: o Decreto-Lei n. 22.626, de 7 de abril de 1933, que reduziu a taxa de juros e se aplicou, ‘a partir da sua data, aos contratos existentes, inclusive aos ajuizados (art. 3°)’.”
No entanto, em que pese a irretroatividade da lei não ser absoluta, admitindo sua aplicação de forma retroativa em determinadas situações, a retroação não poderá atingir o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e coisa julgada.
Sem entrar em detalhes acerca do conteúdo dos institutos jurídicos rotulados como direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada, se mostra interessante apontar os conceitos trazidos pela Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro em seu artigo 6°:
“Art. 6º A Lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada.
§ 1º Reputa-se ato jurídico perfeito o já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou.
§ 2º Consideram-se adquiridos assim os direitos que o seu titular, ou alguém por ele, possa exercer, como aqueles cujo começo do exercício tenha termo pré-fixo, ou condição pré-estabelecida inalterável, a arbítrio de outrem.
§ 3º Chama-se coisa julgada ou caso julgado a decisão judicial de que já não caiba recurso.”
Em suma, tendo o indivíduo consumado a prática do ato e incorporado um direito, não é aceitável que lei posterior venha aniquilar o próprio direito incorporado ou até mesmo reduzir seus efeitos, sob pena de não respeitar a segurança jurídica e consequentemente o princípio da irretroatividade das leis.
1.3 – O princípio da irretroatividade das leis tributárias
Conforme já constatado, enquanto o princípio da irretroatividade das leis se enquadra como um princípio constitucional geral, o princípio da irretroatividade das leis tributárias é visto com um princípio constitucional setorial ou específico.
Em que pese a explanação, ainda que superficial, acerca do princípio da irretroatividade das leis, necessário tecer ainda algumas explicações especificamente sobre o princípio da irretroatividade das leis tributárias, objeto do presente trabalho.
O princípio da irretroatividade das leis tributárias está expressamente previsto na Constituição Federal, em seu artigo 150, inciso III, alínea a, nos seguintes termos
“Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: […]
III – cobrar tributos:
a) em relação a fatos geradores ocorridos antes do início da vigência da lei que os houver instituído ou aumentado;”
Trata-se de uma verdadeira limitação constitucional ao poder de tributar do Estado.
Paulsen (2009, p. 209-210) pontua que
“A limitação ao poder de tributar prevista no art. 150, inciso III, alínea a, da Carta Magna constitui garantia do contribuinte contra o arbítrio do Estado, assegurando-lhe o conhecimento prévio da carga tributária a que estará sujeito. A cláusula da irretroatividade está baseada no privilegiamento da segurança jurídica no seu conteúdo de certeza do direito, princípio que deve nortear a atuação do legislador e do aplicador da lei.”
Tal como o princípio da irretroatividade da lei, a irretroatividade tributária também está ligada diretamente ao princípio da segurança jurídica, de modo que exige que a lei que cria ou que majora tributo deve ser previamente conhecida do contribuinte, a fim de que possa efetuar seu planejamento econômico com o intento de suportar o pagamento da exação.
Abordando o tema da irretroatividade da lei tributária (artigo 150, inciso III, alínea a, CF), Amaro (2011, p. 141) leciona que
“Esse dispositivo, a exemplo do contido no art. 5°, XXXVI, é dirigido não só ao aplicador da lei (que não a pode fazer incidir sobre fato pretérito), mas também ao próprio legislador, a quem fica vedado ditar regra para tributar fato passado ou para majorar o tributo que, segundo a lei da época, gravou esse fato.”
No mesmo sentido Rocha (2010, p. 45)
“A vedação da retroatividade das leis assume no Brasil dignidade constitucional. Tanto é assim que a nossa Carta Magna estatui de forma ampla a irretroatividade das leis em seu art. 5º, XXXVI, e, no mesmo artigo, nos incisos XXXIX e XL, veda de forma específica a retroatividade das normas penais mais gravosas.
Não bastando isso, o legislador impediu expressamente a possibilidade da retroação in pejus das leis tributárias, consagrando, em seu art. 150, III, a, o chamado princípio da irretroatividade tributária, de forma a vedar a cobrança de tributos em relação a fatos geradores ocorridos antes do início da vigência da lei que os houver instituído ou aumentado. Portanto, foi preocupação do constituinte atribuir segurança e certeza às relações jurídicas entre os cidadãos e, mesmo, entre estes e o próprio Estado, vedando-se que leis supervenientes fossem aplicadas a fatos ou atos pretéritos.
