A tutela constitucional ao trabalho: uma visão sistemática do órgão gestor de mão de obra do trabalhador portuário avulso

Resumo: O presente trabalho tem por objetivo confrontar o órgão
gestor de mão-de-obra do trabalhador portuário avulso (OGMO) com os princípios
constitucionais do direito ao trabalho e à liberdade de trabalho, a partir de
uma análise sistemática da lei que criou o OGMO. A metodologia utilizada para
realizar o estudo compreendeu em se fazer uma evolução histórica dos princípios
nominados, culminando com o tratamento dado aos mesmos na Constituição
Brasileira, constantes do primeiro capítulo. No segundo capítulo demonstrou-se
a evolução histórica do trabalho portuário, culminando com sua situação no
Brasil, relacionando o mesmo com a legislação portuária anterior e atual, com
ênfase ao OGMO. No último capítulo se demonstrou o método da interpretação
sistemática e foi utilizado o mesmo para confrontar o OGMO com a Constituição
Federal. Chegou-se a conclusão de que alguns aspectos do funcionamento do OGMO
afrontam a Constituição Federal, devendo tais aspectos passarem para as mãos do
Estado a fim de garantir a observação dos princípios constitucionais de tutela
ao trabalho.

Palavras-chave: Direito
Constitucional, Direito Portuário, Interpretação Sistemática, OGMO, Trabalho
Portuário.

Sumário: Introdução;
1. O direito ao trabalho e a constituição federal brasileira; 1.1 Direito ao
trabalho e liberdade de trabalho; 1.1.1 Considerações Iniciais; 1.1.2 Questão
Etimológica; 1.1.3 Evolução Histórica; 1.2 A tutela ao trabalho na Constituição de
1988; 1.2.1 Direito ao trabalho; 1.2.1.1 Dignidade da pessoa humana; 1.2.1.2 Valor
social do trabalho; 1.2.1.3 Direito social ao trabalho; 1.2.2 Liberdade de
trabalho; 2. O trabalho portuário e a legislação brasileira; 2.1 Perspectiva
histórica; 2.1.1 Fenícios; 2.1.2 Grandes Navegações; 2.1.3 Século XX; 2.2
Legislação portuária brasileira; 2.2.1 Trabalho portuário nas Constituições
brasileiras; 2.2.2 Legislação anterior à lei 8.630/93; 2.2.3 Modernização dos
portos: Lei 8.630/93; 2.2.4 O órgão gestor de mão-de-obra; 3. Análise
sistemática do OGMO; 3.1 Ordenamento Jurídico; 3.1.1 Noções gerais; 3.1.2
Hierarquia das normas jurídicas; 3.1.3 Sistema Jurídico; 3.1.4 Antinomias
jurídicas; 3.1.5 Interpretação Sistemática; 3.2 OGMO versus Constituição
Federal; 3.2.1 O papel do OGMO na modernização portuária; 3.2.1.1 Submissão do
trabalhador ao mercado financeiro; 3.2.1.2 Enfraquecimento dos sindicatos;
3.2.2 A tutela constitucional ao trabalho; Considerações finais.

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Introdução:

O presente trabalho tem por objetivo analisar a atual legislação
portuária do Brasil de acordo com a Constituição Federal, em especial a questão
do Órgão Gestor de Mão-de-obra do Trabalhador Portuário Avulso e a tutela
constitucional ao trabalho, com ênfase no direito ao trabalho e na liberdade de
trabalho.

O tema é bastante atual, pois o “custo Brasil”, em
um mundo globalizado é constantemente avocado para justificar a dificuldade de
se encontrar um mercado externo para produtos brasileiros. Aspecto central
desta discussão é o sistema portuário, considerado por muitos como um câncer
que dificultava o processo de redução deste custo, e no centro das
reivindicações empresariais estava o monopólio da mão-de-obra portuária por
parte dos sindicatos e o alto custo que a mesma significava para as
exportações.

Criada uma nova legislação, com inspiração
claramente neoliberal, esta rompe com todo o modelo até então existente no
Brasil, gerando contudo, grandes embates jurídicos acerca da matéria,
principalmente no tocante à relação capital-trabalho.

Como pedra fundamental desta lei (e de qualquer
outra no Brasil), está a Constituição Federal, que segue, contrariando o modelo
neoliberal, um padrão social-democrata, com garantias sociais ao cidadão, e
dentre elas, principalmente, proteção ao trabalhador.

Como metodologia para fundamentar a análise feita,
utilizou-se a interpretação sistemática do direito, considerando o ordenamento
jurídico como um todo. A metodologia de interpretação é explicitada no capítulo
III do presente trabalho.

No primeiro capítulo do presente foi feito um
apanhado histórico do direito ao trabalho e da liberdade de trabalho,
culminando com sua inserção nas constituições dos Estados. Seguindo esta mesma
linha, ainda no primeiro capítulo foi feita uma análise de como são protegidos
os direitos ao trabalho e de liberdade de trabalho na atual Constituição
brasileira, ressaltando-se os princípios fundamentais da dignidade da pessoa
humana e do valor social do trabalho; o direito social ao trabalho e a garantia
fundamental de liberdade de trabalho.

Passando-se para o segundo capítulo, foi feita uma
análise do trabalho portuário. Para tal, se fez uma ligeira perspectiva
histórica do trabalho portuário, apontando inclusive suas diferenças com o
trabalho em geral.
Passou-se depois para uma análise da legislação brasileira
referente à matéria, com enfoque no trabalho portuário nas constituições
brasileiras, passando pela legislação anterior a lei 8.630/93 e culminando com
a análise desta mesma lei, e em apartado, um detalhamento do regramento
relativo ao OGMO, eis que é o ponto principal do presente trabalho.

No último capítulo se fez, como já explicado, uma
ligeira elucidação do que seria interpretação sistemática, para que o leitor
possa alcançar as bases jurídicas utilizadas para análise da lei. Em seguida se
fez o confronto direto do OGMO com a Constituição, resgatando os valores
definidos no capítulo II, e acrescentando o entendimento do autor.

1. O
direito ao trabalho e a Constituição Federal Brasileira

1.1

Direito ao trabalho e da liberdade ao trabalho

1.1.1 – Considerações Iniciais

Atualmente o trabalho é
visto pela sociedade como um bem. Não só como um bem, mas como uma necessidade
e um direito do homem, pois reflete a própria interação deste homem com a
sociedade produtora, tornando-o senhor de si mesmo e senhor da sociedade a sua
volta. Contudo, na história da humanidade, nem sempre foi esta a visão
predominante.

Assim, qualquer estudo
que, como o presente, ouse analisar o DIREITO AO TRABALHO, e mais do que isto,
analisá-lo sob um ponto de vista teleológico, deve obrigatoriamente fazer uma
construção histórica deste fator de inclusão social – TRABALHO – começando com
a Antigüidade escravagista, passando pela Idade Média servil, abordando os
valores do Renascimento, Revolução Francesa e Revolução Industrial e,
finalmente, culminando com a atual época, onde finalmente o trabalho foi
reconhecido como um direito e não como uma obrigação.

1.1.2 – Questão etimológica

Antes de adentrarmos na
questão histórica propriamente dita, convém que estudemos a origem da palavra
“trabalho”, pois sua origem etimológica reflete fielmente a concepção histórica
fornecida ao mesmo, quando de seu nascedouro enquanto instituição.

Neste viés, assim se
pronunciaram FERRARI, NASCIMENTO e MARTINS FILHO, quanto à importância da
conceituação etimológica da palavra trabalho para o estudo histórico do mesmo: “Claro que nosso estudo se vinculará ao
trabalho humano, e, para isso, iremos à sua origem, que também é sua fonte
histórica, para tentarmos ficar no seu sentido etimológico.”
[1]

Resta evidente, portanto,
a grande utilidade para demonstração da evolução histórica do trabalho, a
determinação da origem etimológica da palavra “trabalho”, cuja origem está
atrelada ao histórico.

A determinação da origem
etimológica da palavra “trabalho” não consiste tarefa fácil, tendo sido objeto
de estudos de especialistas da área lingüística, sem contudo os mesmos terem
chegado a uma conclusão definitiva. Porém, EVARISTO DE MORAES FILHO, ao nosso
ver tomou, dentre as possíveis origens, aquela que mais se adequa à realidade
do trabalho, nas próprias palavras do autor:

“A quase totalidade dessas hipóteses enumeradas por
MONLAU já se encontra ultrapassada, senão todas elas. Merece ser fixada
unicamente a primeira, assim mesmo admitida no século passado por poucos
etimologistas. O mais credenciado é E. LITTRÉ, que aponta trabs como raiz originária, lembrando igualmente que trabalhar teve
o sentido de viajar, sentido este que se liga ao de pena, de fadiga. É desta
acepção que deriva o inglês to travel.
(…)

A origem certa, porém, e neste sentido se inclina a
maioria dos filólogos e lingüistas, é das palavras tripalium e tripaliare.”
[2]

Assim, está ligada a
origem da palavra trabalho ao sentido de algo penoso, tortuoso. Com efeito,
como veremos a seguir, em sua origem histórica (origem no aspecto em que
importa para este trabalho, isto é, enquanto instituição e objeto de reflexão),
era considerado algo extremamente negativo e penoso, inclusive não sendo digno
dos cidadãos.

Logo,
devemos buscar o significado de tripalium
e tripaliare
, a fim de esclarecer a origem da palavra trabalho.

O neutro latino tripalium originou-se da combinação do
neutro palum, com o adjetivo tripalis, conforme os ensinamentos de
FERRARI, NASCIMENTO e MARTINS FILHO, significando o primeiro (palum), pau, que agregado ao segundo nos leva ao sentido de “composto de três
paus”. E, ainda, este “composto de três paus” – tripalium – um instrumento de tortura, uma máquina de três pontas,
de onde se extrai a origem de tripaliare,
que é torturar utilizando o tripalium. [3]

Neste sentido,
confirmando a tese acima esposada, MAGNE apud
EVARISTO DE MORAES FILHO, assim afirmou:

“[…]que trabalhar,
se prende ao neutro latim palum,
fonte do português pau, através de um
adjetivo tripalis, ‘composto de três
paus’, de que se deduziu um neutro tripalium,
apenas atestado em variante trepalium,
‘ecúleo’, ‘cavalete de três paus, usado para sujeitar os cavalos no ato de se
lhes aplicar a ferradura’: desta concepção passou trepaliare, alterado por assimilação em trapaliare, a dizer-se de tôda e qualquer atividade, mesmo
intelectual”.
[4]

Finalmente, não apenas a
palavra “trabalhar” possui um significado etimológico que a liga à questão de
pena, esforço, em um sentido pejorativo, mas também a outras palavras, tais
como “labor”, cuja raiz etimológica está ligada a algo penoso, sofrimento,
cansaço que se originariam do trabalho.

Sobre este último aspecto
convém transcrever o texto JOSÉ CÉSAR DE OLIVEIRA:

“Na velha Roma, o trabalho manual, porque reservado
para os escravos, era considerado um atividade subalterna e desonrosa, pesando
sobre ela o estigma de carga, fadiga, ônus, penalidade labor et dolor, falou Cícero, por exemplo num de seus escritos.”
[5]

Conclui-se pois, que a
palavra “trabalho” e por conseguinte o próprio, esteve em sua origem, enquanto
objeto de estudo humano, em uma posição de algo não apreciável, e desta forma
não digno do homem livre, a ponto de se poder afirmar que trabalho somente
poderia ser realizado por pessoas desprezíveis pela sociedade.

1.1.3 – Evolução histórica

Nos povos da antigüidade,
o trabalho sempre foi realizado por escravos, eis que qualquer tipo de função
que representasse fadiga ao cidadão não era digno de pelo mesmo ser realizado.

Na Grécia antiga, o
grande valor dado ao cidadão era a contemplação, pois essa era a única forma de
se chegar à virtude, sendo alcançá-la, fim último de todo o cidadão livre.
Contudo, para que a sociedade pudesse se manter, necessário era a agricultura,
construção, etc., enfim, uma série de atribuições em que se fazia necessário o
emprego da força humana. Tal trabalho era realizado por escravos.

Em Roma antiga, diferente
não era o pensamento, pois também para este povo o trabalho manual era algo
desprezível, não digno de ser executado pelos cidadãos livres de uma cidade. A
escravidão em Roma, em virtude deste entendimento chegava a tal ponto que,
conforme SUSSEKIND, MARANHÃO E SEGADAS VIANNA, alguns grandes senhores tinham
escravos das mais variadas espécies, para os mais variados tipos de trabalho,
desde pastores até poetas, passando por músicos, filósofos e gladiadores.[6]

Não se pode falar, pois,
de liberdade de trabalho e direito ao trabalho, eis que nessa época somente era
considerado trabalho aquele braçal, e tal tipo de trabalho era considerado
digno de escravos, que não possuíam qualquer direito.

Já na Idade Média, o
aspecto principal a ser destacado e que servirá de pilar de sustentação a esta
época é a transição da escravidão para a servidão, onde o trabalhador deixa de
ser visto como coisa e passa a ser visto como pessoa. Reflexo do feudalismo.

Contudo a visão do
trabalho, em geral continuava sendo degradante, pois o servo pertencia a terra,
e dela dificilmente se desligava, conforme destaca JOSÉ CÉSAR DE OLIVEIRA:

“No servilismo, aquela relação real da era
escravocrata, estabelecida entre o escravo e o seu dono, cedeu lugar a uma
outra, entre o senhor feudal e o servo da terra, o servus terrae, pessoa que era, por assim dizer, um acessório da
terra pertencente ao dominus. Quase
uma ‘benfeitoria humana’, na lapidar expressão de Martins Catharino
[7]

Tal visão negativa do
trabalho, entretanto, sofre um grande ataque com o crescimento da Igreja, que
irá rever esta lógica negativa, onde a noção de trabalho passa a ter um sentido
de redenção da alma, conservando ainda à idéia de castigo (pois não pode haver
redenção senão por um caminho tortuoso).

Surgem também nesta época
as Corporações de Ofício, que vêm para organizar os trabalhadores livres
(artesãos, comerciantes, etc.), cujo ofício começa a ser considerado como
trabalho.

Tais corporações,
entretanto, apesar de organizar os trabalhadores e lhes defender os interesses,
possuíam uma estrutura viciada, dividida entre mestres, companheiros e
aprendizes, com pouca (ou nenhuma) mobilidade vertical, os primeiros acabavam
por beneficiar-se do trabalho dos últimos. Assim, do ponto de vista do direito
ao trabalho e da liberdade ao mesmo, tais corporações restringiam o acesso ao
trabalho, bem como impunham condições muito rígidas para exercício do ofício
aos seus próprios trabalhadores.

No Renascimento se opera
uma inversão do papel do homem no plano da existência, passando de um objeto
nas mãos de um Criador; ficando à mercê da vontade deste Ser e não podendo
questioná-la; para a posição de protagonista e senhor de si mesmo, sendo
julgado não pelo que é, mas sim pelos seus próprios feitos. Em resumo, passa-se
de uma visão teocentrista para uma visão antropocentrista. Portanto, como bem
afirma AMAURI MASCARO NASCIMENTO:

“O Renascimento põe em realce o homem como
atividade. Esta é valorizada como a atitude fundamental do ser humano no plano
existencial, e, com isto, o trabalho, que é forma de atividade, o trabalho
produtivo, o trabalho útil à sociedade, é valorizado pelos pensadores, que o
identificam com conhecimento, o trabalho como ciência. O trabalho passa a ser
uma das formas de conhecimento.”
[8]

Nesta linha de
pensamento, o trabalho, como já afirmado, passa de uma posição incômoda, pois
era visto como algo degradante, a uma visão oposta, sendo inclusive alçado a
uma posição de sustentáculo da sociedade, passando a possuir valor, visão que
será importante para posteriores e profundas alterações no verdadeiro sentido –
e atual – de direito e liberdade de trabalho.

