A verdade dimensionada nos sistemas processuais penais

Resumo: A verdade é fruto da inteligência humana, sendo algo sublime. Por isso o homem a busca, a persegue sem armistício em todas as atividades que exerce. É coeso assegurar, então, que a cata da verdade constitui a aspiração máxima do intelecto. O homem possui um instinto direcionado para o conhecimento do mundo, fazendo valer o exercício da razão, tendencionado às generalizações das realidades casuísticas, o que caracteriza o ato gnosiológico. A verdade real, mesmo inexistindo um mecanismo de evidência absoluta em face dos métodos de persecução utilizados, se torna um elemento capital que o Direito almeja. Logo, reconhecendo a verdade como instrumento fundamental que motiva um pronunciamento judicial, necessário se faz a análise do caminho percorrido pelo juiz, na construção dessa verdade processual, o que nos conduz aos critérios utilizados, representados pelas provas.


Palavras-chave: direito; busca; verdade.


Abstract: The truth is the fruit of human intelligence, as something sublime. So the man the search, without chasing armistice on all the activities it performs. This is to ensure cohesive, so that the vane of truth is the highest aspiration of the intellect. The man has an instinct for knowledge driven world, enforcing the exercise of reason, generalizations tendencionado case series of realities, which characterizes the epistemological act. The real truth, even not existing mechanism in the face of absolute evidence of the methods of persecution used, becomes a key element that the law aims. Therefore, recognizing the truth as an essential tool that motivates a judicial pronouncement, make necessary the analysis of the path taken by the judge in the construction procedure of this truth, which leads us to the criteria used, represented by the evidence.


Keywords: right; search, truth.


Sumário: 1. Introdução; 2. A busca da verdade; 3. Histórico da busca da verdade no direito; 4. A verdade dimensionada nos sistemas processuais; 5. O sistema inquisitivo; 6. O sistema acusatório; 7. O sistema misto; 8. Conclusão; 9. Referências.


1. INTRODUÇÃO


A questão do conhecimento e da possibilidade da verdade tem uma expressão pujante e o peso de enorme tradição no problema dos universais, estendendo-se pelas essências da Escolástica[1] e pela fenomelogia de Husserl, além da matemática moderna. Isso se dá pelo fato do homem possuir um instinto direcionado para o conhecimento do mundo, fazendo valer o exercício da razão, tendencionado às generalizações das realidades casuísticas, o que caracteriza o ato gnosiológico[2].


Por isso, os conceitos gerais são indispensáveis à aquisição e transmissão de conhecimentos, repassados pela linguagem. Mais ainda “são também imprescindíveis na relação entre o homem e o meio em que vive”. (ADEODATO, 2002, p. 214).


A linguagem é o meio sistemático de comunicar idéias através de signos convencionais articulados, necessitando da interpretação para a tradução de suas verdades transmitidas.


Convergindo ao Direito, pode-se considerar a hermenêutica jurídica como um conjunto de regras e princípios utilizados para a interpretação do texto legal, servindo de instrumento elucidativo da tensão que existe entre o texto proposto da lei por um lado, e o sentido que alcança sua aplicação ao instante concreto, no outro.


Nesta atividade interpretativa para a aquisição da verdade jurídica, Gadamer aduz que “o jurista toma o sentido da lei a partir de e em virtude de um determinado caso dado.” (GADAMER, 2002, p. 483)


A verdade a ser revelada pela tarefa interpretativa consistirá em concretizar a lei em cada caso, ou seja, em sua aplicação. Mais uma vez, Gadamer (2002, p. 489) assevera que:


“Na idéia de uma ordem judicial supõe o fato de que a sentença do juiz não surja de arbitrariedades imprevisíveis, mas de uma ponderação justa do conjunto. A pessoa que se tenha aprofundado em toda a concreção da situação estará em condições de realizar essa ponderação justa. Justamente por isso existe segurança jurídica em um estado de direito, ou seja, podemos ter uma idéia daquilo a que nos atemos.”


A circunspecção justa afirmada por Gadamer , é o objetivo supremo do processo para Marco Antônio de Barros. Contudo, este último elege o princípio da verdade real como instrumento único para a aquisição da justiça pelas vias processuais, principalmente quando aduz que “não se pode falar em efetiva produção da justiça sem que se descortine a verdade. Esta é elemento essencial da justiça. Ambas complementam-se e formam um todo inseparável” (BARROS, 2002, p. 22), sendo conflitante conjeturar que se possa gerir perfeitamente uma sem acatar a outra.


