Resumo: O presente artigo objetiva abordar a teoria da perda de uma chance sob a ótica de uma vertente peculiar da responsabilidade civil. Trata-se de um tema ainda relativamente novo na doutrina e na jurisprudência pátria, porém que vem ganhando aplicabilidade pelos tribunais brasileiros. A questão apresentada cuida de nova vertente na responsabilidade civil: a possibilidade de reparação pela perda de uma chance. Em outras palavras, o ressarcimento pela perda da oportunidade de conquistar determinada vantagem ou evitar certo prejuízo.
Palavras-chave: Responsabilidade civil; dano; perda de uma chance.
Sumário: 1. Introdução 2. Responsabilidade civil 3. Perda de uma chance 4. Conclusão. Bibliografia.
1. INTRODUÇÃO
O presente artigo objetiva abordar a teoria da perda de uma chance sob a ótica de uma vertente peculiar da responsabilidade civil. Trata-se de um tema ainda relativamente novo na doutrina e na jurisprudência pátria, porém que vem ganhando aplicabilidade pelos tribunais brasileiros.
Primeiramente, é importante tecer breves considerações sobre as noções gerais de responsabilidade civil no direito brasileiro.
2. RESPONSABILIDADE CIVIL
Antes de adentrarmos a temática propriamente dita, ou seja, na teoria da perda de uma chance, é importante tentar compreender o conceito jurídico de responsabilidade civil.
Uma das áreas do Direito Civil que causa maior polêmica é, sem dúvida, a responsabilidade civil. A idéia central consiste na obrigação legal que cada um tem de reparar os prejuízos decorrentes de seus atos em face de terceiros.
A palavra responsabilidade tem sua origem no verbo latino respondere, significando a obrigação que alguém tem de assumir as conseqüências jurídicas de sua atividade, contendo, ainda, a raiz latina de spondeo, fórmula através da qual se vinculava, no Direito Romano, o devedor nos contratos verbais.
Os autores Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho conceituam responsabilidade como sendo:
“A responsabilidade, para o Direito, nada mais é, portanto, que uma obrigação derivada – um dever jurídico sucessivo – de assumir as conseqüências jurídicas de um fato, conseqüências essas que podem variar (reparação dos danos e/ou punição pessoal do agente lesionante) de acordo com os interesses lesados.”[1]
Continuam os autores:
“Trazendo esse conceito para o âmbito do Direito Privado, e seguindo essa mesma linha de raciocínio, diríamos que a responsabilidade civil deriva da agressão a um interesse eminentemente particular, sujeitando, assim, o infrator, ao pagamento de uma compensação pecuniária à vítima, caso não possa repor in natura o estado anterior de coisas.”[2]
A responsabilidade civil, conforme o seu fundamento, pode ser dividida em responsabilidade subjetiva ou objetiva.
Diz-se subjetiva a responsabilidade quando se baseia na culpa ou no dolo do agente, que deverão ser comprovados para gerar a obrigação indenizatória. Trata-se da teoria clássica, também chamada teoria da culpa.
Diz-se objetiva a responsabilidade quando se prescinde a comprovação da culpa para a ocorrência do dano indenizável. A lei impõe, entretanto, em determinadas situações, a obrigação de reparar o dano independentemente de culpa. É a teoria dita objetiva ou do risco. Na responsabilidade objetiva imprópria a culpa é presumida.
O Código Civil Brasileiro adota como regra a responsabilidade subjetiva, porém no art. 927, parágrafo único, prevê a responsabilidade objetiva decorrente do risco.
Nesse sentido são os ensinamentos de Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho:
“Assim, a nova concepção que deve reger a matéria no Brasil é de que vige uma regra geral dual de responsabilidade civil, em que temos a responsabilidade subjetiva, regra geral inquestionável do sistema anterior, coexistindo com a responsabilidade objetiva, especialmente em função da atividade de risco desenvolvida pelo autor do dano (conceito jurídico indeterminado a ser verificado no caso concreto, pela atuação judicial), ex vi do disposto no art. 927, parágrafo único.”[3]
A doutrina ainda divide a responsabilidade em: a) responsabilidade extracontratual ou aquiliana e b) responsabilidade contratual.