Logo, não se tratando de lei mais benigna, esta deverá regular fatos futuros e nunca aqueles já ocorridos. Nem mesmo se pode admitir que lei nova mais gravosa altere os efeitos futuros de um fato jurídico realizado ao argumento de que um fato pode ser dissociado de seus efeitos, pois tal concepção daria ensejo à admissão da retroatividade mínima”.
O conteúdo do princípio da irretroatividade da lei tributária parece bastante claro, no sentido de que a lei que cria ou aumenta tributo só deve incidir sobre fatos ocorridos após a sua entrada em vigor.
Contudo, há determinados tributos, cuja hipótese tributária depende da ocorrência de fatos num determinado período de tempo, o que de certa forma traz dúvidas quanto à forma de aplicação do princípio ora analisado, especialmente se a lei que traz um aumento do tributo entra em vigor durante o período fixado para ocorrência dos fatos, como por exemplo, no imposto sobre a renda.
1.4 A estrutura da hipótese tributária
Antes de adentrar no tema central do trabalho, serão analisados, de forma sucinta, os aspectos da hipótese tributária, de maneira a explicitar sua estrutura.
No presente trabalho foram adotadas as terminologias utilizadas pelo autor Paulo de Barros Carvalho, que para a descrição normativa do fato, utiliza-se da expressão hipótese tributária, e para o acontecimento material do fato, denomina-se fato jurídico tributário.
A hipótese tributária vai descrever, através da lei, o ato que gerará o nascimento da obrigação tributária, o valor desta, quais os sujeitos envolvidos, onde e em que momento surgirá e onde será realizada a prestação.
Portanto, é na hipótese tributária que se encontram os critérios material, temporal, espacial, pessoal e quantitativo. Essa divisão é utilizada apenas para fins didáticos, tendo em vista ser impossível à subsunção do fato à norma, considerando separadamente os elementos da hipótese tributária.
1.4.1 Critério material
Trata-se do núcleo da hipótese tributária, descrevendo uma ação ou situação que realizada dará nascimento à obrigação tributária.
Ensina CARVALHO (2011, p. 326)
“O comportamento de uma pessoa, consistência material lingüisticamente representada por um verbo e seu complemento, há de estar delimitado por condições espaciais e temporais, para que o perfil típico esteja perfeito e acabado, como descrição normativa de um fato”.
Observa-se que a ação ou situação descrita pela hipótese tributária é representada por um verbo e seu complemento: importar mercadoria estrangeira, auferir renda, possuir propriedade rural, etc.
Tome-se como exemplo o ITR (Imposto Territorial Rural), em que terá como critério ou aspecto material, o fato de ser o contribuinte possuidor de uma propriedade rural, emergindo a obrigação tributária.
1.4.2 Critério temporal
Tem-se o critério temporal com a definição pela lei, do momento em que se considera ocorrida à hipótese tributária.
Nas palavras de CARVALHO (2011, p. 331) tem-se
“[…] o critério temporal da hipótese tributária como o grupo de indicações, contidas no suposto da regra, e que nos oferecem elementos para saber, com exatidão, em que preciso instante acontece o fato descrito, passando a existir o liame jurídico que amarra devedor e credor, em função de um objeto – o pagamento de certa prestação pecuniária.”
Assim, o critério temporal da hipótese tributária do ITR é o estabelecido pelo legislador na Lei 9.393/96 em seu artigo 1º, ou seja, em 1º de janeiro de cada ano. Esclarecendo, tem-se que, quem for possuidor de propriedade rural (critério material), em 1º de janeiro da cada ano, estará obrigado ao pagamento de imposto.
1.4.3 Critério espacial
O critério espacial da hipótese tributária descreve o local em que o fato jurídico tributário deve ocorrer, ou põe em evidência o local do nascimento da obrigação tributária.
Segundo Ataliba (1995, p, 93), o critério ou por ele chamado aspecto espacial designa “a indicação de circunstâncias de lugar – contidas explicita ou implicitamente na hipótese de incidência – relevantes para a configuração do fato imponível”.
Os fatos imponíveis – como fatos concretos da vida real, inseridos no mundo fenomênico – acontecem num determinado lugar.
Assim, para o exemplo já utilizado, ter-se-á o critério espacial da hipótese tributária do ITR descrito no artigo 29 do Código de Tributário Nacional, sendo todo o local fora da zona urbana do Município. Este critério espacial alude que somente ocorrerá a hipótese tributária dentro dos limites geograficamente delimitados.
1.4.4 Critério pessoal
Diante da eclosão da hipótese tributária, observa-se, além do nascimento da obrigação tributária, um vínculo entre o particular e o Estado, que recebe o nome de relação jurídica tributária.
Os sujeitos dessa relação jurídica tributária são apontados pelo critério pessoal ou subjetivo da hipótese tributária.
