Ação civil pública contra a taxa de iluminação pública: Hipótese de defesa do consumidor ou do contribuinte

INTRODUÇÃO

Muitos municípios brasileiros têm insistido na cobrança da Taxa de Iluminação Pública – TIP, embora os tribunais nacionais, inclusive o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça, tenham-na declarado inconstitucional em mais de uma oportunidade.

A ânsia exatória do Poder Público tem prejudicado sobremaneira o cidadão, e os órgãos de defesa da cidadania têm se prestado à tarefa de combater normas e condutas que prejudicam a coletividade. No caso da TIP, que é uma taxa que viola os direitos de milhares de pessoas, nos municípios pequenos e médios, e de milhões de habitantes dos grandes conglomerados urbanos do País, o Ministério Público tem sido um dos órgãos que mais tem se esforçado para eliminar da ordem jurídica tal excrescência.

Todavia, certos posicionamentos jurisprudenciais têm negado ao Ministério Público legitimidade ativa para propor ações civis em defesa dos interesses dos cidadãos atingidos pela cobrança da taxa de iluminação pública, sob o argumento de que aí se trata de defesa do contribuinte (à qual o Parquet não estaria habilitado), e não de defesa do consumidor. Tal entendimento vem sendo veiculado na Bahia, pelo Tribunal de Justiça do Estado, que em várias ações civis públicas iniciadas pelo MP tem-lhe negado legitimatio ad causam.

Assim a polêmica que nos levou a escrever este artigo funda-se na seguinte indagação: ao posicionar-se contra a TIP está o Ministério Público defendendo interesses de contribuintes ou também defendendo interesses de consumidores?

CONCEITO DE ILUMINAÇÃO PÚBLICA

Para responder a essa pergunta, antes é preciso que recordemos que em recente audiência pública realizada em Brasília, a ANEEL – Agência Nacional de Energia Elétrica pretendeu estabelecer condições gerais para regulamentar o fornecimento de energia elétrica para iluminação pública.

De acordo com as consideranda da resolução da Agência, visava-se a adequar tal serviço à Lei Federal n. 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor), à Lei Federal n. 8.987/95 (Concessões de Serviços Públicos) e a outras normas.

Segundo a ANEEL, “Iluminação Pública é o serviço que tem por objetivo prover de luz ou claridade artificial, no período noturno ou nos escurecimentos diurnos ocasionais, os logradouros públicos”, incluindo-se neste conceito os logradouros públicos que necessitam de iluminação permanente no período diurno.

A resolução classifica como iluminação pública o fornecimento de energia elétrica para iluminação de ruas, praças, avenidas, túneis, passagens subterrâneas, jardins, vias, estradas, passarelas, abrigos de usuários de transportes coletivos, e outros logradouros de domínio público, de uso comum e livre acesso, cuja responsabilidade pelo pagamento das contas e pelas demais obrigações legais, regulamentares e contratuais seja assumida, exclusivamente, por pessoa jurídica de direito público.

A resolução reconhece que a responsabilidade pelos serviços de projeto, implantação, expansão, operação e manutenção das instalações de Iluminação Pública é dos Municípios e dá outras providências. No entanto, ao aprová-la perdeu-se grande oportunidade de se definir, no âmbito da Agência e das concessionárias sujeitas à sua fiscalização, se a taxa de iluminação pública é aceitável ou não, se pode ou não ser incluída nas contas de consumo, já que em face dela é o consumidor de energia elétrica quem acaba remunerando o serviço de iluminação pública diretamente, mesmo que dele não se utilize e mesmo considerando que parte do ICMS repassado aos Municípios pelos Estados-federados já tem a mesma destinação.

A TIP E AS RELAÇÕES DE CONSUMO

Como se vê, um dos objetivos da audiência pública realizada pela ANEEL não foi atingido, qual seja, o de estabelecer normas para o fornecimento de energia elétrica para iluminação pública, adequando-as ao Código de Defesa do Consumidor. Não se aperceberam (ou não quiseram perceber) as concessionárias e a ANEEL que a TIP é uma mácula na relação de consumo, é um estorvo para o consumidor e beneficia primordialmente as concessionárias de energia elétrica, que garantem, com a cobrança, o pagamento da conta de iluminação pública pelos Municípios que instituírem tal taxa.