Por isso, Marco Antônio de Barros (2002, p. 23) assevera que o Direito e verdade “integram-se na medida em que o primeiro estabelece as regras ou as formas legais de verificação da infração penal, entre as quais se encontram aquelas que visam esclarecer a segunda”. A verdade real, mesmo inexistindo um mecanismo de evidência absoluta em face dos métodos de persecução utilizados, se torna um elemento capital que o Direito almeja.


Logo, reconhecendo a verdade como instrumento fundamental que motiva um pronunciamento judicial, necessário se faz a análise do caminho percorrido pelo juiz, na construção dessa verdade processual, o que nos conduz aos critérios utilizados, representados pelas provas.


Primeiramente, o julgador será provocado à dicção da lei em abstrato tendo em vista um fato concreto. Portanto, o magistrado declarará como verdadeiro o fato de um sujeito ativo ter ou não cometido a conduta descrita no comando principal de um tipo penal, visando a aplicação do comando secundário da referida norma, ou seja, a pena.


Luigi Ferrajoli (2002, p. 40) afirma que o juiz deparará com uma verdade fática, “enquanto seja comprovável pela prova a ocorrência do fato e de sua imputação ao sujeito incriminado; e uma verdade jurídica, enquanto seja comprovável por meio da interpretação os enunciados normativos que qualificam o fato como delito.”


Daí conclui-se que uma presunção jurisdicional será “verdadeira se, e somente se, é verdadeira tanto fática quanto juridicamente, no sentido assim definido.” (FERRAJOLI, 2002, p. 41)


Vale ressaltar que a verdade de uma teoria científica é uma verdade aleatória, relativa aos conhecimentos empíricos encerrados na ordem das coisas de que se fala, de modo que, quando se afirma a verdade de uma ou de várias proposições, a única coisa que se diz é que estas são plausivelmente verdadeiras, pelo que sabemos sobre elas, tendo em vista o conjunto dos conhecimentos confirmados que possuímos.


Mesmo assim, o processo penal almeja que diante de um evento danoso realizado por um indivíduo, necessário se faz a apuração fática e sua correspondência jurídica para a incidência de uma pena imposta pelo Estado.


De qualquer modo, é mister reconhecer que a verdade constitui um dos fundamentos do processo, pois ao menos se permite conceber da impossibilidade de se emprestar validade a um processo com fulcro na mentira, no falso. Daí ser indiscutível a afinidade entre o Direito e a verdade.


Além disso, não é contemporânea a idéia acima aventada. Vem de longa data a busca da verdade para a solução dos conflitos sociais, necessitando ao menos uma visão geral sobre esta trajetória.


2. A BUSCA DA VERDADE


A verdade é fruto da inteligência humana, sendo algo sublime. Por isso o homem a busca, a persegue sem armistício em todas as atividades que exerce. É coeso assegurar, então, que a cata da verdade constitui a aspiração máxima do intelecto.


De certo modo, essa busca ininterrupta mira acolher os próprios anseios da alma humana, pois o homem não possui o controle irrestrito da verdade. Do ponto de vista universal, seu conhecimento sobre a verdade é apenas parcial. Conseqüentemente, as formidáveis descobertas científicas acumuladas pelos sábios apenas confirmam o nosso sentimento imanente de que existem outras verdades a descobrir.


Presente em todas as áreas do conhecimento, a busca da verdade nasce simultaneamente com o ser humano. Desde a infância até os últimos dias de vida o homem procura a verdade para satisfazer o seu íntimo.


Conduzindo a questão da busca da verdade para a ciência do Direito, de pronto revela-se a sua indiscutível importância para a aplicação da lei. Sobretudo no campo do direito processual, destaca-se o vínculo umbilical que liga a reconstituição histórica dos fatos ao dever estatal de redargüir com a prestação jurisdicional justa e adequada às provas dos autos.


Para Nilzardo Carneiro Leão, descobrir a verdade é oferecer conhecimentos capazes de “convencer alguém da existência ou inexistência de determinado fato, ou seja, uma relação de identidade, de adequação entre nosso pensamento e as coisas que constituem seu objeto.” (LEÃO, 2001, p. 55)


De fato, considerando que ao Poder Judiciário cumpre aplicar o direito objetivo aos casos concretos, empregando, em síntese, a idéia de Kelsen, de que dado certo fato deve ser a respectiva conseqüência, entendeu-se que mesmo reconhecendo que “a verdade não constitui um fim em si mesmo, deve buscá-la enquanto condição para que se dê qualidade à justiça ofertada pelo Estado.” (KELSEN, 1979, p. 168)


3. HISTÓRICO DA BUSCA DA VERDADE NO DIREITO


A inclusão da verdade como método a justificar a solução de uma pretensão resistida advém de um passado distante, podendo retroceder-se até a Grécia antiga.  Nesta época, foi exposta uma obsoleta prática da prova da verdade estabelecida judiciariamente, visando a abonar a decidibilidade como um jogo de prova.