Encontra-se nesta relação jurídica tributária, o sujeito ativo que é credor da obrigação, e o sujeito passivo que é devedor desta obrigação.
No exemplo discutido, tem-se como sujeito ativo a União, diante de sua competência tributária para instituir imposto sobre propriedade territorial rural. E tem-se como sujeito passivo o proprietário ou possuidor do imóvel rural. Não se deve olvidar que será o sujeito passivo da obrigação quem for o proprietário ou possuidor no dia 1º de janeiro da cada ano, conforme estabelece o critério temporal da hipótese tributária.
1.4.5 Critério quantitativo
Este critério contido na hipótese tributária tem o condão de externar o quantum da obrigação tributária.
Ele encontra-se dividido em base de cálculo e alíquota.
A base de cálculo da hipótese tributária considera no fato jurídico tributário o seu aspecto econômico, estabelecendo um parâmetro ou referência sobre o qual será cobrado o tributo.
Segundo CARVALHO (2011, p. 400), a base de cálculo é
“[…] a grandeza instituída na conseqüência da regra-matriz tributária, e que se destina, primordialmente, a dimensionar a intensidade do comportamento inserto no núcleo do fato jurídico, para que combinando-se à alíquota, seja determinado o valor da prestação pecuniária.”
No exemplo da ITR (Imposto Territorial Rural), sua base de cálculo é estabelecida pelo Código Tributário Nacional, em seu artigo 30:
“Art. 30. A base do cálculo do imposto é o valor fundiário.”
A lei tributária estabelece como base de cálculo do ITR (Imposto Territorial Rural) o seu valor fundiário que equivale ao valor da terra nua, devendo ainda ser observado os aspectos trazidos pelo artigo 10 da Lei 9.393/96.
A alíquota é o outro componente do critério quantitativo da hipótese tributária.
Ela também será estabelecida pela lei, e determinará um percentual, o qual incidirá sobre a base de cálculo, apurando o valor real da obrigação tributária.
No caso do ITR (Imposto Territorial Rural), a alíquota aplicável é diferenciada, obedecendo à área do imóvel, combinado com sua área produtiva, devendo ser observado os percentuais estabelecidos pela Lei 9.393/96.
1.5 A hipótese tributária do imposto sobre a renda
O imposto sobre a renda, de competência da União, tem uma estrutura complexa, sendo disciplinada por diversas leis esparsas.
Verifica-se que se trata do tributo que mais onera o contribuinte de forma direta, uma vez que ele tem caráter personalíssimo. Ademais, tal imposto, em tese, teria a estrutura mais adequada para o cumprimento do princípio da capacidade contributiva, previsto no artigo 145, § 1° da Constituição Federal, de maneira que pode promover uma tributação progressiva, de forma a atingir os sujeitos economicamente mais abastados com alíquotas maiores, e de maneira menos severa, com uma menor tributação, àqueles que possuem menor capacidade econômica.
Embora longe de ser o modelo ideal, verifica-se que ao imposto sobre a renda se mostra como um dos tributos que mais se aproxima da tão almejada justiça fiscal, bem ainda respeita o princípio da isonomia tributária, em seu aspecto material.
Considerando os critérios estruturantes da hipótese tributária já verificados, será analisado o imposto sobre a renda, dando ênfase aos critérios material e temporal, diante do nexo com tema proposto.
O imposto sobre a renda tem como critério ou aspecto material, o fato de ter o contribuinte acréscimo patrimonial, em razão da aquisição de disponibilidade econômica ou jurídica de renda ou proventos de qualquer natureza (SABBAG, 2009, p. 1010).
Machado (2005, p. 313) ensina que
“Tendo em vista o disposto no art. 153, inciso III, da Constituição Federal, e no art. 43 do Código Tributário Nacional, podemos afirmar que o âmbito material de incidência do imposto de renda é a aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica de renda, assim entendido o produto do capital, do trabalho ou da combinação de ambos; e de proventos de qualquer natureza, assim entendidos os acréscimos patrimoniais não compreendidos no conceito de renda.”
Abstraindo as discussões jurisprudenciais e doutrinarias acerca do alcance da expressão renda, é possível verificar que o imposto em análise incide sobre as variações patrimoniais positivas.
