Resumo: Diante da importância que a pessoa jurídica possui para o direito e para a sociedade, o próprio sistema jurídico dispõe de instrumentos para proteger tal instituto, corrigindo eventuais fraudes e abusos no seu exercício. Através da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, a personalidade distinta e a autonomia patrimonial são afastadas temporariamente, fazendo com que sócios e administradores sejam responsabilizados, como se a pessoa jurídica não existisse. A inserção da teoria da desconsideração no Código Civil de 2002 não se trata de verdadeira inovação, vez que sua aplicação já era uma realidade nos tribunais brasileiros, mesmo que os dispositivos normativos que tratavam até então da disregard doctrine o faziam de forma confusa e, muitas vezes, até errônea.
Palavras-chave: pessoa jurídica; direito civil; sociedade comercial; desconsideração da personalidade jurídica.
Abstract: Ahead of the importance that the legal entity possesss for the law and the society, the proper legal system makes use of instruments to protect such institute, correcting eventual frauds and abuses in its exercise. Through the theory of the disregard doctrine, the distinct personality and the patrimonial autonomy are moved away temporarily, making with that partners and administrators are made responsible, as if the legal entity did not exist. The insertion of the disregard doctrine in the Civil Code is not about true innovation, time that its application already was a reality in the brazilian courts, exactly that the normative devices that dealt with until then disregard doctrine they made it of confused form e, many times, until erroneously.
Key words: legal entity; civil law; commercial society; disregard doctrine.
Sumário: Introdução – 1 Características da personalidade da pessoa jurídica – 2 Desconsideração da personalidade jurídica – 3 Mecanismos legais de correção dos desvios de função da pessoa jurídica – Considerações finais – Referências.
Introdução
A pessoa jurídica é um dos institutos mais importantes não só para o direito, mas para toda a sociedade, embora nem sempre seja utilizado para os fins a que deveria se destinar. Pois, além de instrumento da economia de mercado, a pessoa jurídica deve atingir aos fins sociais do próprio direito.
Nas situações em que há abuso ou fraude em seu exercício, há a possibilidade de correção em sua utilização, fazendo com que os responsáveis pelos referidos atos sejam responsabilizados, de modo a desconsiderar a personalidade da pessoa jurídica, decidindo o magistrado como se essa não existisse.
Nesse breve estudo, pretende-se verificar a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, através de seus pressupostos, da origem de sua elaboração, e os casos em que a responsabilidade não se dá por tal teoria, mas em virtude de dispositivos legais específicos.
1 Características da personalidade da pessoa jurídica
A pessoa jurídica pode ser definida como o conjunto de pessoas ou de bens que têm por objetivo a consecução de determinados fins, dotado de existência, patrimônio e personalidade jurídica próprios (POPP, 2008, p. 307-308; BITTAR, 2007, p. 131).
Segundo Arnaldo Rizzardo (2008, p. 247), “Trata-se da personificação de um grupo de pessoas físicas, ou de um ente criado por lei, ou de um patrimônio, mas geralmente envolvendo uma quantidade de pessoas, as quais resolvem criar um laço de união que as congrega em torno de um objetivo comum, para alcançar determinado objetivo”.
Nesse sentido, era claro o Código Civil de 1916, ao estabelecer em seu artigo 20: “as pessoas jurídicas têm existência distinta da dos seus membros”. O Código Civil de 2002 não traz referência expressa ao assunto, mas em nada modificou a natureza jurídica do instituto.[1]
São várias as teorias que tentam explicar a natureza da pessoa jurídica. Fazem-no sob diferentes argumentos, mas todas possuem um ponto em comum: reconhecem que a pessoa jurídica é uma criação legal, e como tal, deve servir de instrumento para o alcance de certos interesses, de certas necessidades do ser humano. De forma que deve “estar, necessariamente, vinculada aos interesses sociais, os quais, por sua vez, não podem afastar-se do interesse coletivo” (ALMEIDA, 2001, p. 190).
Das teorias que buscam esclarecer o tema, a que mais se destaca atualmente é a teoria da realidade das instituições jurídicas, pela qual a personalidade da pessoa jurídica é concessão do Estado a certos grupos de indivíduos, considerados merecedores dessa situação (KRIGER FILHO, 1995, p. 79; RIZZARDO, 2008, p. 254-255). O Direito, ao reconhecer capacidade formal e material às pessoas jurídicas, lhes confere também domicílio, nacionalidade, e patrimônio específico, distintos de seus integrantes.
