Introdução
Busca-se, neste breve estudo, traçar os contornos gerais da política consumerista no âmbito da União Européia e do Mercosul.
As relações de consumo, no mundo globalizado, assumem papel relevante, ensejando profundas alterações jurídicas, sociais e econômicas.
O direito do consumidor regula os liames entre o fornecedor e aquele que adquire bens ou serviços (em regra, destinatário final), cujas relações devem se pautar em principiologia específica (boa-fé, inadmissibilidade de cláusulas e práticas abusivas, hipossuficiência do consumidor, coibição da publicidade enganosa, etc.).
As relações consumeristas podem envolver pessoas domiciliadas em países diferentes. Os conflitos surgidos entre elas podem ser dirimidos de vários modos: mediação, conciliação, arbitragem, jurisdição, etc.
O fenômeno da globalização impõe estrita relação entre a defesa do consumidor e a formação de blocos econômicos, in casu, a União Européia e o Mercosul – embora em estágios muito distintos.
As atividades da União Européia são distribuídas em vinte e nove segmentos: agricultura, ajuda humanitária, alargamento, ambiente, audiovisual, comércio, concorrência, consumidores, cultura, desenvolvimento, economia e finanças, educação, emprego e política social, energia, empresas, igualdade de oportunidades, investigação e tecnologias, justiça e assuntos internos, mercado interno, orçamento, pesca, política externa e segurança, política regional, redes transeuropéias, relações externas, saúde pública, sociedade da informação, e transportes.
Apercebe-se, destarte, que o tema consumidores foi objeto de delimitação e enfoques específicos, denotando a importância de sua otimização e tutela no palco comunitário.
A defesa do consumidor, na União Européia, consubstancia-se em normas de direito material de cada Estado-membro, harmonizadas pelas Diretivas que emanam da Comissão, inexistindo unicidade processual, tendo em vista que cada qual adota critérios judiciais e/ou extrajudiciais para efetivar o deslinde dos conflitos surgidos.
O Mercosul tem como desafio sua conversão no segundo mercado comum do mundo, com implantação da livre circulação de bens, serviços, pessoas e capitais. A experiência vivida pela União Européia mostra que a jornada será longa e sujeita à vontade política dos Estados, que se mostra, por vezes, renitente, quiçá pela indubitável necessidade de delegação de parte suas soberanias, ou de repensar a abrangência e sentido deste instituto (soberania).
Nesse sentido, a política consumerista no âmbito do Mercosul não se mostra padronizada e regulamentada uniformemente como na União Européia.
No Mercosul, a defesa do consumidor encontra-se normatizada, basicamente, em Resoluções do GMC, máxime a de n. 126/94, que prevê a necessidade de criação de um regulamento comum no seu âmbito, aspirando à tutela consumerista, utilizando-se, na sua falta, da legislação interna de cada membro.
Existe, também, o Protocolo de Las Leñas, que visa à cooperação interjurisdicional entre os signatários do Tratado de Assunção, regulando institutos processuais (v.g., cartas rogatórias, execução de sentenças e laudos arbitrais estrangeiros).
Acrescente-se, ainda, o Protocolo de Santa Maria – embora não esteja em vigência – que traça normas para a determinação do foro competente para a pacificação jurisdicional de conflitos oriundos de relações de consumo no âmbito do Mercosul.
Mas podemos destacar, v. g., a tutela do consumidor perante o ordenamento jurídico pátrio, cujo CDC (Lei n. 8.078/90) representa, praticamente, o surgimento de um novo direito, e não só uma lei especial.
Ousaríamos dizer, inclusive, que o Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078/90) deveria ser utilizado como paradigma da regulamentação das relações de consumo no âmbito do Mercosul, por mostrar-se instrumento hábil a balizar a edição de normas intracomunitárias consumeristas.
I – A DEFESA DO CONSUMIDOR NA UNIÃO EUROPÉIA
1. Noções histórico-estruturais da União Européia
A ameaça soviética fez com que os EUA tivessem interesse na unificação européia, de modo a possibilitar o controle do avanço da antiga URSS.