De forma simples, pode-se considerar que a responsabilidade extracontratual ou aquiliana dar-se-á quando ocorre violação direta da norma legal. Nesse caso, a responsabilização será com base nos arts. 186 e 927 do CC/02, in verbis:
“Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.
Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.”
Por outro lado, a responsabilidade contratual dar-se-á quando ocorrer violação de norma contratual anteriormente fixada pelas partes.
A maioria da doutrina traz como pressupostos para a configuração da responsabilidade civil, os seguintes: a) conduta; b) dano ou prejuízo; e c) nexo de causalidade.
Dentre esses pressupostos o que mais está relacionado com a teoria da perda de uma chance é o dano, pois sem o dano não há o que indenizar.
O dano pode ser material ou moral.
A visão tradicional é a visão materialista da análise do dano, onde a diminuição patrimonial seja facilmente perceptível.
Ocorre que novas espécies de dano vêm sendo tuteladas pela doutrina e jurisprudência, em razão do surgimento de novos interesses que antes ficavam carentes de indenização, modernamente vêm sendo protegidos, como o dano decorrente da perda de uma chance.
Veja como Sergio Cavalieri Filho define o dano:
“Conceitua-se, então, o dano como sendo a subtração ou diminuição de um bem jurídico, qualquer que seja sua natureza, quer se trate de um bem patrimonial, quer se trate de um bem integrante da própria personalidade da vítima, como a sua honra, a imagem, a liberdade etc. Em suma, dano é lesão de um bem jurídico, tanto patrimonial como moral, vindo daí a conhecida divisão do dano em patrimonial e moral.”[4]
O dever de indenizar (reparar o dano) é a consequência jurídica do ato danoso, possuindo assento constitucional, veja o disposto nos incisos V e X, in verbis:
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (…)
V – é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem; (…)
X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;”
A responsabilidade civil também vem positivada no Código Civil. Na Parte Geral, nos arts. 186, 187 e 188, estabeleceu a regra geral da responsabilidade aquiliana e algumas excludentes. A Parte Especial dedicou-lhe, em seu Título IX, ainda, dois capítulos, um “Da obrigação de indenizar” e outro “Da indenização”, sob o título “Da Responsabilidade Civil”.
3. TEORIA DA PERDA DE UMA CHANCE
Após as breves considerações acerca da responsabilidade civil, iniciaremos o estudo propriamente dito do trabalho, que é a teoria da perda de uma chance.
A questão apresentada cuida de nova vertente na responsabilidade civil: a possibilidade de reparação pela perda de uma chance. Em outras palavras, o ressarcimento pela perda da oportunidade de conquistar determinada vantagem ou evitar certo prejuízo.
A teoria da perda da chance (perte d´une chance) surgiu na França na década de 60 do século passado e foi bastante difundida na Itália.
Por muito tempo o direito ignorou a possibilidade de se responsabilizar o autor do dano decorrente da perda de alguém obter uma oportunidade de chances ou de evitar um prejuízo, argumentando que aquilo que não aconteceu não pode nunca ser objeto de certeza, a propiciar uma reparação.
Igualmente à postura da doutrina, os tribunais costumavam exigir, por parte da vítima que alegava a perda de uma chance, prova inequívoca de que, não fora à ocorrência do fato, teria conseguido o resultado que se diz interrompido.
No Brasil, a adoção da responsabilidade civil baseada na perda de uma chance, é relativamente nova. Seu estudo e aplicação ficam a cargo da doutrina e da jurisprudência, uma vez que o Código Civil de 2002 não fez menção a ela. Existe, ainda, ausência de critérios argumentativos que tragam uniformidade aos casos.
A aplicação da teoria da perda de uma chance no ordenamento brasileiro não é uma questão pacífica nem na doutrina nem na jurisprudência.
A doutrina tradicional não reconhece a teoria da perda de uma chance, pois como inexiste possibilidade de se determinar qual seria o resultado final, não se cogita em dano pela perda da chance, pois esta recai na seara do dano hipotético, eventual.
Com a devida vênia, aos doutrinadores que não reconhecem a teoria, entendo que a indenização não está relacionada com o resultado final, ou seja, com a vantagem em si, mas sim com a perda da possibilidade de obter um beneficio ou de evitar um prejuízo.
No sentido jurídico, a perda de uma chance é a probabilidade real de alguém obter um lucro ou evitar um prejuízo.