Observa-se que o homem primitivo recorre ao jogo como um padrão estrutural para a elucidação do processo ontológico, enquanto circunstância invencível por parte daqueles entregues ao jogo, cominando ao mundo dos fenômenos um embasamento divino.


No mesmo sentido, no Direito Germânico constatou-se um sistema que regulamentava os conflitos tendo como forma de apuração da verdade o “jogo da prova.” Era um procedimento que não permitia a intervenção de um terceiro indivíduo neutro, em busca da verdade.


Apesar dos conflitos entre o Direito Germânico e o Direito Romano, necessário reconhecer a predominância do primeiro no Direito Feudal. No sistema da prova judiciária feudal tratava-se não da pesquisa da verdade, mas de uma espécie de jogo de estrutura binária. “O indivíduo aceita a prova ou renuncia a ela. Se não quer tentar a prova, perde o processo preliminarmente. Havendo a prova, vence ou fracassa. Tal forma binária é a primeira característica da prova.” (LOPES, 2002, p. 75)


Sobre o Direito medieval feudal vejamos a lição de José Reinaldo de Lima Lopes (2002, p. 75):


“Ali o processo era oral e o sistema de provas era o dos ordálios, cheios de testemunhas, desafios e duelos. Nas aldeias e no campo predominavam, em casos criminais, os julgamentos por ordálios, assistidos por todos. A corte senhorial é presidida pelo senhor da região, mas são os pares (vassalos) que julgam seus pares. As cortes julgam, mas são também órgãos de conselhos e de grandes deliberações.”


Já na Idade Média européia houve “uma necessidade de criar um mecanismo de averiguação real dos fatos, em prol da verdade” (LOPES, 2002, p. 55). Dissertando sobre o tema, Michel Foucault (1999, p. 20/21) salienta que:


“Desde que a Idade Média construiu, não sem dificuldade e lentidão, a grande procedura do inquérito, julgar era estabelecer a verdade de um crime, era determinar seu autor, era aplicar-lhe uma sanção legal. Conhecimento da infração, conhecimento do responsável, conhecimento da lei, três condições que permitiam estabelecer um julgamento como verdade bem fundada. Eis, porém, que durante o julgamento penal encontramos inserida agora uma questão bem diferente de verdade. Não mais simplesmente: “O fato está comprovado, é delituoso?” Mas também: “O que é realmente esse fato, o que significa essa violência ou esse crime? Fantasma, reação psicótica, episódio de delírio, perversidade?” Não mais simplesmente : “Quem é o autor?” Mas: “Como citar o processo causal que o produziu? Onde estará, no próprio autor, a origem do crime? Instinto, inconsciente, meio ambiente, hereditariedade?” Não mais simplesmente: “Que lei sanciona esta infração?” Mas: “Que medida tomar que seja apropriada? Como prever a evolução do sujeito? De que modo será ele mais seguramente corrigido?” Todo um conjunto de julgamentos apreciativos, diagnósticos, prognósticos, normativos concernentes ao indivíduo criminoso encontrou acolhida no sistema do juízo penal. Uma outra verdade veio penetrar aquela que a mecânica judicial requeria: uma verdade que, enredada na primeira, faz da afirmação de culpabilidade um estranho complexo científico-jurídico.”


Nesta época, o processo penal possui características próprias, dentre elas temos o fato de ser ele secreto até a sentença final, isto é, “oculto não só para o público mas para o próprio acusado”. (FOUCAULT, 1999, p. 20/21)


O julgador podia receber denúncias anônimas e caminhava em busca de uma verdade às escondidas do acusado. Assim, o magistrado constituía sozinho “uma verdade com a qual investia o acusado; e essa verdade, os juízes a recebiam pronta, sob a forma de peças e de relatórios escritos.” (FOUCAULT, 1999, p. 33). Logo, a forma secreta e escrita do processo encontrava-se em consonância com o fato de que, em matéria criminal, o “estabelecimento da verdade era para o soberano e seus juízes um direito absoluto e um poder exclusivo.” (FOUCAULT, 1999, p. 33)


A confissão toma lugar de destaque, pois o acusado se compromete em relação ao processo e confirma a verdade de uma informação. Não é sem motivo que a tortura passa a se tornar um mecanismo regulamentado de prova, permitindo sua utilização como uma maneira de fazer aparecer um indício, o mais grave de todos – a confissão do culpado.