O trabalho então passa a
ser valorizado. No entanto tal valorização ocorre de forma diametralmente
oposta a da Igreja na Idade Média (que valorizava o trabalho enquanto
dignificador da alma humana); pois a partir do Renascimento, esta valorização
tem como centro o próprio homem, atribuindo valor ao trabalho do mesmo e
passando a assumir aspectos econômicos, pois o homem atinge o posto de agente
modificador, e por assim dizer, de gerador de riquezas.

Os pensadores, desde o Renascimento até então,
estavam modificando as suas idéias, pois o homem é valorizado enquanto agente
criativo e modificador da realidade a sua volta, até que se chegou nos ideais
iluministas de LIBERDADE, IGUALDADE e FRATERNIDADE.

Assim, sob o
manto da liberdade de trabalho, surge a Revolução Francesa sepultando as
Corporações de Ofício, e declarando a liberdade detodo homem para trabalhar no
ofício que pretendesse, tendo como únicas obrigações necessárias para exercer o
seu ofício que se registrar junto ao Poder Público e pagar os devidos impostos. [9]

Contudo, a evolução tecnológica junto com, a
Revolução Industrial invertem a lógica da liberdade do trabalho, gerando desemprego
em massa, de modo que não adiantava ser livre para trabalhar, pois este era
escasso. Traduzindo de forma brilhante este pensamento, assim se manifestou
JOSÉ CÉSAR DE OLIVEIRA:

“No
campo contratual, pensava-se que o equilíbrio nas relações econômicas e
trabalhistas pudesse ser alcançado diretamente pelos interessados, consoante o
princípio da autonomia da vontade.

Era, portanto, o signo da
liberdade, cantado e celebrado.

Liberdade
porém, que, relativamente ao trabalhador, era meramente formal, pois que ele,
se era soberano na ordem política, ainda permanecia, muitas vezes, miserável na
ordem econômica, como bem asseverou Paul
Deschanel
.

E esta
falaciosa liberdade, inútil liberdade, sonho de liberdade e de igualdade
cívica, foi acidamente escarnecida pela poetisa Delphine Gay, que em seu poema “Ouvriers de Lyon” deplorava com
amargor: ‘Pauvre, nu, sans travail, mais
libre, meurt de faim’.
[10]

Neste panorama, a liberdade de trabalho se tornou
um vilão, pois os trabalhadores aceitavam o trabalho nas condições que este se
apresentasse, condições estas que eram aviltantes e indignas. Direito ao
trabalho existia, porém a um trabalho inumano e degradante, que nem mesmo os
animais se submetiam. E o que é pior, com uma remuneração parca. O trabalho,
assim, perdia o seu caráter de garantidor da dignidade.

O trabalhador não se conformou com tal situação,
exigindo do Estado que interviesse em tal situação, a fim de garantir melhores
condições de trabalho, e que no campo do direito ao trabalho este fosse
entendido como direito a um trabalho digno.

Surge então uma nova concepção, em que o Estado
começa a entender a situação de aviltamento na qual o trabalhador estava
envolto, restringindo o então intocável direito da propriedade privada. Reage
também a Igreja, através do Papa Leão XIII, com a Carta Encíclica “Rerum Novarum”. Tais reações trouxeram a
idéia de direito a um trabalho digno, dotando o mesmo de uma visão social.

Com estas reivindicações houve uma guinada nas
relações de trabalho – inclusive na liberdade de trabalho, onde as corporações
de ofício retornam, mas não mais da forma com haviam sido extintas, mas na
forma de Sindicatos, que iriam defender os interesses de seus associados, sem
impedir o livre trabalho dos mesmos; objetivando dirimir a diferença entre o poder
da burguesia – detentora dos meios de produção – e do proletariado – que até
então não possuía força alguma e tinha de vender por migalhas sua mão-de-obra.
Surge um novo direito com uma positivação nova – o Direito do Trabalho.

O mais importante fato desta época se resume na
idéia de que germina do direito ao trabalho uma visão social do mesmo. Não como
um valor de mercado e puramente econômico mas como um valor eminentemente
social, que se pode resumir no texto de PIERRE JACCARD:

“Poucas
ideias, nos tempos modernos, foram tão contestadas como a do direito ao
trabalho. Vejamos o que dele se dizia, em 8 de setembro de 1.843, o conde Artur
de Gobineau, numa carta enviada a seu irmão mais velho, Alexis de Tocqueville,
e descoberta so há pouco tempo. «Foi nos meados do século XVIII, quando
imperavam as ideias voltairianas, que se começou a pensar se não seria possível
fazer, pelas chamadas classes baixas, qualquer coisa melhor que só hospitais…
Desde o reinado de Luís XVI, sentia-se a influência destas ideias novas; às
diversas tarefas já impostas ao governo, quis-se acrescentar uma outra, mais
sagrada e da qual nunca se tinha ouvido falar antes. Era preciso que o Estado
se ocupasse dos pobres… (trata-se agora de) aniquilar a miséria e de tornar
de utilidade social um trabalhador que, na qualidade de homem, não deve ficar
inactivo… Todos têm igual direito ao
trabalho.
Não é uma máxima inteiramente nova nem muito diferente da de
Cristo, que disse, depois de Moisés: O
homem está condenado ao trabalho.
O que era um castigo, torna-se um
privilégio…»”
[11]

Some-se isto ao fato de que inúmeros pensadores
adotaram a idéia de mudança no mundo do trabalho, dentre os quais sem dúvida
devemos destacar Marx e Engels, que fizeram um verdadeiro raio-x na sociedade
burguesa, demonstrando o quanto a dignidade da pessoa do trabalhador era
aviltada, e em última análise o próprio direito ao trabalho e à liberdade de
trabalho, tudo em prol do capital.

Com o advento da encíclica “Rerum Novarum”, o enfoque do direito ao trabalho muda,
influenciando as Constituições do México de 1917 e de Weimar (Alemã) em 1919, o
trabalho se inclui entre os direitos sociais, inaugurando uma época que
valorizará o trabalho humano como um bem inerente à própria natureza do homem,
conforme EVARISTO DE MORAES FILHO apregoa: “Sendo
o trabalho inseparável do homem, da pessoa humana que planeja, que pensa, age e
trabalha ele se confunde com a própria personalidade, em qualquer das suas
ramificações”
.[12]

Assim, ante a esta nova visão do trabalho e do
próprio homem, o mundo jurídico será totalmente afetado, influência que agirá
diretamente nas Constituições dos Estados (já mencionadas anteriormente), e
acarretará em mudanças sérias nas políticas adotadas por estes mesmos Estados.
Surgem os primeiros Estados Socialistas, colocando as idéias de Marx em prática
e mostrando um fator de oposição ao capitalismo hegemônico. A partir de então,
os direitos ao trabalhador e ao trabalho, bem como os relativos à liberdade de
trabalho, se incorporam às Constituições.

1.2 – A Tutela ao Trabalho na
Constituição de 1988

A Constituição Brasileira de 1988, também conhecida como a
Constituição Cidadã, não recebeu este título simplesmente ao acaso. Não. É uma
Constituição calcada nos ideários sociais-democratas (que já estavam em declínio
ou até mesmo substituídos no resto do mundo), tendo como guia mestra a questão
do Estado do Bem-estar Social (estado característico do pós Segunda Guerra
Mundial).

Contudo, a realidade que o mundo atravessava quando de sua
promulgação, já não mais apontava naquela direção, mas sim em direção ao
neoliberalismo[13],
o que gerou situações conflitantes entre os interesses dominantes e os
princípios constitucionais, que garantiam uma excessiva intervenção estatal,
principalmente nas relações capital-trabalho.

Os direitos trabalhistas encontram-se tutelados em nossa Constituição,
de forma expressa, nos arts. 6.º , 7.º, 8.º, 9.º, 10 e 11, que fazem parte do
Capítulo II, intitulado “Dos Direitos Sociais”. Mas além destes, encontramos
também no art.5.º e seus incisos direitos trabalhistas tutelados, sob a ótica
de direitos individuais; no art. 170, o aspecto referente à valorização
econômica do trabalho e no art. 193, relaciona-se o trabalho com a ordem
social. Ainda sobre proteção ao trabalho podemos afirmar que o art. 1.º da
Constituição também o protege, erigindo tais direitos ao patamar de Fundamento
do Estado brasileiro, personificados na cidadania, dignidade da pessoa humana e
valores sociais do trabalho.

Neste sentido, o direito ao trabalho e à liberdade de trabalho ocupam
um lugar central nesta discussão, e podemos dizer que estes estão abrangidos
por todos os dispositivos acima elencados, de modo que se fará seguir uma
análise dos mesmos na Constituição apontando os fundamentos para a sua defesa.

1.2.1 – Direito ao trabalho

Já se observou que o direito ao trabalho foi uma conquista histórica
da humanidade, no sentido inclusive de ter que modificar a visão que a questão
do “trabalho” ocupava na sociedade; passando de algo visto de forma negativa, a
algo visto como sendo o pilar da sociedade e fundamento da própria existência
humana.

1.2.1.1 – Dignidade da pessoa
humana

A Constituição brasileira afirma em seu Art. 1.º, que um dos
fundamentos do Estado brasileiro é a dignidade da pessoa humana. Qual relação
deste fundamento com o trabalho ? É possível afirmar que em tal fundamento se
encontra abrangido o direito ao trabalho? Tais perguntas tentarão ser
respondidas a seguir.

A dignidade da pessoa humana traduz a visão antropocêntrica do homem,
criada com o Renascimento e que se sedimentou ao longo dos séculos, a ponto de
ser elevada ao grau de fundamento constitucional. Neste sentido, e sendo o
homem objeto central das ações estatais, não poderia o trabalho se dissociar
deste conceito. Neste sentido, importante o ensinamento de CELSO BASTOS, quando
afirma que:

“Embora dignidade tenha um
conteúdo moral, parece que a preocupação do legislador constituinte foi mais de
ordem material, ou seja, a de proporcionar às pessoas condições para uma vida
digna, principalmente no que tange ao fator econômico.”
[14]

Portanto, para que o homem tenha uma vida digna, necessário se faz que
lhe seja garantido o direito ao trabalho, expresso no conhecido jargão popular
de que “o trabalho dignifica o homem”. Qualquer ação que retire o direito do
homem – cidadão – trabalhar, estará atentando ao fundamento da dignidade da
pessoa humana, e em última análise, a um dos pilares de sustentação da
sociedade brasileira.

Assim, para que possamos responder de forma satisfatória aos
questionamentos feitos anteriormente, podemos nos valer do pensamento de KÁTIA
MAGALHÃES ARRUDA, que afirma não existir uma expressão explícita no texto
constitucional que aponte para um princípio de proteção ao trabalho, mas que, o
mesmo se encontra expresso nas normas que garantem direitos ao trabalhador, que
por sua vez apontam para um princípio maior que é fundamento do próprio
sistema, personificado no PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. [15]

Logo, é possível afirmar que tanto o trabalho como instituto, como o
direito ao trabalho encontram-se totalmente abrangidos pelo princípio em
questão, mormente pelo fato de que não se pode falar em dignidade de ser humano
onde há ausência de trabalho.

1.2.1.2 – Valor social do
trabalho

Seguindo a mesma linha de raciocínio que utilizamos anteriormente, de
início podemos identificar o presente princípio como sendo um complemento do
anterior, eis em que o princípio da dignidade da pessoa humana, sob o aspecto
do trabalho, aponta a importância deste como valor individual, componente de cada
ser humano enquanto indivíduo, e o princípio do valor social do trabalho
demonstra um superlativo do anterior, na medida que demonstra o valor do
trabalho enquanto elemento basilar do Estado.

Com efeito, tal princípio representa a consagração da visão sociológica
do trabalho, enquanto elemento de interação na sociedade, elemento sem o qual a
própria sociedade desmorona. Tal visão teve início no final do século passado e
começo deste, conforme vimos, e permeou todas as constituições mundiais que se
seguiram no século passado.

Portanto, o direito ao trabalho está perfeitamente ajustado à visão de
valor social do trabalho, pois no momento em que negamos este direito, estamos
impondo ao mesmo uma restrição a visão social de Estado, negando ao indivíduo
seu elemento dignificador (conforme vimos acima) e, em última análise,
denegando valor ao trabalho enquanto elemento nuclear da sociedade.

Conclui-se pois que, da mesma forma anteriormente afirmada, qualquer
medida que atinja o direito ao trabalho estará atingindo diretamente o
princípio constitucional do valor social do trabalho, e desta forma, afrontando
a própria constituição.

1.2.1.3 – Direito social ao
trabalho

Complementando as normas constitucionais que dizem respeito
especificamente ao aspecto de direito ao trabalho, convém analisarmos o
disposto no art. 6.º da Constituição Federal, onde é afirmado que um dos
direitos sociais do Estado brasileiro é o trabalho. Impõe-se registrar que o
artigo antes citado, em verdade, complementa a idéia trazida pelos princípios
fundamentais anteriormente analisados.

O direito social ao trabalho estabelecido pela Constituição Federal,
contudo, não pode ser entendido como uma garantia jurídica de que o Estado irá
providenciar emprego para todos os desempregados, seja através de empregar
estes em seus próprios quadros ou através do poder de obrigar o particular a
absorver tal demanda. Não. Este direito esta associado ao dever do Estado de
implementar políticas públicas que garantam o emprego, que associadas aos
princípios antes enunciados, devem ser de dignidade ao trabalhador.

Tal visão diferencia-se dos meros princípios, pois enquanto aqueles
são orientadores da ação estatal, o art. 6.º, que afirma ser o direito ao
trabalho um direito social assume, nas palavras de EDUARDO GABRIEL SAAD, “caráter positivo pois significam comandos
programáticos para fazer algo de natureza social”
.[16]

Neste mesmo sentido, quanto aos direitos sociais (dentre eles o
direito ao trabalho), afirma PINTO FERREIRA:

“Os direitos sociais são normas
constitucionais, que se efetivam como dimensões específicas dos direitos
fundamentais do homem, refletindo prestações positivas do Estado e permitindo
condições de vida mais humanas à classe trabalhadora.”
[17]

Assim, o direito social ao trabalho implica em um dever do Estado de
efetivamente agir para garantir sua realização, não se constituindo de mera
norma informadora, mas de norma impositiva de obrigação Estatal.