A criação de autoridade supranacional para administrar o CECA[1] (França, Alemanha Ocidental, Itália, Bélgica, Holanda e Luxemburgo) foi fruto de um projeto de Jean Monet, e representou a fase inicial para a unificação. Impõe-se o elenco, breve, dos registros histórico-evolutivos:
· 1952 – Tratado entrou em vigor.
· 1952 – Projeto do CED[2] (exército integrado). Projeto não efetivado. A França rejeita e a união política também é abandonada, voltando para a integração econômica.
A estrutura do Direito Comunitário tem nascedouro nas fontes primárias (tratados institucionais e modificativos) e nas fontes derivadas (atos comunitários obrigatórios e motivados, v.g., os regulamentos, as diretivas e as decisões), que integram os tipos jurídicos comunitários, cada qual com apanágio específico.
A principiologia constitucional da Comunidade erige-se nos princípios da democracia, da liberdade econômica, da primazia do Direito Comunitário, da subsidiariedade, e do pós-nacional.
É muito importante a função desses princípios estruturantes num corpo social, para se fundamentar as políticas filosóficas acolhidas. A União Européia contempla tais regras abstratas em seu ordenamento de conduta, dependendo a sua otimização, exatamente, desses preceitos não escritos.
2. Natureza jurídica da Comunidade
A União Européia representa fenômeno jurídico que consubstancia verdadeiro paradigma, mormente se se levar em conta seus atributos de supranacionalidade, sua personalidade e capacidade, bem como o corpus jurídico de seu ordenamento, que revela aspectos sui generis.
Dessarte, a natureza jurídica do direito comunitário é sui generis, corporificando a Comunidade Européia um extraordinário e avançado estágio, pelo que trazemos a lume a preleção de Paulo Borba Casella (1994, p. 216-217), verbis:
“A própria necessidade de revisão de conceitos jurídicos clássicos, a respeito da Comunidade Européia, mostra a inadequação dos modelos tradicionais, para caracterizar este novo conteúdo (…) consistente na proclamação de tratar-se de ordenamento “sui generis”, não passível de redução a qualquer dos modelos precedentes”.
A União Européia conta, atualmente, com 370 milhões de consumidores, induzindo os Estados-membros à elaboração de políticas voltadas para a defesa de seus interesses, posto que desempenham papel econômico e político primordial na sociedade comunitária.
Os critérios e métodos adotados para a garantia desses direitos refletem diversidade de sistemas jurídicos, de tradições socioculturais, e de contextos institucionais e políticos.
Há Estados-membros que fundaram a defesa no aspecto regulamentar com sustentação estrutural administrativa. Outros, volveram-se a uma abordagem pragmática, preconizando uma relativa auto-regulamentação dos mercados. Vislumbraram-se enfoques diferenciados no que concerne à prioridade: para alguns, guardava adstrição à legislação atinente aos produtos alimentares; para outros, o interesse maior voltava-se para as relações comerciais ou para o fornecimento de bens e serviços.
A multiplicidade de regulamentações e de estruturas levou ao surgimento de uma política ao nível comunitário, a fim de que os consumidores adquirissem confiança necessária ao desempenho de uma função ativa no mercado único, beneficiando-se, em contrapartida, de uma efetiva e elevada proteção.
Surgiu na década de 70 uma concepção política relativa ao consumo, corporificada, em 1972, pela vontade dos chefes de Estado e do Governo. Pouco depois, a Comissão apresentou o primeiro programa de ação relativa à proteção dos consumidores, cujo texto (Jornal Oficial, C 92 de 25.4.1975) fazia referência a cinco categorias de direitos fundamentais que deveriam constituir o sustentáculo da legislação comunitária consumerista, a saber:
O cerne da política consumerista, com tal estrutura, deveria ser integrado nas demais políticas específicas da Comunidade (v.g., política econômica; política agrícola comum; política do meio ambiente, dos transportes e da energia), porque todas elas afetam, direta ou indiretamente, os consumidores.
