1. Introdução[1]
A interrupção da gravidez, espontânea ou provocada, é denominada de aborto. Quando esta interrupção é espontânea, ou provocada por motivos humanitários ou de necessidade, os efeitos não chegam a ter, regra geral, reflexos na área jurídico-criminal. Todavia, diferente é o que sucede quando o ato é provocado fora das situações excepcionais, pois, então, incidem as sanções legais.
Não obstante, desde os primórdios da humanidade o aborto vem sendo praticado pelas gestantes que não almejam dar continuidade a uma gravidez indesejada, tanto é assim que restou sendo criminalizado. Contudo, o crescimento progressivo da prática do aborto provocado culminou constituindo-se num problema de saúde pública, carecedor de medidas fortes e eficazes por parte das autoridades governamentais no intuito preventivo.
Os métodos empregados naquela prática, geralmente caseiros, permaneceram impassíveis aos novos conhecimentos médicos e científicos, e quando destes se valem, são realizados clandestinamente, sem condições ambientais adequadas e oferecendo risco à saúde e vida das pacientes. Neste ínterim, desencadeado pelo aumento dos índices de abortamento irregulares, difundiu-se a idéia de sua descriminalização como meio indireto de combate aos procedimentos inseguros.
A proposta de descriminalização gerou grande discussão, acabando por se transformar na celeuma atual que tem maior abrangência nos ramos do conhecimento, setores da sociedade e classes sociais, manifestando-se em ciclos impulsivos: conforme a ocorrência de fatos referentes ela revive, insurge em cada conversa, embora longe do consenso nos entendimentos e opiniões a seu respeito.
O último fato a trazer à tona a polêmica no Brasil foi a descriminalização da prática abortiva em Portugal, corroborada e catalisada pela recente visita do Papa Bento XVI ao nosso país, que possui o maior número de católicos do mundo e, por conseguinte, em tese, onde há o maior número de pessoas que seguem a orientação católica de repúdio ao aborto.
Logo, é neste contexto que está inserta a problemática deste estudo: a postura do administrador público frente ao aborto; como lidar com as pressões exercidas pelos favoráveis e pelos contrários à descriminalização do aborto; e que medidas tomar para enfrentá-lo.
Para tal estudo, procurou-se dividir o trabalho de forma a se ter um melhor entendimento da conjuntura atual: primeiramente enfoca-se os três principais fatores contrários à descriminalização do aborto; incontinenti, trata-se das questões de saúde pública, como a previsão normativa dos deveres do Estado para com ela, a postura que vem sendo tomada hodiernamente pelos administradores da saúde pública brasileira e a discussão sobre o momento em que inicia a vida humana; e, ao cabo, formula-se sugestões de medidas que se entende aptas a enfrentar a questão.
2. Os fatores contrários à descriminalização do aborto
No Brasil podem ser apontados como fatores contrários à descriminalização do aborto os seguintes argumentos e influências: a norma atual, considerando-o ato ilícito e autorizando-o somente em casos específicos e restritos; a religião predominante, com posição ferrenha e contrária ao aborto; e a parcela conservadora e legalista da sociedade, por questão hermenêutica ou religiosa.
Começando pelo tratamento jurídico dado ao aborto no Brasil, a legislação brasileira[2] autoriza a interrupção voluntária da gravidez somente em duas situações: aborto necessário ou terapêutico, na hipótese de haver risco à vida da mãe; e aborto humanitário ou sentimental, quando a gravidez decorre de estupro. Entretanto, como ensina Vivente de Abreu Amadei[3], essas não são hipóteses legais de aborto, mas sim casos de ilicitude em que se exclui a punibilidade, da mesma forma que ocorre nos casos de abortos eugênicos autorizados por decisão judicial. Em todas as demais hipóteses, a prática abortiva é punível, tanto nos casos em que é provocado ou consentido pela gestante, como no caso de ser provocado por terceira pessoa[4].
Na conjuntura legislativa, tramitam pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal diversos projetos de lei versando sobre a matéria. Alguns pela transformação do crime de aborto em crime hediondo; outros pela ampliação de permissivo legal para os casos de má formação fetal ou eugenésicos, nos quais se incluem os de anencefalia; e os que buscam a total descriminalização do aborto.
Seguindo o mesmo viés, embora nosso país seja um Estado laico, como prega a Constituição Federal[5], não há um distanciamento da influência católica na hora de legislar. Assim, a religião tem sido a maior barreira, não só à descriminalização do aborto, mas também à sua discussão em âmbito nacional. Esta situação assemelha-se àquelas ocorridas em 1940 e 1973, quando malgrado a Igreja Católica ser extremamente contrária, foram aprovadas duas importantes leis: o Código Penal, que passou a autorizar o aborto necessário e o aborto humanitário; e a Lei do Divórcio, permitindo a dissolução do casamento civil.