Pode-se justificar, portanto, o porquê de considerarmos este
dispositivo, insculpido no art. 6.º da Magna Carta, como sendo o corolário dos
princípios constitucionais antes referidos, pois se aqueles orientavam e
atribuíam caráter social ao Estado brasileiro, este determina uma efetiva ação
do Estado para que fossem alcançados tais objetivos. Nas palavras de JOSÉ
AFONSO DA SILVA:

“O art. 6.º define o trabalho como direito social, mas nem
ele nem o art. 7.º trazem norma expressa conferindo o direito ao trabalho. Este, porém, ressai do conjunto de normas da
Constituição sobre o trabalho. Assim, no art. 1.º, IV, se declara que a
República Federativa do Brasil tem como fundamento, entre outros, os valores sociais do trabalho; o art. 170
estatui que a ordem econômica funda-se na valorização
do trabalho
, e o art. 193 dispõe que a ordem social tem como base o primado do trabalho. Tudo isso no
sentido de reconhecer o direito ao
trabalho
, como condição da efetividade da existência digna (fim da ordem
econômica) e, pois, da dignidade da pessoa humana, fundamento, também, da
República Federativa do Brasil (art. 1.º, III).
[18]

Assim, a Constituição Federal estabelece metas a serem cumpridas,
através de efetivas ações que visem garantir o direito ao trabalho, direito
este acima de tudo social, e que não pode ficar sujeito a quaisquer tipos de
regras senão às regras do Estado, que na visão de JEAN-JACQUES ROUSSEAU[19]
significam a expressão do bem comum, que resume a vontade geral do povo,
instrumento nuclear da sociedade.

1.2.2 – Liberdade de trabalho

A liberdade de trabalho, diferente do item anterior, encontra-se
elencada como direito individual, e vem expressa no art. 5.º, inciso XIII, sob
a forma de liberdade de exercício de ofício e profissão, com a condicionante de
que fossem atendidas as regras estabelecidas em lei. Além deste
dispositivo legal, pode-se considerar ainda como sendo relativo à liberdade de
trabalho, o comando normativos do art.8.º, inciso V, que assegura não ser
obrigatória a filiação de trabalhador em sindicato de classe para que o mesmo
possa exercer sua atividade profissional. Tal regra é um meio para a garantia
do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana.

Para alguns autores brasileiros a regra contida no art. 5.º, XIII
comportaria uma contradição em si mesma, pois ao afirmar em sua primeira parte
que é livre o exercício de qualquer ofício ou profissão, estaria contradizendo
sua segunda parte, que estabelece condições para o acesso a estas profissões.

Contudo, a grande maioria dos autores entende que não há contradição
alguma em tal norma, eis que a liberdade conferida não pode ser plena por um
aspecto de interesse público, tendo em vista que existem os mais diversos tipos
de profissões, ofícios e trabalhos, alguns dos quais exigem capacidade técnica
e conhecimentos específicos. Desta forma, a liberdade concedida é uma liberdade
condicionada, no sentido de que sejam atingidas qualificações mínimas para que
seja exercida esta liberdade. Tais qualificações visam garantir aquele que é o
objetivo maior da vida em sociedade: a garantia do bem comum, impedindo, por
exemplo, que pessoa sem o menor conhecimento de medicina venha a prescrever
remédios e recomendar cirurgias.

Obviamente que tal entendimento não se encontra explicitado unicamente
na norma em análise, mas decorre sobretudo de uma interpretação da Constituição
Federal de forma sistemática, a fim de evitar que aparentes antinomias venham a
resultar em um colapso do sistema.

Deve-se analisar ainda a liberdade de trabalho sob o aspecto da
liberdade como um todo – também inserida no princípio fundamental da dignidade
da pessoa humana – pois dizer que um homem é livre, sem contudo deixar que
livremente escolha sua ocupação é uma afirmação vazia de significado. Neste
sentido, bem justificadas as palavras de CELSO BASTOS:

“Mas a liberdade de trabalho
encontra outra fundamentação na própria condição humana, cumprindo ao homem dar
um sentido à sua existência. É na escolha do trabalho que ele vai impregnar
mais fundamentalmente a sua personalidade com os ingredientes de uma escolha
livremente levada ao cabo. A escolha do trabalho é, pois, uma das expressões
fundamentais da liberdade humana.”
[20]

Outro aspecto relevante a ser considerado refere-se ao fato de que as
qualificações profissionais exigidas para o exercício profissional devem ser de
caráter eminentemente técnico, não se admitindo, outros tipos de condicionantes,
nas bem colocadas palavras de JOSÉ CRETELLA JÚNIOR:

“As qualificações profissionais que a lei exige são condições de
capacidade, mas de modo algum condições ou exigências que criem barreiras, por
motivos de idéias políticas, filosóficas ou religiosas, de cor, de sexo, de
raça, de riqueza, de classe social, de crença, de profissão anterior lícita do
pretendente ao exercício ou de qualquer
de seus ascendentes.”
[21]

Neste mesmo sentido, PINTO FERREIRA traz uma decisão do Supremo
Tribunal Federal onde é considerada inconstitucional qualquer lei que
estabeleça restrição ao exercício de qualquer profissão, ofício ou trabalho,
que não seja relativa às condições de capacidade profissional daquele que
pleiteie tal exercício. [22]

No tocante à liberdade de associação sindical deve-se ressaltar que
tal princípio vem exatamente ao encontro do anterior, eis que de nada
adiantaria haver liberdade de trabalho onde houvesse obrigatoriedade de o
trabalhador se filiar a uma entidade sindical para que pudesse exercer sua
profissão. Tal exigência seria uma condicionante não relacionada com a
qualificação exigida pelo texto constitucional.

Há de se destacar, contudo, que a organização sindical tem total
legitimidade de ser, no sentido de que organiza os trabalhadores e lhes
proporciona uma força de negociação que sozinhos não teriam. Com efeito, apesar
de estarmos em
um Estado Democrático de Direito, a realidade da distribuição
de renda não reflete esta democracia, pois, conforme o já citado JEAN-JACQUES
ROUSSEAU, não poderá haver democracia onde existam pessoas tão pobres que
estejam dispostas a vender seu trabalho em troca de quase nada e onde existam
pessoas tão ricas a ponto de poderem comprar as outras conforme a sua
conveniência. [23]

Entretanto, a questão sindical é um objeto que por si só seria tema de
um trabalho monográfico. Mas, para o presente, nos deteremos apenas na questão
de que não há obrigatoriedade de filiação sindical para o exercício de qualquer
profissão. Assegura, assim, a Constituição brasileira, a plena liberdade de
trabalho, baluarte dos trabalhadores ao longo de lutas seculares.

2. O trabalho portuário e a
legislação brasileira

2.1 –
Perspectiva Histórica

O trabalho portuário, hoje totalmente mecanizado
tem uma evolução bastante interessante, podendo-se dizer que começa com os
Fenícios, um dos primeiros povos a se utilizar de embarcações para o transporte
de mercadorias; atravessando toda a história da humanidade, em momentos que tal
trabalho era degradante e em momentos que era valorizado; em algumas épocas
desorganizado e em outras fortemente organizado. Chegando ao atual estágio, em
que os trabalhadores são cada vez mais dispensáveis, ante o ideário neoliberal
de que se deve minimizar os custos (a mão-de-obra é considerada um custo) para
maximizar os lucros (contribuindo para o aumento indiscriminado da miséria e
desigualdade social).

2.1.1 –
Fenícios

Pouco se sabe sobre as relações de trabalho na época deste povo,
contudo convém destacar para este estudo, que os fenícios foram os primeiros a
se dedicar comercialmente à navegação, fato que nos permite falar em primeiros
passos do trabalho portuário.

Em verdade, nesta época, o trabalho portuário era
todo ele desenvolvido pelos próprios tripulantes das embarcações, que eram
recrutados dentre os homens livres, grande parte pescadores, que entre a safra
de uma espécie e outra trabalhavam como tripulantes em embarcações comerciais,
no comércio que se estabeleceu no mediterrâneo.

Salienta-se o fato de, nesta época, o serviço
portuário estar totalmente atrelado à navegação – e por muito tempo assim
esteve – de modo que todo o regramento inerente a esta atividade está ligado ao
regramento da atividade da navegação. Esta, por sua vez, na Fenícia, não
possuiu qualquer legislação específica, de modo que presume-se não haver
qualquer normatização inerente ao Trabalho Portuário neste período.

Contudo, importante ressaltar para o nosso estudo,
que o aviltamento do trabalho como um todo não parece ter atingido os Fenícios,
eis que as pessoas que prestavam tal serviço eram pessoas livres, ligadas à
pesca ou ao comércio. Assim, contrariando o entendimento que predominava na
Europa de que o trabalho era uma pena, o trabalho portuário não nasce com tal
pecha. Frise-se, contudo, que também não era o trabalho portuário visto como
sendo o mais digno dos serviços, pois suas características exigiam muita força
bruta por parte dos trabalhadores, o que não era atributo comum àqueles que se
dedicavam aos estudos.

2.1.2 –
Grandes navegações

Da época em que os Fenícios dominavam a navegação até o advento das
grandes navegações, dominadas por portugueses e espanhóis, passando pelo
domínio dos italianos no mediterrâneo pode-se afirmar que o trabalho portuário
pouco evoluiu enquanto figura autônoma, estando sempre inserto na regulamentação
inerente ao direito de navegação (direito comercial marítimo).

Assim, qualquer regulamentação e menção ao trabalho
portuário pode ser encontrada nos tratados de direito marítimo, que nesta época
eram bastante vagos e incertos, contudo, mesmo diante desta incerteza, pode-se
afirmar que o trabalho portuário – de carga e descarga de mercadorias – era
realizado, como na época dos fenícios, pela própria tribulação da embarcação.
Quando o trabalho excedia o que podia ser executado pela equipagem das
embarcações, eram contratados trabalhadores livres, em sua maioria artesãos,
agricultores e pescadores, que ante a ausência de qualquer outro serviço,
trabalhavam nos portos para complementar sua renda.

Este era o quadro da Idade Média, onde o comércio
marítimo não era ainda o principal meio de comércio entre os povos, de modo
que, exatamente por não haver grandes escalas de embarcações, não se podia
contar com um contingente muito numeroso de trabalhadores, daí o caráter
meramente temporário e de complementação de renda desta atividade.

No tocante à liberdade de trabalho portuário,
pode-se afirmar que ela era plena eis que ficava a cargo do Capitão da
embarcação ou do proprietário da carga escolher os trabalhadores que iriam
prestar tal serviço, não havendo necessidade de qualquer especialização por
parte dos trabalhadores para sua prestação, salvo apenas a da robustez física,
uma vez que o serviço era predominantemente braçal e exigia muita força física
de seu prestador.

Assim as relações de trabalho se davam puramente
entre os contratantes, que estipulavam livremente as condições e o preço dos
serviços a serem prestados. Contudo, tal liberdade era apenas hipotética, pois
na realidade, os capitães das embarcações estipulavam unilateralmente as
condições, de modo que ao trabalhador restava apenas aceitar ou não as
condições impostas. Vê-se como era aparente a liberdade de trabalho.

Neste panorama pode-se ainda destacar que as
condições de trabalho dos “portuários” eram totalmente precárias. Trabalhavam
em locais totalmente insalubres, exigindo esforço sempre superior ao que
poderia ser suportado e com remuneração extremamente baixa. Conclui-se então,
em que pese haver liberdade para trabalhar nestes serviços, não havia liberdade
de contratar, e, em última análise, o direito ao trabalho simplesmente não
existia, pois não havia qualquer tipo de estabilidade em uma função, bem como
não havia qualquer controle do Estado sobre estas relações, se contratando e
demitindo os trabalhadores ao bel prazer do capitão do navio ou do proprietário
da carga, no que bem assevera LARRY BURKHALTER:

“Los
estibadores realizaban sus faenas en un entorno que sólo puede calificarse de
inseguro, peligroso e inslubre. Se los trataba como simples instrumentos para
el enriquecimento personal de los patrones. Se los contrataba y despedía día a
día u de trabajo en trabajo. En una época en que no existían condiciones de
seguridad, y no se contemplaba la previón social o la atención de la salud,
romperse un hueso equivalía a quedar inválido de por vida, las laceraciones com
frecuencia eran fatales y los cargamentos infectados de ratas exponían a los
trabajadores a plagas mortíferas.”
[24]

Deste relato pode-se perceber que as condições de
trabalho vividas pelos trabalhadores portuários em nada diferiam, quanto ao seu
tratamento, daquelas que enfrentavam os demais trabalhadores do mesmo período
histórico.

Contudo, ante o advento das Grandes Navegações e a
evolução tecnológica que se apresentou a partir do Renascimento, as relações de
comércio marítimo que no início era pequenas, cresceram sobremaneira,
aumentando também a demanda por trabalhadores nos portos, criando uma
especialização em tal atividade que exigia a prestação de tais serviços por
parte de uma mão-de-obra também especializada, já se pode então começar a falar
em um trabalhador portuário, nos termos que conhecemos hoje, principalmente do
trabalho de estiva.

Assim, as relações de trabalho portuário começam a
tomar forma, e à medida em que a navegação foi evoluindo, foi também evoluindo
o trabalho portuário – aliás como todo o trabalho ao longo do que podemos
chamar de Idade Moderna – forçando uma maior organização do mesmo.

Com o advento da Revolução Francesa, veio a
Revolução Industrial que acrescentou ingredientes de tecnologia aos meios de
transportes, com a criação da primeira locomotiva a vapor. Tal invento
beneficiou também a navegação, pois foi adaptando o motor de uma locomotiva a
um navio que se chegou ao primeiro navio a vapor.

Tal inovação não tardou a alavancar o comércio
marítimo, na medida em que também passou a se utilizar o ferro na fabricação
das embarcações, o que gerou um incremento nas relações entre a Europa e suas
colônias, que a esta altura já haviam declarado (em alguns casos)
independência, o que as tornou mercados atrativos para as mercadorias do Velho
Mundo.

Com toda esta mudança, houve, conjuntamente com o
incremento do comércio, um aumento na necessidade de mão-de-obra portuária, na
medida em que as escalas dos navios mercantes estavam aumentando. Mas tal
trabalho, calcado no princípio da Revolução Francesa de liberdade total de
negociação, novamente acompanha a característica que manchou o século XIX: a
exploração massiva dos trabalhadores. O incremento na necessidade de
mão-de-obra teve um elemento que veio também a aumentar a produtividade do
trabalho portuário, corporificado nos primeiros guindastes a vapor. Tal
inovação piorou ainda mais as já degradantes condições de trabalho desta
categoria.

Neste sentido, os trabalhadores estavam sujeitos a
condições de trabalho totalmente aviltantes, em que os direitos mínimos à saúde
e higiene de trabalho sequer eram cogitados. As jornadas de trabalho de tais
trabalhadores, quando havia a presença de navios atracados nos portos, era
totalmente inumana, levando os trabalhadores a total exaustão. E o que era
pior, os salários pagos eram salários totalmente de miséria, eis que, ante a
quantidade de mão-de-obra que extrapolava a oferta de empregos, a liberdade
contratual (que de certa forma seria a formalização da liberdade ao trabalho)
inexistia, pois o trabalhador precisava do trabalho para poder se alimentar, o
que em um último momento, nos leva ao já citado direito ao trabalho como sendo
um direito à própria vida.

Tal realidade, que já foi também objeto de análise
em relação ao trabalho como um todo nos itens anteriores, ensejou um reação por
parte dos trabalhadores portuários, que passaram a se organizar em Sindicatos,
para que então possuíssem mais força e pudessem reivindicar e negociar melhores
condições de trabalho. Começa então uma nova fase do trabalho portuário, que
vai acompanhar também as inovações que atingiram o trabalho em geral e que terá
nefastas conseqüências nas relações trabalhistas portuárias, impondo o império
do capital sobre o trabalho com o afastamento da interferência do Estado nessas
relações.

2.1.3 –
Século XX

No começo do século passado, com o surgimento dos sindicatos de
trabalhadores, bem como com a modificação da visão do trabalho meramente
econômica, passando o mesmo a ser visto do ponto de vista social e filosófico,
tais sindicatos ganharam força e passaram a ter cada vez mais poder para
negociar as condições de trabalho de seus associados.