Relativamente ao critério temporal do imposto sobre a renda, pode-se verificar três modos de apuração no tempo da variação patrimonial, conforme lição de Martins (2005, p. 86)
“Primeiramente, a lei ordinária poderá estipular que cada aumento de patrimônio (produto do capital, do trabalho, ou a combinação de ambos – CTN, art. 43) seja tributado independentemente dos demais, anteriores ou posteriores. Trata-se, por conseguinte, de considerar a variação patrimonial de modo dinâmico e individualizado, isto é, sem levar em conta outras eventuais majorações ou perdas. (…) Exemplo comum de tal sistema, ao menos no Direito brasileiro, é a incidência do IR sobre aplicações financeiras em geral, tributação considerada definitiva e independente das demais. (…)
Em segundo lugar, e noutro sentido, é facultado ao legislador determinar que, somente após o termino de um período-base pré-definido (em geral entre 1° de janeiro e 31 de dezembro, mas não necessariamente), no qual certamente acontecem sucessivos aumentos e diminuições no patrimônio, seja considerada a variação ocorrida. Aqui, está-se diante de realidade estática, isto é, voltada a um período já encerrado. (…)
Finalmente (e é o que ocorrer de ordinário), admite-se que a lei preceitue sejam os diversos aumentos patrimoniais desde já computados (modo dinâmico), ocorrendo, v.g., a imediata tributação dos ganhos e capital e a retenção de parcela dos salários etc., realizando-se, então, após o término do período-base considerado, um ajuste de contas.”
Veja-se, que em que pese a consideração dos fatos de variação patrimonial positiva de forma isolada, o critério temporal da hipótese tributária do imposto sobre a renda é constatado ao final do período determinado pela lei, ou seja, verifica-se a variação patrimonial ao final do período-base (ano-base para o imposto sobre renda – pessoa física).
Assim, vislumbra-se caracterizar o imposto sobre a renda como um tributo de incidência anual, ressaltando-se que em situações especificas a tributária ocorrerá tão logo se verifique a variação patrimonial, a exemplo da tributação sobre o ganho de capital.
Machado (2005, p. 317) acerca do assunto, explica que
“Em se tratando de imposto de incidência anual, pode-se afirmar que o seu fato gerador é da espécie dos fatos continuados. E em virtude de ser a renda, ou o lucro, um resultado de um conjunto de fatos que acontecem durante determinado período, é razoável dizer-se também que se trata de fato gerador complexo.”
Ainda sobre o assunto, afirma Ribeiro (2009, p. 101-102) que
“O fato imponível do imposto de renda é constituído por uma série de eventos jurídicos relevantes, ocorridos ao longo do ano-base, findo o qual ocorrerá a constituição da relação jurídico-tributária. Ao final, portanto, do período correspondente ao ano-base, qual seja, entre 1º de janeiro a 31 de dezembro de cada ano-calendário, é que se terá o lapso de tempo relevante para a determinação da renda do contribuinte e, por conseguinte, o fato imponível do imposto.”
Infere-se que durante o período-base o contribuinte praticará inúmeros fatos que exteriorizam disponibilidade jurídica ou econômica de renda, que deverão ser considerados para fins de apuração do imposto sobre a renda devido.
Contudo, essa apuração, abstraindo as antecipações, só será viável com o fim do período-base, pois só então será possível apurar todos os atos de disponibilidade jurídica ou econômica de renda e proceder às deduções das despesas admitidas em lei, chegando assim a real base de cálculo do imposto sobre a renda.
Observa-se que serão considerados todos os atos passíveis de tributação, praticados durante o período-base.
Entretanto, a prática de cada ato isoladamente, em regra, não representa a hipótese tributária do imposto sobre a renda, dependendo, do fechamento do período-base para então concluir a hipótese tributária.
Neste contexto, surge o chamado “fato gerador complexo”, criticado por alguns autores, entretanto amplamente adotado por outros.
Desta forma, será analisado “fato gerador complexo” em tópico separado.
1.6 “O fato gerador complexo”
Em que pese a adoção da terminologia hipótese tributária para designar o fato descrito na lei como suficiente para o surgimento da obrigação tributária, no presente tópico será utilizado a terminologia “fato gerador”, tendo em vista ser o rótulo utilizado na classificação que aqui será abordada.
Assim, entre as classificações do “fato gerador”, merece destaque para o presente trabalho, a que os divide em periódicos e instantâneos.
O “fato gerador instantâneo” é aquele que ocorre e se exaure nele próprio, ou seja, o momento de sua ocorrência é o mesmo de sua extinção. Uma vez verificado no mundo fenomênico a ocorrência do evento, a obrigação de pagar o tributo surgirá simultaneamente.
Já os “fatos geradores periódicos” são, nas palavras de Alexandre (2009, p.123) aqueles “que se prolongam no tempo, sendo considerados ocorridos nos instantes legalmente determinados, gerando, a cada período concluído, uma nova obrigação tributária”.
Por seu turno, “fatos geradores periódicos” podem apresentar-se como periódicos simples e periódicos compostos (complexivos).