A legislação relativa às matérias de segurança dos cosméticos, de rotulagem dos produtos alimentares, de publicidade enganosa ou de venda a domicílio, foi elaborada em seguida, como parte integrante de outros programas que enunciaram alguns direitos fundamentais e princípios.
Foi através do Ato Único, com entrada em vigor em 1º de julho de 1997, que houve a introdução da noção de consumidor no Tratado. O artigo 100º-A habilita a Comissão à propositura de medidas de proteção do consumidor, tendo como fundamento um “elevado nível de proteção” (expressão que não foi objeto de definição precisa). Contudo, foi este dispositivo que lançou a base de um reconhecimento jurídico da política dos consumidores, e lhe deu novo impulso.
A supressão das fronteiras e a realização do mercado único em 1º de janeiro de 1993, fizeram surgir um mercado de mais de 340 milhões de consumidores, exigindo regras próprias para a confiabilidade e bom funcionamento do mercado.
Extraem-se dos novos programas de ação os seguintes aspectos:
No decurso desse período foram tomadas medidas nos seguintes domínios: segurança dos brinquedos e segurança geral dos produtos; pagamentos fronteiriços; cláusulas abusivas nos contratos; e venda à distância; time-sharing. Com tais procedimentos criou-se um importante corpo legislativo que materializa verdadeiro direito comunitário de proteção dos consumidores, cuja evolução culminou com a sua ratificação no Tratado de Maastrich, que eleva essa política consumerista ao nível de verdadeira política comunitária. Daí surgiram novas ações relativas a serviços financeiros; acesso dos consumidores à justiça; legislação alimentar; venda e garantia dos bens de consumo. E, ainda, iniciativas legislativas relativas às ações de cessação, aos contratos negociados à distância, à publicidade comparativa e às transferências transfronteiriças.
Em face dos novos desafios decorrentes da globalização, da reestruturação dos serviços públicos, do desenvolvimento da sociedade da informação e dos progressos da biotecnologia, a Comissão estruturou as suas prioridades para 1996-1998 com lastro tríplice:
A Direção Geral XXIV – responsável pela Política dos Consumidores e, também, pela proteção da sua saúde – promoveu profunda reestruturação, a saber:
O Conselho Europeu de Luxemburgo (dez/1997) confirmou essa evolução, definindo que a produção e a comercialização de alimentos deveriam figurar entre as prioridades políticas da União Européia.
Novo impulso foi dado à política dos consumidores, mediante o Tratado de Amsterdã. De conformidade o artigo 153º (ex-artigo 129º), a proteção da saúde, da segurança e dos interesses econômicos dos consumidores, assim como a promoção do seu direito à informação, à educação e organização para a defesa dos seus interesses constituem os objetivos fundamentais. Esse mesmo dispositivo estabelece que os interesses dos consumidores devem ser levados em conta na definição e aplicação das outras políticas comunitárias. Outras disposições desse tratado, mormente no que tange à saúde pública, apontam no sentido de uma proteção mais efetiva dos consumidores.
Surge, nesse contexto, o plano de ação política dos consumidores 1999-2001, que estabelece três grandes domínios de intervenção:
Hodiernamente, na União Européia, a consciência da importância do consumidor para um mercado comum é tal que o cidadão europeu é sempre visto como um consumidor, se não praticante, pelo menos em potencial, razão pela qual a busca da melhoria da qualidade de vida é sempre uma constante na sua defesa.
É essa política de defesa do consumidor – consciente e evolutiva – que tem sido um dos principais pontos de apoio da Comunidade, vez que, em face de seu alcance e abrangência, tem impulsionado o desenvolvimento de outros setores comunitários.
“É interessante verificar que a política européia de proteção do consumidor abrange diversas outras políticas comunitárias, das quais podem se destacar a política agrícola, a política de proteção ambiental, com o fulcro de se fabricarem produtos mais inofensivos ao meio ambiente, a harmonização dos impostos e a política de concorrência, que se torna notadamente importante na análise das divergências entre os objetivos dos atos de concentração e os interesses do consumidor” (FINATTI, 1996, p. 258).