Desta forma, no trabalho portuário, os sindicatos de estivadores
passaram a reivindicar melhores condições de trabalho para estes trabalhadores,
estabelecendo jornadas de trabalho mais dignas e até mesmo implementando o
esquema de escalação por rodízio, garantindo assim que todos teriam, dentro do
espírito da igualdade, as mesmas oportunidades de rendimentos.

Mais organizados e ainda auxiliados pela intervenção estatal, o
trabalhador portuário encontraria terreno fértil para suas reivindicações,
garantindo condições de trabalho melhores e uma remuneração condigna.

Assevere-se que com as grandes inovações tecnológicas as embarcações
crescem em tamanho e diminuem suas tripulações, e, como resultado, cresce a
necessidade por trabalhadores portuários. É o momento de glória do trabalho
portuário no mundo, eis que os trabalhadores têm amplo mercado de trabalho e a
sua remuneração é determinada pelo Estado, não havendo grandes embates entre
capital e trabalho.

Contudo a tecnologia avança, se as cargas eram outrora transportadas
isoladamente ou em fardos, passam agora a ser transportadas em cofres de carga
– os contêineres – e, se antes eram movimentadas manualmente exigindo milhares
de homens para tal, podem agora ser transportadas mecanicamente. Começa a
faltar emprego. O Estado se afasta das relações entre trabalhadores e
empregadores, abraçando a idéia da livre negociação.

No Brasil tal evolução demorou a chegar, pois nossos portos, nas mãos
de administradores incompetentes, foram sucateados e não receberam os
investimentos tecnológicos necessários para melhorar seu desempenho e reduzir
seus custos. A saída encontrada, então, foi a de entregar os portos para a
iniciativa privada e flexibilizar as relações trabalhistas, eclodindo com a
situação atual, que busca ser um espelho do que já acontece no resto do
planeta.

2.2 – Legislação portuária
brasileira

Foi visto como se dá a proteção ao trabalho em geral na Constituição
Federal. O próximo ponto de nosso trabalho visa localizar o trabalhador
portuário dentro da legislação brasileira, inclusive na Constituição Federal,
para posteriormente confrontar aspectos desta legislação com os princípios
supra demonstrados. Convém destacar que o alvo principal desta análise será o
Órgão Gestor de Mão-de-obra do Trabalhador Portuário – OGMO, que será detalhado
em item a parte.

2.2.1 – Trabalho portuário nas
Constituições brasileiras

Com relação ao trabalho portuário pode-se afirmar que as constituições
pátrias, foram em sua grande maioria, bastante genéricas quanto ao assunto, não
dedicando maiores atenções ao tema. Contudo, a Lei Maior promulgada em 05 de
outubro de 1988, em que pese também cingir-se a aspectos gerais no tocante ao
trabalhador portuário, trouxe uma inovação, pois em seu art. 7.º, inciso XXXIV
igualou os trabalhadores avulsos (categoria a que pertencem a maioria dos
trabalhadores portuários) aos trabalhadores com vínculo empregatício, atribuindo-lhes
as mesmas garantias e direitos.

Frise-se que a primeira Constituição Federal a fazer alguma menção a
trabalhador avulso (dentre os quais está incluído o portuário), foi a Carta
atual, e apenas (o que não retira a importância da conquista) igualando o
trabalhador avulso aos demais trabalhadores.

Note-se que anteriormente a isto somente havia menção aos
trabalhadores avulsos e, mais especificamente, aos trabalhadores portuários, em
legislação infraconstitucional, ou seja, em leis ordinárias, decretos-leis e
decretos, realidade que, fora o artigo supra citado, perdura nos dias de hoje.

2.2.2 – Legislação anterior à
Lei 8.630/93

Antes do advento da Lei 8.630/93, chamada de Lei de Modernização dos
Portos, havia uma gama de textos legislativos que organizavam o trabalho na
orla portuária, textos estes que datavam desde o ano de 1934, e ainda estavam
vigendo.

Este pequeno exemplo serve apenas para demonstrar que efetivamente a
legislação portuária brasileira – e, por conseguinte, o modelo portuário brasileiro
– estavam completamente defasados e precisavam ser alterados. Entretanto não se
está afirmando que a mudança ocorrida foi a mais indicada para acontecer e que
o modelo adotado é o ideal.

Contudo, tendo em vista que o foco do presente trabalho é relacionar a
tutela ao trabalho existente em nossa
Constituição Federal e o trabalhador portuário avulso, será
apenas analisada a legislação portuária “pré” Lei 8.630/93, no que tange aos
aspectos de acesso do trabalhador ao trabalho portuário avulso, órgãos que
regiam este acesso e demais temas pertinentes ao assunto em questão.

As regras que regiam os trabalhadores portuários advinham de dois
órgãos: a Superintendência Nacional da Marinha Mercante – SUNAMAM, que ditava
as normas gerais que orientariam todo e qualquer regramento atinente ao
trabalhador portuário; e as Delegacias de Trabalho Marítimo – DTMs, que
existiam no âmbito de cada porto brasileiro, e adequavam as normas gerais
editadas pela SUNAMAM à realidade de cada região.

Tais órgãos possuíam total ingerência no trabalho portuário, não
deixando espaço para que houvesse qualquer tipo de livre negociação entre os
trabalhadores portuários e as entidades estivadoras (responsáveis pela
movimentação de mercadorias nos portos), pois indicavam até mesmo a remuneração
que estes trabalhadores deveriam perceber.

Além de indicar a remuneração que seria percebida pelos trabalhadores,
era responsabilidade também destes órgãos, determinar o número de trabalhadores
que poderiam receber a devida matrícula (requisito indispensável para que os
trabalhadores pudessem atuar na orla portuária), bem como a forma que se daria
o acesso destes trabalhadores a essas matrículas, passando inclusive pela
determinação de quantos terno de trabalhadores formariam as fainas de serviço, indicando
o número de trabalhadores envolvidos na operação.

Havia, pois, nesta época, uma severa intervenção estatal nas relações
de trabalho, pois não deixava qualquer brecha para uma livre negociação entre
empregados e empregadores. Contudo, não se pode afirmar que tais regras
ferissem o direito ao trabalho, pois estes regramentos, em uma última análise,
garantiam tal direito ao trabalhom, eis que de nada adiantaria liberar o
trabalho portuário para todos os trabalhadores se, na prática, o número de trabalhadores
ultrapassaria o trabalho existente. Além do mais, estando o poder de decidir
quantos trabalhadores fariam parte do quadro de trabalhadores portuários nas
mãos do Estado, este poderia decidir abrir mais vagas quando as taxas de
desemprego fossem muito altas.

Neste mesmo sentido, não se pode dizer que havia uma liberdade total
de trabalho, mas ao mesmo tempo não se pode dizer que ela não existia. A
questão da liberdade ao trabalho, elevada ao degrau de Garantia Fundamental na
Carta Magna vigente não vem sozinha, pois permite ao Estado elaborar leis que
imponham requisitos mínimos que devem ser observados para que se possa exercer
as diversas profissões e ofícios existentes. Assim, podemos afirmar que faltará
liberdade ao trabalho, quando surgirem elementos que não digam respeito à
regulamentação das profissões e que interfiram no acesso a estas profissões e
ofícios.

No caso do regramento anterior à Lei 8.630/93, havia liberdade ao
trabalho no sentido de que não era exigido que o trabalhador portuário avulso
fosse sindicalizado, para que pudesse ser requisitado por uma entidade
estivadora (única exigência era a matrícula junto a DTM). Contudo, os
trabalhadores sindicalizados tinham preferência na requisição (de modo que os
não sindicalizados somente eram requeridos na falta destes) e, o que pode ser
considerado pior, é que a requisição era feita diretamente junto ao sindicato,
que adotava o sistema de rodízio.

Portanto, em que pese não haver necessidade expressa na legislação de
que o trabalhador avulso tenha que ser sindicalizado, na prática era inviável
que não o fosse, o que nos leva à conclusão que o princípio da liberdade ao
trabalho não passava de peça decorativa, pois na prática não existia tal
liberdade.

Deve-se concluir que esta legislação era, apesar dos problemas,
extremamente protetiva ao trabalhador, mesmo restringido a liberdade ao
trabalho, contemplando de forma significativa os princípios Constitucionais de
1988 da dignidade da pessoa humana e do valor social do trabalho, pois não
deixava o trabalhador à mercê das variações do mercado e desmandos do
neoliberalismo.

2.2.3 – A modernização dos
portos: Lei 8.630/93

Não se pode negar que a lei 8.630/93, intitulada de “Lei de
Modernização dos Portos” , trouxe uma série de avanços à regulamentação dos
portos brasileiros, mormente por compilar em um único instrumento legal toda a
normatização necessária para a exploração dos portos brasileiros, revogando
toda uma série de textos anteriores.

No que tange à questão da liberdade ao trabalho e o direito ao
trabalho pode-se dizer contudo, que houve avanços e retrocessos, cujos aspectos
relativos à Constituição Federal e seus princípios norteadores serão analisados
em momento propício.

A supracitada lei extinguiu todos os órgãos estatais que orientavam o
trabalho portuário, criando um único e novo órgão, que não seria mais público
(no sentido de administração direta e indireta), mas sim um órgão de interesse
público, os Órgão Gestores de Mão-de-obra do Trabalhador Portuário Avulso –
OGMOs, cuja formação foi feita pelos Operadores Portuários (que substituíram as
Entidades Estivadoras), pessoas jurídicas privadas com objetivo de lucro
(empresas portanto) e que, além de assumir as funções das extintas SUNAMAM e
DTMs, assumiram também a função de escalação e organização do sistema de
rodízio dos trabalhadores (através da Lei 9.719/98, que complementou a Lei
8.630/93), antes atribuídas aos respectivos sindicatos.

Esta substituição teve muitos significados para o trabalhador, pois se
antes se encontrava plenamente protegido pelo Estado, agora se encontrava
totalmente desamparado, pois as funções estatais foram transferidas para um
órgão formado pelas empresas. Além disto, não há agora qualquer necessidade de
o trabalhador se sindicalizar, pois o controle do rodízio que era feito pelas
entidades sindicais, passou a ser feito pelos OGMOs.

É exatamente neste ponto que centraremos nossa análise no presente
trabalho, no fato de que, apesar do sistema anterior ser bastante paternalista,
o que desde já consideramos reprovável, ele inspirava tranqüilidade e segurança
no trabalhador, pois ficava alheio as variações do mercado.

Com o sistema atual, contudo, não se pode afirmar que o trabalhador
encontra-se amparado por qualquer lado, pois está sujeito às regras do mercado,
cujo interesse sempre é maximizar os lucros minimizando o custo – onde a corda
sempre cede no lado do mais fraco, neste caso o trabalhador portuário.
Percebe-se então o porquê retirar força dos sindicatos, que são as entidades
que defendem o interesse do trabalhador.

Assim, do ponto de vista da liberdade ao trabalho pode-se dizer que,
superficialmente, houve uma melhora, pois não mais existe necessidade de o
trabalhador ser sindicalizado para que possa exercer seu trabalho – o que é
positivo do ponto de vista Constitucional. Contudo, deixar a questão da
determinação de quantos trabalhadores podem ser cadastrados e registrados, e
como se dará o acesso a tais vagas, nas mãos dos OGMOs, parece confrontar tais
princípios.

Já no que diz respeito ao direito ao trabalho, pode-se afirmar que não
há qualquer tutela ao mesmo na atual legislação. Ao delegar aos detentores do
capital o controle sobre o acesso aos registros e cadastros de trabalhadores
portuários, e mais do que isto, entregar toda a relação laboral ao mercado, o
Estado simplesmente abandonou a sua função de incrementador do crescimento
social da nação.

2.2.4 – O Órgão Gestor de
Mão-de-Obra

Conforme visto acima, todo o papel regulador das relações de trabalho
na orla portuária, que antes estava na mão do Estado através da SUNAMAM e das
DTMs, passou para a mão das empresas portuárias (mais especificamente dos
operadores portuários), na figura deste novo elemento, chamado de Órgão Gestor
de Mão-de-Obra do Trabalhador Portuário Avulso – OGMO.

O art. 18 da Lei 8.630, que cria o OGMO, atribui a responsabilidade
pela constituição do mesmo aos Operadores Portuários (pessoas jurídicas de
Direito privado que substituíram as entidades estivadoras na tarefa de
movimentação de mercadorias na área do porto organizado), atribuindo ao mesmo
as seguintes responsabilidades: administrar o fornecimento de mão-de-obra;
manter exclusivamente o cadastro do trabalhador portuário e o registro do
trabalhador portuário avulso; promover treinamento e habilitação do trabalhador
portuário, inscrevendo o mesmo no cadastro; selecionar e registrar o
trabalhador portuário avulso; estabelecer o número de vagas, a forma e a
periodicidade para acesso ao registro do trabalhador portuário avulso; expedir
documentos de identificação do trabalhador portuário; arrecadar e repassar aos
trabalhadores os valores referentes a sua remuneração, inclusive arrecadar as
devidas contribuições previdenciárias e fiscais.

Note-se que dentre as funções do OGMO percebe-se também que houve
substituição da função exercida pelos sindicatos na escalação dos trabalhadores
(Lei 9.719/98), pois toda a administração de mão-de-obra passou para o OGMO.

Importante aqui explicitar alguns aspectos referentes aos
trabalhadores portuários avulsos que foram modificados pela atual legislação e
que influenciam diretamente a requisição da mão-de-obra.

Antes do advento da lei em análise, a requisição de mão-de-obra avulsa
pelas entidades estivadoras era feita somente dentre aqueles trabalhadores
portuários que detinham matrícula junto a Delegacia de Trafego Marítimo e
realizada diretamente com os sindicatos laborais. Com a promulgação da lei,
tais requisições passaram a ser feitas pelos Operadores Portuários, somente
dentre aqueles trabalhadores que detinham REGISTRO junto aos OGMOs e tais requisições
deveriam ser feitas também diretamente aos OGMOs.

Outro esclarecimento deve ser feito no tocante a quais trabalhadores
receberam o registro junto ao OGMO, bem como explicar o CADASTRO dos
trabalhadores portuários. A concessão inicial do registro aos trabalhadores
portuários avulsos se encontra disciplinada no art. 55 da Lei 8.330/93, que
determina tal concessão a todos os trabalhadores portuários avulsos que
estivessem devidamente matriculados (junto às DTMs) até a data de 31/12/1990,
com a ressalva de que deveriam estar efetivamente trabalhando para que fizessem
jus ao registro. Destacamos ainda, que o parágrafo único do citado artigo,
afastou a possibilidade de os trabalhadores aposentados que estivessem
trabalhando à época da publicação da lei obterem o registro, concedendo aos
mesmos, contudo, a possibilidade de serem cadastrados.

Conclui-se, pois, que todos os trabalhadores que ainda estavam
efetivamente trabalhando nas datas supra, faziam jus ao registro e poderiam
continuar trabalhando tranqüilamente. Desse modo o REGISTRO substituiu a
MATRÍCULA, continuando com a mesma função.