Considerando essa classificação, Alexandre (2009, p.123) explica que
“São periódicos simples aqueles que tomam por base um único evento, que se prolonga no tempo, como é o caso dos impostos sobre a propriedade. No IPTU, por exemplo, a propriedade de determinado imóvel é fato único, mas os seus efeitos se mantêm indefinidamente no tempo. São periódicos compostos (complexivos) os fatos geradores compostos de diversos eventos que devem ser considerados de maneira global, dentro de um determinado período de tempo legalmente definido. O fato gerador do imposto de renda, por exemplo, é periódico composto (complexivo), pois é formado por um conjunto de eventos (recebimentos mensais de renda, investimentos financeiros, alienações de bens com lucro etc.) que, globalmente considerados, implicam aumento patrimonial do contribuinte dentro de um determinado exercício financeiro.”
Constata-se que o “fato gerador complexo” é aquele que abrange um conjunto de atos, fatos ou situações jurídicas, que atrelado ao critério temporal, apresenta-se demandando um período determinado para ocorrência dos referidos eventos.
Como visto, o imposto sobre a renda apresenta “fato gerador” complexo e periódico, pois ele é apurado ao longo de um período fixado em lei (exercício financeiro para o imposto de renda – pessoa física), daí ser necessário o término do referido período para saber exatamente a base de cálculo ocorrida.
Assim, considerando que a hipótese tributária do imposto sobre a renda (pessoa física) só se aperfeiçoa (conclui) com o término do período-base (exercício financeiro), contudo, não se olvidando que atos já foram praticados e que serão levados em consideração na apuração do tributo, é discutível o entendimento sedimentado pelo Supremo Tribunal Federal através do verbete da Súmula 584, que afirma que a lei que altera o referido tributo durante o período-base será aplicado aos atos já praticados.
Assim, é este entendimento que será adiante analisado, e se mostra como objeto do presente trabalho.
1.7 A Súmula 584 do Supremo Tribunal Federal e o princípio da irretroatividade no imposto sobre a renda
Conforme já foi abordado, a Constituição Federal elenca como limitação ao poder de tributar do Estado a vedação da retroatividade da lei que crie ou aumente tributo.
Ademais, foi verificado que o imposto sobre a renda apresenta “fato gerador” periódico e complexo, na medida em que sua verificação é realizada a partir de prática de inúmeros eventos ocorridos num determinado período-base fixado em lei, que coincide com o exercício financeiro.
Considerando essas informações, é de se indagar se aplicação do entendimento extraído do verbete da Súmula 584 do Supremo Tribunal Federal não viola o princípio da irretroatividade tributária?
Inicialmente destaca-se o disposto no verbete da Súmula 584 do Supremo Tribunal Federal
“Súmula n.° 584 Ao imposto de renda calculado sobre os rendimentos do ano-base, aplica-se a lei vigente no exercício financeiro em que deve ser apresentada a declaração.”
De acordo com o entendimento consagrado na Súmula do Supremo Tribunal Federal, se uma lei que aumenta a alíquota do imposto sobre a renda é publicada no final de um determinado ano, todos os fatos jurídicos tributários que aconteceram ao decorrer do referido período-base, mesmo antes de sua efetiva publicação, estão sujeitos ao aumento.
A interpretação adotada pelo Supremo Tribunal Federal através da Súmula 584, cuja edição é 1976, considera que a hipótese tributária do imposto sobre a renda ocorre no 1° momento do ano da declaração, ou seja, no 1° momento do ano em que ocorre a cobrança do tributo, abstraindo o período em que os eventos importantes para a tributação ocorreram.
Neste mesmo sentido, Ribeiro (2009, p. 102)
“De acordo com o entendimento consagrado na Súmula, a lei que introduzisse aumento na carga tributária do imposto sobre a renda entraria em vigor no ano da sua publicação e regeria o fato gerador do tributo em questão na sua integralidade, ficando para o exercício seguinte apenas a sua cobrança. Assim, a interpretação correta que se fazia do art. 153, § 29, da Constituição de 1967 era de que a lei haveria de preceder ao exercício financeiro da cobrança do imposto, mas não da ocorrência do fato imponível tributário.”
De forma a aclarar o entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal, tome-se como exemplo o imposto sobre a renda – pessoa física. A lei fixa como período-base o exercício financeiro (1° de janeiro a 31 de dezembro). Assim, todos os atos que evidenciem disponibilidade econômica ou jurídica de renda praticados no período-base serão levados a efeito para a apuração do imposto sobre a renda. Contudo, a declaração e consequentemente a cobrança deste imposto, abstraindo as retenções e tributação exclusiva, será efetuada apenas no exercício financeiro seguinte a prática dos atos.