Diante de tais considerações, foi necessária a criação de um novo inquérito, baseado no exercício da razão comum, despojando-se do antigo modelo inquisitorial para acolher o outro muito menos rígido.


Mais uma vez, vejamos a lição de Michel Foucault (FOUCAULT, 1999, p. 33):


“Agora a prática penal vai-se encontrar submetida a um regime comum da verdade, ou, antes a um regime complexo em que se misturam para formar a “íntima convicção” do juiz elementos heterogêneos de demonstração científica, de evidências sensíveis e de senso comum. A justiça penal se conserva formas que garantem sua equidade, pode-se abrir agora as verdades de todos os ventos, desde que sejam evidentes, bem estabelecidas, aceitáveis por todos. O ritual judiciário não é mais em si mesmo formador de uma verdade partilhada. É recolocado no campo de referência das provas comuns. Estabelece-se então, com a multiplicidade dos discursos científicos, uma relação difícil e infinita, que a justiça penal hoje ainda não está apta a controlar. O senhor de justiça não é mais senhor de sua verdade”.


Observa-se a criação de novas formas de práticas e procedimentos judiciários, surgindo as figuras do procurador e a infração, bem como o soberano como parte lesada, exigindo reparação.


Daí em diante, foi ativa a reprovação ao sistema inquisitório do processo penal, pois as reformas inspiravam um processo público, oral e com a participação da defesa, plenamente compatível com a presunção de inocência.


No entanto, a mudança não foi eficiente a tal ponto que viesse a criar um sistema garantista. Isso se deu pelo fato de que na avaliação das provas, conferiu-se uma liberdade total e absoluta aos juízes e jurados, “que dispensava a indicação dos motivos da convicção, e estava a salvo, também, de quaisquer regras de exclusão, ao contrário do que ocorria com o próprio modelo inglês.” (FOUCAULT, 1999, p. 33)


Havia uma fase inicial da investigação de forma secreta, “mas para assegurar certa transparência à atividade inquisitiva do juiz, era prevista a participação de cidadãos indicados pela municipalidade.” (FOUCAULT, 1999, p. 28) A segunda parte do procedimento, era pública e contraditória, havendo a possibilidade de intervenção do defensor, além do contraditório e ampla defesa.


Analisando as reformas legislativas subseqüentes, nota-se uma involução caracterizada pela valorização de institutos do sistema inquisitório. Por isso, o arranjo entre os protótipos inquisitório e acusatório, implantado pelo sistema francês teve grande aquiescência, “influenciando desde logo os demais ordenamentos continentais, representando até os dias atuais o modelo inspirador da maioria das legislações.” (FOUCAULT, 1999, p. 31)


4. A VERDADE DIMENSIONADA NOS SISTEMAS PROCESSUAIS


O Estado possui como dever capital a regulamentação do comportamento dos cidadãos, criando normas inerentes ao seu poder político, com o intuito de preservar a ordem e a harmonia em sociedade. Assim, são instituídas normas para disciplinar a coexistência entre as pessoas, além das relações destas com o Estado, cominando aos seus destinatários deveres e direitos. O direito objetivo constitui-se do conjunto de leis criadas com tal finalidade.


Todavia, o direito objetivo, apesar de permitir atividades lícitas, impõe limites aos poderes e faculdades do cidadão, pois estão submetidos pelo dever de respeito aos direitos alheios ou do Estado. Por conseguinte, como acentua Mirabete (1998, p. 23), “a sujeição de todos às normas somente pode ser obtida com a cominação, aplicação e execução das sanções previstas para as transgressões cometidas.”


Sendo a soberania um elemento do Estado, o mesmo se torna dotado de poderes exclusivos para punir todo aquele que lesionar ou pôr em perigo bens jurídicos tutelados, instituindo sanções penais contra o infrator. Trata-se, portanto, “de um poder abstrato de punir qualquer um que venha a praticar fato definido como infração penal.” (CAPEZ, 2003, p. 2) Porém, o direito-poder de punir só pode realizar-se através do processo penal.


Praticado um fato que, aparentemente ao menos, constitui um ilícito penal, surge o conflito de interesses entre o direito de punir do Estado e o direito de liberdade da pessoa acusada de praticá-lo. No Estado moderno a solução do conflito de interesses, especialmente no campo penal, se exerce através da função jurisdicional do Estado no que se denomina processo e, em se tratando de uma lide penal, processo penal. É a forma que o Estado impõe para compor os litígios, inclusive de caráter penal, através dos órgãos próprios da administração da justiça.