O desrespeito aos consumidores e a omissão da ANEEL são gritantes. Com efeito, os consumidores de energia elétrica ligados à rede de distribuição das concessionárias contratam com as fornecedoras do serviço apenas a disponibilização da energia elétrica em seus imóveis ou pontos de recepção. Nessa relação de consumo inexiste previsão de que a nota fiscal de energia elétrica (a conta de luz) servirá para a cobrança de valores estranhos ao consumo individual dos clientes. Já há aí no mínimo uma surpresa desagradável para o consumidor, que pagará a iluminação pública por ele próprio e também por quem dela se utiliza com maior ou menor intensidade, mas que não está ligado à rede de distribuição.

É relevante notar que a cobrança da TIP somente se viabiliza na medida da cooperação das concessionárias. Os contribuintes da malfadada taxa só o são, porque são consumidores de energia. São as empresas quem fornecem os seus cadastros de consumidores para o lançamento da ilegal exação. São também as empresas que disponibilizam meios técnicos e funcionários de seus quadros para o cálculo do tributo, após a medição do consumo de energia elétrica em kWh (quilowatts hora) por mês.

Evidentemente, somente as concessionárias podem fornecer as informações necessárias para a implantação e a cobrança da TIP, tal como prevista nas leis municipais. Ao assim agirem tais empresas estão violando o equilíbrio e a lealdade contratual de suas relações para com os seus consumidores.

Por outro lado, é bom que se diga que o consumidor de energia elétrica não tem como eximir-se do pagamento da taxa de iluminação pública, cuja inclusão nas contas de luz deve-se, de regra, a convênios firmados entre terceiros (res inter alios). Ou paga-se a taxa ou o consumidor terá sua energia elétrica cortada. O fornecimento será suspenso porque um pagamento está associado ao outro, em conjuminância, não podendo ser dissociado em virtude da utilização de códigos de barras nas notas fiscais de energia. Daí haver desvantagem exagerada para o consumidor e efetivo constrangimento ilegal a atingir relação de consumo. Isso é obvio, porque o que justifica o corte do fornecimento de energia elétrica doméstica, comercial ou industrial é a falta de pagamento do consumo da energia, não havendo previsão legal de que a falta de pagamento do tributo, no caso a TIP, possa também levar a isso.

A prática das concessionárias e dos Municípios é também incompatível com a boa-fé, porque a imposição da TIP surpreende o consumidor, que a respeito disso nada contratou junto à concessionária de energia elétrica. Decorre daí que inexiste obrigação do consumidor para com a concessionária de energia elétrica de pagar a taxa que vai inserida na conta de consumo. Tais empresas não se podem valer de uma relação de consumo para objetivos estranhos aos do intercâmbio fornecedor x consumidor, mormente quando a “cláusula” abusiva é imposta unilateralmente, sem qualquer autorização da classe consumidora ou prévia consulta a ela.

Em matéria de TIP vê-se ainda o não atendimento aos princípios consumeristas da eqüidade e do equilíbrio contratual, autorizativos do reconhecimento da nulidade pleno jure de tal procedimento por parte das concessionárias, até porque por meio dele são violados também direitos básicos do consumidor, como o da informação (art. 6, incisos III e IV, CDC).

Incluindo a TIP nas contas de consumo, as concessionárias de energia elétrica também descumprem o dever de lealdade para com os seus consumidores, porque fornecem abusivamente aos Municípios (ou lhes facultam o acesso), sem aquiescência de quem quer que seja e sem comunicação prévia, o cadastro dos consumidores de energia elétrica. A prática é desleal (art. 6º, inciso IV, c/c o art. 43, §2º, CDC), porque visa a onerar o consumidor, trazendo benefícios diretos e indiretos para as próprias empresas concessionárias, que são as principais beneficiárias da taxa. De fato, com a TIP as empresas asseguram o pagamento das faturas de iluminação pública devidas pelos Municípios, evitando inadimplência, e ainda auferem lucro adicional, sem risco, pela simples cobrança da taxa, como é o caso do convênio que vigora em Feira de Santana e em outras cidades da Bahia, entre os municípios e a COELBA – Companhia de Eletricidade da Bahia, controlada pelo grupo espanhol Iberdrola.