Desta forma, o Supremo Tribunal Federal entende que a hipótese tributária do imposto sobre a renda ocorre apenas no 1° dia do exercício financeiro seguinte ao do período-base onde se verifica a prática dos eventos que produzam variação patrimonial positiva.
Assim, a lei publicada até o dia 31 de dezembro do período-base se mostraria anterior a hipótese tributária o imposto, e por conseguinte não apresentaria qualquer violação ao princípio da irretroatividade da lei tributária.
Ademais, a aplicação do entendimento adotado pelo Supremo Tribunal Federal é defendida a partir da leitura do artigo 105 do Código Tributário Nacional que dispõe
“Art. 105. A legislação tributária aplica-se imediatamente aos fatos geradores futuros e aos pendentes, assim entendidos aqueles cuja ocorrência tenha tido início mas não esteja completa nos termos do artigo 116.”
Como a concretude da hipótese tributária do imposto sobre a renda só ocorrerá ao término do período-base fixado, entende-se que trata de “fato gerador pendente”.
Segundo Sabbag (2009, p.173), “fato gerador pendente”
“é aquele que indica o fato cuja conclusão ou consumação pressupõe uma sequência concatenada de atos, continuação essa que já se iniciou, mas ainda não se completou, no momento em que uma dada lei aparece, entrando em vigor.”
Neste ponto, defende-se que como a hipótese tributária do imposto sobre renda se consuma com o término do período-base, e considera todos os eventos praticados durante este período, neste período a hipótese tributária encontrava-se pendente de conclusão, logo uma vez publicada uma lei modificadora no decorrer do período-base, a ele seria aplicada.
Vislumbra-se que para os tributos de “fato gerador complexo”, o marco para aplicação de uma lei nova é a conclusão da hipótese tributária.
Não concluída a hipótese tributária, os eventos a serem praticados durante o período fixado em lei estão sujeitos a alterações da lei.
Em que pese às inúmeras críticas da doutrina quanto à aplicação do entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal na Súmula 584, que serão analisadas, a mesma continua sendo aplicada.
É possível verificar através da ementa do julgamento do Recurso Extraordinário n. 194.612[1], de 24.3.1998, cuja relatoria coube ao Ministro Sydney Sanches, a aplicação do entendimento consolidado através da Súmula 584 do Supremo Tribunal Federal.
Verifica-se que foi determinada a aplicação da alíquota majorada no final do ano-base aos atos ocorridos durante este período, ao argumento de que o fato gerador só se completa e se caracteriza ao final do período, ou seja, no dia 31 de dezembro do exercício financeiro.
Ademais, no julgamento do Recurso Extraordinário 199.352/PR[2], de 6.2.2001, em que o relator, Ministro Marco Aurélio restou vencido, novamente foi aplicada o entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal através da Súmula 584.
Conforme dito, o entendimento firmado no Supremo Tribunal Federal é muito criticado pela doutrina, mesmo antes da Constituição de 1988, visto que os doutrinadores apontam inúmeros argumentos para demonstrar que o entendimento consubstanciado na Súmula 584 ofende o princípio da irretroatividade.
Martins (2005, p. 86) explica que
“Iniciado um período-base legalmente traçado, criam-se no sujeito passivo legítimas expectativas acerca de sua manutenção e estabilidade, sob as fórmulas e regras inicialmente elencadas, possibilitando-lhe, destarte, da maneira menos onerosa possível, levar a efeito programação com gastos a serem ultimados com o IR.”
Conforme já mencionado, o princípio da irretroatividade tributária tem o por imperativo que seja dado conhecimento ao contribuinte de forma clara e prévia acerca dos critérios estruturais da hipótese tributária.
Segundo Amaro (2011, p.142)
“A lei, para respeitar a irretroatividade, há de ser anterior à serie de “a+b-c”, vale dizer, a lei deve preceder todo o conjunto de fatos isolados que compõem o fato gerador do tributo. Para respeitar o princípio da irretroatividade, não basta que a lei seja prévia em relação ao último desses fatos, ou ao término do período durante a qual os fatos isoladamente ocorridos vão sendo registrados.”
Na prática, a lei a ser aplicada aos eventos que serão praticados durante o período-base deve ser a que estiver em vigência antes do início do período-base, sob pena de ofensa ao princípio da irretroatividade.