Acerca da teoria da responsabilidade civil por perda de uma chance o ilustre autor Sergio Cavalieri Filho sustenta que:
“Caracteriza-se essa perda de uma chance quando, em virtude da conduta de outrem, desaparece a probabilidade de um evento que possibilitaria um beneficio futura para a vítima, como progredir na carreira artística ou militar, arrumar um melhor emprego, deixar de recorrer de uma sentença desfavorável pela falha do advogado, e assim por diante. Deve-se, pois, entender por chance a probabilidade de se obter um lucro ou de se evitar uma perda”.[5]
Problema que se deparam os julgadores na hora de aplicar esta teoria, é o da quantificação do dano decorrente da chance perdida. Para a melhor doutrina, deve-se realizar um cálculo das probabilidades de ocorrência da vantagem caso a chance de consegui-la não tivesse sido frustrada.
Veja as lições de Sergio Cavalieri Filho:
“A perda de uma chance, de acordo com a melhor doutrina, só será indenizável se houver a probabilidade de sucesso superior a cinqüenta por cento, de onde se conclui que nem todos os casos de perda de uma chance serão indenizáveis.”[6]
Outro ponto controvertido na doutrina e na jurisprudência é com relação à natureza jurídica da responsabilidade civil por perda de uma chance. A doutrina divide, basicamente em quatro correntes: a) danos emergentes; b) lucro cessante; c) dano moral e d) terceiro gênero, categoria autônoma.
Não querendo aprofundar a questão, entendo que a responsabilidade civil por perda de uma chance deve ser considerada uma categoria autônoma, pois não se enquadra perfeitamente nos institutos já reconhecidos pelo ordenamento brasileiro.
Os tribunais também, embora aplicando a teoria, não trata de forma uniforme a questão.
Na jurisprudência são encontrados casos em que o Poder Judiciário apreciou a questão da responsabilidade civil pela perda de uma chance, aplicando o novo Código Civil, cujos artigos 186, 402, 927, 948 e 949 acolhem a possibilidade de reparação de qualquer dano injusto causado à vítima.
Pode-se citar a título de exemplo, a inegável perda do direito do cliente pela inércia desidiosa do advogado que impediu que a causa fosse examinada pelo órgão jurisdicional competente; o médico que não diagnostica corretamente o paciente, retardando o tratamento; o concursando que deixa de prestar o concurso porque o curso preparatório que se comprometeu a fazer a inscrição não o fez, entre outros.
Desses exemplos acima mencionados observa-se um ponto em comum, não há em exame superficial um dano certo e determinado, mas existe um prejuízo para a vitima decorrente da perda da oportunidade ou evitar um prejuízo.
Pode-se considerar caso notável o apreciado pelo STJ em março de 2006, em que a autora teve frustrada a chance de ganhar o premio máximo de R$ 1 milhão no programa “Show do milhão”, em virtude da formulação de uma pergunta imprecisa. O voto do ministro relator Fernando Gonçalves reafirmou entendimento favorável à aplicação da teoria da responsabilidade civil pela perda de uma chance. A ementa do acórdão está assim escrita:
Recurso Especial. Indenização. Impropriedade de pergunta formulada em programa de televisão. Perda da oportunidade. 1. O questionamento, em programa de perguntas e respostas, pela televisão, sem viabilidade lógica, uma vez que a Constituição Federal não indica percentual relativo às terras reservadas aos índios, acarreta, como decidido pelas instâncias ordinárias, a impossibilidade da prestação por culpa do devedor, impondo o dever de ressarcir o participante pelo que razoavelmente haja deixado de lucrar, pela perda da oportunidade. 2. Recurso conhecido e, em parte, provido”[7]
No presente caso, a candidata, autora da ação, chegou à pergunta do milhão, no entanto, achou por bem não respondê-la, por entender que não existia resposta correta. Perguntava-se qual percentual do território brasileiro a Constituição Federal reconhece aos índios, dando-se como possíveis respostas 22%, 2%, 4% ou 10%.
Considerando que nenhuma dessas respostas encontrava guarida no artigo 231 da Constituição Federal, a candidata ajuizou ação pleiteando exatamente o valor de R$ 500.000,00 que, segundo ela, deixara de ganhar em razão da questão erroneamente formulada pelo réu.
A sentença de primeira instância acolheu a teoria da responsabilidade civil pela perda da chance e concedeu o pedido de R$ 500.000,00.