CONSUMIDOR OU CONTRIBUINTE ?

Já se disse e se demonstrou que as concessionárias de energia elétrica estão intimamente relacionadas com os contribuintes da TIP, por serem eles os seus próprios consumidores. Noutros termos, só há contribuintes da TIP, porque há consumidores das concessionárias de energia elétrica. Consumidores e contribuintes nessa relação acabam se confundindo, constituindo-se as concessionárias de energia elétrica então em violadoras dos direitos consumeristas de seus clientes.

Não se pode defender o malsinado tributo, lançando a objeção de que, em se tratando de TIP, as concessionárias são meras arrecadadoras da taxa. No caso dos bancos, por exemplo, que, por delegação do Poder Público, arrecadam tributos, não há necessariamente uma relação jurídica entre o contribuinte e a instituição financeira. É que, para pagar um tributo numa agência de um determinado banco, não é necessário que o contribuinte seja também cliente desse banco. Aliás, não é necessário que seja cliente de banco algum. Logo, a relação tributária nesses casos independe da (pre)existência de relação de consumo entre o banco e o contribuinte.

No caso da TIP, a situação é absolutamente diversa: só há a cobrança da TIP aos consumidores das concessionárias de energia elétrica, e a ninguém mais.

Exemplificadamente, se há algum morador de Feira de Santana-BA ou de Campo Grande-MS que use em sua residência apenas energia proveniente de painéis solares ou de força eólica (não sendo ligado à rede de energia elétrica de nenhuma concessionária), tal cidadão não será, em hipótese alguma, contribuinte da TIP, mesmo que essa pessoa resida na avenida mais iluminada de Feira de Santana ou na rua de luzes mais feéricas da capital sul-matogrossense. Isto porque, não tendo esse hipotético cidadão de pagar conta de luz da concessionária de energia elétrica, não será possível quantificar a TIP e lançá-la na conta de consumo.

Contrariamente, um consumidor da concessionária de energia elétrica, que resida no logradouro mais ermo e obscuro de uma das muitas cidades do País que cobram a TIP, pagará a enviesada taxa. E pagá-la-á mesmo não sendo servido por iluminação pública (existência de postes à frente de sua residência ou nas proximidades), porque, no tocante à TIP, o que importa mesmo é que o cidadão seja consumidor da concessionária de energia elétrica.

Evidencia-se, assim, a imbricação entre as relações de consumo e tributária (esta decorrente da TIP), e entre as figuras do fornecedor-agente tributário delegado e do consumidor-contribuinte.

Ademais, deixe-se assentado de logo que tanto as concessionárias de energia elétrica quanto os Municípios são fornecedores de serviços. As primeiras fornecem o serviço de energia elétrica, que prestam mediante concessão. Os segundos fornecem o serviço de iluminação pública, que é de interesse local. Nesse sentido, todos os sujeitos envolvidos integram relações de consumo, tendo seus próprios consumidores. Afinal, o Código de Defesa do Consumidor dispõe que fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado (art. 3º), estando previsto no art. 22 da Lei n. 8078/90 que:

“Art. 22. Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes e, quanto aos essenciais, contínuos”.

Já consumidores, no sentido legal, são as pessoas físicas ou jurídicas que adquirem ou utilizam serviço como destinatário final. Os consumidores das concessionárias de energia elétrica adquirem delas o serviço de fornecimento de energia elétrica. Os consumidores dos Municípios utilizam o serviço de iluminação pública, por eles prestado.

O que se deve perceber é que todos os contribuintes da TIP são consumidores das concessionárias de energia elétrica;

Mas nem todos os consumidores dos Municípios (como fornecedores do serviço público de iluminação das vias) são contribuintes da TIP, tendo-se aí um completo contra-senso e uma demonstração inequívoca de quão absurda é essa imposição tributária, pois pode-se ser usuário do serviço de iluminação pública sem se pagar um centavo por isso.

Se o interesse público da mantença do serviço de iluminação pública pudesse ser usado como argumento para defender a cobrança da TIP, seria forçoso concluir (como é), sob pena de se chegar a um paradoxo, que todas as demandas civis que buscam eliminar essa taxa do mundo jurídico dizem respeito a interesses dos consumidores, i.e., dos consumidores de energia elétrica e dos consumidores do serviço público de iluminação, que são prestados pelos Municípios e pelas concessionárias.

LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO PARA DEFESA DE CONSUMIDORES E CONTRIBUINTES

Pelas razões acima alinhadas, não procede o entendimento esposado por alguns juízes e doutrinadores de que ao Ministério Público faltaria legitimidade para a propositura de ação civil pública para a declaração da ilegalidade da cobrança da taxa de iluminação publica, a famigerada TIP.

De regra, nestes casos, o Ministério Público propõe ações civis para a defesa concomitante dos interesses dos contribuintes municipais e dos consumidores de energia elétrica, que são lesados pela cobrança da taxa de iluminação pública. Ou seja, em geral as ações visam a defender tanto os contribuintes como um todo, quanto os consumidores de energia elétrica com domicílio nos municípios onde propostas as ações.

Estritamente falando, tais ações patrocinadas pelo Parquet não defendem interesses de contribuintes. Sendo evidentes e cristalinas a ilegalidade e a inconstitucionalidade da taxa de iluminação pública, conforme reconhecem de forma absolutamente unânime tribunais e doutrinadores em todo o País, não se tem aí efetivamente uma relação jurídico-tributária. Se a TIP é inconstitucional, a relação tributária é inexistente. Daí porque, em sentido estrito, estará o MP a defender interesses dos consumidores de energia elétrica, que formam a única coletividade de pessoas que pagam a TIP. A coletividade dos contribuintes dessa taxa é formada exclusivamente por consumidores de energia elétrica ligados à rede da concessionária de energia elétrica e por mais ninguém.

Mas, por amor ao debate forense, aceite-se apenas como argumento a existência dessa relação jurídico-tributária. Ainda assim estará o Ministério Público legitimado à propositura da ação civil para a eliminação da TIP de qualquer ordenamento jurídico municipal.

Na Bahia, uma das câmaras cíveis do Tribunal de Justiça, tem rejeitado a legitimidade ativa do MP nas ações antes referidas, sob a alegação de que acórdão do STJ no recurso especial n. 168.415-SP reconhece a ilegitimidade ad causam do órgão. A decisão do Tribunal baiano é equivocada porque este não é um verdadeiro precedente para afastar a legitimidade do Ministério Público. É que aquele decisum da Corte Superior Federal refere-se ao IPTU, tributo que não está ligado a qualquer relação de consumo, como ocorre com a TIP.

O IPTU decorre da propriedade imobiliária. A TIP decorre dos consumos de energia elétrica e do serviço de iluminação pública. O primeiro deriva de uma relação exclusivamente tributária. A segunda, a TIP, é um verdadeiro caso de xifopagia entre uma relação tributária (de existência totalmente questionável) e uma relação de consumo. Uma (a relação tributária) não sobrevive sem a outra (a relação de consumo). Por essa razão primária, em matéria de TIP, deve-se afastar das considerações dos juízes, como fundamento de decidir, o citado acórdão, proferido no recurso especial n. 168.415, por não se cuidar de precedente exato.

Mas o  principal argumento dos que negam legitimidade ao Ministério Público para combater a TIP tem sido o de que consumidor e contribuinte são conceitos distintos, e que o MP só está legitimado à defesa dos consumidores.

Equívoco é esse entendimento.

Em primeiro lugar porque jamais o Parquet tem afirmado que consumidores e contribuintes são conceitos idênticos.

Em segundo lugar, porque, no que se refere à TIP, a relação de consumo coexiste intimamente com a relação tributária.

Em terceiro lugar, porque o Ministério Público, nestas ações, propõe-se a defender interesses tanto de contribuintes, quanto de consumidores.

Por fim, porque negar legitimidade ativa ao Parquet, para a defesa de contribuintes, é negar execução a lei federal, especificamente o art. 5º da Lei Complementar Federal n. 75/93, que instituiu o Estatuto do Ministério Público da União:

“Art. 5º. São funções institucionais do Ministério Público da União:

II – zelar pela observância dos princípios constitucionais relativos:

a) ao sistema tributário, às limitações do poder de tributar, à repartição do poder impositivo e das receitas tributárias e aos direitos do contribuinte”.

