Ação popular como instituto democrático de participação da sociedade no controle da moral administrativa

Resumo: Este trabalho tem como objetivo apresentar e examinar a ação popular, resguardada pela CF/1988, como importante aliada da sociedade brasileira na fiscalização e combate à má gestão da coisa pública. Serão introduzidos os principais conceitos acerca do tema, procurando dar ênfase em como a sociedade pode fiscalizar e corrigir atos lesivos à moralidade administrativa. Visa ainda estabelecer requisitos de utilização deste instrumento, analisar a moralidade como causa autônoma da ação popular e de que forma o Judiciário tem se comportado na análise dessas causas.

Palavras-chave: Ação Popular. Moralidade Administrativa. Improbidade Administrativa. Controle da Sociedade na Administração.

Abstract: This paper has the main objective of presenting and examinig the popular action, ensured by the Federal Constitution of 1988, as an important allied to the brazilian society in the fiscalization and combat to bad management of public administration. The main concepts of the subject will be introduced, aiming to focus on how the society can fiscalize and correct harmful acts to administrative morale. Also, intent to establish the requirements of utilization, analyze the public morale as autonomous cause for popular action and how the Judicial System has been judging the causes.

Keywords: Popular Action, Administrative Morale, Administrative Dishonesty, Society control in the Administration.

Sumário: Introdução. 1. Evolução histórica. 2. Moralidade administrativa como objeto. 3. Características. 3.1 Conceito. 3.2 Legitimidade ativa e passiva. 3.3 Competência de julgamento. 3.4 Objetivo. 4. Ação popular no controle da moralidade administrativa. Conclusão. Referências.

INTRODUÇÃO

As evoluções constitucionais e filosóficas do Direito moderno trouxeram inovações no campo da participação popular no exercício da cidadania.

Destarte, a Carta Magna de 1988 trouxe à luz da existência uma elevada sucessão de instrumentos democráticos para a efetiva participação popular na formação deste chamado Estado Democrático de Direito. São os chamados instrumentos da democracia participativa.

Além dos direitos individuais, a Constituição consagrou instrumentos de defesa de interesses da coletividade, os quais poderiam ser exercidos por qualquer do povo buscando amparar interesses legítimos e universais.

São instrumentos de proteção da res pública alcançados por meio da tutela judiciária sobre o poder público, invocada por qualquer cidadão buscando proteger interesses coletivos ou difusos, e não individuais. Permitem uma participação maior da sociedade na gerência da coisa pública, promovendo um maior controle sobre os administradores e evitando ou reparando atos lesivos ao interesse coletivo.

São exemplos de instrumentos deste tipo a ação popular, a ação civil pública, o mandado de segurança coletivo, entre outros.

Embora não tão conhecidos pela sociedade em geral, tais mecanismos garantem aos administrados o exercício da democracia participativa no efetivo controle da gestão da máquina pública. São chamadas de ações coletivas, pois delas se objetiva alcançar um resultado de dimensão coletiva e não subjetiva.

Entre tais dispositivos, constitucionalmente expressos, encontra-se resguardada a ação popular, aplicada a casos em que haja uma lesividade da moral administrativa, dos cofres públicos, do meio ambiente ou do patrimônio cultural.

Embora seja um instrumento democrático pouco conhecido, tem uma importantíssima função social como forma de fomentar a participação popular no controle da Administração Pública, devendo assegurar que esta paute sua atuação sempre na moralidade e legalidade de seus atos.

Isto posto, existe uma fundamental importância de levar ao conhecimento dos cidadãos os campos de atuação, requisitos e limites da ação popular, tendo como objetivo principal promover ainda mais a utilização deste instrumento como forma de inibir ou reparar atos lesivos aos bens públicos, favorecendo a ética e a moral na Administração Pública.

1 EVOLUÇÃO HISTÓRICA

Cita Lenza (2014, p. 1163) que o primeiro aparecimento do termo ação popular, no Brasil, se deu ainda na constituição de 1824, porém referindo-se ainda a certo caráter disciplinar ou penal. De sorte que a Constituição de 1934 foi a primeira que estabeleceu conceitos congêneres aos expressos na Carta Magna atual.