Desses atributos, de grande importância é a autonomia patrimonial, que se configura como importante instrumento na motivação da iniciativa privada, e consequentemente, de promoção da economia de mercado, ao limitar, no exercício das atividades econômicas empresariais, as possibilidades de prejuízos pessoais de seus integrantes (ALVES, 2001, p. 252-254; COSTA, 2003, p. 21). Assim, em caso de insucesso nas atividades econômicas empreendidas, a responsabilidade patrimonial pelos atos e negócios jurídicos praticados pela pessoa jurídica está limitada ao seu patrimônio, não alcançando seus sócios ou administradores (LOUREIRO, 2009, p. 153-154; BITTAR, 2007, p. 142).
No entanto, se a lei confere autonomia patrimonial e personalidade distinta de seus membros à pessoa jurídica, essa deve cumprir seu objeto, sempre atendendo aos interesses sociais[2]. Ocorre que, mesmo diante da exigência legal, alguns sócios se utilizam da autonomia patrimonial da pessoa jurídica para alcançar fins ilícitos, ou, ao menos, diversos do objeto social, geralmente através de abusos e fraudes, em busca de benefício próprio em detrimento de interesses de terceiros ou do Estado (ALMEIDA, 2001, p. 183; BITTAR, 2007, p. 142).
A personalidade jurídica é prerrogativa conferida pelo Estado a certos entes morais, para que estes atinjam determinados fins, como o desenvolvimento econômico e social. Ao conceder à pessoa jurídica personalidade distinta de seus membros, o Estado permanece com o direito de verificar se a prerrogativa conferida está sendo utilizada devidamente. De modo que a personalidade jurídica pode ser considerada um direito relativo, vez que o juiz pode desconsiderá-la em casos de abuso e fraude, como veremos a seguir (MARIANI, 1987, p. 153).
2 Desconsideração da personalidade jurídica
Se a personalidade jurídica é criação legal que tem por fim de facilitar o exercício da atividade empresária, a sua desconsideração é a forma de adequar a pessoa jurídica aos fins para os quais a mesma foi criada, limitando e coibindo o uso indevido desse instituto. Como bem assevera Alexandre Ferreira de Assumpção Alves (2001, p. 273):
“A desconsideração da personalidade jurídica é um instrumento de correção dos desvios de finalidade da pessoa jurídica. Através dela o juiz pode reparar os atos emulativos causados por aqueles que se serviram da autonomia e capacidade próprias do ente moral para auferir vantagens injustas ou ilícitas.”
Para Marçal Justen Filho (1987, p. 155), a desconsideração da personalidade jurídica “é a ignorância para casos concretos e sem retirar a validade do ato jurídico específico, dos efeitos da personificação jurídica validamente reconhecida, a uma ou mais sociedade, a fim de evitar um resultado incompatível com a função da pessoa jurídica”.
Com a desconsideração, a personificação é afastada temporariamente, e o juiz decide como se a pessoa jurídica não existisse. Assim, se confundem os atos e os patrimônios dos sócios e da pessoa jurídica, e os sócios respondem pelos atos da pessoa jurídica (AMARO, 1993, p. 173). Segundo Popp (2008, p. 324), “tal instituto implica uma exceção à regra geral. Exceção a um dos principais efeitos da personificação que é a total separação entre as esferas da pessoa jurídica e a dos sócios”.
Embora haja certa confusão terminológica na doutrina, vez que alguns autores fazem referência a despersonalização, em vez de desconsideração, entende-se que a segunda denominação é mais correta, vez que a disregard doctrine não extingue a pessoa jurídica, apenas estende os efeitos de determinadas obrigações sociais aos sócios e administradores, havendo uma suspensão momentânea da autonomia da pessoa jurídica.
Nesse sentido, estabelece de maneira clara Márcia Frigeri (1997, p. 60):
“[…] a disregard doctrine não possui o fulcro de anular a personalidade jurídica, mas desconsiderar a pessoa jurídica em face das pessoas ou bens que por trás dela se escondem. Trata-se da declaração de ineficácia especial da personalidade jurídica para certos efeitos, permanecendo, pois, incólume a personalidade da empresa para quaisquer outras questões legítimas”.
Com a desconsideração, o afastamento da personalidade deve ser temporária e restrita aos atos fraudulentos ou praticados com abuso. Ressarcidos os prejuízos, a empresa deve continuar funcionando. A despersonalização, que tem caráter definitivo, somente se justificaria em situações extremas, havendo a própria extinção da personalidade jurídica.