A norma, diante daquele entrelaçamento com a orientação religiosa, acaba por não acompanhar a evolução social do povo, distanciando o ordenamento jurídico da realidade na qual ela deveria estar apta a pacificar, como no caso da prática do aborto.
Por derradeiro, sobre os fatores contrários à descriminalização, pode-se considerar como outra vertente a parcela conservadora e legalista da sociedade[6], composta pelos cidadãos que formam sua opinião sobre o tema por intermédio de uma única fonte de informação, filiando-se àquele pensamento sem questioná-lo, como se fosse o único correto.
Destarte, enquadra-se nesta parcela a grande massa de devotos religiosos que recebem e conservam como única verdade os ensinamentos repassados por seus ministros, rechaçando de imediato qualquer opinião que contrarie seus ditos e dogmas; e, ainda, os cidadãos que se fixam literalmente ao texto legal, encarando o mundo que os cerca como algo estanque e imutável, ignorando que a legislação e os conceitos nela contidos, quando desajustados ao contexto em que estão insertos, devem ser alterados, reformulados e atualizados de acordo com a necessidade e o conhecimento contemporâneos.
É neste último grupo que estão os maiores defensores da tese de que o início da vida humana começa com a concepção, ponto de suma importância na contenda sobre a legalização do aborto.
3. A saúde pública como fator preponderante à descriminalização do aborto
A saúde pública, da mesma forma que é um direito assegurado constitucionalmente a todos, é também um dever do Estado. Esta é a máxima do art. 196 da Constituição da República Federativa do Brasil[7], que assevera, ainda, o compromisso do Estado com a tomada de medidas políticas, sociais e econômicas no sentido de promover, proteger e recuperar a saúde da população, de modo a reduzir os agravos [8] que causam um mal à coletividade.
Quando ocorre faticamente uma das hipóteses previstas no dispositivo supracitado, emerge para o Estado a responsabilidade para lidar com estes infortúnios e proceder da maneira melhor e mais eficiente para cuidá-los. Destarte, no momento presente, pode perfeitamente ser vislumbrado o enquadramento da realidade social com a previsão constitucional, autorizando a tomada de medidas públicas na área de saúde como prevê a Carta Magna. Pois, mesmo havendo restrição legal à interrupção voluntária da gravidez fora das exceções previstas na lei, ela continua a ocorrer em grande quantidade, e esta ilegalidade torna-se mais prejudicial que o próprio aborto, já que quando as gestantes se entregam às clínicas clandestinas as conseqüências muitas vezes são mais prejudiciais, física e psicologicamente, do que se houvesse a assistência legal do serviço público de saúde.
Assim, corroborando a identificação do suporte fático abstrato com o suporte fático concreto, bem como a tese de que o aborto é uma questão de saúde pública, estão os dois principais administradores públicos da área: o Presidente da República, Luis Inácio Lula da Silva, em caráter geral, como chefe de governo e de Estado; e o Ministro da Saúde, José Gomes Temporão, em caráter específico, como responsável pelos assuntos relacionados à saúde da população.
Os dois administradores manifestaram sua ótica por diversas vezes, e através de diversos veículos de comunicação, sendo a defesa do Ministro Temporão a mais forte da posição estatal, pois assumiu o cargo em março de 2007 tomando uma postura de vanguarda ao enfrentar a parcela da população composta pelos setores ligados à Igreja Católica, e que além de ser favorável à política de planejamento familiar, é um defensor do aborto, talvez o maior defensor hodierno. O Ministro defende publicamente a realização de um plebiscito para colher a opinião da população brasileira sobre o tema, de maneira similar ao que ocorreu em Portugal[9], onde a forma escolhida foi o referendo[10].
A posição externada pelo Ministro Temporão em diversas falas públicas provocou um alvoroço nos políticos de vinculação religiosa, o que fez com que no legislativo se unissem a alguns petistas, numa campanha para não deixar que fosse promovido o debate nacional, como afirma André Petry[11], que segue dizendo que “pode-se, portanto, ser contra ou a favor do plebiscito. Contra ou a favor do aborto. Mas interditar o debate é coisa de pequenos ditadores, que se julgam em oposição de dizer ao país: calem-se, todos”.
A sugestão manifestada, de início, parece uma boa saída para dar suporte aos representantes do povo no Legislativo. Ocorre que, se analisada cautelosamente a hipótese, verifica-se que o custo para um plebiscito num país do tamanho e com a população do Brasil, como ocorreu com o referendo sobre a proibição da comercialização de armas de fogo realizado no ano de 2005, é vultoso, pois, além da votação em si, deve existir previamente, em nível nacional, um espaço igualitário à defesa e à refutação da idéia da descriminalização do aborto.