Retirado na Constituição de 1937, durante o Estado Novo, o termo renasceu na Constituição de 1946 e seguiu presente durante todas as novas Constituições brasileiras até a atual, não deixando, todavia, de passar por mudanças.

Na Carta de 1934 seu texto se reproduzia: “Qualquer cidadão será parte legítima para pleitear a declaração de nulidade ou anulação dos atos lesivos do patrimônio da União, dos Estados ou dos Municípios”.

Percebe-se, portanto, uma clara alusão do texto ao patrimônio da Administração Direta, isto é União, Estados e Municípios, não mencionando estatais ou sociedades de economia mista.

O texto foi modificado na Carta de 1946 para incluir também as entidades autárquicas e sociedades de economia mista, recebendo a seguinte redação: “Qualquer cidadão será parte legítima para pleitear a declaração de nulidade ou anulação dos atos lesivos do patrimônio da União, dos Estados, dos Municípios, das entidades autárquicas e das sociedades de economia mista.”

Percebe-se uma clara vontade do legislador de incluir toda e qualquer entidade da Administração Pública.

Novamente modificado na constituição de 1967, recebeu a nova redação: “Qualquer cidadão será parte legítima para propor ação popular que vise a anular atos lesivos ao patrimônio de entidades públicas”.

É dada uma nova essência ao texto, desta vez pela inclusão, pela primeira vez, do termo ação popular e em seguida pela retirada da enumeração das entidades pelo termo genérico entidades públicas, sendo claramente intenção do legislador atingir todas as entidades que sejam administradas direta ou indiretamente pelo Estado.

À época, já vigorava a Lei nº 4.717 de 1965, a qual até hoje regula a ação popular. Em seu parágrafo 1º do artigo 1 definiu quais seriam as Entidades Públicas descritas na Carta Magna:

“Patrimônio da União, do Distrito Federal, dos Estados, dos Municípios, de entidades autárquicas, de sociedades de economia mista, de sociedades mútuas de seguro nas quais a União represente os segurados ausentes, de empresas públicas, de serviços sociais autônomos, de instituições ou fundações para cuja criação ou custeio o tesouro público haja concorrido ou concorra com mais de cinqüenta por cento do patrimônio ou da receita ânua, de empresas incorporadas ao patrimônio da União, do Distrito Federal, dos Estados e dos Municípios, e de quaisquer pessoas jurídicas ou entidades subvencionadas pelos cofres públicos”.

Ficou englobada por esta lei, além das entidades da administração direta e indireta, entidades não pertencentes à Administração Pública, porém que fossem subvencionadas por ela de alguma forma. Abrangeu os atos de todas as pessoas jurídicas de direito privado em que o Poder Público tenha interesse econômico predominante (Meirelles, 2013, p.185).

Já existia vontade do legislador de evitar formas de subvenção perniciosa ou lesiva à Administração por meio de entidades estranhas a ela.

Considerava-se patrimônio público: “os bens e direitos de valor econômico, artístico, estético ou histórico”. Havia, portanto, interesse de reparar ou evitar lesão a bem artístico, estético ou histórico antes mesmo do texto constitucional mencioná-los.

Na Carta de 1969, este remédio constitucional não foi incluído de imediato, sendo objeto de Emenda Constitucional posterior (EC nº 1/69) contendo exatamente a mesma redação da Constituição anterior.

Uma nova alteração se deu somente com a vinda da Lei nº 6.513, de 1977, que alterou o conceito de patrimônio público para incluir também bens e direitos de valor turístico.

O instituto recebeu as últimas alterações na promulgação da Constituição de 88, cujas inovações trouxeram novos campos de atuação e, finalmente, impuseram limites ao seu uso.

“Qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência”.