O precedente jurisprudencial que permitiu o desenvolvimento da teoria da desconsideração da personalidade da pessoa jurídica ocorreu em 1897, na Inglaterra. Trata-se do famoso caso Salomon v. Salomon & Co, no qual um comerciante constituiu, com seus familiares (ele com 20.000 ações e os outros membros com uma ação cada um) uma company, para a qual cedeu seu próprio fundo de comércio. Mas, além de tornar-se sócio acionista majoritário, também permaneceu como credor da companhia, com títulos garantidos. Ao encontrar dificuldades, a companhia entrou em liquidação, situação em que se verificou que os bens disponíveis eram suficientes apenas à satisfação do crédito de que o próprio Salomon era titular, em prejuízo dos demais credores. Na decisão de primeira instância, o juiz desconsiderou a personalidade jurídica da Salomon & Co., para atingir a responsabilidade pessoal do sócio. Embora a decisão tenha sido reformulada pela Casa dos Lordes, que julgou por unanimidade a validade da companhia e a inexistência de responsabilidade pessoal, a tese repercutiu e influenciou decisões posteriores em países como os Estados Unidos e a Alemanha (REQUIÃO, 1998, p. 350).
No Brasil, Rubens Requião, na década de 1970, trouxe a idéia da desconsideração da personalidade da pessoa jurídica. Mas somente foi incluída no ordenamento positivo brasileiro no Código de Defesa do Consumidor (artigo 28 da Lei 8.078/90). Após, foi prevista também na Lei Antitruste (artigo 18 da Lei 8.884/94)[3] e na Lei de Crimes Ambientais (artigo 4º da Lei 9.605/98)[4].
O Código Civil de 2002 consagrou a teoria da desconsideração da pessoa jurídica, nos seguintes termos:
“Art. 50/CC. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.”
Assim, a desconsideração será possível se o abuso consistir em desvio de finalidade (o objetivo social foi desvirtuado, para se perseguirem fins não previstos contratualmente ou proibidos em lei) ou confusão patrimonial (a atuação do sócio ou administrador confundiu-se com o funcionamento da própria sociedade, não sendo possível identificar a separação patrimonial entre ambos). Nos dois casos, deve haver a ocorrência de prejuízo, individual ou social, que justifique a suspensão temporária da personalidade jurídica da sociedade.
No entanto, o artigo 50/CC não é taxativo, contemplando apenas duas hipóteses de abuso da pessoa jurídica, pois o abuso pode ocorrer: no exercício de direitos ou outras situações subjetivas de sócio (em geral a limitação da responsabilidade),[5] ou na própria separação estabelecida entre a pessoa jurídica e seus membros, em que a referida separação é alegada em circunstâncias contrárias à função.[6]
Às espécies de abuso correspondem as espécies de desconsideração. Assim, pode ocorrer desconsideração da limitação da responsabilidade, que ocorre quando, esgotados os bens da pessoa jurídica, passam a ser executados os bens dos sócios. Ou desconsideração da separação existente entre a pessoa jurídica e seus membros, quando há inversão na atribuição de direitos ou situações subjetivas do(s) sócio(s) ou da pessoa jurídica (ZANITELLI, 2002, p. 719-721).
Além de casos, por exemplo, de decisões que determinam a penhora de bens de sócios em sociedades dissolvidas irregularmente, e penhora, por dívidas pessoais, de bens do sócio incorporados fraudulentamente ao patrimônio de pessoa jurídica (ZANITELLI, 2002, p. 723-725).
Para que a desconsideração possa ser aplicada, devem estar presentes os seguintes requisitos:
(i) Sociedade personificada, na qual os sócios tenham responsabilidade limitada. Se a sociedade não for personificada, ou se personificada, mas for sociedade em que os sócios tenham responsabilidade ilimitada em razão das obrigações sociais, não há razão de desconsiderar a sociedade para que os sócios sejam responsabilizados.
(ii) Configuração da fraude ou abuso de direito relacionado à autonomia patrimonial. A fraude ou abuso ocorre através da personalidade jurídica, porque os atos negativos não são praticados pela pessoa jurídica, mas através dela.
(iii) Que não se trate de responsabilização direta por ato próprio do sócio ou administrador. Casos em que a responsabilização também independe da desconsideração, como será abordado em item próprio.