Não se pense, porém, que a proteção ao consumidor europeu chegou ao ápice, pois, para se chegar à “Europa do Consumidor” ainda há um bom caminho a se percorrer, como bem preleciona Míriam de Almeida Souza (1996, p. 147), em comentário ao avanço do Tratado de Maastrich, verbis: “esta declaração pode situar-se na esfera retórica se não for aliada a uma vontade política da EU para um compromisso de proteger efetivamente o consumidor nas transações internacionais”.
Tais óbices pontuais referem-se à dificuldade de acesso à justiça no caso dos conflitos fronteiriços e às diferenças existentes entre as legislações nacionais relativas ao tema sob comento.
Há identidade entre a defesa dos direitos do consumidor e a defesa dos direitos fundamentais do cidadão, e a harmonização de legislações significa a possibilidade dos Estados garantirem o mínimo de proteção aos consumidores europeus, mantendo consigo parte do poder legislativo comunitário. Ou seja, a pessoa que mora, por exemplo, na Espanha, antes da cidadania européia, detém a qualidade de cidadão espanhol. Portanto, a maior tutela aos seus direitos fundamentais deve ser garantida pelo governo espanhol, sendo, porém, complementada pelo Parlamento Europeu. A esse respeito, ensina Cláudia Lima Marques (1997, p. 302), verbis:
“Tal metodologia respeita os direitos fundamentais dos cidadãos europeus e favorece o mercado integrado, evitando resistências nacionais, e assegurando um patamar mínimo de reciprocidade e reconhecimento de produtos e serviços oriundos de outros países do mercado, pois todos possuem este nível comum de segurança, qualidade e confiabilidade”.
II – A DEFESA DO CONSUMIDOR NO MERCOSUL
1. Breves noções histórico-evolutivas
A existência de um mercado latino-americano sem fronteiras é um sonho antigo, que vem trilhando longo caminho e encontrando (e vencendo) obstáculos. Às vezes, deparamos com entraves que, praticamente, inviabilizam a união econômica dos países da América Latina como, recentemente, a forte pressão dos Estados Unidos para a prioridade da ALCA. Infelizmente, nosso maior parceiro – a Argentina – vem cedendo a tais pressões, mormente após a instalação da atual crise econômica, social e política. Questões desse jaez fragilizam o curso do Mercosul. Todavia, há forte corrente em sentido contrário, priorizando o Mercosul. Somente depois de uma integração econômica mínima teríamos força e coesão para adentrar na ALCA. Isoladamente, seríamos massacrados pela supremacia econômico-financeira dos Estados Unidos.
O processo de integração econômica entre países compõe-se de cinco fases, conforme sugere Maristela Basso[6], a saber:
Atualmente, o Mercosul é uma união aduaneira, ou seja, está próximo do seu objetivo primeiro: tornar-se um mercado comum. Mas, antes, há uma árdua jornada a ser percorrida, considerando a necessidade, por exemplo, de harmonização das legislações dos países-membros em setores específicos (v.g., a defesa do consumidor, a defesa do trabalhador, etc.).
Tivemos algumas tentativas de formação de um bloco econômico na América Latina: a ALALC[7] e a ALADI[8].
A ALALC inviabilizou-se, principalmente, pela instabilidade financeira e política dos Estados-membros, levando-os ao endividamento junto ao BID[9]. Tal circunstância favoreceu o fortalecimento da política norte-americana, que incentivava as relações bilaterais entre os EUA e os Estados-membros da ALALC, promovendo o desprestígio da política integracionista.
Guido Soares (1991, p. 19) acrescenta outro fator preponderante para o fracasso da ALALC, consubstanciado na falta de supranacionalidade de suas normas, asseverando a respeito, verbis:
“As normas editadas pela ALALC dependiam, em tudo, da aceitação e da internalização na legislação doméstica das partes contratantes, estas, além de serem Estados com concepções inarredáveis da soberania nacional, eram Estados dominados por sistemas ditatoriais onde muito dificilmente qualquer política de longo alcance poderia ser implementada”.
Mas o sonho não parou por aí. Em fins da década de setenta os Estados-membros da ALALC iniciaram discussão que redundaria na ALADI. Esta, contudo, também, não logrou êxito.