A carta de 1988 modernizou seu conceito autorizando o uso da ação popular nos casos de lesão à moralidade administrativa. Foi um importante avanço na proteção da ética e bons costumes na Administração Pública.

Houve ainda menção explícita aos direitos de terceira geração, tutelados pela ação popular, sendo eles o patrimônio histórico e cultural e o meio ambiente.

Ademais, reformulou o texto referente às entidades que deveria tutelar, desta vez retirou o termo restritivo de “entidade pública”, substituindo-o pela expressão “entidade de que o Estado participe”. Separou ainda o termo “lesão ao patrimônio público” da entidade tutelada, permitindo a proteção de lesão ao patrimônio público sem este estar associado a qualquer entidade da Administração Pública.

Por fim, admitiu a cobrança de custas judiciais e ônus de sucumbência quando seu autor agia de má-fé. Tal alteração se consubstanciou para evitar o chamado denuncismo irresponsável, com objetivo de obter promoção pessoal ou visando perseguição política (Neto, 2015).

Sua regulamentação é dada até hoje pela Lei em vigor nº 4.717 de 29 de junho de 1965, recebendo poucas alterações a partir da Lei nº 6.513 de 20 de dezembro de 1977.

2 MORALIDADE ADMINISTRATIVA COMO OBJETO

O termo moralidade apareceu pela primeira vez na Constituição de 88 como tentativa do legislador de impor novos princípios à Administração Pública. É necessário empreender esforço na sua definição para evitar imprecisão jurídica.

Segundo Mancuso (2001, p.102) o conceito de moralidade administrativa não deve ser confundido com moralidade comum, pois aquela é dotada de regras para uma boa administração, não apenas pela diferença entre o bem e o mal, mas também pelas ideias gerais de administração e da função administrativa.

Existe certa divergência doutrinária na definição de moralidade administrativa. Havendo autores que concebem a moralidade como parte da legalidade, outros como um instrumento à parte.

Di Pietro (2014, p.112) afirma que o conceito de Moral Administrativa é vago e impreciso, muitas vezes sendo absorvido pelo próprio conceito de legalidade. A distinção entre Moral e Direito estaria caracterizada pelo binômio licitude/honestidade, uma vez que nem tudo que é legal é honesto. Afirma ainda a doutrinadora:

“Em resumo, sempre que em matéria administrativa se verificar que o comportamento da Administração ou do administrado que com ela se relaciona juridicamente, embora em consonância com a lei, ofende a moral, os bons costumes, as regras da boa administração, os princípios de justiça e de equidade, a ideia comum de honestidade, haverá ofensa ao princípio da moralidade administrativa”

Segundo Mancuso (2001, p. 102) “a questão da moralidade administrativa situa-se na zona fronteiriça entre o Direito e a Moral e daí a dificuldade em conceituá-la e uma certa resistência em admiti-la como categoria jurídica autônoma.”.

Citam Mendes e Branco (2016, p. 886) que “o princípio da moralidade, tendo em vista sua amplitude, possui pouca densidade jurídica, dada a dificuldade teórica de se precisar seu conteúdo específico”. Admitem ainda que, apesar da dificuldade, deve-se resgatar o conteúdo jurídico do princípio, reconhecendo que o Estado não deve obediência a qualquer moralidade, porém tão somente àquela compartilhada na comunidade política específica.

Deve a atuação administrativa ser capaz de distinguir o justo do injusto, o conveniente do inconveniente, o oportuno do inoportuno, além do legal e do ilegal.

Em uma acepção mais ampla de Mello (2010, p.119).

“A administração e seus agentes têm de atuar na conformidade de princípios éticos. Violá-los implicará violação ao próprio Direito, configurando ilicitude que assujeita a conduta viciada a invalidação, porquanto tal princípio assumiu foros de pauta jurídica, na conformidade do art.37 da Constituição”.

