A violência no âmbito doméstico, principalmente contra crianças de tenra idade, é questão chocante e , muitas vezes, relegada a um segundo plano pela sociedade que prefere ignorar a realidade em face de sua natureza abjeta. [1]
As seqüelas e características desse tipo de violência conduzem a um conjunto de sintomas capazes de levar a uma constatação segura da possibilidade de uma criança estar sendo vítima desse tipo de conduta.
Tal conjunto tem sido denominado de Síndrome de Caffey” ou “Síndrome da Criança Espancada” e pode ser um instrumento de grande valia para a detecção de casos de espancamento de crianças por parte de profissionais das mais diversas áreas que tenham algum contato com crianças ou venham a investigar casos que tais ( v.g. professores, pedagogos, psicólogos, médicos, policiais, etc ).
Por incrível que pareça, as primeiras características dominantes dessa violência são que os atos ocorrem normalmente no lar e em situações do cotidiano. Os agressores geralmente são os pais ou responsáveis, sendo fato que as mães predominam nas estatísticas. As crianças são especialmente aquelas entre zero e três anos, aumentando a incidência em razão direta à maior ou menor vida de relacionamento da criança, ou seja, nas fases em que começa a engatinhar, andar, falar, enfim, ter maior manifestação e contato com o ambiente em que vive.
Considerando as circunstâncias em que normalmente a conduta do agressor se desenvolve, torna-se comum o uso de objetos domésticos como instrumentos para provocar as lesões ( Ex. ferro de passar, cabos de vassouras, garfos, facas de cozinha, panelas, alimentos fumegantes, etc.), sendo ainda comuns agressões manuais ( chutes, tapas, socos ) e até o arremesso das vítimas contra a parede ou o chão.
Em conseqüência ainda das condições peculiares desses casos, pode-se verificar caracteres de lesões que são indicadores:
A sua produção é geralmente marcada por um trajeto de cima para baixo, logicamente, pois produzida por um adulto contra uma criança. Ainda neste sentido observe-se que a gravidade das lesões e mesmo conseqüências letais são comuns nesse tipo de agressão devido à descomunal desproporção física entre os sujeitos ativos e passivos, o que pode até mesmo ocasionar resultados não previstos pelo agressor que não mensura devidamente o grau de violência de seus golpes.
O rosto e a cabeça são suas sedes mais comuns, inclusive por um instinto natural de qualquer agressor em atacar tais partes do corpo. Neste sentido são comuns queimaduras no rosto e na boca, especialmente relacionadas ao momento em que a criança é alimentada e recusa ou quer o alimento com impaciência, findando por receber a comida ainda muito quente propositadamente para queimar-se ou ainda agressões com talheres e outros utensílios ( garfos, facas de cozinha, panelas, etc. ).
Também relacionadas a queimaduras, pode-se mencionar casos em que com caráter “educativo” o agressor vem a queimar as nádegas da criança como castigo por haver urinado ou defecado nas roupas.
Em casos mais graves as agressões na cabeça podem superar simples rupturas do couro cabeludo e chegar até à morte da vítima por traumatismo crâneo-encefálico , ou mesmo em casos de espancamento na região do tronco, provocar quebra de costelas e rotura de órgãos internos.
Outra causa de morte comum é a asfixia, especialmente nos casos em que se pretende calar a criança que chora e acaba-se sufocando a mesma.
As quebraduras de ossos longos em datas diversas e a presença de equimoses de idade variável, constatáveis pela evolução cromática do espectro equimótico , são outras características altamente indiciárias do espancamento contínuo da criança.
Obviamente, todas essas indicações devem ser cuidadosamente cotejadas com as narrativas dos suspeitos agressores que procurarão dar explicações acerca da origem das lesões, a serem analisadas quanto à sua verossimilhança e discrepância ou não com a natureza das lesões encontradas.
Outro fator indiciário da violência doméstica a ser salientado, nos casos de múltiplas lesões de datas diversas, é a procura de atendimento à vítima em hospitais e prontos-socorros diferentes em cada oportunidade, certamente visando evitar a constatação da continuidade das ocorrências lesivas envolvendo os mesmos personagens.