A ALADI nasceu natimorta em virtude máculas estruturais de seu próprio tratado como, por exemplo: a falta de definição de suas metas, dos mecanismos de negociação da transformação dos acordos de alcance parcial em acordos de alcance regional (englobando todos os países-partes da ALADI), bem como seu enfoque exageradamente comercialista.
Pecava o tratado, ainda, por não conceder supranacionalidade a seus órgãos e normas, de modo que as decisões tomadas no seu âmbito eram eivadas de fragilidade, sem força para se impor aos Estados-membros.
Acrescente-se a tais fatores, também, a segunda crise do petróleo (1978-1980), que instrumentalizou a elevação das taxas de juros nos empréstimos internacionais, gerando a chamada crise do endividamento externo da América Latina. Mas há quem vislumbre o fracasso sobre ótica diversa, verbis:
“A maior crítica que se pode fazer à ALADI é quanto ao seu caráter exclusivamente diplomático, de relações interestatais, onde inexiste espaço para indivíduos nem para empresas privadas na região, que, na verdade são os interessados e ao mesmo tempo, os agentes da integração regional. Não só os importantes aspectos de livre movimento de pessoas, empresas, de capitais privados da região e de formas comunitárias de organização empresarial, estão ausentes das preocupações do Tratado instituidor da ALADI, como, o que é mais grave, inexiste qualquer foro onde possam aqueles interessados expressar suas vontades e fazer sentir suas reivindicações; isto posto, continua a ALADI repetindo o modelo de integração econômica regional, onde o único agente é o Estado, numa realidade do mundo, onde o intervencionismo estatal tem mostrado sua ineficácia”. (SOARES, 1991, p. 28).
Após a ALADI foi criado o Mercosul, derivado de uma série de negociações entre o Brasil e a Argentina, que iniciaram, ainda, naquele âmbito (da ALADI).
Em 1985, foi firmado o PICAB[10] e a Declaração de Iguaçu. Em 1986, foi assinada a Ata da Amizade Argentina-Brasil, criando-se, também, o PICE[11], através da Ata de Integração Argentina-Brasil, que visava o incremento do comércio em determinados setores (setores-chaves) entre os membros. A seguir, em 1988, foi assinado o Tratado de Integração, Cooperação e Desenvolvimento, o qual previa a formação de um Mercado Comum entre o Brasil e a Argentina, tendo como objetivos: a eliminação de barreiras ao comércio em geral; a adoção de uma tarifa externa comum; e a coordenação de políticas macroeconômicas.
Por fim, em 1990, foi assinada a Ata de Bueno Aires, fixando-se prazo para a criação, efetiva, do Mercado Comum. Nessa época, o Paraguai e o Uruguai negociaram suas adesões ao Mercado Comum, resultando, pois, a união dos quatro países, em 1991, no Tratado de Assunção e, por corolário, no Mercosul.
Acerca dessa caminhada integracionista, ensina Lima Florêncio (1996, p. 37), verbis:
“Esse caminho percorrido desde 1960 nos permitiu perceber que o Mercosul está apoiado sobre uma base tríplice: jurídica, política e econômica. A base jurídica é representada pela ALADI na forma de um Acordo de Complementação Econômica entre Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai, e obedece a todos os princípios e normas daquela Associação. A base política consiste no processo de redemocratização, vivido pelos quatro países na década de 80, e no empenho de seus mais altos mandatários, ao longo dos anos, em criar e estimular um processo de integração. E a base econômica é configurada pela crescente diversidade e capacidade produtiva das quatro economias”.
Em epítome: O Mercosul foi criado através do Tratado de Assunção, celebrado em 26.3.1991, e entrou em vigor, formalmente, em 29.11.1991. O objetivo desse tratado é a constituição de um Mercado Comum entre os quatro signatários, tendo como metas e sustentáculos:
O Protocolo de Ouro Preto (1994) institucionalizou o Mercosul, proclamando a sua personalidade jurídica de Direito Internacional.