Acrescenta-se ainda, para salientar a constância desse quadro de necessidade de intervenções políticas diretas na área da saúde pública, mais precisamente no que diz respeito aos casos de aborto, que o Ministério da Saúde, antes mesmo da posse de Temporão, já vinha demonstrando sua preocupação com os abortamentos inseguros realizados no Brasil. Essa preocupação constata-se pelas normas técnicas editadas pelo Ministério sob a direção do Ministro Humberto Costa, principalmente a Norma Técnica de Atenção Humanizada ao Abortamento[12], e a Norma Técnica de Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual Contra Mulheres e Adolescentes[13].
Ademais, segundo declarações do Ministro Temporão[14], só no ano de 2006, cerca de 220 mil curetagens[15] foram realizadas na rede pública de saúde, tendo como pacientes mulheres vítimas de abortamentos inseguros realizados em clínicas clandestinas, onde não há o mínimo cuidado com higiene, e onde, no mais das vezes, os procedimentos empregados são rudimentares quando comparados aos métodos mais modernos de intervenção. E, além destes, estima-se que gire em torno de 1,1 milhão o número de procedimentos abortivos realizados em clínicas marginais que não chegam à notoriedade pública, como aqueles que resultam na morte da gestante.
Por outro lado, não é possível ignorar que a definição do momento em que se inicia a vida é o ponto nuclear da discussão do aborto. Quem defende o aborto tem que fornecer uma saída para o dilema de alterar o marco tradicional, de modo a argumentar contra aqueles que rechaçam a descriminalização dizendo-se amparados legal e constitucionalmente para sustentar que a vida começa com a concepção.
Ocorre que, tão-somente o Código Civil, mais especificamente em seu art. 2.° [16], refere-se a direitos existentes antes do nascimento, os quais são em número muito inferior aos concedidos à pessoa que com a vida adquire personalidade civil. Conquanto isto, a Constituição Federal, no art. 5.°, [17] menciona a proteção à vida sem fazer qualquer referência à concepção, o que enfatiza a não adoção pelo texto constitucional da teoria que põe a salvo a vida naquele instante.
Agora, no que toca à melhor definição para precisar o início a vida, nada mais inteligente do que recorrer à ciência mais adequada, a medicina, saindo assim das especulações religiosas e filosóficas.
É sabido que ao longo da história, com o desenvolvimento e o alargamento dos conhecimentos científicos, os conceitos médicos foram sendo modificados. Com o conceito de morte não foi diferente. Atualmente o Conselho Federal de Medicina define morte como sendo a “parada total e irreversível das funções encefálicas”, ou seja, quando não há mais atividade cerebral[18]. E é por aí, com base numa interpretação analógica, que se pode estabelecer a definição de vida: se a morte ocorre quando se encerra a atividade cerebral, a vida inicia-se, então, quando essa atividade começa. Daí, se a atividade cerebral só se inicia por volta da décima semana de gestação[19], haveria tempo suficiente para que se pudesse realizar o aborto legal, com segurança e controle, dentro deste lapso temporal.
Tomando como premissas aquelas considerações, os que advogam em defesa da legalização do aborto, por parte dos setores não ligados diretamente ao governo, não o fazem no intuito de obter sua autorização desmedida, não buscam a descriminalização sem critérios, e muito menos sua banalização ou obrigatoriedade de realizá-lo. O que eles buscam é a garantia de atendimento estatal público e seguro àquelas mulheres que querem realizar o aborto independente do consentimento estatal.
Com a retirada do caráter ilícito da conduta, os estabelecimentos públicos de saúde e as clínicas particulares estariam autorizados a realizar o abortamento sem o risco de adentrarem no âmbito penal. E, incontinenti, a primeira benesse dessa autorização seria às mulheres de baixa renda, que poderiam recorrer ao abortamento seguro e sem despesas, pois as que são de uma classe social mais elevada sempre tiveram a opção de pagar clínica seguras, clandestinas ou de fachada legal, assistidas por profissionais preparados.
Para complementar, destaca-se que não se pode confundir descriminalização com banalização. O aborto, descriminalizado, não seria realizado de qualquer maneira e a qualquer tempo, com uma discricionariedade ilimitada da gestante; estabelecer-se-iam algumas exigências: o aborto não seria praticado a qualquer tempo da gestação, mas por critérios definidos, como ocorre em Portugal, com a colaboração da ciência médica para sua fixação; a gestante passaria por análise psicológica, para a cognição do seu estado mental contemporâneo; haveria a intervenção de assistentes sociais, de modo a verificar a realidade social em que está inserta a gestante, no fito de verificar a viabilidade da modificação do seu estado através de ações sociais, visando a desestimulação do ato; e, também, a explanação de um profissional da saúde, sobre o que é de fato um aborto, como é realizado, e os efeitos que causaria ao seu corpo.