No que diz respeito ao cadastro, este foi uma inovação da lei novel,
eis que o mesmo representa o controle da chamada força supletiva de trabalho,
ou seja, aqueles trabalhadores que, na insuficiência dos trabalhadores
registrados, são requisitados para trabalhar. Mas mais do que organizar a
chamada “força supletiva de trabalho” o cadastro é também – e principalmente –
pré-requisito para que um trabalhador portuário possa obter o registro e desta
forma trabalhar como mão-de-obra efetiva em um porto organizado (e não
suplementar).

Assim, recapitulando, temos o registro e o cadastro do trabalhador
portuário. O primeiro com a função da antiga matrícula, garantindo que a requisição
do trabalhador portuário avulso fosse feita somente dentre os trabalhadores
habilitados. O segundo com a função de coordenar a mão-de-obra supletiva e,
também, por assim dizer, de pré-qualificar um trabalhador para obtenção do
registro.

Além de substituir os sindicatos na administração da mão-de-obra, o
que de uma certa forma quebrou o pseudo monopólio dos mesmos, o OGMO substituiu
o Estado na função de seleção e determinação do número de vagas disponíveis
para o trabalho portuário.

Ainda a respeito do funcionamento do OGMO, o art. 19 da Lei 8.630/93
traz uma outra série de competências do mesmo, cuja enumeração para o presente
estudo não se faz necessária. Dentre essas competências deve-se destacar as do
inciso I do referido artigo, mais especificamente as contidas na alínea “c”,
pois a mesma concede ao OGMO o poder de cancelar o registro do trabalhador
portuário avulso, em caso de transgressão disciplinar por parte do mesmo.

Importante destacar ainda, neste artigo, uma inovação trazida pela lei
que se refere ao fato de o OGMO responder solidariamente com os operadores
portuários perante os trabalhadores portuários avulsos, de modo que estes
recebam corretamente sua remuneração. Tal regra encontra-se insculpida no § 2.º
do citado art. 19.

A seguir Lei 8.630/93 traz, nos arts. 20,21 e 22, uma série de
dispositivos que visam regular as relações empregatícias entre o trabalhador
portuário avulso, OGMO e operador portuário, no sentido de definir questões
como vínculo empregatício, cessão permanente de trabalhador portuário e as
relações contratuais, e convencionais (aqui incluindo acordo).

Neste sentido, o art. 20 afasta de plano a possibilidade de o
trabalhador portuário avulso requerer vínculo empregatício junto ao OGMO,
afirmando não existir o mesmo; o art. 21 permite que sejam cedidos
trabalhadores portuários avulsos em caráter permanente ao operador portuário.
Este dispositivo deve ser observado conjuntamente com o art. 26, parágrafo
único da mesma lei, que dá exclusividade para tal contratação aos trabalhadores
portuários avulsos registrados. Finalmente, o art. 22 afirma que as relações de
trabalho, no que tange a gestão da mão-de-obra, observará os instrumentos de
contratos, acordos e convenções coletivas de trabalho. Há contudo uma lacuna
aqui formada, pois o texto legal não explica como se dará a relação em caso de
não haver quaisquer daqueles instrumentos.

Observe-se também, que tais regras retiram o poder Estatal de
regulamentar o trabalho portuário, deixando-o totalmente livre para ser
regulamentado entre as partes – operador portuário e trabalhador portuário
avulso – constituindo-se em outra inovação da legislação atual.

Após regulamentar estas relações, passa a lei a normatizar a estrutura
fundamental do OGMO, nos arts. 23 e 24, estabelecendo os órgãos internos
mínimos que deverá ter e que não poderão ser alvo de alteração pelo estatuto ou
contrato social do mesmo.

Assim, o art. 23 obriga a constituição de uma comissão paritária
dentro da estrutura do OGMO, que será responsável pela solução de todos os
conflitos que surgirem no âmbito das relações trabalhistas relativas ao
fornecimento de mão-de-obra aos operadores portuários. Entretanto a competência
da comissão paritária (cujo número de membros e forma de indicação dos mesmos
fica a cargo do estatuto interno) não é plena, pois ficaram excluídas de seu
âmbito as celeumas envolvendo os contratos, acordos e convenções coletivas de
trabalho. Aliás, tal exclusão já havia sido feita pelo parágrafo único do art.
18.

Ainda no âmbito da comissão paritária, o § 1.º do art. 23 institui
obrigação para que as partes não conseguindo resolver o assunto no âmbito da
comissão, procurem um juízo arbitral para dirimir a questão. Adiante, nos
demais parágrafos, surge a obrigação de não desistência do compromisso arbitral
e de obrigatoriedade de o árbitro ser escolhido de comum acordo entre as
partes. Por fim, indica a desnecessidade de que o laudo arbitral seja
homologado para que tenha força normativa.

Continuando a regulamentação do OGMO, o art. 24 da Lei 8.630/93 cria o
Conselho de Supervisão e a Diretoria Executiva do órgão. A regulamentação do
primeiro encontra-se nos §§ 1.º e 3.º e a da segunda nos §§ 2.º e 4.º.

O Conselho de Supervisão do OGMO será composto por três membros, um
representando os trabalhadores e dois representando os empresários (um
representando os operadores portuários e outro representando os usuários dos
serviços portuários) e terá as funções de fiscalizar toda a gestão do OGMO
desde a gestão contábil até a financeira e, principalmente, terá função de
regulamentar o número de trabalhadores portuários avulsos registrados e a forma
de acesso dos mesmos ao citado registro. Por fim, é permitido que os membros do
Conselho de Supervisão possam fazer parte da diretoria do OGMO, sendo esta
permissão limitada a 1/3 dos membros do Conselho.

Já a Diretoria Executiva do OGMO será composta por, no mínimo, um
diretor, sendo o máximo de diretores estabelecido pelo seu estatuto. Todos os
diretores do OGMO serão indicados pelos membros do Bloco II do CAP – Conselho de
Autoridade Portuária, que são: um representante da Administração do Porto; um
representante das instalações portuárias privativas localizadas na área do
porto organizado; um representante dos armadores e um representante dos
operadores portuários. O mandato da Diretoria Executiva será de no mínimo três
anos, sendo permitida a redesignição quantas vezes estiver sendo satisfatória a
gestão da mesma. A representação do OGMO e o responsável pela execução de suas
tarefas serão definidos pelo seu Estatuto.

Finalmente, no que se refere a OGMO, o art. 25 da lei estatui que o
mesmo será considerado de utilidade pública, impondo restrição à execução de
qualquer atividade não relacionada com a gestão da mão-de-obra (antes
definidas) e vedando a possibilidade de o referido OGMO possuir fins
lucrativos.

Assim, finalizamos este item, que faz uma exposição geral sobre o OGMO
– Órgão Gestor de Mão-de-obra do Trabalhador Portuário Avulso, deixando a
análise pormenorizada, que será feita à luz da Constituição Federal, através de
uma interpretação sistemática, para o próximo capítulo, tomando como
referencial o OGMO do Porto de Rio Grande, inclusive seu Estatuto social.

3. Análise sistemática do OGMO

Nos dois capítulos anteriores o presente trabalho analisou o direito
ao trabalho (“latu sensu”) e sua
tutela em nossa Constituição Federal, bem com se fez uma
análise do trabalho portuário e da legislação portuária brasileira que rege a
matéria.

No presente capítulo, far-se-á uma análise da legislação portuária
brasileira, em especial o OGMO, explicitado no segundo capítulo, de acordo com
os ditames constitucionais demonstrados no primeiro capítulo, segundo uma
análise sistemática.

Portanto, antes de adentrarmos na análise do OGMO frente a
Constituição Federal, explicaremos o método de interpretação utilizado para
fazer tal análise.

3.1 – Ordenamento jurídico

3.1.1 – Noções gerais

A questão do ordenamento jurídico, é uma teoria que tem ocupado boa
parte das cátedras universitárias de nosso tempo, até mesmo porque, em último
caso, resume a própria questão da vida em sociedade. Assim
o ordenamento jurídico, suas características, problemas e soluções, é de curial
importância para o entendimento que se quer dar à matéria em questão.

O ordenamento jurídico torna-se importante para a questão, pois nele
as normas não são consideradas isoladamente, mesmo porque nunca as normas
existem sozinhas, mas sempre relacionadas a outras normas. Portanto ao se falar
em direito – e no presente caso falaremos no direito ao trabalho (latu sensu, incluindo todas as tutelas
ao trabalho neste conceito) – pressupõe-se a análise de um ordenamento. Nas
palavras de NORBERTO BOBBIO:

“[…] tivemos de alargar nosso
horizonte para a consideração do modo pelo qual uma determinada norma se torna
eficaz a partir de uma complexa organização que determina a natureza e a
entidade das sanções, as pessoas que devam exercê-las e a sua execução. Essa
organização complexa é o produto de um ordenamento jurídico. Significa,
portanto que uma definição satisfatória do Direito só é possível se nos
colocarmos do ponto de vista do ordenamento jurídico.”
[25]

Assim, o ordenamento jurídico, como pressuposto de sua própria
existência, exige em sua composição mais de uma norma, por impossível se
conceber um ordenamento composto por uma norma só. Tal conclusão óbvia nos leva
a uma série de problemas, e se tomando como base o trabalho de NORBERTO BOBBIO,
analisaremos a seguir o problema da unidade e hierarquia das normas jurídicas e
em seguida a definição do sistema jurídico (como pressuposto da validade do
ordenamento), que apresentará o problema das antinomias jurídicas, que
culminarão, por assim dizer, na análise sistemática das normas.

3.1.2 – Hierarquia das normas
jurídicas

A questão da hierarquia das normas jurídicas toma importância em nosso
estudo pela questão da complexidade que um ordenamento jurídico possui. Com
efeito, o ordenamento jurídico não é constituído de uma norma só, mas de um
conjunto de normas que interagem entre si.

Mas a quantidade de normas que compõe um ordenamento jurídico,
especialmente se estamos nos referindo a um ordenamento Estatal, é impossível
de ser contabilizada, pois existe uma gama muito ampla de regras a serem
estabelecidas, daí o porquê da complexidade do ordenamento, o que leva à
conseqüência de que não é possível conceber um único órgão emanando todas a
regras necessárias.[26]

Tal concepção nos leva à questão das fontes do ordenamento jurídico,
eis que, se todas as regras de um determinado ordenamento jurídico fossem
oriundas de uma mesma fonte, não se teria problema algum, pois o ordenamento
seria simples e os problemas suscitados não existiriam.

Como se viu, o ordenamento jurídico não possui uma única fonte, mas
várias fontes, que remetem, ao final, a uma fonte única. Esta fonte única está
expressa na norma fundamental de um ordenamento jurídico, sem a qual, um
conjunto de fontes não representariam nada, além de um grande amontoado de
normas.[27]

Impõe-se pois, para que se possa falar em ordenamento jurídico como
uma unidade coerente, a existência desta normal fundamental, à qual todas as
outras de uma forma direta ou indireta, remontam.

Neste sentido, impõe-se traduzir o pensamento de HANS KELSEN:

“A sua unidade [do ordenamento]
é produto da conexão de dependência que resulta do facto de a validade de uma
norma, que foi produzida de acordo com outra norma, se apoiar sobre esta outra
norma, cuja produção, por seu turno, é determinada por outra; e assim por
diante, até abicar finalmente na norma fundamental – pressuposta.”
[28]

Assim, existindo uma norma fundamental, de onde se originam as demais
normas, passamos a explicar a questão da hierarquia das normas, eis que apesar
de originar todas as demais normas, a norma fundamental não o faz diretamente,
delegando a outras normas a função de criação normativa. Trata-se portanto da
concretização da teoria das várias fontes normativas.

Existindo assim várias normas que podem ser consideradas fontes de
outras (a partir da norma fundamental), há de se considerar uma hierarquia,
pois nem todas as normas estão no mesmo plano, mas em planos diferentes,
relativos a sua fonte. Tal noção nos leva à pirâmide imaginária das leis, onde
em seu vértice está a Norma Fundamental, e em sua base está a norma cujo
comando apenas representa uma execução, não se originando desta qualquer outra.

Assim esta hierarquia serve para conceder a um ordenamento jurídico
sua unidade, sem a qual não seria um ordenamento jurídico, orientando ainda um
dos critérios que servirão de base para se determinar a validade das diversas
normas jurídicas que compõem o ordenamento jurídico.

Impõe-se afirmar, que a norma fundamental quando delega a confecção de
uma norma a um poder que não o originário, lhe concede também limites, pois o
poder concedido não é ilimitado. Desta forma, uma norma que foi concebida com o
poder de criar outra norma, somente poderá exercer esta atribuição dentro das
possibilidades previstas em seu próprio texto, garantindo assim, a unidade do
ordenamento jurídico.

Para, finalmente justificar a existência da norma fundamental,
NORBERTO BOBBIO nos ensina que “como um
ordenamento pressupõe a existência de um critério para estabelecer se as partes
pertencem ao todo, e um princípio que as unifique, não pode existir um
ordenamento sem norma fundamental
[29].

3.1.3 – Sistema jurídico

Ao atribuir ao ordenamento jurídico uma hierarquia, como forma de
manter a unidade do mesmo, deixa-se ainda uma questão no ar. Tal questão se
refere à própria coerência do ordenamento, eis que um ordenamento, se for
considerado apenas de forma hierarquizada, pode se transformar em uma ordem
relativa, na qual sua própria unidade está restrita apenas aos poderes-deveres
emanados da hierarquia, sem qualquer relação de conteúdo nas normas.

Tal questão não fica sem respostas, eis que passamos a considerar o
ordenamento jurídico não somente do ponto de vista de sua hierarquia, mas
também do conteúdo de suas normas, ao ponto de que tal ordenamento jurídico
possa ser considerado um sistema.

Assim o sistema jurídico pode ser definido, nas palavras de JUAREZ
FREITAS, como:

“[…] sendo uma rede axiológica e hierarquizada de princípios gerais e
tópicos, de normas e de valores jurídicos, cuja função é a de, evitando ou
superando antinomias, dar cumprimento aos princípios e objetivos fundamentais
do Estado Democrático de Direito, assim como se encontram consubstanciados,
expressa ou implicitamente, na Lei Maior
[30].

Observe-se que o sistema jurídico pressupõe o ordenamento jurídico,
pois toda a razão de ser de um sistema jurídico encontra-se na Norma
Fundamental, norma esta que somente pode ser assim considerada dentro da lógica
de um ordenamento jurídico. Assim é correto afirmar que o ordenamento jurídico
fornece o substrato de existência do sistema jurídico, ao passo que este lhe
fornece coerência. Não pode existir um sem o outro[31].

Desta definição pode-se extrair que a existência de um sistema
jurídico coibe a existência de normas incompatíveis entre si, de modo que do
ponto de vista deste sistema, “nem todas
as normas produzidas pelas fontes autorizadas seriam normas válidas, mas
somente aquelas compatíveis com as outras”[32]
.

Impõe-se assim afirmar que dentro de um ordenamento jurídico complexo,
sempre existirão normas antagônicas entre si, e que a forma de dirimir tais
conflitos, indicando qual norma faz parte do sistema e, deste modo, qual deve ser
excluída do ordenamento jurídico, ou ainda, se ambas as normas encontram-se
fora do sistema e por isso devem ser excluídas do ordenamento jurídico, é uma
tarefa que para a qual se exige fazer uma breve diferenciação entre valor,
norma e princípio.

Assim, antes de adentrarmos na questão das antinomias jurídicas
propriamente ditadas, abordaremos tal questão, eis que para a solução daquelas
crucial é que diferenciemos tais conceitos.