“Pode-se dizer que o Mercosul é, hoje, um projeto de mercado comum, encontrando-se na fase inicial da implantação de uma união aduaneira. Isso não diminui a sua importância. Apenas é necessário que se tenha essa consciência, pois não se podem exigir, nessa etapa do processo, todos os resultados que só serão obtidos após uma longa e árdua caminhada”. (RODRIGUES, 1997, p. 25).
Após o advento do Protocolo de Ouro Preto, o Mercosul compõe-se dos seguintes órgãos: Conselho do Mercado Comum; Grupo Mercado Comum; Comissão de Comércio do Mercosul; Comissão Parlamentar Conjunta; Foro Consultivo Econômico-Social; e Secretaria Administrativa do Mercosul.
2. A atualidade consumerista no Mercosul
O bloco econômico do Mercosul vem tentando vencer os obstáculos que surgem inspirando-se, principalmente, na União Européia.
A defesa do consumidor no Mercosul é, ainda, bastante deficitária. No entanto, a proteção consumerista é uma de suas bandeiras.
Atualmente, é escassa a legislação comum do Mercosul atinente ao tema sub examine, impendendo exarar que o Tratado de Assunção não dispõe nada acerca da tutela consumerista.
Há algumas Resoluções do Grupo Mercado Comum que buscam garantir a qualidade de alguns produtos, dentre as quais as Resoluções n. 15/94 (identidade e qualidade do mel); n. 21/94 (expõe sobre a declaração dos aditivos na lista de ingredientes); n. 70/93 (identidade e qualidade da manteiga); n. 98/94 (identidade e qualidade do alho); n. 94/94 (ofertas-vale), etc.
No âmbito do Mercosul, em matéria de defesa do consumidor, temos a Resolução 126/94, da qual surgiu o Protocolo de Santa Maria sobre Jurisdição Internacional em Matéria de Relações de Consumo, cumprindo esclarecer, entretanto, que esse protocolo permanece sem vigência.
Destarte, concretamente, a defesa do consumidor tem sido praticada mediante a aplicação das regras internas de cada Estado-parte, medida que se apresenta precária.
Dentre os quatro países signatários do Tratado de Assunção, em verdade, o Brasil é o único que contempla em seu ordenamento jurídico um Código de Defesa do Consumidor.
A Argentina, conquanto tenha uma lei especial em matéria consumerista, não se poderia rotulá-la de código, posto que se apresenta concisa.
No Paraguai, o tema encontra-se somente como previsão constitucional, estando esboçado em um projeto de lei.
No Uruguai, inexiste lei específica, contando apenas com norma no sentido de coibir a concorrência desleal.
Esse desnível da tutela consumerista no Mercosul é preocupante, alertando Cláudia Lima Marques (1994, p. 98), verbis:
“Uma lei protetora dos interesses dos consumidores pode vir a restringir (ou dificultar) a entrada e o consumo de mercadorias e serviços oriundos de outros países do mercado comum, que não possuam nível de igual preocupação com a qualidade, informação e segurança dos produtos. Em outras palavras, um conjunto de normas legais dedicadas à tutela dos consumidores de um determinado país pode funcionar como barreira, neste caso barreira não-tarifária, à liberdade de circulação de produtos e serviços naquela zona de livre comércio e futuro mercado comum”.
Exige-se, pelo menos, uma harmonização de legislações dos países-partes, de modo a assemelhá-las de forma menos rigorosa que a uniformização. Tal desiderato poderá viabilizar-se através da eliminação das normas responsáveis pelas desigualdades e/ou através de normas que extirpem as diferenças prejudiciais.
De qualquer modo, é preocupante para os consumidores brasileiros a unificação das normas, pois, com certeza, o CDC (Lei n. 8.078/90) não seria tomado como paradigma. Há tendência de se optar pelo meio-termo, e o Estatuto Consumerista encontram-se no extremo do cenário consumerista mercosuliano, como alhures expendido. Então, a medida poderia representar, no contexto brasileiro, um retrocesso, ainda que ligeiro.