A conduta da Administração Pública, e daqueles agentes que se revestem do poder, deve sempre ser seguida por meio de preceitos éticos visando atingir o interesse público e procedendo aos administrados com boa-fé, honestidade, sinceridade e lhaneza, evitando qualquer conduta astuciosa, eivada de malícia e produzida para confundir, dificultar ou minimizar o exercício de direitos pelos cidadãos (Perez, 1983, apud MELLO, 2010, p. 119).

Nesse sentido o princípio da moralidade foi amplamente concretizado no ordenamento jurídico brasileiro como princípio autônomo e disjunto da legalidade. A doutrina, embora com divergência, acompanhou o positivismo brasileiro.

Como exemplo, a lei que disciplina o processo administrativo[1] em seu artigo 2º remete ao princípio da moralidade ao determinar que a Administração atue “segundo padrões éticos de probidade, decoro e boa-fé.”

A própria constituição federal de 1988 elevou pela primeira vez o regime jurídico-administrativo como fundamento constitucional, ao passo que apresentou, em seu artigo 37, a moralidade como um dos cinco princípios expressos que devem nortear a Administração Pública.

Não resta dúvida, portanto, que a moralidade administrativa tem amplo conteúdo jurídico restando consagrada como princípio autônomo da legalidade, sendo portanto requisito indispensável de validade do ato administrativo. O ato administrativo imoral deverá ser revisto pela administração ou anulado pelo Judiciário.

Sendo, portanto, requisito indispensável à validade do ato administrativo, não é aspecto atinente ao mérito, de sorte que a imoralidade ou improbidade administrativa maculam a validade do ato, tornando-o nulo.

Evidenciando-se que a moralidade administrativa, como pressuposto do ato administrativo que se pleiteia anulação, não necessariamente está ligada ao conceito de legalidade, existem atos que, mesmo dentro dos limites legais, ultrapassam a ideia comum de honestidade, bom senso e infringem as regras da boa administração.

3 CARACTERÍSTICAS

3.1 Conceito

A ação popular é um remédio constitucional que reveste o cidadão de legitimidade para o exercício de um poder de natureza essencialmente política e social, constituindo manifestação direta da soberania popular. É também forma de participação do cidadão na vida pública (Alves, 2011).

Pode ser conceituada também como uma ação judicial, pois consiste em acionar o Poder Judiciário visando corrigir, segundo texto constitucional, ato lesivo ao patrimônio público, à moralidade administrativa, ao meio ambiente ou ao patrimônio histórico e cultural.

Nesse sentido, Da Silva (2014, p. 468) aduz brilhante definição:

“Instituto processual civil, outorgado a qualquer cidadão como garantia político-constitucional (ou remédio constitucional), para a defesa do interesse da coletividade, mediante provocação do controle jurisdicional corretivo de atos lesivos ao patrimônio público, da moralidade administrativa, do meio ambiente e do patrimônio histórico e cultural”.

Sendo um instrumento da defesa do interesse da coletividade, busca amparar interesses da sociedade e não de uma só pessoa. É o que afirma o ilustre doutrinador Meirelles et al. (2013, p. 174):

“É um instrumento de defesa dos interesses da coletividade, utilizável por qualquer de seus membros. Por ela não se amparam direitos individuais próprios, mas sim, interesses da comunidade. O beneficiário direto e imediato desta ação não é o autor; é o povo, titular do direito subjetivo ao governo honesto. O cidadão a promove em nome da coletividade, no uso de uma prerrogativa cívica que a Constituição da República lhe outorga”.

Por fim, de um ponto vista mais amplo, pode-se definir a ação popular como instituto processual outorgado a qualquer cidadão a partir de um remédio constitucional fundado em bases de direitos e garantias fundamentais com vistas a proteger a defesa do interesse da coletividade, mediante tutela jurisdicional sobre a Administração Pública, buscando como finalidade reparar ou evitar ato lesivo à própria Administração, em qualquer dos prismas apontados pelo art. 5º, inciso LXXIII, da Constituição Federal.

Segundo o próprio texto Constitucional é exigido para a propositura da ação a efetiva ou presumida lesividade do ato administrativo, sem isso não há que se falar em ação popular.