Difini (2006, p. 165) assevera que
“Na verdade, não seria pseudo-retroatividade, mas retroatividade mesmo, hoje vedada por norma constitucional expressa (art. 150, III, a), que proíbe a exigência de tributos “em relação a fatos geradores ocorridos antes do início da vigência da lei que os houver instituído ou aumentado”. Logo, a lei tributária já não pode criar qualquer exigência com base em fatos que já ocorreram. O fato econômico tributável tem de ser posterior à lei: o mais, é aplicação retroativa da lei, constitucionalmente vedada. A Súmula 584, anterior à Constituição, já não prevalece, por incompatível com seu art. 150, III, a.”
No mesmo sentido, Machado (2005, p.110) afirma que
“Autorizados tributaristas tem sustentado que o imposto de renda deve ser regulado por lei em vigor antes do início do período-base respectivo. (…) O entendimento pelo qual o fato gerador do imposto de renda somente se completa no dia 31 de dezembro, e assim a lei publicada até tal data aplica-se a todo o período, vale dizer, ao lucro apurado no período de 1° de janeiro a 31 de dezembro, na verdade prejudica a segurança jurídica.”
Sem sombra de dúvidas, a interpretação adotada pelo Supremo Tribunal Federal parece ignorar a essência do princípio da irretroatividade tributária, que é proporcionar segurança jurídica ao contribuinte.
Independente da conclusão da hipótese de incidência, não pode ser olvidado que inúmeros atos foram praticados durante o período-base, e que serão considerados para a apuração do imposto sobre renda.
Assim, só haverá segurança jurídica para o contribuinte se ele conhecer e lhe for garantida a aplicação da lei em vigor desde o inicio do período-base até o seu final.
Neste mesmo sentido, é o entendimento de Coelho (2008, p. 344)
“Importa fundamentalmente que, antes de iniciar-se o fato jurígeno em 1° de janeiro, tenha o contribuinte certeza, segurança e previsão da lei prévia e escrita que o regerá ao longo do ano-base. Esta a verdadeira questão. A lei deve ser prévia ao dies a quo do fato jurígeno-tributário do IR a delongar-se ano adentro”.
Ademais, embora se entenda já bastar os argumentos até aqui trazidos para demonstrar o equívoco do entendimento do Supremo Tribunal Federal consubstanciado através de sua Súmula 584, há que serem mencionadas as críticas levantadas quanto ao suposto amparo que o artigo 105 do Código Tributário Nacional daria ao referido entendimento.
Verifica-se que o artigo 105 do Código Tributário Nacional indica a forma de aplicação da lei aos “fatos geradores pendentes e futuros”.
Contudo, o referido dispositivo remete a regra ao disposto no artigo 116 que por conseqüência deve ser interpretado em conjunto com o artigo 117, todos do Código Tributário Nacional, que dispõem
“Art. 116. Salvo disposição de lei em contrário, considera-se ocorrido o fato gerador e existentes os seus efeitos:
I – tratando-se de situação de fato, desde o momento em que o se verifiquem as circunstâncias materiais necessárias a que produza os efeitos que normalmente lhe são próprios;
II – tratando-se de situação jurídica, desde o momento em que esteja definitivamente constituída, nos termos de direito aplicável.
Parágrafo único. A autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária.
Art. 117. Para os efeitos do inciso II do artigo anterior e salvo disposição de lei em contrário, os atos ou negócios jurídicos condicionais reputam-se perfeitos e acabados:
I – sendo suspensiva a condição, desde o momento de seu implemento;
II – sendo resolutória a condição, desde o momento da prática do ato ou da celebração do negócio.”
Assim, a aplicação imediata da lei deve ser para os atos ou negócios jurídicos sujeitos a condição, cuja hipótese tributária só será verificada com o seu implemento.
Segundo Coelho (2008, p. 340)
“A expressão fato gerador pendente leva a falsa idéia de um fato gerador “complexivo” dependente das determinações de “outros direitos”. Não é nada disso, porém. O fato gerador pendente, na dicção do CTN, é uma subespécie do fato gerador futuro, se e quando dito fato gerador se caracterizar como uma situação jurídica que, por sua vez, caracterizar um ato jurídico bilateral (negócio jurídico) sujeito a condição que seja suspensiva.”
E continua o mesmo autor (2008, p.341)
“As palavras do CTN, dessarte, são incorretas, porque fato gerador pendente não é o que teve inicio e ainda não teve fim, e, sim, o que sequer teve começo (pois o fato gerador ocorre ou não ocorrer). O que, certamente, teve início, foi o negócio jurídico condicional. Do contrário, o inadimplemento da condição no negócio tornaria o fato gerador pendente um fato gerador que teve início e jamais teria fim…”
No mesmo sentido é o ensinamento de Sabbag (2009, p. 175)
“Do exposto, será possível verificar que pendente estará o negócio jurídico, e não o fato gerador. Este ocorrerá ou não. Essa é a razão pela qual, a nosso ver, a lei tributária só se aplica mesmo a fatos geradores futuros, pois o debatido “fato gerador pendente” nada mais é do que uma possibilidade jurídica. Se a condição jamais ocorrer, sua inexistência será inexorável.”