Neste sentido, JUAREZ FREITAS afirma que:

“Por princípio ou objetivo fundamental,
entende-se o critério ou a diretriz basilar de um sistema jurídico, que se
traduz numa disposição hierarquicamente superior, do ponto de vista axiológico,
em relação às normas e aos próprios valores, sendo linhas mestras de acordo com
as quais se deverá guiar o intérprete quando e defrontar com antinomias
jurídicas[…]”
[33]

Mais adiante, o mesmo autor diferencia o princípio de norma e valor,
de uma forma mais direta:

“Devem as normas, entendidas
como preceitos menos amplos e axiologicamente inferiores, harmonizar-se com
tais princípios conformadores. Quanto aos valores ‘stricto sensu’, em que pese
o preâmbulo constituicional pátrio mencionar expressamente ‘valores supremos’,
considerar-se-ão quase como o mesmo sentido de princípios, com a única diferença
de que os últimos, conquanto sejam encarnações de valores, têm a forma mais
elevada de diretrizes, que falta àqueles, ao menos em grau ou intensidade.”
[34]

Daí então se poder afirmar que os valores – antes da existência de um
ordenamento jurídico estabelecido – informam a formação dos princípios (que
surgem com o estabelecimento de determinado ordenamento jurídico) e estes por
sua vez irão orientar o estabelecimento das normas jurídicas, desde a norma
fundamental, até a norma mais inferior hierarquicamente, de modo que o
ordenamento jurídico mantenha sua unidade e coerência, formando um sistema
jurídico.

Contudo, tal orientação não impede a existência de normas antinômicas
entre si, de modo que o intérprete do Direito deverá se utilizar de tal
postulado para resolver o dilema. Tal processo será objeto do item a seguir.

3.1.4 – Antinomias Jurídicas

Que o Direito constitui um sistema ficou plenamente explícito no item
anterior, onde se colocou a questão da hierarquia das normas, que corresponde à
própria unidade do ordenamento, unidade esta, fundamento último da própria
existência do ordenamento jurídico.

Contudo sendo o ordenamento jurídico uma estrutura complexa, onde
existem várias fontes normativas postas em um mesmo patamar hierárquico ou até
mesmo em patamares diferenciados, é correto afirmar que a possibilidade de que
surjam normas que regulem a mesma matéria, sob diferentes aspectos, e que as
mesmas contenham incompatibilidades entre si é praticamente total.

Desta forma, BOBBIO define antinomia jurídica como sendo “aquela situação que se verifica entre duas
normas incompatíveis, pertencentes ao mesmo ordenamento e tendo o mesmo âmbito
de validade”
. [35]

Contudo, a definição acima externada recebe dura crítica, pois, no
pensamento de JUAREZ FREITAS, deixa fora do conceito de antinomias jurídicas as
mais importantes, aquelas que envolvem contradições entre os princípios e
valores de um sistema jurídico. Explicando o porquê acredita serem as
antinomias de valores e princípios as mais importantes, afirma que as normas
jurídicas são muito mais do que estruturas lógico-formais, se constituindo em
estruturas materiais que apontam para determinados fins, que devem,
imperativamente, ser levadas em consideração para a aplicação e interpretação
do Direito. [36]

Desta forma, complementando o entendimento de Bobbio, JUAREZ FREITAS
define antinomia jurídica:

como sendo incompatibilidades possíveis ou instauradas, entre normas,
valores ou princípios jurídicos, pertencentes validamente ao mesmo sistema
jurídico, tendo de ser vencidas para a preservação da unidade interna e
coerência do sistema para que se alcance a efetividade de sua teleologia
constitucional.
[37]

Definido assim, o conceito de antinomia jurídica, resolvendo pois a
problemática de sua identificação, urge que apresentemos as formas das soluções
destas antinomias, pois de nada adianta que as mesmas sejam identificadas sem
que sejam solucionadas e garantam a segurança jurídica que deve advir de um
sistema jurídico.

Assim, a solução das antinomias jurídicas passa necessariamente pelo
estabelecimento de critérios, que definirão dentre as normas antinômicas, qual
deve permanecer em determinado ordenamento jurídico. Existem pois, insertos na
própria ciência jurídica, critérios já consagrados de solução de antinomias, quais
sejam: hierárquico, de especialidade e cronológico.

O primeiro afirma que a lei superior prevalece sobre a inferior – “lex superior derogat inferiori”, de modo
que havendo conflito entre duas normas, aquela que for hierarquicamente
inferior será expulsa do ordenamento (parcial ou totalmente, dependendo do grau
de incompatibilidade)

O segundo critério, da especialidade, nos afirma que a lei especial
derroga a lei geral – “lex specialis
derogat generali”
– de onde se pode extrair a regra de que, havendo um
conflito entre uma norma geral e uma norma especial, aquela que regulamenta uma
situação de forma mais específica e focada, possui o condão de afastar do
ordenamento aquela que apenas diz respeito a aspectos gerais.

Por fim, o terceiro critério – cronológico – nos ensina que a lei
posterior derroga a lei anterior (“lex
posterior derogat priori”).
Regra esta originada da situação de que, sendo
a lei (norma) manifestação da vontade do legislador, representando a
positivação das exigências momentâneas da sociedade, exigências estas que
evoluem rapidamente conforme a própria evolução desta sociedade, a última
manifestação de vontade deste legislador representa melhor os anseios da mesma.

Da existência de mais de um critério para resolução das antinomias,
surge um outro problema: quando houver conflito entre os critérios, quando
forem aplicáveis não um, mas dois, ou até três critérios, como resolver para
aplicar um em detrimento do outro?

A resposta está na própria definição do que se entende por sistema
jurídico. Dentre os vários termos que se utilizou para determinar o que seria
sistema jurídico ressalta-se a expressão “rede axiológica e hierarquizada de
princípios gerais e tópicos, de normas e de valores”
. Logo, a própria
coerência do sistema jurídico, partindo do pressuposto de uma norma
fundamental, esposada como inerente a um ordenamento jurídico, impõe-se que
prepondere sobre qualquer outro critério o hierárquico, pois é o que sempre
remete – como última saída – aos princípios fundamentais presentes na norma
fundamental, que por sua vez refletem os valores – pontos de partida supremos
de uma sociedade.

Há que se dizer ainda que, caso houvesse conflito entre um critério de
especialidade e o de cronologia, em normas hierarquicamente compatíveis, deve
prevalecer a que melhor reflete os princípios fundamentais – hierarquicamente
sempre superiores – havendo ainda igualdade neste critério há que se, então,
optar pela lei especial, pois esta estará exprimindo de modo mais direto a
intenção do sistema.

Exprimindo este pensamento em uma única frase, JUAREZ FREITAS afirma
que “há de sempre fazer preponderar o critério hierárquico axiológico,
admitindo-se, sem vacilações, uma mais ampla visão da hierarquia, a ponto de
escalonar princípios, normas e valores no seio da própria Constituição
[38].

Com essas regras, se garante a coerência do sistema, e pode-se falar
então em fazer uma análise sistemática da norma, para que chegue à
interpretação mais justa da mesma. Analisaremos este ponto a seguir.

3.1.5 – Interpretação Sistemática

Explicitadas as premissas que constituem o ordenamento jurídico num
sistema, culminaremos com a conceituação e justificativa do que mais importa
para o nosso estudo, a interpretação sistemática da norma.

Toda a norma tem em si, inerente a sua própria existência, um valor,
representado por seu dispositivo, cuja interpretação leva à aplicação – ou não
– de uma sanção (“latu sensu”
abrangidas as positivas e as negativas). Contudo, não se pode desconsiderar que
tal norma pertence a um sistema, de modo a poder-se dizer que o valor contido
na mesma também faz parte deste sistema, e portanto este valor deve guardar uma
relação de coerência com todo o ordenamento.

Diante deste raciocínio, poder-se-ia concluir que a norma, tendo sido
produzida por uma outra norma, e assim por diante, até chegarmos à norma
fundamental; não seria errado dizer que o valor contido nesta é uma expressão
dos princípios fundamentais apontados por essa norma fundamental.

E, partindo então desta premissa, chegaríamos à conclusão de que não
seria necessária uma interpretação sistemática, pois sempre entenderíamos que a
norma, mesmo que considerada isoladamente, exprimiria a intenção da norma
fundamental.Contudo, a sociedade não funciona desta forma. Para exprimir um
valor em uma norma, o legislador utiliza-se de palavras, de frases, que, nem
sempre, são utilizadas de forma a exprimir nesta norma a sua verdadeira
intenção. Daí o porquê de HANS KELSEN afirmar que:

“O Direito a aplicar forma, em
todas estas hipóteses, uma moldura dentro da qual existem várias possibilidades
de aplicação, pelo que é conforme ao Direito todo o acto que se mantenha dentro
deste quadro ou moldura, que preencha esta moldura em qualquer sentido
possível”
[39]

Ora, tal raciocínio é evidente, pois, uma vez escrita uma norma,
vários significados podem se extrair da mesma, e ante a natureza hierárquica do
direito, vários significados possíveis – se encararmos a norma isoladamente.
Porém ao considerarmos uma norma não isoladamente, mas como parte de um
sistema; sistema este em que a hierarquização axiológica impera (conforme visto
no item anterior), nunca haverão várias interpretações possíveis, mas apenas
uma, conforme os valores inerentes à norma fundamental.

Para ilustrar a questão, mostremos um antinomia hipotética, que, não
fosse a interpretação sistemática, teria como solução aquilo que cada
intérprete acreditasse mais justo: Uma constituição que, promulgada em 1950,
dizia ser um de seus princípios fundamentais a dignidade da pessoa humana.
Nesta época considerava-se digno um trabalho de 12 horas por dia, havendo uma
lei infraconstitucional informando isto. Hoje, temos que digno é um trabalho de
6 horas diárias – note-se que o valor fundamental não mudou (dignidade da
pessoa humana) mas apenas o entendimento pela sociedade do que seria digno – e
de novo há uma lei neste sentido.

No exemplo dado, se considerarmos a norma isoladamente, poderemos
aplicar qualquer uma das duas, dependendo do entendimento do intérprete.
Contudo, se olharmos a questão do ponto de vista de uma interpretação
sistemática, não teríamos dúvida, aplicaríamos apenas a segunda, eis que,
olhando o sistema como um todo, veríamos que o valor contido no princípio
fundamental é o da dignidade da pessoa humana, e tendo mudado o parâmetro do
que se considera digno, nenhuma outra norma poderá ir contra este princípio.

Daí porque JUAREZ FREITAS afirma que:

“[…] é a interpretação
sistemática o processo hermenêutico, por essência, do Direito, de tal maneira
que se pode asseverar que ou se compreende o enunciado jurídico no plexo de sua
relações com o conjunto dos demais enunciados, ou não se pode compreendê-lo
adequadamente
”. [40]

Logo, a interpretação sistemática abrange todas as demais, pois de
todas as outras interpretações se consegue tirar o valor da norma (axioma),
considerada isoladamente e gerando interpretações diversas.

Contudo, se extrairmos este valor e elevarmos ele ao plano do sistema
e o relacionarmos com outras normas, até chegarmos na norma fundamental,
somente uma interpretação será a correta e poderemos aplicar a norma com
certeza. Tal interpretação é a sistemática.

Para concluir, e passarmos para o próximo item, onde poderemos aplicar
a interpretação sistemática, nos utilizaremos novamente dos ensinamentos de
JUAREZ FREITAS, para definirmos corretamente o que é interpretação sistemática:

“[…] a interpretação sistemática deve ser definida como uma operação
que consiste em atribuir a melhor significação, dentre várias possíveis, aos
princípios, às normas e aos valores jurídicos, hierarquizando-os num todo
aberto, fixando-lhes o alcance e superando antinomias, a partir da conformação
teleológica, tendo em vista solucionar os casos concretos.”
[41]

3.2 – OGMO versus Constituição
Federal

Entendido como se dá um processo de interpretação sistemática, bem
como explicitada a visão do Direito como um ordenamento jurídico, passemos à
fase final do presente trabalho, de se interpretar a legislação portuária, em
especial o tocante ao acesso dos trabalhadores ao trabalho portuário, sob este
enfoque, tendo como pano de fundo nossa Constituição Federal, eis que a mesma,
em nosso ordenamento, é a norma fundamental à qual todas as demais devem estar
de acordo.

3.2.1 – O papel do OGMO na
modernização portuária

Como vimos no capítulo anterior, o OGMO possui a função de organizar a
mão-de-obra do trabalho portuário, deixando esta função de ser exercida pelo
Estado e pelos sindicatos.

Mas, qual o significado desta transferência funcional ? O que
efetivamente representa conceder ao OGMO a prerrogativa de registrar os
trabalhadores e indicar o número de trabalhadores que podem ser registrados ?
Está tal atribuição funcional de acordo com o ordenamento jurídico brasileiro?
Tentaremos a seguir responder a estas perguntas.

3.2.1.1 – Submissão do
trabalhador aos ditames do mercado

O sistema portuário antes da lei 8.630/93 se encontrava completamente
confuso, seu arcabouço jurídico estava esparso em uma série de leis, decretos e
decretos-lei que levavam, na grande maioria das vezes, à confusão aquele que
deveria aplicar a norma.

No meio desta confusão se encontrava o trabalhador portuário,
principalmente o avulso, que estava subordinado aos ditames impostos pela
SUNAMAM e DTMs, sem poder de interferir na confecção daqueles regramentos que
lhe diriam respeito.

A lei 8.630/93, conforme já anteriormente afirmado, dirimiu tais
questões, pois revogou toda a legislação anterior a ela e criou um novo
arcabouço jurídico, mais organizado e lógico, cujos valores norteadores
refletem a economia do momento, o neoliberalismo.

Convém, sobretudo, antes de continuarmos, explicar que no presente
trabalho utilizaremos a palavra neoliberalismo para caracterizar o período
econômico que se vive no mundo atualmente, onde se prega o Estado mínimo,
deixando que as pessoas através da livre iniciativa relacionem-se entre si, sob
o pano de fundo do mercado, que regula tais relações, com o objetivo sempre
constante de aumento do lucro. Deixemos, pois de lado o sentido pejorativo do
termo, utilizado politicamente.

Neste sentido, pois, vê-se claramente uma intenção na criação do OGMO,
qual seja de retirar a intervenção Estatal das relações portuárias, mormente no
que tange às relações capital-trabalho, em se considerando que antes do advento
da Lei 8.630/93 cabia ao Estado, através das DTMs, determinar o valor da remuneração
dos trabalhadores portuários avulsos; a quantidade de trabalhadores que
comporiam os ternos[42]
de trabalho e, finalmente, quantas vagas teríamos para os trabalhadores e os
requisitos para o acesso a tais vagas.

O OGMO, contudo, tem a função, dentre outras, de determinar quantas
vagas se têm para que possam os trabalhadores obter o registro, bem como os
requisitos para o acesso a tais vagas. Mas a determinação das fainas[43] e
ternos de trabalho e a remuneração dos trabalhadores portuários avulsos, não
estão dentre aquelas atribuições do OGMO. Cabe a quem determiná-las, então? Da
própria leitura da lei, chega-se à conclusão, pois, de que tais determinações
serão objeto exatamente de contrato, acordo ou convenção coletiva de trabalho.

Ponto para o OGMO. Ora, em sendo os trabalhadores organizados em
sindicatos, têm os mesmos poder de negociação e de exigir melhores condições de
trabalho para suas categorias, revelando uma faceta importante da inovação
legal.