3. A realidade consumerista brasileira
No Brasil, a defesa do consumidor corporifica-se no Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078/90), que tem berço constitucional[12], assumindo, em decorrência de seu texto, o perfil de norma de ordem pública e interesse social (Art. 1º).
A Lei n. 8.078/90 conceitua as figuras do consumidor e do fornecedor, bem como o produto e o serviço (arts. 1º e 2º); traça a política nacional de relações de consumo (arts. 4º a 5º); elenca os direitos básicos do consumidor (arts. 6º e 7º); regulamenta a qualidade de produtos e serviços, a prevenção e a reparação de danos (arts. 8º a 28); trata das práticas comerciais (arts. 29 a 44) e da proteção contratual (arts. 46 a 54); estabelece as sanções administrativas (arts. 55 a 60) e as infrações penais (arts. 61 a 80); cuida da defesa do consumidor em juízo (arts. 81 a 102); prescreve a coisa julgada (arts. 103 e 104); compõe o sistema nacional de defesa do consumidor (arts. 105 e 106) e contempla a convenção coletiva de consumo (art. 107); e encerra-se tratando de normas revocatórias, intertemporais e de outros aspectos relevantes (arts. 110 a 119).
Apercebe-se, então, o motivo pelo qual a doutrina e a jurisprudência se referem à Lei n. 8.078/90 como sendo o Código de Defesa do Consumidor.
Cumpre exarar que o CDC tem sido aplicado a relações que, propriamente, não se qualificam como de consumo. É que o Estatuto sob estudo encerra princípios que se consolidam como verdadeiras normas de sobredireito.
Conclusão
Não resta dúvida que a União Européia é um paradigma que deve nortear as condutas política, social e econômica do Mercosul.
O avanço estrutural da UE é extraordinário e fascinante, causando-nos admiração técnico-científica, justificando, sobremaneira, a natureza jurídica de seu ordenamento como sendo sui generis.
Volvendo à realidade mercosuliana, em matéria consumerista, vimos que o Brasil mantém-se, isoladamente, na vanguarda da tutela do consumidor. Se olharmos a questão, sob a ótica meramente individual, podemos nos orgulhar, pois o CDC importa um novo direito que surgiu, e não apenas mais uma lei especial. Mas, se vislumbrarmos o enfoque integracionista, tal realidade é motivo de preocupação. Isto porque há necessidade de uma uniformização legislativa, ou pelo menos um procedimento para assemelhá-la, de modo a imprimir o espírito comunitário que, à obviedade, deve fazer-se presente no palco de qualquer bloco.
Se o Mercosul adotasse como exemplo as diretrizes da União Européia ou o modelo legislativo consumerista brasileiro, seria um passo firme rumo à efetivação da proteção do consumidor no seu âmbito.
Contudo, há uma tendência de se acolher o padrão médio dos sistemas adotados nos Estados-membros, e não os extremos. Desse modo, haveria o risco para o consumidor brasileiro de, ao se assemelhar ou uniformizar as legislações (ou, pelo menos, reduzir suas diferenças), redundar o efeito em seu desfavor. Noutras palavras, correr-se-ia o risco de um retrocesso em matéria de proteção ao consumidor brasileiro, ainda que de modo ligeiro.
Mas, se num primeiro momento, houver necessidade de um breve retrocesso legislativo, no que concerne à tutela consumerista brasileira, o sacrifício poderia ser compensador, desde que o tênue enfraquecimento individual resultasse em substancial fortalecimento das relações de consumo no âmbito do Mercosul.
Participar de uma comunidade é, verdadeiramente, promover a sinergia, sendo que esta, indubitavelmente, mostrar-se-á instrumento de recuperação de eventual perda e de robustecimento do padrão anteriormente tido como superior.
Assessor judiciário junto ao Tribunal de Alçada do Estado de Minas Gerais (1ª Câmara Civil); pós-graduado lato sensu (especialização em Direito Empresarial) pela Universidade de Franca; pós-graduando stricto sensu (mestrado em Direito Empresarial pela Universidade de Franca; professor (Direito Civil) e atual vice-diretor da Faculdade de Direito da Universidade de Itaúna
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