A norma federal aplica-se ao Parquet estadual, porquanto, segundo o art. 80 da Lei Federal n. 8625/93 (Lei Orgânica Nacional do Ministério Público):

“Art. 80. Aplicam-se aos Ministérios Públicos dos Estados, subsidiariamente, as normas da Lei Orgânica do Ministério Público da União”.

Impossível então negar ao MP legitimidade ativa para lides dessa natureza, em que se está a um só tempo defendendo interesses dos consumidores e dos contribuintes, que, no que pertine à TIP, confundem-se nas mesmas pessoas.

DO QUE TRATAMOS: APENAS DE RELAÇÃO TRIBUTÁRIA OU TAMBÉM DE RELAÇÃO DE CONSUMO?

Não custa deixar bem claro que nessas causas civis propostas para impedir a cobrança da taxa de iluminação pública há, pelo menos, quatro relações jurídicas em jogo:

CONTRIBUINTE x FAZENDA PÚBLICA (a relação entre os contribuintes e a Fazenda Pública Municipal). Esta relação na verdade só existe por força do argumento, já que a cobrança da TIP é claramente inconstitucional. Sendo assim, essa específica relação tributária não tem existência jurídica no regime constitucional pátrio.

CONSUMIDOR x MUNICÍPIO FORNECEDOR (a relação jurídica entre os consumidores do serviço de iluminação pública e o Município que o presta). Esta relação decorre da simples prestação desse serviço à comunidade. Como serviço local, cabe aos Municípios atender à iluminação pública. As Municipalidades percebem 25% do ICMS arrecadado pelos Estados em seu território para fazer face às despesas com a iluminação de logradouros públicos, entre outras coisas. As pessoas jurídicas de direito público também são consideradas fornecedoras de serviços, e a prestação do serviço de iluminação está no campo de abrangência do Código de Defesa do Consumidor. O art. 3º do Código de Defesa do Consumidor estabelece que “fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada (…) que desenvolve atividades de (…) prestação de serviços”. Há, portanto, evidente interesse dos consumidores desse serviço de iluminação pública em não se verem duplamente onerados. Por sua vez, “consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final” (art. 2º). Não se pode refutar que aí se incluem os consumidores dos serviços públicos municipais, cujos interesses são defendidos pelo MP.

CONSUMIDOR x CONCESSIONÁRIA FORNECEDORA (a relação entre os consumidores de energia elétrica e a empresa fornecedora, como concessionária do serviço público de energia elétrica). Esta relação decorre da prestação pela concessionária do serviço de fornecimento de energia elétrica a estabelecimentos residenciais, comerciais e industriais. A concessionária de energia elétrica, ao cobrar a TIP em suas contas de energia elétrica, obriga seus consumidores a pagar uma taxa indevida, que tem a finalidade precípua de remunerar a própria concessionária. Há nisso uma violência contra o equilíbrio da relação de consumo, expondo o consumidor a prática abusiva. É que as agências bancárias e os postos credenciados ao recebimento das contas das concessionárias de energia elétrica não aceitam o pagamento das contas com exclusão da TIP. O pagamento tem de ser integral e não são previstas alternativas, como v.g. a consignação administrativa. Um tributo comum, como o IPTU, quando não pago, sujeita o contribuinte a execução fiscal. A TIP, quando não paga, sujeita o contribuinte ao corte do fornecimento de energia elétrica, afetando relação de consumo. Acontece, porém, que os convênios firmados pelas concessionárias de energia elétrica e pelos Municípios não podem obrigar terceiros. Terceiros no caso são todos os consumidores das concessionárias de energia elétrica. Tal situação se torna mais grave porque em alguns municípios, essas empresas detêm o monopólio da concessão, não havendo alternativa para o consumidor, senão submeter-se às suas imposições. A forma de cobrança da TIP é, assim, arbitrária, sujeitando os consumidores de energia a uma situação injusta e não equânime. Caso a conta não seja paga in totum, com a TIP incluída, os consumidores correm o risco de ter o fornecimento de energia elétrica suspenso, além de se sujeitarem a execução fiscal pelo Município. Agindo em face dessa relação, o Ministério Público estará sim defendendo consumidores.