Diante de um moderno Estado de Direito Democrático, cujo sustentáculo encontra amparo na estrutura constitucional, vinculado à garantia mínima dos direitos fundamentais, o poder punitivo unicamente justificará sua existência se obedecidas às garantias individuais do cidadão.


É totalmente inconcebível num Estado moderno e democrático que o sistema punitivo, onde se inclui as funções de prevenção da criminalidade, seja exercido em contradição aos valores individuais constitucionais.


Além disso, a obediência aos Direitos Fundamentais torna-se necessário à confiabilidade dos critérios processuais para a aplicação do direito de punir do Estado, sendo pois condição de legitimidade da aplicação do direito.


A atividade do Estado direcionada à solução dos conflitos penais, ou seja, de um lado a lesão ao bem jurídico tutelado, e de outro, o direito de liberdade do cidadão, terá que coexistir em concórdia com o direito do agressor da norma no que se refere à observância da lei visando evitar possíveis abusos do poder estatal. Tal modelo de processo penal encontra-se amparo na teoria garantista.


O garantismo protege direitos fundamentais cuja satisfação é o objetivo justificador do Direito Penal. Por conseguinte, o combate às arbitrariedades, a defesa dos mais fracos mediante regras igualitárias, a dignidade da pessoa do imputado são metas irrenunciáveis.


A concepção garantista indica “um Estado minimizador das restrições das liberdades dos cidadãos num Estado Social maximizador das expectativas sociais, com correlatos deveres do Estado de satisfazer tais necessidades.” (CADEMARTORI, 1999, p. 72). Portanto, os princípios[3] sobre os quais se funda o modelo garantista clássico liberal são advindos da noção jurídica do iluminismo e do liberalismo.


Tendo em vista os princípios norteadores do processo penal, o mesmo se organiza em sistemas processuais, anotando a história evolutiva os seguintes: o inquisitivo, o acusatório e o misto.


5. O SISTEMA INQUISITIVO


Com raízes no Direito Romano, o sistema inquisitivo revigorou-se na Idade Média diante da “necessidade de afastar a repressão criminal dos acusadores privados, chegando ao ápice no continente europeu, a partir do Século XV diante da influência do Direito Penal da Igreja, decaindo com a Revolução Francesa”. (MIRABETE, 1998, p. 40)


Nele, a verdade era produzida sem as regras de igualdade e liberdade processuais, pois o processo, além de escrito era secreto, desenvolvido por impulso oficial, onde a confissão era elemento que dava ensejo à condenação, consentindo a tortura.


O sistema inquisitivo possui como principal característica a concentração dos poderes processuais penais nas mãos de um único órgão, o que fez com que sempre estivesse associado a estruturas políticas centralizadas, a exemplo dos Estados Absolutistas.


Este modelo justificava a punição do transgressor da norma pela presunção de culpabilidade, quando da ocorrência da aparente prática de uma infração penal. Além disso, o julgador possuia ampla discricionariedade para investigar qualquer circunstância da vida do investigado, onde a “obsessão pela descoberta da verdade se tornou um pretexto para a crueldade que, travestida de meio investigatório, serviu como castigo.” (MALAN, 2003, p. 64)


Em epítome, o núcleo do sistema inquisitorial encontra-se no impulso oficial do processo penal. Em tal sistema somente resguarda a iniciativa da propositura da ação, que se destina a um órgão diverso daquele encarregado do julgamento. O discurso social de proteção da comunidade em face do deliqüente, bem como a busca da verdade real são subterfúgios que justificam tal sistema.


6. O SISTEMA ACUSATÓRIO


Já o sistema acusatório, no direito moderno, “implica o estabelecimento de uma relação processual, estando em pé de igualdade o autor e o réu, sobrepondo-se a eles, como órgão imparcial, o juiz.” (MIRABETE, 1998, p. 40)


De tal modo, este sistema processual possui como característica “o poder de decisão da causa entregue a um órgão estatal, por sua vez distinto daquele que dispõe do poder exclusivo de iniciativa do processo.” (PRADO, 2001, p. 124)


Sendo assim, o sistema acusatório possui como lema a construção da verdade mediante a obediência das normas e princípios fundamentais, sistematicamente organizados e dispostos, consistindo na “distribuição do direito de ação, do direito de defesa e do poder jurisdicional, entre autor, réu (e seu defensor) e juiz.” (PRADO, 2001, p. 133)