Este breve esboço do quadro indicador da chamada “Síndrome da Criança Espancada” desvela uma situação altamente repugnante e difícil de aceitar como realidade. Porém, existe em todas as camadas sociais e pode estar se passando ao nosso lado sem que houvéssemos nos conscientizado disso, de modo que sua divulgação é o principal objetivo desta exposição.
A conscientização dessa realidade há que ser difundida a fim de sensibilizar a sociedade no sentido de criar mecanismos necessários para atender com eficiência e rapidez esses casos de alta gravidade e de conseqüências tão funestas e cruéis para o desenvolvimento dos vitimados.
Atente-se que as medidas nesse sentido não hão de restringir-se ao tratamento penal da matéria, mas deverão voltar-se especialmente ao tipo de assistência que se deverá prestar às vítimas, garantindo sua incolumidade física e psíquica.
No aspecto criminal, tirante os casos mais extremos, ( arts. 136,parágrafos 1º,2º e 3º; 129, parágrafos 1º e 2º e 121 e seu parágrafo 2º CP ), a violência perpetrada contra a criança, principalmente aquela praticada pelos responsáveis, poderia ficar adstrita aos simples “maus-tratos” , considerados “infração de menor potencial ofensivo” ( art. 136 “caput” CP c/c art.61 da Lei 9099/95 ). Isso ainda que fossem continuamente infligidos à vítima.
Com o advento da Lei 9455 de 7 de Abril de 1997 que define os crimes de tortura, procurou-se dar um tratamento mais severo à matéria com os dispositivos do art. 1º, II e parágrafos 3º e 4º,II. Não obstante, sua caracterização muitas vezes esbarrará na dificuldade de comprovação do elemento subjetivo que diferenciaria os “maus-tratos” da “tortura”.[2]
Já o art. 233 da Lei 8069/90 ( ECA ) que era de validade duvidosa antes da definição de “tortura”, trazida agora pela Lei 9455/97, restou revogado por esta e, incrivelmente, com tratamento penal mais brando ao autor da violência contra crianças e adolescentes.[3]
Certamente pecou a Lei 9099/95 ao eleger como único critério determinador da infração de menor potencial ofensivo o “quantum” da pena máxima, ensejando situação incrível em que um crime terrivelmente danoso pelo seu aspecto deletério da formação da criança, venha a ser como tal considerado.
Também falhou o legislador em não descrever de forma casuística as condutas caracterizadoras da tortura, afastando discussões acerca de elementos subjetivos de difícil comprovação.
Assim sendo, a tutela penal nos casos de violência perpetrada contra criança apresenta-se branda e , principalmente, conturbada no aspecto da caracterização das condutas mais graves, o que, infelizmente, aparenta indicar mais uma fonte de impunidade.
Entretanto, conforme já se disse, ainda mais importante que o tratamento penal da matéria, são os meios de assistência a serem colocados à disposição da vítima. Neste sentido destacáveis os artigos 98,II e 101, VII do ECA ( Lei 8069/90 ), sendo fato que a iniciativa da criação de locais apropriados ao abrigo de crianças vítimas de violência com devida assistência ( médica, psicológica, etc.), deve ser prioridade e não somente nos grandes centros, mas em todos os municípios, pois a violência doméstica não é “privilégio” de determinadas localidades, constituindo-se numa triste realidade existente em qualquer meio.
O quadro real, porém, é desolador, uma vez que com mais de oito anos de vigência do ECA, poucos são os locais onde se têm os mecanismos necessários à efetiva proteção imediata das crianças e mesmo onde, por alguma iniciativa louvável e rara, são criados, sua manutenção e continuidade parecem estar sempre em cheque, não sendo assumidos como imprescindíveis à comunidade.
Fica, portanto, mais um apelo à conscientização quanto a esta realidade que exige mobilizações imediatas e soluções efetivas em prol da defesa daqueles que não podem fazê-lo por si mesmos.
Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós – graduado com especialização em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Legislação Penal e Processual Penal Especial e Criminologia na graduação e na pós – graduação da Unisal e Membro do Grupo de pesquisa em bioética e biodireito do programa de mestrado da Unisal.
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