(iv) Manutenção da validade dos demais atos jurídicos, vez que a desconsideração não tem por objetivo promover a extinção da atividade empresarial; do contrário, quer preservá-la.[7] A personalidade será conservada sempre que a atuação da pessoa jurídica não for um instrumento para a realização de atos não apropriados com sua finalidade.
Não só pelo dispositivo que contempla a disregard doctrine no Código Civil de 2002, mas também por toda a construção doutrinária e jurisprudencial já existente no direito brasileiro, percebe-se houve a adoção tanto da teoria subjetiva como a objetiva da desconsideração.[8] A teoria subjetiva requer, para a aplicação da teoria da desconsideração, a existência de fraude ou abuso. Para a teoria objetiva, basta a confusão patrimonial entre a sociedade e os sócios.
No entendimento de Fábio Ulhôa Coelho (2002, p. 44), a concepção subjetiva é mais apropriada à teoria da desconsideração, servindo para delimitar as situações em que tem cabimento a sua aplicação, enquanto que a concepção objetiva deve auxiliar o demandante na produção de prova. As duas concepções se completam, abrangendo um maior número de hipóteses de aplicação da teoria.
Embora a busca da justiça seja a tônica da aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, esta deve ser aplicada cautelosamente, para que não fique banalizada e acabe desestruturando o próprio instituto da pessoa jurídica (FRIGERI, 1997, p. 63).
Segundo Marlon Tomazette (2001, p. 79),
“Trata-se, porém, de medida excepcionalíssima, vale dizer, a regra é que prevaleça a autonomia patrimonial, sendo uma exceção a desconsideração. […] Apenas se comprovando cabalmente o desvio no uso da pessoa jurídica é que cabe falar em desconsideração, e sacrificar a autonomia patrimonial.”
Nesse sentido, temos vários julgados que restringem a aplicação da desconsideração a casos excepcionais, em que há a configuração de fraude ou abuso da personalidade jurídica, com a finalidade de lesão a direito de terceiro, infração da lei ou descumprimento de contrato:
“AGRAVO DE INSTRUMENTO. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. REQUISITOS DO ART. 50, DO CÓDIGO CIVIL INDEMONSTRADOS. A questão da desconsideração da personalidade jurídica, conquanto teoricamente bem elaborada, tem controvertida aplicação prática, seja em função da indevida ampliação ‘para não dizer banalização’, que vem sendo dada ao instituto, especialmente para a atribuição de dívidas da sociedade aos sócios, seja em razão da falta de objetividade dos critérios empregados para apurar a configuração do desvio de finalidade da sociedade ou a confusão patrimonial entre o patrimônio da pessoa jurídica e o das pessoas físicas de seus sócios. A desconsideração da pessoa jurídica somente haverá de ser evocada como meio de viabilizar a recuperação de créditos junto aos sócios, quando evidenciada a tentativa de fraude a credores pela dissolução irregular da sociedade, com a transferência de patrimônio da sociedade para o patrimônio particular dos sócios. Portanto, para desconsiderar a personalidade jurídica, vinculando o patrimônio dos sócios às dívidas da sociedade, deve haver fundadas suspeitas de ter o administrador agido de má-fé, com fraude a interesses de credores e com prova de abuso de direito. Na hipótese dos autos não há prova suficiente de tentativa de fraude a credores. Agravo improvido em decisão monocrática.” (Agravo de Instrumento Nº 70032481939, Décima 8ª Câmara Cível, TJRS, Relator: Cláudio Augusto Rosa Lopes Nunes, Julgado em 03/10/2009)
“AGRAVO DE INSTRUMENTO. RESPONSABILIDADE CIVIL. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. AUSÊNCIA DE FRAUDE OU IRREGULARIDADE. IMPOSSIBILIDADE. DECISÃO MANTIDA. Diante da ausência de demonstração dos requisitos legais para medida extrema requerida, impende manter decisão que indefere desconsideração da personalidade jurídica. Negado provimento ao agravo de instrumento, em decisão monocrática.” (Agravo de Instrumento Nº 70032239873, 6ª Câmara Cível, TJRS, Relator: Artur Arnildo Ludwig, Julgado em 06/11/2009)
“CUMPRIMENTO DE SENTENÇA – Desconsideração da personalidade jurídica – Requisitos – Ausência – Inexistência de comprovação de que os sócios da agravada tenham agido com fraude, ocasionando o desvio de personalidade ou confusão patrimonial – Credor que não providenciou todas as diligências lhe incumbiam para a identificação de bens ou valores passíveis de constrição de titularidade da devedora – Decisão reformada para afastar a desconsideração da personalidade jurídica realizada – Recurso provido para esse fim.” (Agravo de Instrumento Nº 991090294115, 38ª Câmara de Direito Privado, TJSP, Relator: Maia da Rocha, Julgado em 21/10/2009)