Sua essência reside na “tutela precípua do interesse individual lesado pelo processo.” (ALMEIDA JÚNIOR, 1959, p. 228). Ao réu são estabelecidas todas as garantias processuais referentes ao devido processo legal. Neste sentido é a lição de Diogo Rudge Malan (2003, p. 87):


“Em resumo, pode-se divisar dois pressupostos indispensáveis para a caracterização do sistema acusatório: (i) o princípio da ação, segundo o qual a atividade do julgador é absolutamente inerte, a fim de resguardar efetivamente a sua imparcialidade, devendo ele se abster de quaisquer iniciativas que possam ensejar um pré-julgamento do mérito e manter, durante todo o procedimento, uma eqüidistância das teses lançadas pelas partes processuais; (ii) a existência de uma autêntica relação processual, na qual ambas as partes possuem iguais e efetivas condições de conformar o convencimento do juiz, através da estrita observância das garantias do contraditório e da ampla defesa. Ausente qualquer um desses pressupostos, está irremediavelmente descaracterizado o sistema acusatório, a nosso sentir.”


Em face das considerações acima aduzidas, dificuldade não há em mapear as distinções entre o sistema inquisitivo e o sistema acusatório. Este último pode ser idealizado, na ótica do julgador, como um sujeito passivo arredio às partes e o juízo como uma altercação entre iguais, introduzida pela acusação, a quem cabe o ônus da prova, encarando a defesa em um juízo contraditório, oral e público e resolvida pelo juiz, movido pela liberdade de convicção.


7. O SISTEMA MISTO


Por fim, o sistema misto é aquele que “possui uma fase inicial inquisitiva, na qual se procede a uma investigação preliminar e uma instrução preparatória, e uma fase final, em que se procede ao julgamento com as garantias do processo acusatório.” (CAPEZ, 2003, p. 41). Verifica-se que o sistema supracitado combina elementos acusatórios e inquisitivos em maior ou menor medida.


O sistema processual vigente no ordenamento jurídico pátrio optou pelo sistema misto, possuindo uma fase preliminar inquisitiva e uma fase judicial. Diante deste contexto, vejamos o que os doutrinadores afirmam sobre o princípio da verdade real.


Julio Fabbrini Mirabete (1998, p. 44) inclui a verdade real como princípio do processo penal referindo ao “dever do juiz de dar seguimento à relação processual quando da inércia da parte e mesmo de determinar, ex officio, provas necessárias à instrução do processo, a fim de que possa descobrir a verdade dos fatos”, objetos da ação penal. Porém, em flagrante contradição, afirma ainda que “no processo penal brasileiro o princípio da verdade real não vige em toda a sua inteireza.”


Por sua vez, Fernando Capez (2003, p. 22/26) classifica a verdade material como princípio geral informador do processo, “asseverando que é dever do magistrado superar a desidiosa iniciativa das partes na colheita da prova, esgotando todas as probabilidades para alcançar a verdade real dos fatos, fundamento da sentença.” E ainda considera a verdade real como princípio informador do processo penal, “salientando que o juiz tem o dever de investigar como os fatos se passaram na realidade, não se conformando com a verdade produzida nos autos”.


Fernando da Costa Tourinho Filho (2004, p. 37) adota a verdade real como princípio que rege o processo penal, argumentando que “o juiz tem o dever de investigar a verdade real, procurar saber como os fatos se passaram na realidade, quem realmente praticou a infração e em que condições a perpetrou”, visando a justiça.


8. CONCLUSÃO


Como se observa acima, a verdade real foi eleita como princípio básico do processo penal, isto é, “marco inicial de construção de toda a dogmática jurídico-processual penal” (RANGEL, 2001, p. 1), servindo de premissa principal aos demais institutos jurídicos desta seara.


Levando-se em consideração que o sistema acusatório é o mais adequado para garantir os direitos individuais diante do direito de punir de um Estado Democrático de Direito, além das considerações filosóficas no que tange à verdade, observa-se uma notória contradição nas caracterizações acima sobre o princípio da verdade real.


Para a elucidação de tal questionamento, necessário se faz um paralelo entre as características do sistema acusatório e o princípio da verdade real.


Como já mencionado, o sistema acusatório é marcado pela igualdade de direitos e obrigações entre a parte acusadora e acusada, sendo certo que as funções de acusar, defender e julgar são atribuída às pessoas distintas. Por isso, na relação jurídico-processual penal, são três os sujeitos processuais, incluindo o juiz, o acusador, representado pelo Ministério Público ou o ofendido, e o réu, sujeito ativo do suposto crime a elucidar.