Ligada ao requisito de lesividade está o da ilegalidade ou ilegitimidade, uma vez que na presença do primeiro, o segundo necessariamente aparece. É o que cita Temer (2008, p. 208): “embora o texto constitucional não aluda à ilegalidade, ela está sempre presente nos casos de lesividade ao patrimônio público”.

A ilegalidade ou ilegitimidade está ligada a característica do ato administrativo de ser contrário às normas e princípios do Direito. Segundo Meirelles et al. (2013, p. 177): “por infringir as normas específicas que regem sua prática ou por se desviar dos princípios gerais que norteiam a Administração Pública”.

Não se tem dúvida que a ilegalidade está presente nos atos que gerem oneração aos cofres públicos. Entretanto, estaria a ilegalidade sempre presente nos atos que contrariem a moralidade administrativa? Essa é uma questão de grande debate na doutrina.

Nesse sentido assevera Da Silva (2014, p. 467):

“No caso da defesa da moralidade pura, ou seja, sem alegação de lesividade ao patrimônio público, mas apenas de lesividade do princípio da moralidade administrativa, assim mesmo se reconhecem as dificuldades para se dispensar o requisito da ilegalidade, mas quando se fala que isso é possível é porque se sabe que a atuação administrativa imoral está associada à violação de um pressuposto de validade do ato administrativo.”

Em mesma corrente perfilhada, admite Mancuso (2010, p. 100) que a Constituição Federal estabeleceu a Moralidade como fundamento autônomo para proposição de ação popular. Desse modo admitindo a possibilidade de ação popular contra atos administrativos imorais, porém que se revestem de legalidade, isto é, dentro dos limites legais.

É fácil imaginar que possam existir atos imorais, porém formalmente legais. Tome-se por exemplo um administrador que agindo dentro da lei procure prejudicar seu inimigo político. Nesse caso, agirá dentro dos limites de legalidade porém afrontando a Moralidade Administrativa.

Observa-se, portanto, que a Constituição erigiu a moralidade como fundamento autônomo para ação popular, não se exigindo nesse caso a presença do binômio lesividade/legalidade, pois podem aparecer atos administrativos perfeitamente legais que afrontem tão somente a moralidade administrativa.

A própria Lei reguladora 4.717/65 procurou enumerar, em seu art. 4º, os chamados atos com presunção de ilegitimidade e lesividade, entre eles, por exemplo, “a admissão ao serviço público remunerado, com desobediência, quanto às condições de habilitação, das normas legais, regulamentares ou constantes de instruções gerais”.

Além disso, em seu art. 3º, enumerou atos nulos como sendo aqueles que contenham vícios de competência e forma, ilegalidade do objeto, inexistência dos motivos ou desvio de finalidade, sendo por isso passíveis de impugnação por ação popular.

Embora a referida lei tenha procurado taxar o rol de causas passíveis de anulação do ato lesivo, este é meramente exemplificativo, uma vez que outros podem ocorrer segundo a natureza do ato e as prescrições legais específicas para sua prática (art. 3º).

A enumeração, portanto, não é exaustiva, admitindo novas hipóteses de atos ou contratos invalidáveis pela ação popular, desde que ocorram os pressupostos a que se refere art. 5º da Constituição Federal, entre eles a Imoralidade Administrativa.

3.2 Legitimidade ativa e passiva

A Constituição utiliza o termo cidadão para designar os legítimos propositores da ação popular, também chamada de legitimidade ativa. Conforme a lei 4717/65, entende-se por cidadão qualquer pessoa brasileira nata ou naturalizada em pleno gozo dos direitos políticos, sendo tal prova dada por meio do título de eleitor ou documento correspondente (art. 1º, § 3º).

Portanto, segundo Lenza (2014, p. 1166) estão excluídos do rol de legítimos propositores de ação popular, os estrangeiros, apátridas e brasileiros que estejam com direitos políticos perdidos ou suspensos. Além disso, conforme súmula vinculante 365 do STF, as pessoas jurídicas também estão excluídas desse rol[2].