“AGRAVO DE INSTRUMENTO- PROCESSO DE EXECUÇÃO- DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA-Não há que se falar em desconsideração da personalidade jurídica, no processo de execução, se não restou configurada alguma das hipotéses legais que permite sua concessão.É possível, pela lei, a desconsideração da personalidade jurídica em casos de abuso da personalidade jurídica caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, podendo ocorrer ainda em casos de abuso de direito, excesso de poder, infração à lei, fato ou ato ilícito, violação dos estatutos ou contrato social, falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica por má administração, o que não restou demonstrado nesta seara.V.V-Para a decretação da desconsideração da personalidade jurídica, necessária a demonstração e a comprovação de situações fáticas revestidas de má-fé, fraude ou abuso de direito. Os sócios que tiverem agido irregularmente, ou mesmo a pessoa jurídica constituída de modo fraudulento, para fraudar os direitos dos credores de outra, poderão ser chamados a integrar o pólo passivo do feito, sendo imprescindível, para tanto, como condição para que seus bens possam ser penhorados, a citação de todos os envolvidos, em nome próprio. Há, na espécie, fortes indícios de fraude, posto que as provas dos autos demonstram que a sociedade executada parece existir apenas formalmente, sem ter informado aos seus credores se possui ou não ativo, passível de suportar seus débitos. A dissolução irregular permite a penhora de bens dos sócios, devendo eles ser incluídos no pólo passivo da execução, bem como citados, pessoalmente, para, querendo, instaurar o contraditório por meio dos embargos à execução, com o objetivo de demonstrar que a situação ora vislumbrada não decorreu de qualquer ato ilegal, fraudulento ou de má-fé, de sua parte.” (Agravo Nº 1.0479.05.094952-4/001, 17ª Câmara Cível, TJMG, Relator: Luciano Pinto, Julgado em 18/09/2008)
É conveniente reiterar que o intuito da teoria da desconsideração é a preservação da pessoa jurídica e de sua autonomia, enquanto importante instrumento para o desenvolvimento econômico e social, sem que se deixe ao desabrigo terceiros prejudicados.
Antes, “a repressão às irregularidades e abusos de forma significava, via de regra, a dissolução da pessoa jurídica” (COELHO, 2002, p. 42). Com a utilização da teoria da desconsideração, é possível a repressão de fraudes e atos abusivos preservando os interesse da coletividade. De modo que é possível a continuidade da empresa, e a conseqüente preservação da produção, dos postos de trabalho e a arrecadação de tributos pelo Estado.
De modo que, se a previsão da teoria da desconsideração da personalidade jurídica no Código Civil representa a sua valorização pelo ordenamento, é importante não esquecer que tal mecanismo somente deve ter lugar nos casos que a pessoa jurídica seguir de escudo para práticas irregulares, para que sua utilização não seja banalizada e descaracterize seu próprio fim, que é a proteção da pessoa jurídica.[9]
3 Mecanismos legais de correção dos desvios de função da pessoa jurídica
Assim como o direito reconhece a autonomia da pessoa jurídica e a conseqüente limitação da responsabilidade dos sócios, o próprio direito pode cercear os possíveis abusos, restringindo a autonomia e a limitação da responsabilidade.
Em alguns casos, a própria lei trata da responsabilidade solidária, subsidiária, ou pessoal dos sócios por obrigação da pessoa jurídica, em que não é necessária a desconsideração da empresa para imputar as obrigações aos sócios, pois a implicação ou responsabilidade do sócio já decorre do preceito legal ou contratual (AMARO, 1993, p. 172).[10]
De modo que, por exemplo, os sócios que agem com dolo ou culpa, em violação da lei ou do estatuto, são responsáveis diretamente pelos prejuízos que venham a causar a terceiros, independentemente de se invocar a teoria da desconsideração, por força da legislação em vigor (ALMEIDA, 2001, p. 193).
Vejamos, mencionando alguns mecanismos legais, como o direito positivo trata o assunto, de maneira que, sem deixar de reconhecer a autonomia, deixa expresso a responsabilidade (solidária, subsidiária, ou pessoal) de terceiros.