4. Considerações finais
A realidade é que no Brasil milhares de mulheres recorrem às clínicas clandestinas de aborto, sujeitando-se a todo tipo de contaminação e infecção, além da falta de conhecimentos e técnicas científicas das pessoas que praticam o abortamento, gerando um problema de saúde pública para o Estado resolver. No entanto, parece que esses fatos não são lembrados, muitas vezes voluntariamente, no momento de se debater a legalização ou não da prática abortiva.
Verifica-se ainda, de forma latente, a influência religiosa católica em nosso ordenamento jurídico, mais especificamente na manutenção do enquadramento legal do aborto como crime, e na preservação do conceito de que a vida humana começa com a concepção.
O Poder Executivo, dado a inércia do Poder Legislativo em tratar da problemática do aborto, vem tomando posições e atitudes no sentido de estabelecer, senão sua descriminalização, pelo menos a elevação da contenda ao nível nacional, embora a proposta de plebiscito sugerida pelo Ministro da Saúde José Gomes Temporão não pareça ser a melhor atitude a ser tomada no momento. O aborto, como problema de saúde pública, precisa de solução imediata, e um plebiscito, além de ser por demais oneroso, demora na sua preparação e realização, sem falar na elaboração das propostas a serem votadas, que levariam outro lapso temporal considerável.
Pode-se concluir que com a legalização da prática abortiva muitas seriam as conseqüências positivas à saúde das mulheres e, por conseguinte, à saúde pública: ocorreria a diminuição dos procedimentos realizados clandestinamente, pois estes passariam a ser realizados na rede pública de saúde; diminuiriam as seqüelas do procedimento nas mulheres, incluindo hemorragias, perda do útero e morte, v.g.; haveria um controle estatal, direto, do número de procedimentos abortivos realizados nas instituições públicas e nas clínicas particulares; e, ainda, poderiam ser realizadas pesquisas e estudos com as mulheres que optaram pelo aborto, de modo a se estabelecer políticas regionais de desestimulação da prática abortiva.
Ademais, independentemente da descriminalização do aborto, ou tão-somente da ampliação da discussão do tema no âmbito nacional, resta ao Estado a tomada de medidas referentes à saúde pública. A Constituição Federal enumera nos artigos 196 e seguintes os deveres do Estado para com a saúde: prevenção, controle e fiscalização. Neste diapasão, cabe ao Estado, primeiramente, iniciar uma campanha de esclarecimento à população sobre ‘o que é’ e ‘como é’, de fato, realizado o aborto e a curetagem, valendo-se para tanto de medidas de caráter preventivo, respaldadas no artigo 198, inciso II da Constituição, o qual reza que essas ações públicas de saúde devem ser realizadas com prioridade para as ações preventivas; e, igualmente, seguir os passos de sucesso da campanha estatal de combate à AIDS e às doenças sexualmente transmissíveis; campanhas essas que se baseiam nesse mesmo fundamento: a conscientização da população, respeitadas suas particularidades e seus objetos diversos, a saúde e vida, respectivamente.
Com base naqueles programas pode-se verificar que os valores sociais e de saúde pública acabaram preponderando sobre o aspecto ético e moral da religião, representando um grande passo no combate a AIDS, principalmente. E é aí, neste ponto em específico, que se vislumbra um perfeito exemplo de acerto do Estado e do governo na efetivação de tais ações – obtendo uma redução significativa nos índices de contaminação, e o erro religioso – ao ir de encontro a elas, ignorando os efeitos benéficos na saúde coletiva brasileira.
Agindo daquela maneira quanto ao aborto, estar-se-ia educando a população sobre o risco que existe à saúde quando da realização de um aborto, e o esclarecimento desestimularia a recorrência de mulheres a formas sub-reptícias, afastando o risco à sua integridade física.
Finalmente, em relação ao dever estatal de controle e fiscalização de procedimentos de interesse afins à saúde, previsto no artigo 200, inciso I, da Constituição Federal, há a necessidade de intensificarem-se as atividades fiscalizatórias nos estabelecimentos e clínicas médicas particulares legalizadas que realizam procedimentos abortivos, bem como nos clandestinos, só que nestes, por meio de políticas maciças de identificação dos locais, profissionais e pessoas ligadas a elas.
Acadêmico de Direito na FURG/RS
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