É importante destacar que o autor da ação popular é isento de quaisquer custas processuais, salvo comprovada má-fé. Isto demonstra o posicionamento do legislador em resguardar o instrumento de má utilização além de facilitar seu acesso.

Por outro lado, ainda conforme Lenza (2014, p. 1166), no polo passivo da ação popular figuram o agente que praticou o ato, a entidade lesada e os beneficiários do ato ou contrato lesivo.

Figuram, portanto, pessoas físicas e jurídicas (privadas ou públicas) que se beneficiaram, os agentes públicos que concorreram para a execução ou omissão do ato lesivo e eventuais beneficiários diretos ou indiretos, agentes públicos ou não.

É o que cita o art. 6° da lei 4717/65:

“A ação será proposta contra as pessoas públicas ou privadas e as entidades referidas no art. 1º, contra as autoridades, funcionários ou administradores que houverem autorizado, aprovado, ratificado ou praticado o ato impugnado, ou que, por omissas, tiverem dado oportunidade à lesão, e contra os beneficiários diretos do mesmo.”

Em todos os casos, o Ministério Público tem o poder-dever de acompanhar a ação popular, cabendo a si produzir prova e promover a responsabilidade nas esferas civil e penal, mesmo em caso de desistência do autor, o Ministério Público atua como litisconsorte, podendo dar prosseguimento à ação penal (art. 6, § 4º).

Nessa mesma esteira, qualquer cidadão pode, já no andamento da ação, atuar como litisconsorte ou assistente do autor (art. 6, § 5º).

3.3 Competência

Conforme Lei 4717/65, em seu artigo 5º, a competência originária por regra será do juízo de primeiro grau, de acordo com a origem do ato impugnado.

Em caso de ato produzido por órgão, serviço ou entidade da União, a competência será do juízo da Seção Judiciária em que se consumou o ato. Em caso de Estado, a competência será do juízo que o Tribunal Estadual indicar como competente para julgar as causas de interesse do Estado. E por fim, em caso de Município, a competência será do juízo da comarca a que o município pertença, indicando o Tribunal do Estado aquele que seja competente para conhecer e julgar as causas de interesse da Fazenda Municipal (Meirelles et al., 2013, p. 192).

Nos casos em que seja ajuizada contra o Presidente da República, do Senado, da Câmara dos Deputados, ou ainda, o Governador ou Prefeito, será julgada perante a Justiça de primeiro grau correspondente. O Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal também decidiu ser de sua competência originária o julgamento de ação popular que, pela natureza peculiar, a decisão pudesse criar conflito entre Estado e União[3].

Em todos os casos, a ação popular prevenirá o magistrado de atuar em caso de outra ação popular contra mesmas partes e mesmos fundamentos, conforme art. 5º, § 3º da Lei 4717/65.

3.4 Objetivo

O objetivo principal da ação popular consiste em anular ou impedir a concretização do ato lesivo, não importando se o ato tenha sido praticado, direta ou indiretamente, contra o patrimônio público, que tenha havido ou não intuito de praticar o ato ou ainda que a lesividade seja efeito direto ou indireto do ato ilegal (Pacheco, 2002, p. 580).

Segundo Meirelles (2013, p. 181),

“A ação popular tem fins preventivos e repressivos da atividade administrativa ilegal e lesiva ao patrimônio público pelo quê sempre propugnamos pela suspensão liminar do ato impugnado, visando à preservação dos superiores interesses da coletividade.”

Embora seja mais interessante a proposição da ação antes da efetiva lesividade do ato com efeitos preventivos, a ação poderá ser ajuizada também após a consumação dos seus efeitos, atuando como meio repressivo e reparador de eventuais danos.

 No caso de efeitos preventivos é possível a concessão de liminar. Tal concessão é dada a partir do entendimento do julgador de que haja periculum in mora, tal instrumento foi possível a partir do advento da Lei 6.513/77 que autorizou, em seu art. 34º, a suspensão liminar do ato.