A imparcialidade do juiz, também configurada como princípio basilar do processo penal moderno, tendo total correspondência com o sistema acusatório.


Ora, a imparcialidade e o devido processo legal não coadunam com a postura de um juiz que possua como atribuições o seguimento à relação processual, substituindo as partes quando de sua inércia, determinando provas à instrução do processo, amparado por algo idealizável apenas, qual seja, a verdade real.


A possibilidade de o juiz definir diligências investigatórias não mais encontra apoio diante do princípio da imparcialidade e do sistema acusatório, que privilegia a ruptura entre o sujeito responsável pela acusação, no caso o representante do Ministério Público, e aquele responsável pelo julgamento da causa.


A legitimação da liberdade de iniciativa probatória conferida ao juiz pelo princípio da verdade real encontra crítica na lição de Eugênio Pacelli de Oliveira (2004, p. 10):


“Ora, além do fato de não existir nenhuma verdade judicial que não seja uma verdade processual, na realidade, o tal princípio, na extensão que se lhe dá, pode ser – e muitas vezes foi e ainda é – manipulado para justificar a substituição do Ministério Público pelo juiz, no que se refere ao ônus probatório que se reserva àquele. No ponto, pensamos que somente uma leitura constitucional do processo penal poderá afastar ou, quando nada, diminuir tais inconvenientes, com a afirmação do princípio do juiz natural e de sua indispensável imparcialidade. Com efeito, a igualdade das partes somente será alcançada quando não se permitir mais ao juiz uma atuação substitutiva da função ministerial, não só no que respeita ao oferecimento da acusação, mas também no que se refere ao ônus processual de demonstrar a veracidade das imputações feitas ao acusado. A iniciativa probatória do juiz deve limitar, então, ao esclarecimento de questões ou pontos duvidosos sobre o material já trazido pelas partes, nos termos, aliás, da redação do art. 156 do Código de Processo Penal.”


A verdade real, definida como princípio informador do processo penal, que venha a assegurar ao magistrado superação da iniciativa das partes na colheita do material probatório, conduz o processo ao sistema inquisitivo, evidenciado pela ampla discricionariedade concedida ao juiz para investigar toda e qualquer circunstância, extrapolando o interesse das partes e contaminando de parcialidade o provimento jurisdicional.


Neste sentido, Diogo Rudge Malan reconhece a inviabilidade da ocorrência da verdade real na relação processual, definindo-a como um mito, esclarecendo que num sistema acusatório, “somente poderia ocorrer uma verdade processual válida, buscada com a cabal observância da garantia da imparcialidade do juiz, que é quebrada pela iniciativa instrutória deste último.” (MALAN, 2003, p. 72)


Logo, procede a preocupação de que os poderes públicos, sob o ensejo da busca da verdade real venham legitimar diversas práticas autoritárias e abusivas, tão peculiar no sistema inquisitivo.


A utilização dos critérios assegurados no processo penal, a verdade desvendada judicialmente será sempre uma verdade construída, submissa à variabilidade do grau de colaboração das partes, e por vezes do juiz, quanto à decisão de sua certeza.


 


Referências bibliográficas:

ADEODATO, João Maurício. Filosofia do direito – uma crítica à verdade na ética e na ciência. 2. ed., São Paulo: Saraiva, 2002.

ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. O processo criminal brasileiro. 1 .v. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1959.

BARROS, Marco Antônio de. A Busca da verdade no processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.

CADEMARTORI, Sérgio. Estado de direito e legitimidade – uma abordagem garantista. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999.

CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. 9. ed., São Paulo: Saraiva, 2003.

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão – Teoria do garantismo penal. Tradução: Ana Paula Zomer. et al. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. 19. ed., Petrópolis: Vozes, 1999.

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método.4. ed. Petrópolis: Vozes, 2002.

GRINOVER, Ada Pellegrini. O processo em evolução. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1988.

LEÃO, Nilzardo Carneiro. Do processo de conhecimento no projeto do código de processo penal. 14. v., Uberaba: Revista Brasileira de Direito Processual, 2001.

LOPES JÚNIOR, Aury Celso Lima. Sistemas de investigação preliminar no processo penal. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2001.

LOPES, José Reinaldo de Lima. O direito na história. 2. ed., São Paulo: Max Limonad, 2002.

MALAN, Diogo Rudge. A Sentença incongruente no processo penal. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2003.