Na Consolidação das Leis do Trabalho (artigo 2º, § 2º/CLT), há a responsabilidade solidária das sociedades integrantes de um conglomerado econômico pelos débitos trabalhistas, sem necessidade de prova de fraude ou abuso de direito (RODRIGUES, 1994, p. 15).
A Lei das Sociedades Anônimas estabelece a responsabilidade civil do administrador que, ao agir com dolo, culpa ou violação da lei ou do estatuto, causa prejuízos na gestão da empresa (artigo 158 da Lei 6.404/76). Também o artigo 242 da referida lei prevê a responsabilidade subsidiária do controlador da sociedade de economia mista pelas suas obrigações (RODRIGUES, 1994, p. 15).
A Lei do Sistema Financeiro veda determinadas operações com seus administradores e pessoas jurídicas de cujo capital estes participem (artigo 34 da Lei 4.595/64). Também a Lei 7.492/86 no artigo 17, dispõe de forma semelhante.
A Lei de Repressão ao Abuso do Poder Econômico (Lei 4.137/62), em seu artigo 6º, responsabiliza civil e criminalmente diretores e gerentes de pessoas jurídicas pelos abusos caracterizados na referida lei.
No Código Tributário Nacional, o abuso do representante legal induz a responsabilidade pessoal (artigo 135/CTN) e a responsabilidade subsidiária (artigo 133, II, e 134/CTN) pelas obrigações tributárias da empresa (RODRIGUES, 1994, p. 15).
O artigo 6º da Lei da Sonegação Fiscal (Lei 4.729/65) trata da responsabilização penal de “todos os que, direta ou indiretamente ligados à mesma, de modo permanente ou eventual, tenham praticado ou concorrido para a prática da sonegação fiscal”.
A Lei de Usura (Dec. 22.626/33), no artigo 13, parágrafo único, também trata da responsabilidade penal: “Serão responsáveis como co-autores […] em se tratando de pessoa jurídica, os que tiverem qualidade para representá-la”.
No Código de Defesa do Consumidor, dentre as hipóteses do artigo 28, a única que pode ser considerada como expressão da disregard doctrine é a de abuso de direito. As outras figuras jurídicas previstas (excesso de poder, infração de lei, violação dos estatutos, falência por má administração, etc.) são de responsabilidade direta dos sócios ou administradores, não representando a existência de sociedade qualquer obstáculo à reparação pelos danos causados (KRIGER FILHO, 1995, p. 85).
Não há que confundir hipóteses legais de responsabilidade dos sócios ou administradores com a desconsideração da personalidade jurídica. Nas situações elencadas, não se cogita da desconsideração da pessoa jurídica, pois a lei prevê as conseqüências jurídicas, sem necessidade de desconsideração. Não é preciso desconsiderar a pessoa jurídica, porque, mesmo considerada, a responsabilidade do sócio emerge por força do preceito legal.
Considerações finais
A teoria da desconsideração da pessoa jurídica é criação da jurisprudência inglesa, recepcionada pelo direito pátrio, que procura preservar o instituto da pessoa jurídica, possibilitando a correção de eventuais abusos e fraudes em seu exercício. Com a desconsideração, a personalidade distinta e a autonomia patrimonial são afastadas temporariamente, fazendo com que sócios e administradores sejam responsabilizados, como se a pessoa jurídica não existisse.
A inserção da teoria da desconsideração no Código Civil de 2002 não se trata de verdadeira novidade, vez que sua aplicação já era uma realidade em nossos tribunais. Mas, sendo o Brasil um país de inspiração continental, apegado ao direito escrito, é importante a inclusão de um artigo a respeito de tal teoria, pois os dispositivos que tratavam da desconsideração até então trazem redação confusa, e até distorcem a teoria.
Se a previsão da teoria da desconsideração no Código Civil representa a sua valorização pelo ordenamento, é importante não esquecer que a disregard doctrine deve ser a exceção, somente utilizada nos casos que configurem o desvio da pessoa jurídica, para que sua utilização não seja banalizada e descaracterize seu próprio fim, que é a proteção da pessoa jurídica.
Advogada. Mestre em Direito pela Universidade de Caxias do Sul (UCS); Especialista em Direito Civil Contemporâneo pela Universidade de Caxias do Sul (UCS); Professora de Direito Civil no Centro de Ensino Superior Cenecista de Farroupilha (CESF)
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