CONCESSIONÁRIA ARRECADADORA x MUNICÍPIO INSTITUIDOR (a relação de direito civil entre a concessionária de energia elétrica e o Município sujeito ativo da relação tributária). Decorre do convênio firmado entre as pessoas jurídicas envolvidas para a cobrança da taxa de iluminação pública. Como a TIP é ilegal e inconstitucional, conforme o pronunciamento unânime da doutrina e da jurisprudência de todos os Estados da Federação, há evidente interesse público de defesa da moralidade administrativa, da legalidade e da impessoalidade. Estes princípios constitucionais acabam por ser violados, pois em geral as leis municipais estabelecem as concessionárias de energia elétrica como únicas arrecadadoras da TIP, não se realizando qualquer licitação para a escolha do agente arrecadador, que ainda costuma reter em média 5% (cinco por cento) da arrecadação tributária municipal, como lucro sem risco. Daí estar autorizado também por isso o Ministério Público a propor ação civil para reclamar a declaração de nulidade de convênios assim firmados.

Por conseguinte, vê-se em toda a parte a imbricação entre a relação tributária e a relação de consumo, estando o Ministério Público, em face da relevância social desses conflitos de interesses, apto a atuar para defender tanto os contribuintes quanto os consumidores. Acentue-se que, mesmo quando os Municípios pretendem isentar uma parcela da população do pagamento dessa taxa, fazem-no pelo critério do consumo. Daí porque, em Feira de Santana, por exemplo, “os pequenos consumidores de energia elétrica, assim entendidos como aqueles que consumirem até 100kWh por mês” não pagam a TIP.

CONCLUSÕES

Por tudo o que foi dito, a existência de relação de consumo na hipótese enfrentada é inquestionável. Afinal, as concessionárias de energia elétrica somente têm cobrado o tributo instituído pelos Municípios porque têm feito tal cobrança de seus consumidores. E de ninguém mais!

Se a cobrança da TIP fosse feita por outros meios, independentemente da relação de consumo com as concessionárias, menos haveria a opor à sua ilegalidade (ainda assim seria inconstitucional). O que se pretende demonstrar é que todos os contribuintes que pagam a TIP são identificados como tal apenas porque antes são consumidores de energia elétrica. Isto é óbvio e salta aos olhos, porque o cálculo do valor devido a título de taxa de iluminação pública é feito com base no consumo de energia elétrica de cada imóvel ligado à rede de distribuição da concessionária de energia elétrica.

Vale dizer, as concessionárias e os Municípios somente identificam o valor do tributo ilegal após quantificarem o consumo de energia. Assim, as duas relações jurídicas (de consumo e tributária) estão absolutamente congeminadas. A segunda não subsiste sem a primeira. Afinal, como quantificar e cobrar a TIP sem ter em consideração a relação de consumo subjacente, que decorre da prestação do serviço de fornecimento de energia elétrica pela concessionária?

Evidentemente, o recolhimento da TIP impõe aos consumidores de energia elétrica um ônus indevido, cria um desequilíbrio na relação jurídica de consumo e ofende o princípio constitucional da igualdade. As outras pessoas que também se utilizam da iluminação pública de uma determinada cidade, mas nela não têm imóveis, como os viajantes, os turistas ou os meros visitantes não pagam a TIP nos locais por onde passam exatamente porque não são consumidores da concessionária de energia elétrica local! Assim, a relação jurídica-base no caso da multicitada taxa é a própria relação de consumo. A lesão aos interesses desses consumidores surge com a imposição da TIP em suas contas pela utilização do serviço público concedido. Os interesses são coletivos, porque os titulares são determináveis, amoldando-se à subespécie de interesses homogêneos.

Conferir legitimidade ao Ministério Público para a ação civil pública em que se busca a exclusão da TIP atende aos objetivos da Política Nacional de Consumo, previstos no art. 4º do CDC, como os da proteção dos interesses econômicos dos consumidores, a garantia da harmonia nas relações de consumo e resulta no reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado.

Essa Política Nacional de Consumo reclama a ação governamental para proteger efetivamente o consumidor, mediante iniciativas diretas, extrajudiciais ou judiciais, como a que se tem quando o Parquet assume a defesa dos consumidores das concessionárias de energia elétrica.