MALATESTA, Nicola Framarino dei. A lógica das provas em matéria criminal. Tradução: Paolo Capitanio. 2. ed., Campinas: Bookseller, 2001.

MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo penal. 8. ed., São Paulo: Atlas, 1998.

OLIVEIRA, Eugênio Pacelli. Curso de processo penal. 3. Ed., Belo Horizonte: Del Rey, 2004.

PRADO, Geraldo. Sistema acusatório. 2. ed., Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2001.

RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 4. ed., Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2001.

TARUFFO, Michele; MICHELI, Gian Antônio. A prova. São Paulo: RT, RePro n. 16, out/dez., 1979.

TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal. 1. v. 26. ed., São Paulo: Saraiva, 2004.

JAPIASSÚ, Hilton; MARCONDES, Danilo. Dicionário básico de filosofia. 3. ed., Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.


Notas:

[1] A Escolástica caracteriza-se principalmente pela tentativa de conciliar os dogmas da fé cristã e as verdades reveladas nas Sagradas Escrituras com as doutrinas filosóficas clássicas, destacando-se o platonismo e o aristotelismo. (JAPIASSÚ, 2001, p. 87).

[2] Gnoseologia (do gr. Gnosis: conhecimento, e logos: teoria, ciência) é a teoria do conhecimento que tem por objetivo buscar a origem, a natureza, o valor e os limites da faculdade de conhecer. Por vezes o termo “gnoseologia” é tomado como sinônimo de epistemologia, embora seja mais amplo, pois abrange todo tipo de conhecimento, estudando o conhecimento em sentido mais genérico. (JAPIASSÚ, 2001, p. 117).

[3] A legali­dade estrita, a materialidade e a lesividade dos delitos, a responsabilidade pessoal, o con­traditório entre as partes, a presunção de inocência (FERRAJOLI, 2002, p. 29).

Informações Sobre o Autor

Hálisson Rodrigo Lopes

Possui Graduação em de Direito pela Universidade Presidente Antônio Carlos (2000), Licenciatura em Filosofia pela Claretiano (2014), Pós-Graduação em Direito Público pela Faculdade de Direito do Vale do Rio Doce (2001), Pós-Graduação em Direito Administrativo pela Universidade Gama Filho (2010), Pós-Graduação em Direito Civil e Processual Civil pela Faculdade de Direito do Vale do Rio Doce (2011), Pós-Graduação em Filosofia pela Universidade Gama Filho (2011), Pós-Graduado em Direito Penal e Processo Penal pela Universidade Estácio de Sá (2014), Pós-Graduado em Gestão Pública pela Universidade Cândido Mendes (2014), Pós-Graduado em Direito Penal e Processo Penal pela Faculdade de Direito do Vale do Rio Doce (2014), Pós-Graduado em Direito Educacional pela Claretiano (2016), Mestrado em Direito pela Universidade Gama Filho (2005), Doutorando em Ciências da Comunicação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Atualmente é Professor Universitário da Faculdade de Direito do Vale do Rio Doce (FADIVALE) nos cursos de Graduação e Pós-Graduação e na Fundação Educacional Nordeste Mineiro (FENORD) no curso de Graduação em Direito; Coordenador do Curso de Pós-Graduação da Faculdade de Direito do Vale do Rio Doce (FADIVALE). Associado ao Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito (CONPEDI); e Assessor de Juiz – Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais – Comarca de Governador Valadares


Equipe Âmbito Jurídico

Recent Posts

Prejuízos causados por terceiros em acidentes de trânsito

Acidentes de trânsito podem resultar em diversos tipos de prejuízos, desde danos materiais até traumas…

3 dias ago

Regularize seu veículo: bloqueios de óbitos e suas implicações jurídicas

Bloqueios de óbitos em veículos são uma medida administrativa aplicada quando o proprietário de um…

3 dias ago

Os processos envolvidos em acidentes de trânsito: uma análise jurídica completa

Acidentes de trânsito são situações que podem gerar consequências graves para os envolvidos, tanto no…

3 dias ago

Regularize seu veículo: tudo sobre o RENAJUD

O Registro Nacional de Veículos Automotores Judicial (RENAJUD) é um sistema eletrônico que conecta o…

3 dias ago

Regularize seu veículo: como realizar baixas de restrições administrativas

Manter o veículo em conformidade com as exigências legais é essencial para garantir a sua…

3 dias ago

Bloqueios veiculares

Os bloqueios veiculares são medidas administrativas ou judiciais aplicadas a veículos para restringir ou impedir…

3 dias ago