O STJ, que apreciou o Recurso Especial do réu, aplicou a teoria da responsabilidade civil pela perda de uma chance, mas acolheu em parte o inconformismo do réu, entendendo que as chances matemáticas que a autora tinha de acertar a resposta da pergunta do milhão, se formulada a questão corretamente, eram de 25%. Assim, reduziu a condenação para R$ 125.000,00. Eis, a seguir, importantes fundamentos do voto vencedor, relatado pelo ministro Fernando Gonçalves:
“Na hipótese dos autos, não há, dentro de um juízo de probabilidade, como se afirmar categoricamente – ainda que a recorrida tenha, até o momento em que surpreendida com uma pergunta, no dizer do acórdão, sem resposta, obtido desempenho brilhante no decorrer do concurso – que, caso fosse o questionamento final do programa formulado dentro de parâmetros regulares, considerando o curso normal dos eventos, seria razoável esperar que ela lograsse responder corretamente à “pergunta do milhão”. … Destarte, não há como concluir, mesmo na esfera da probabilidade, que o normal andamento dos fatos conduziria ao acerto da questão. Falta, assim, pressuposto essencial à condenação da recorrente no pagamento da integralidade do valor que ganharia a recorrida caso obtivesse êxito na pergunta final, qual seja, a certeza – ou a probabilidade objetiva – do acréscimo patrimonial apto a qualificar o lucro cessante. Não obstante, é de se ter em conta que a recorrida, ao se deparar com a questão mal formulada, que não comportava resposta efetivamente correta, justamente no momento em que poderia sagrar-se milionária, foi alvo de conduta ensejadora de evidente dano. Resta, em conseqüência, evidente a perda da oportunidade pela recorrida … Quanto ao valor do ressarcimento, a exemplo do que sucede nas indenizações por dano moral, tenho que ao tribunal é permitido analisar com desenvoltura e liberdade o tema, adequando-o aos parâmetros jurídicos utilizados, para não permitir o enriquecimento sem causa de uma parte ou o dano exagerado da outra. A quantia sugerida pela recorrente (R$ 125.000,00) – equivalente a um quarto do valor em comento, por ser uma ‘probabilidade matemática’ de acerto da questão de múltipla escolha com quatro itens, reflete as reais possibilidades de êxito da recorrida”.
Outro caso emblemático que podemos citar é o caso do atleta brasileiro Vanderlei Cordeiro de Lima, que perdeu uma grande chance de levar para o Brasil a medalha de ouro na prova de maratona nas Olimpíadas de Atenas. O atleta estava na liderança da prova olímpica, com mais de 28 segundos de vantagem, quando sofreu interferência dolosa de um terceiro, que invadiu a pista, agarrou o atleta e o derrubou no chão, fazendo-o perder duas posições e acabar a prova em terceiro lugar.
Além dos casos mencionados acima, fazendo uma pesquisa no sítio do STJ, pôde-se encontrar referência aos seguintes julgados: REsp 788459, REsp 965758, REsp 1079185 e REsp 1104665.
Assim, observa-se que mesmo timidamente, sem dar uniformidade aos casos, ora considerando tratar de dano moral, ora de lucro cessante, os tribunais vem reconhecendo a aplicação da teoria da perda de uma chance, pois no estágio de evolução que se encontra o direito brasileiro não é possível que deixe sem proteção a vítima de danos que deverão ser ressarcidos.
4. CONCLUSÃO
Por ser ainda relativamente recente no Brasil, há muita discussão sobre o tema.
Não obstante a aplicação da teoria da perda de uma chance ser pacífica, nos últimos três anos pôde estudar a evolução da jurisprudência brasileira, reconhecendo a existência da responsabilidade civil em decorrência da perda de uma oportunidade, em pretensões de naturezas distintas.
O tema é novo e merece reflexões para se evitar desvirtuamentos, enquadramentos errôneos e até mesmo corrida desenfreada e irresponsável na busca de indenizações para qualquer situação.
Com o objetivo de a teoria não ser desvirtuada e cair na chamada “indústria do dano moral”, os tribunais precisam aplicar o bom senso, a razoabilidade e é ainda preciso que essa oportunidade perdida seja plausível, séria e real excluindo as meras expectativas e possibilidades hipotéticas.
Procuradora Federal
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