Logo, verifica-se que “pendente” é o negócio jurídico e não a hipótese de tributária, não havendo que se falar em aplicação imediata aos eventos praticados no transcorrer do período-base, sob o argumento de que o artigo 105 do Código Tributário Nacional assim prevê.
De arremate, ressalta-se que muito embora a matéria demonstra-se controvertida, o tema hoje está pendente de julgamento no Supremo Tribunal Federal, com o reconhecimento de repercussão geral da matéria.
A repercussão geral foi reconhecida no Recurso Extraordinário n. 592.396/SP[3], cujo Relator é o Ministro Ricardo Lewandowski.
Contudo, como a matéria já se encontrava pendente de julgamento no Plenário do Supremo Tribunal Federal através do Recurso Extraordinário n. 183.130/PR, será neste recurso que repousará a discussão quanto o entendimento externado através do verbete da Súmula 584.
Até a presente data, votaram pela aplicação do entendimento externado no verbete da Súmula 584 do Supremo Tribunal Federal, os Ministros Carlos Velloso, relator do Recurso Extraordinário n. 183.130/PR, Nelson Jobim e Joaquim Barbosa.
Contudo, em voto-vista o Ministro Eros Grau votou pelo provimento do Recurso Extraordinário n. 183.130/PR, de modo a afastar o entendimento até então aplicado no Supremo Tribunal Federal, e reconhecendo a inaplicabilidade da lei que altera a alíquota do imposto sobre a renda aos atos praticados no exercício-base de sua publicação.
O referido voto-vista foi acompanhado pelo Ministro Menezes Direito.
Hoje o Recurso Extraordinário n. 183.130/PR encontra-se com vista ao Ministro Cézar Peluso, e é a esperança dos tributaristas para que seja verificado o teor da Sumula 584 do Supremo Tribunal Federal com maior profundidade e que se reverta o entendimento até então aplicado pela Suprema Corte, já que o tema exigirá uma analise mais detida, pois é objeto de repercussão geral.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
De todo o exposto, verifica-se que a irretroatividade da lei é tão importante para o Direito Tributário que o constituinte consagrou expressamente o princípio da irretroatividade tributária, como imperativo de que o contribuinte tenha conhecimento prévio da lei que rege o tributo a ser exigido.
Em que pese à clareza do princípio, ainda é possível verificar a aplicação do entendimento sedimentado na Súmula 584 do Supremo Tribunal Federal, que segundo opinião esmagadora dos doutrinadores brasileiros ofende o princípio da irretroatividade da lei tributária.
Valendo-se da conclusão de que a hipótese tributária do imposto sobre a renda ocorre ao término do período-base fixado em lei, contudo, devendo ser considerado todos os eventos praticados neste período, é fácil verificar que a segurança jurídica, valor maior que visa assegurar o princípio da irretroatividade da lei tributária, só será satisfeita se o contribuinte conhecer previamente a lei que será aplicada no decorrer de todo o período-base.
Sem dúvida, a aplicação de lei que majora o imposto sobre a renda aos eventos já ocorridos no mesmo ano-base de sua publicação, sob o entendimento de que a hipótese tributária do referido tributo só se verifica no final do período (31 de dezembro do exercício financeiro), conforme quer o entendimento do Supremo Tribunal Federal, representa uma retroação da lei.
De certo modo, com o entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal, a lei está a atingir atos praticados, cujo indivíduo tinha a expectativa de suportar os efeitos jurídicos nos termos da lei até então em vigor.
Sobrevindo lei que majore o imposto sobre a renda, cuja aplicação deverá ocorrer sobre atos já praticados durante o período-base, sem dúvida fragiliza a segurança do contribuinte, pois deverá suportar a carga tributária até então não planejada.
Ademais, a aplicação imediata da lei que altera os critérios da hipótese tributária deve ocorrer tão somente aos negócios jurídicos pendentes, que ainda não foram concluídos em razão de algum elemento acidental que ainda não foi implementado.
Diferente da hipótese tributária do imposto sobre a renda, onde os atos encontram-se devidamente perfeitos, e que devem ser analisados em conjunto ao final do ano-base.
Assim, infere-se que o entendimento firmado através da Súmula 584 do Supremo Tribunal Federal contraria o princípio da irretroatividade da lei tributária, tendo a Suprema Corte a oportunidade de rever seu posicionamento através do julgamento do Recurso Extraordinário 183.130/PR.
Procurador da Fazenda Nacional
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