O reconhecimento da legitimidade ativa do MP também assegura o cumprimento do art. 6º, inciso VI, do CDC, garantindo o acesso dos consumidores aos órgãos judiciários. E isto é mais relevante em cidades como Feira de Santana onde não existe PROCON (embora tenha meio milhão de habitantes), onde a Defensoria Pública Estadual  não tem qualquer estrutura e mal pode dar conta de suas relevantes atribuições junto às varas criminais, cíveis e de família e onde há apenas uma vara da Fazenda Pública já sobrecarregada com cerca de vinte mil processos. Com a legitimidade do MP, viabiliza-se também o atendimento ao inciso VIII do mesmo artigo 6º do CDC, que determina que é direito do consumidor a facilitação da defesa de seus
interesses.

A legitimação do Ministério Público nessas hipóteses tem muito mais razão de ser do que a que decorre, por exemplo, da Lei n. 7913/89, que confere ao Parquet a atribuição de agir em defesa dos investidores no mercado de valores mobiliários, que são autênticos titulares de interesses individuais homogêneos. A previsão legal equipara-se à da cobrança da TIP. Basta ver o que prevê o art. 2º da Lei n. 7913/89, que se aplica analogicamente às  demandas acerca da TIP e considerar que espécie de interesses a citada lei protege.

KAZUO WATANABE, na obra Código de Defesa do Consumidor Comentado pelos autores do projeto (Forense Universitária, 5ª edição, p. 631), afirma que o interesse do legislador consumerista “foi o de tratar molecularmente os conflitos de interesses coletivos, em contraposição à técnica tradicional de solução atomizada, para com isso conferir peso político maior às demandas coletivas, solucionar mais adequadamente os conflitos coletivos, evitar decisões conflitantes e aliviar a sobrecarga do Poder Judiciário, atulhado de demandas fragmentárias”.

Diz mais o jurista KAZUO WATANABE que “Tem sido, seguramente, com essa preocupação que a jurisprudência vem admitindo a legitimação do Ministério Público para o ajuizamento de ação civil pública para defesa de interesses da população contra a cobrança indevida de taxa de iluminação pública (STJ, REsp. n. 49.272-6-RS). Alude-se à necessidade de admissão de ação civil pública ‘para evitar as inumeráveis demandas judiciais (economia processual) e evitar decisões incongruentes  sobre idênticas questões jurídicas’. Acrescentaríamos a esses argumentos um outro que, em nosso entender, demonstra a efetiva presença do requisito da relevância social: muitos administradores públicos, mesmo sabedores de que uma lei instituidora de imposto ou taxa é inconstitucional, insistem em editá-la e cobrar com base nela o imposto ou taxa e assim agem fundados nos cálculos estatísticos que evidenciam que apenas um número muito restrito de contribuintes se dá ao trabalho de postular individualmente em juízo a tutela de seus direitos. Tem inegável sentido social a ação civil pública movida com o objetivo de obstar semelhante conduta ilícita da administração pública” (p. 641/642).

Assim, merecem tutela coletiva os interesses dos munícipes e dos consumidores, como os de não serem compelidos a exações tributárias ilegais, de terem um governo cumpridor das normas constitucionais e da legislação hierarquicamente inferior e de não serem submetidos a abusos nas relações consumeristas. Diante do evidente interesse social que aflora do caso em exame e sob a inspiração do princípio da economia processual e do desejo de uma Justiça célere, não há como negar legitimidade ao Parquet para atuar em prol dos consumidores e contribuintes, consumidos e atribulados pelos abusos do Poder Público, que não cessa de lançar sua fome tributária sobre a coletividade.

Provoca temor imaginar que os tribunais possam negar legitimidade ao Ministério Público para ações como as que são propostas contra a taxa de iluminação pública. Se tal tendência, ainda ao que parece limitada, espraiar-se pelas cortes superiores, haverá por todo o Brasil uma enxurrada de ações individuais repetitivas, tratando dos mesmos temas de direito, que acabarão aprofundando o problema da morosidade do Judiciário na solução das demandas a ele apresentadas, prejudicando a coletividade e beneficiando apenas gestores públicos sem idéias e empresas privadas desejosas de lucro e facilidades.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Vladimir Aras

 

Promotor de Justiça na Bahia/BA

 


 

Equipe Âmbito Jurídico

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