Entretanto, a lei, a princípio, não determina como se dará esta
remuneração, caso não existam contratos, acordos ou convenções coletivas de
trabalho. Adiante, porém no seu art. 49, faz menção à obrigação de criação do
OGMO de modo urgente, caso não tenham sido estabelecidos tais pactos laborais.
Daí chegar-se à conclusão, então, de que o OGMO seria responsável por
determinar a remuneração e o número de trabalhadores por terno e faina de
trabalho na ausência de qualquer instrumento convencional neste sentido.

O OGMO assume todos estes papéis. Não mais é o Estado que regula tais
situações. Mas, quem estará regulando isto é o OGMO propriamente dito? Cremos
que não. Importa aqui ressaltar que o OGMO é composto por Operadores
Portuários, que são empresas, que visam o lucro.

Assim, aprofundando nossa análise, chegamos a uma encruzilhada: o OGMO
administra a mão-de-obra portuária; o OGMO é formado por Operadores Portuários;
pode-se chegar a conclusão de que quem administra a mão-de-obra são os
Operadores Portuários. Tal conclusão não está incorreta, contudo deve-se acrescentar
outro elemento.

A Lei 8.630/93 obriga ao OGMO, criar, dentro do âmbito de suas
atribuições, um Conselho de Supervisão, formado por três membros, um
representante dos operadores portuários; um representando os trabalhadores
portuários e finalmente um outro representando os usuários de serviços
portuários e afins. Dentre as atribuições deste Conselho de Supervisão estão,
exatamente, além de outras, as de estabelecer o número de vagas; a
periodicidade e a forma para acesso ao registro do trabalhador portuário.
Lembremos que sem o registro, o trabalhador portuário não pode trabalhar.

Assim, não é o operador portuário quem definirá esta matéria, mas o
Conselho de Supervisão. Mas, o Conselho de Supervisão é composto por três
membros, e dos três membros, dois são empresas, cujo objetivo final é o lucro,
de modo que, teremos sempre o interesse do trabalhador de um lado (com um
representante) e o interesse do lucro de outro (com dois representantes),
travestido este sempre de eficiência e baixo custo.

Então, poderemos efetivamente concluir que o número de vagas
disponíveis para acesso ao registro de trabalhador portuário avulso, bem como a
forma como se dará este acesso estará sujeita à questão do lucro, e por assim
dizer ao mercado, cujo objetivo é maximizar este lucro, com a minimização do
custo (ressalta-se que o trabalhador é considerado um custo, no sistema
neoliberal).

Evidenciando tal objetivo FRANCISCO C. M. SILVA, afirma que:

“Da mesma forma que àquela
autoridade [DTM], ao OGMO competirá por critérios próprios, […], editar as
normas que regerão o contido neste tópico. Indiscutivelmente que qualquer norma
que venha a ser baixada deverá levar em consideração, em cada porto organizado,
a movimentação de cargas sujeitas à execução das operações portuárias, bem como
o crescimento anual desse volume e dos cancelamentos de registros, para poder,
a contento, estabelecer o número de vagas que permita a agilidade nas
operações, sem elevação de custos, além de possibilitar ao trabalhador uma
remuneração justa, que se dará sem inchaço da categoria na orla portuária.”
[44]

Há pois que se considerar, ante a todos os argumentos apresentados e
ainda o entendimento do supracitado autor, que efetivamente com a criação do
OGMO impôs o legislador que o acesso ao trabalho portuário ficasse submetido às
variações do mercado, desconsiderando como parâmetro de análise o aspecto
social do mesmo.

3.2.1.2 – Enfraquecimento dos
Sindicatos

Analisamos no item anterior o papel que ocupou o OGMO, do ponto de
vista institucional que cabia ao Estado, substituindo as Delegacias de Trabalho
Marítimo (DTMs) em suas funções. Contudo, não foi apenas o Estado que o OGMO
substituiu, mas também algumas funções dos sindicatos.

Antes do advento da lei 8.630/93 e da Lei 9.719/98 (que complementou a
primeira), os sindicatos possuíam a tarefa de escalar os trabalhadores. Neste
sentido, também era dada preferência ao trabalho àquele trabalhador que
estivesse devidamente sindicalizado. Logo, conforme visto no capítulo anterior,
era praticamente inevitável que o trabalhador portuário se associasse do seu
sindicato de classe para poder trabalhar.

Tal função do sindicato era tão acentuada, que JOSÉ MARTINS CATHARINO
chega a afirmar que à época anterior a Lei 8.630/93, “devido à singularidade apontada, o sindicato portuário não é apenas
sindicato, tanto na sua estrutura como por sua finalidade. Pode-se até dizer
menos sindicato – no sentido comum – e mais prestador de serviços”.
[45]

Mais adiante, CATHARINO exprime a idéia de que os sindicatos de
trabalhadores portuários, em especial os de estivadores e conferentes, não eram
sindicatos puros, mas híbridos, pois atuavam como fornecedores de serviço –
através de seus associados – agindo quase que como empresas, pois uma parcela
dos valores pagos aos trabalhadores ficava em seus sindicatos. [46]

Que os sindicatos representavam, na antiga legislação, muito mais que
os interesses de seus associados, isto não resta dúvida, eis que representavam
uma função estatal, a de escalação e recolhimentos previdenciários de seus
associados, mas daí a dizer que tais sindicatos agiam quase que como empresas, “data venia” parece um exagero do nobre
doutrinador.

Em verdade, o que se pode falar, isso sim, conforme CATHARINO é que,
apesar de não haver monopólio legal da mão-de-obra portuária pelos sindicatos,
de fato esta havia, gerando, portanto um aparente conflito com os princípios
constitucionais.

Mas, analisando a situação do OGMO, lançamos a seguinte pergunta:
quais foram os trabalhadores que obtiveram registro junto ao OGMO e, conseqüentemente,
a capacidade de poder trabalhar?

A resposta a esta pergunta é que somente aqueles que estavam
sindicalizados obtiveram seu registro. E justificamos: o art. 55 da lei
garantiu a todos os trabalhadores devidamente matriculados e que estivessem em
exercício comprovado de suas atividades, o registro como trabalhador portuário
avulso, junto ao OGMO (registro este, sem o qual, o trabalhador não pode
exercer seu ofício).

Ora, a matrícula (exigência legal anterior) todos os trabalhadores
avulsos detinham, afinal era pressuposto imposto pelo Estado. E, conforme o
pensamento esposado pelo mestre CATHARINO, somente aqueles que estavam
devidamente sindicalizados é que podiam trabalhar. Logo, somente os
trabalhadores que estavam sindicalizados preencheram a exigência da segunda
parte do citado artigo, eis que eram aqueles que efetivamente estavam exercendo
a profissão.

Assim, conclui-se que, em verdade, não houve qualquer mudança na
situação de fato, pois se na legislação anterior, somente o sindicalizado
trabalhava, a norma vigente não alterou este fato, pois somente obteve
condições legais de trabalhar (através do registro) aquele que já estava
sindicalizado.

Entretanto tal situação de monopólio não existia como o expressado. A
entidade estivadora (operador portuário) podia escolher dentre os trabalhadores
matriculados junto a Delegacia de Trabalho Marítimo, aquele que bem entendesse
para exercer funções de chefia e sub-chefia. Somente precisava recorrer ao
sindicato para requisitar o trabalhador rodiziário. Contudo tal trabalhador
para ser escalado não precisava estar vinculado a nenhum sindicato, apenas o
fazia por sua conveniência.

Confirmando tal entendimento, WASHINGTON LUIZ DA TRINDADE, utilizando
os conferentes como exemplo, afirma que “requisitados
os serviços, a entidade estivadora indica os conferentes com atribuição de
chefia e de assistência, sem rodízio, entre os que tiverem certificado de curso
específico ministrado pelo Ministério da Marinha.”
[47]

Observemos, ainda, que à época anterior a Lei 8.630/93 os assuntos que
exigiam maior atrito entre empregados e empregadores, qual seja a discussão
acerca do número de trabalhadores por terno de serviço; sua remuneração; o
número de vagas para os trabalhadores se registrarem; bem como a forma de
acesso às mesmas, eram impostas pelo poder público, através das DTMs. Assim,
não cabia muito espaço para o embate entre sindicatos e empregadores. Daí poder-se
dizer que os trabalhadores efetivamente procuravam os sindicatos por sua livre
conveniência, sendo temerário falar em monopólio.

Portanto pode-se dizer que o monopólio dos sindicatos anterior à Lei
de Modernização dos Portos era apenas aparente, mesmo de fato, pois não havia
nem mesmo necessidade prática de que os trabalhadores portuários fossem
sindicalizados para poder trabalhar.

Já no caso do OGMO, pode-se afirmar que aí sim se instituiu o
monopólio do fornecimento de mão-de-obra, pois somente o trabalhador que
estiver devidamente registrado – ou cadastrado (como força supletiva) – pode
ser requisitado pelos operadores portuários (antigas entidades estivadoras). E,
como que responsável pela perpetuação de tal monopólio, cabe ao OGMO dizer
quando e como poderão ser abertas novas vagas de acesso ao registro de
trabalhador portuário avulso.

Depois desta análise continuamos sem a resposta efetiva de qual foi a
real intenção da implementação do OGMO, tendo em vista que o monopólio, motivo
aparente para a substituição das funções exercidas pelo sindicato, nunca
existiu, pelo menos da forma preconizada, passando sim a existir a partir de
sua instituição.

Parece-nos mais condizente a idéia de que a real função do OGMO, neste
contexto todo, de ideário neoliberal, foi de enfraquecimento dos sindicatos,
para que os trabalhadores portuários, com uma representação fraca, sucumbissem
por derradeiro aos interesses do capital.

Com efeito, a lei 8.630/93, erigiu o princípio da livre negociação
como sendo a base das relações entre capital-trabalho no âmbito dos portos. Tal
se consubstancia com o amplo poder dado aos instrumentos convencionais, cujas
matérias reguláveis somente não atingem aos preceitos constitucionais.

Neste panorama, a grande arma que teria o trabalhador era o seu
sindicato forte, que poderia impor aos tomadores de serviço – operadores
portuários –, condições mais humanas e dignas de trabalho. Mas, o ideal do
momento é o neoliberalismo, Estado mínimo, total liberdade de negociação, onde
o capitalismo “dobra o joelho a uma
única divindade: o lucro”[48].

Prova disso é a recomendação do BANCO MUNDIAL, de que, para uma boa relação
capital-trabalho nos portos, é necessário “que
o governo elimine condições acerca dos regimes trabalhistas, acordos coletivos
e práticas que limitem ou restrinjam a oferta ou demanda por trabalho e a
liberdade de entrada e saída, e que reduzam a produtividade.”
[49]

Logo, nada mais lógico do que o legislador, movido pelo ideal
neoliberal do momento (reiteramos que não estamos atribuindo uma crítica
política, mas apenas constatando), enfraquecer as entidades sindicais, para que
as exigências do trabalhador, sempre contrárias ao lucro, pois oneram o mesmo,
não encontrem respaldo e força suficiente para serem levadas em consideração.

3.2.2 – O OGMO e a Tutela Constitucional ao Trabalho

O papel assumido pelo OGMO, conforme visto anteriormente, vem
exatamente ao encontro da política econômica reinante no momento, o
neoliberalismo, cujo grande objetivo é implantar a “liberdade” total onde o
Estado não interfere absolutamente de nenhuma forma na economia e no mercado
(inclusive nas relações de trabalho), deixando que aqueles que melhor se
adaptarem a este modelo sobrevivam.

Tal modelo prega, portanto “[…]
um Estado forte, sim, em sua capacidade de romper o poder dos sindicatos e no
controle do dinheiro, mas parco em todos os gastos sociais e nas intervenções
econômicas […]
[50]
deixando que o mercado (o mesmo preconizado por Adam Smith) regule tais
relações.

Eis que surge o OGMO. Como demonstramos, o mesmo possui, travestidas
em suas funções organizacionais, as funções de enfraquecer os sindicatos e
submeter os trabalhadores aos ditames do mercado. Resta agora analisar a
coerência destes aspectos com nossa Constituição Federal.

Foi visto no primeiro capítulo que a nossa Constituição Federal é
permeada por princípios da social-democracia (regime ao qual o neoliberalismo
se opôs), característicos do Estado do Bem-estar Social. Tal Estado pregava
intervenção na economia com o objetivo de garantir estabilidade social a seus
cidadãos.

Dentre os ingredientes necessários para a estabilidade social está o
trabalho, elemento nuclear da dignidade humana, dignidade esta, aliás,
princípio fundamental de nossa Constituição Federal.

Não obstante o princípio da dignidade humana, podemos ainda relacionar
o princípio do valor social do trabalho e do direito ao trabalho como sendo outros
que são diretamente relacionados com esta economia neoliberal e o seu maestro,
o mercado, pois vão de encontro com os princípios que regem este último.

Assim, ante a valorização que é concedida ao trabalho por nossa
Constituição Federal, questiona-se: submeter o trabalho portuário ao sabor do
mercado, através do OGMO, está de acordo com tais princípios ?

A resposta a tal pergunta não é fácil, exigindo algumas considerações.

Ao erigir o direito ao trabalho ao grau de princípio fundamental, a
Constituição Federal impôs ao Estado a obrigação de efetivar políticas
governamentais que visassem garantir este trabalho. Assim, o Estado não pode
ficar inerte quanto ao direito ao trabalho. Deve buscá-lo de todas as formas.

No setor portuário, antes da lei 8.630/93, o trabalho portuário era
realizado por entidades estivadoras que requisitavam mão-de-obra junto aos
sindicatos de trabalhadores portuários avulsos. Havia trabalho para todos, as
empresas lucravam e o trabalhador recebia uma boa remuneração.

Com o advento da nova legislação e sua efetiva implantação, a situação
se modificou drasticamente. A iniciativa privada tomou conta dos portos,
investiu em tecnologia, aumentou a produtividade, diminuiu o custo, reduziu a
necessidade de trabalhadores (diminuindo, por conseguinte o trabalho) e
incrementou os negócios, triplicando a movimentação de cargas(tomando como base
o Porto do Rio Grande).

Observe-se o seguinte: houve aumento de movimentação, contudo, eis a
lógica do mercado, o trabalho diminuiu, pois o número de homens nos termos
diminuiu e os turnos de trabalho permaneceram os mesmos. Ficando à mercê deste
mercado, o trabalhador portuário teve mais trabalho e sua remuneração foi
diminuída.

Neste panorama, temos um conflito: quem determina o número de vagas
disponíveis para que qualquer cidadão possa integrar o mercado de trabalho
portuário é o OGMO, e como vimos quem dirige os interesses do OGMO é a
iniciativa privada, que obedece apenas às regras do mercado.

O OGMO corresponde ao mercado. Este mercado não está interessado em
saber se há pessoas desempregadas ou não, se os trabalhadores estão recebendo
uma remuneração condigna ou não. Este mercado quer apenas maximizar os lucros,
sem qualquer interesse social. Assim, não havendo preocupação com o trabalho há
afronta os princípios constitucionais.

A Constituição é bastante clara ao erigir o trabalho e o direito ao
mesmo ao mais alto degrau de nosso arcabouço jurídico, elevando-o ao patamar de
princípio fundamental. Deve o Estado, portanto, agir para garantir o mesmo. Obviamente
que ao relegar à iniciativa privada a responsabilidade por determinar o número
de vagas e a forma de acesso às mesmas, o Estado abriu mão desta sua
prerrogativa.

Ao deixar o acesso ao trabalho portuário sob controle do mercado, o
Estado retira o direito a este trabalho do cidadão. Nas palavras de MANOEL
GONÇALVES FERREIRA FILHO apud MARCELO
SILVA MOREIRA, o trabalho é ao mesmo tempo um direito e uma obrigação de cada
indivíduo. Como direito, deflui diretamente do direito à vida. Para viver, tem
o homem de trabalhar. A ordem econômica que lhe rejeitar o trabalho, lhe recusa
o direito a sobreviver. Como obrigação, deriva do fato de viver o homem em
sociedade, de tal sorte que o todo depende da colaboração de cada um.[51]

Destarte, poderão contestar o acima afirmado dizendo que todas as
funções do OGMO, contidas nos incisos do art. 18 da lei 8.630/93, podem ser
objeto de negociação coletiva entre os sindicatos de trabalhadores e as
empresas, podendo-se afirmar que o direito ao trabalho portuário não está
completamente na mão do mercado, mas também nas mãos dos sindicatos. Não será
mentira, mas será um sofisma.

Como vimos anteriormente, os sindicatos portuários foram enfraquecidos
com o advento do OGMO, pois este retirou poder dos mesmos, não sendo mais a escalação
uma prerrogativa dos sindicatos, o que lhes garantia força. Some-se a isto a
possibilidade de o trabalhador portuário avulso ser contratado por prazo
indeterminado, com carteira assinada, sem que haja imposição legal de
interferência sindical.

Desta forma, voltamos à situação anteriormente definida: com pouco
poder, os sindicatos não possuem sustentação para uma barganha, de modo que têm
que se submeter às vontades do mercado, deixando de exercer sua prerrogativa de
defesa dos interesses de seus associados.

Percebe-se pois uma situação inusitada: o acesso ao trabalho portuário
está completamente nas mãos do mercado, e não havendo ingerência do Estado
neste mercado, não há ingerência no acesso ao trabalho, estando comprometida a
dignidade humana, o valor social do trabalho e o direito social ao trabalho. Há
agressão aos princípios insculpidos em nossa
Constituição.

No tocante ainda aos sindicatos, ainda há um outro aspecto a ser
ressaltado quanto à acessibilidade ao trabalho portuário. Podendo tal assunto
ser alvo de convenção ou acordo coletivo, estar-se-ia dando aos sindicatos o
poder inclusive de vetar acesso a novos trabalhadores que desejassem ingressar
no mercado de trabalho. Se faria uma verdadeira reserva de mercado, restaurando
o antigo espírito das corporações de ofício, cujas idéias já foram superadas há
muito. Aqui se estaria restringindo a liberdade de trabalho, ferindo novamente
princípios constitucionais.

Ainda no tocante à garantia fundamental de liberdade de trabalho, cabe
fazer também algumas considerações.

Se dizia que com a antiga legislação, tal liberdade não existia, pois
havia um monopólio das atividades portuárias feito pelos sindicatos, que agiam
praticamente como corporações de ofício (já antes relembradas). Ficou
demonstrado, entretanto, que tal não se configurava da forma como anunciada,
havendo liberdade ao trabalhador.

Com a nova legislação, entretanto, há dois obstáculos a serem vencidos
pelo trabalhador portuário para que o mesmo possa ter acesso ao trabalho:
cadastro e registro. O primeiro como prerrogativa para obtenção do segundo.

Somente o trabalhador cadastrado pode ter acesso ao registro e somente
o trabalhador registrado pode participar da escala rodiziária e ser contratado
por prazo indeterminado com carteira assinada (art. 26, parágrafo único).

Neste quadro, percebe-se que a tão sonhada liberdade de trabalho,
cujos sindicatos representavam um óbice, continua não sendo contemplada, com o
agravante de que, se antes para que se pudesse trabalhar bastava associar-se ao
sindicato (o que não é verdade absoluta), atualmente o trabalhador está sujeito
ao ditames do OGMO.

Ressaltamos, por fim, que para se obter o cadastro junto ao OGMO,
depende o trabalhador de cursos oferecidos pelo mesmo, cuja periodicidade,
número de vagas e seleção para os mesmos são definidas pelo próprio OGMO (e não
pelo seu Conselho de Supervisão). Nesta mesma linha, tendo o cadastro, somente
poderá o trabalhador portuário obter o registro quando forem abertas vagas pelo
OGMO, cujas formas de definição das mesmas já foram objeto de análise anterior,
ferindo assim a garantia fundamental à liberdade de trabalho.

Considerações finais

A conquista do direito ao trabalho não foi tarefa fácil, contudo,
empreendida brava e organizadamente pelos trabalhadores de todo o mundo,
resultou no fato de que tal Direito foi alçado ao patamar de princípio
fundamental de uma nação. Da mesma forma a liberdade de trabalho, que teve
inclusive que derrubar inimigos em suas próprias trincheiras, quando existiam
as corporações de ofício. O trabalhador venceu.

Na Constituição Federal brasileira tais direitos são garantidos como
princípios fundamentais, e visam, como objetivo final, a garantia do próprio
direito à vida.

Surge neste contexto, então, através de uma lei ordinária o OGMO,
formado por operadores portuários, empresas privadas, e responsável pela
administração do trabalho portuário. Pergunta-se: estão suas atribuições em
consonância com nossa Constituição Federal?

A resposta a tal questão ficou evidenciada no próprio corpo do
trabalho, onde claramente se demonstrou que OGMO segue as leis do mercado
financeiro impostas pelo neoliberalismo, e que também há um enfraquecimento dos
sindicatos, deixando evidente a submissão do direito ao trabalho e a liberdade
de trabalho a essas regras de mercado.

Onde há restrição ao direito do Estado intervir para garantir a
dignidade da pessoa humana, o valor social do trabalho, o direito social ao
trabalho e a liberdade de trabalho, há descompasso da legislação com nossa
Norma Fundamental. O OGMO significa a ruptura com tais valores.

Não se quer com isso afirmar que o OGMO não possua valor no campo do
trabalho portuário. Não. O que se afirma é que as funções atualmente
desenvolvidas pelo OGMO, mormente no que diz respeito ao número de vagas para
trabalhadores portuários, bem como a forma de acesso às mesmas, não estão de
acordo com a Constituição Federal.

Há de se fazer então uma reforma nesta legislação, para adequá-la aos
mandamentos constitucionais e trazer sim progresso aos nossos portos. Impõe-se
registrar que também foi feita uma crítica a possibilidade de que as
prerrogativas do OGMO fossem simplesmente transferidas para os sindicatos, pois
dessa forma também se estaria infringindo as normas constitucionais e teríamos
apenas mudado o problema de lado, sem resolvê-lo de forma definitiva.

Devemos, então, para não ser feita uma crítica vazia, apresentar uma
sugestão para a solução de tais problemas, e acreditamos que esta se encontra
dentro da própria legislação existente.

O Estado não pode perder sua prerrogativa de intervenção quando
tratamos de princípios fundamentais, portanto o mesmo deve participar
ativamente de tais relações, sob pena de estarmos agindo contrariamente a nossa
Lei Maior.

Neste panorama entendemos que a prerrogativa intervencionista do
Estado deve prevalecer, e desta forma, a determinação do número de vagas para
trabalhadores portuários, bem como a forma de acesso as mesmas deve ser feita
pelo Estado, garantindo assim o respeito aos ditames constitucionais.

Entendemos ainda, contudo, que não se pode afastar de todo os
trabalhadores e a iniciativa privada do processo. Não. Todos os atores
envolvidos com o trabalho portuário devem opinar a respeito deste assunto.
Contudo, a decisão deve sempre ser feita pelo Estado, que, como já foi dito,
não pode se furtar desta sua prerrogativa constitucional.

O presente trabalho apenas começou a discussão do assunto, mostrando
uma alternativa, apenas superficialmente analisada, para a solução do problema
demonstrado (problema este que também merece ser aprofundado), discussão esta
que deve ser feita por todos os envolvidos na orla portuária, em especial os
trabalhadores, a fim de que sejam-lhes garantidas condições de um vida digna.

 

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Notas:

[1] FERRARI,
Irany; NASCIMENTO, Amauri Mascaro; MARTINS FILHO, Ives Gandra da Silva. História do Trabalho, do Direito do
Trabalho e da Justiça do Trabalho
, 1998, p. 13.

[2] MORAES
FILHO, Evaristo de. Introdução ao
Direito do Trabalho
, Vol. I, 1956, p. 61/62.

[3] FERRARI,
Irany; NASCIMENTO, Amauri Mascaro; MARTINS FILHO, Ives Gandra da Silva. História do Trabalho, do Direito do
Trabalho e da Justiça do Trabalho
, 1998, p. 14.

[4] MORAES
FILHO, Evaristo de. Introdução ao
Direito do Trabalho
, Vol. I, 1956, p. 63/64.

[5]
OLIVEIRA, José César de, in: BARROS, Alice Monteiro de (Coord.). Curso de Direito do Trabalho, Vol. I,
1993, p. 38.

[6]
SUSSEKIND, Arnaldo; MARANHÃO, Délio SEGADAS VIANNA, José de. Instituições de Direito do Trabalho. 1957,
p.13.

[7]
OLIVEIRA, José César de, in: BARROS, Alice Monteiro de (Coord.). Curso de Direito do Trabalho, Vol. I,
1993, p. 57.

[8]
NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Direito do
Trabalho na Constituição de 1988.
Direito do Trabalho na Constituição de
1988, 1989, p. 25.

[9]
SUSSEKIND, Arnaldo; MARANHÃO, Délio SEGADAS VIANNA, José de. Instituições de Direito do Trabalho. 1957,
Vol. 1, 1957, p. 86.

[10]
OLIVEIRA, José César de, in: BARROS,
Alice Monteiro de (Coord.). Curso de
Direito do Trabalho
, Vol. I, 1993, p. 64. “Pobre, nu, sem trabalho, mas
livre, morre de fome.” – Tradução livre do autor.

[11]
JACCARD, Pierre. História Social do
Trabalho
, [s.d.], p. 215.

[12] MORAES FILHO, Evaristo de. Introdução ao Direito do Trabalho, Vol.
I, 1956, p. 69.

[13]
Extraímos a definição de neoliberalismo das palavras de PERRY ANDERSON: “O
neoliberalismo nasceu logo depois da II Guerra Mundial, na região da Europa e
da América do Norte onde imperava o capitalismo. Foi uma reação teórica e
política veemente contra o Estado intervencionista e de bem-estar. Seu texto de
origem é O Caminho da Servidão, de
Friederich Hayek, escrito já em 1944. Trata-se de um ataque apaixonado contra
qualquer limitação dos mecanismos de mercado por parte do Estado, denunciadas
como uma ameaça letal à liberdade, não somente econômica, mas também política.”
in GENTILI, Pablo; SADER, Emir
(org.), Pós-Neoliberalismo, 1995, p.
9.

[14] BASTOS,
Celso. Curso de Direito Constitucional,
1994, p. 148.

[15] ARRUDA,
Kátia Magalhães. Direito Constitucional
do Trabalho
, 1998, p.42

[16] SAAD,
Eduardo Gabriel. Constituição e Direito
do Trabalho
, 1989, p. 43

[17]
FERREIRA, Pinto. Comentários à
Constituição Brasileira
, Vol. I, 1989, p. 223.

[18] SILVA,
José Afonso. Direito Constitucional
Positivo
, 1997, p. 280/281.

[19]
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato
Social
,[s.d.], p. 111.

[20] BASTOS,
Celso. Curso de Direito Constitucional,
1994, p. 186.

[21]
CRETELLA JÚNIOR, José. Comentários à
Constituição Brasileira de 1988
, Vol. I, 1988, p. 274.

[22]
FERREIRA, Pinto. Comentários à
Constituição Brasileira
, Vol. I, 1989, p. 89

[23]
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato
Social
, [s.d.], p. 61

[24] BURKHALTER, Larry. Privatización Portuaria, 1999, p.23. “Os
estivadores realizavam suas tarefas em um ambiente que somente pode
qualificar-se de inseguro, perigoso e insalubre. Eram tratados como simples
instrumentos para o enriquecimento pessoal dos patrões. Eram contratados apenas
por dias certos ou ainda para trabalhos certos. Em uma época em que não
existiam condições de segurança e estes não eram contemplados pela seguridade
social e saúde publicas, quebrar um osso eqüivalia a ficar inválido por toda a
vida, as lacerações com freqüência eram fatais e os carregamentos infestados de
ratos expunham os trabalhadores a pragas letais advindas do contato com esses
animais.” – Tradução livre do autor.

[25] BOBBIO,
Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico,
1994, p.22.

[26] BOBBIO,
Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico,
1994, p. 38

[27] Id.
Ibid., p. 49.

[28] KELSEN,
Hans. Teoria Pura do Direito, 1979,
p. 310.

[29] BOBBIO,
Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico,
1994, p. 62.

[30]
FREITAS, Juarez, A Interpretação
Sistemática do Direito
,1995, p. 44.

[31]
CANARIS, Claus-Wilhelm. Pesnamento
Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito
, 1996, p.13.

[32] BOBBIO,
Norberto, Teoria do Ordenamento Jurídico,
1994, p. 81.

[33]
FREITAS, Juarez. A Interpretação
Sistemática do Direito
, 1995, p. 41.

[34] Id.
Ibid., 42.

[35] BOBBIO,
Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico,
1994, p.88.

[36]
FREITAS, Juarez. A Interpretação
Sistemática do Direito
, 1995, p.62.

[37] Id.
Ibid., p. 62.

[38]
FREITAS, Juarez. A Interpretação
Sistemática do Direito
, 1995, p. 69.

[39] KELSEN,
Hans. Teoria Pura do Direito, 1979, p. 466/467.

[40]
FREITAS, Juarez. A Interpretação
Sistemática do Direito
, 1995, p. 49.

[41]
FREITAS, Juarez. A Interpretação
Sistemática do Direito
, 1995, p. 54.

[42] A
expressão “ terno” significa equipe de trabalho.

[43] A
expressão “ faina” significa o tipo de trabalho.

[44] SILVA,
Francisco Carlos de Morais. Direito
Portuário:
Considerações sobre a Lei de Modernização dos Portos, 1994, p.
67.

[45]
CATHARINO. José Martins. O Novo Sistema
Portuário Brasileiro
, 1994, p. 58.

[46] Id.
Ibid., p. 73/74

[47]
TRINDADE, Washington Luiz da. Compêndio
de Direito do Trabalho Marítimo, Portuário e Pesqueiro
, 1984, p. 217.

[48]
BONAVIDES, Paulo, in prefácio de
ARRUDA, Kátia Magalhães, Direito Constitucional do Trabalho, 1998, p. 14.

[49] BANCO
MUNDIAL. A Reforma Portuária Brasileira,
1999, p.19.

[50]
GENTILI, Pablo; SADER, Emir (org.), Pós-Neoliberalismo,
1995, p. 11

[51]
MOREIRA, Marcelo Silva. O direito social
ao trabalho e a nova ordem constitucional brasileira
, 2002.

* Monografia apresentada à banca examinadora da Fundação Universidade Federal do Rio Grande, como exigência parcial para obtenção do grau de bacharel em Direito, sob a orientação do Professor Everton Pereira de Mattos e co-orientação do Professor Msc. Eder Dion de Paula Costa.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Daniel de Araújo Spotorno

 

 


 

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Equipe Âmbito Jurídico

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