Por outro lado, afora a anulação do ato lesivo, busca-se por meio da ação popular, especialmente nos casos de efeito repressivo, a reparação dos danos por meio da condenação do réu, além do pagamento de ônus de sucumbência. Em se tratando de servidor público, este poderá responder ainda a procedimento na esfera administrativa, como forma de regresso por parte da Administração.

4 AÇÃO POPULAR NO CONTROLE DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA

Conquanto a Constituição Federal consagrou a possibilidade de se intentar ação popular em desfavor de entidades ou administradores que cometeram atos lesivos ao patrimônio público, histórico e cultural, restou um caso que ainda se reveste de grande dificuldade ao julgador e, por isso, necessita de ampla discussão e aprofundamento, são os atos lesivos à moral administrativa.

Seria ação popular, em que não haja lesão ao erário, ao meio ambiente ou ao patrimônio histórico ou cultural, porém tão somente ao conceito de moralidade administrativa, acolhida pelo Judiciário?

Nesse sentido, assevera Mancuso (2010):

“Se a causa da ação popular for um ato que o autor reputa ofensivo à moralidade administrativa, sem outra conotação de palpável lesão ao erário, cremos que em princípio a ação poderá vir a ser acolhida, em restando provada tal pretensão, porque a atual CF erigiu a moralidade administrativa em fundamento autônomo da ação popular”.

A ampliação do objeto da ação popular, aduzida pelo texto constitucional de 1988, sujeitou o contraste judicial à lesão da moralidade administrativa, facultando o ajuizamento da mesma independentemente do tradicional requisito da lesão patrimonial.

No mesmo sentido, a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Recurso Extraordinário nº 170.768, Relator o Ministro Ilmar Galvão, assentou que:

“Para cabimento da ação popular, basta a ilegalidade do ato administrativo a invalidar, por contrariar normas específicas que regem a sua prática ou por se desviar dos princípios que norteiam da Administração Pública, dispensável a demonstração de prejuízo material aos cofres públicos, não é ofensivo ao inc. LXXIII do art. 5º da Constituição Federal, norma esta que abarca não só o patrimônio material da entidade pública, como também o patrimônio moral, o cultural e o histórico”.

Ao mesmo tempo que se admite no instrumento em voga ação em decorrência de lesão à moralidade administrativa, deve o seu agravante comprovar a sua efetiva lesividade, conforme entendimento do Egrégio Superior Tribunal de Justiça:

“O fato de a Constituição Federal de 1988 ter alargado as hipóteses de cabimento da ação popular não tem o efeito de eximir o autor de comprovar a lesividade do ato, mesmo em se tratando de lesão à moralidade administrativa, ao meio ambiente ou ao patrimônio histórico e cultural. (STJ, REsp nº 260821/SP, Rel. Ministro LUIZ FUX, Redator para o Acórdão Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, PRIMEIRA SEÇÃO, DJ 13/02/2006)”.

O entendimento da Suprema Corte é pacífico no tema e foi referendado em recente julgamento, com sede de repercussão geral, no Recurso Extraordinário com Agravo nº 824.781, o Relator Ministro Dias Toffoli, em seu voto de reconhecimento, reformou decisão do Acórdão do Tribunal de origem que não acolhera ação popular visto que não havia sido reconhecida lesão concreta ao erário municipal.[4]

“EMENTA. Direito Constitucional e Processual Civil. Ação popular. Condições da ação. Ajuizamento para combater ato lesivo à moralidade administrativa. Possibilidade. Acórdão que manteve sentença que julgou extinto o processo, sem resolução do mérito, por entender que é condição da ação popular a demonstração de concomitante lesão ao patrimônio público material. Desnecessidade. Conteúdo do art. 5º, inciso LXXIII, da Constituição Federal. Reafirmação de jurisprudência. Repercussão geral reconhecida. 1. O entendimento sufragado no acórdão recorrido de que, para o cabimento de ação popular, é exigível a menção na exordial e a prova de prejuízo material aos cofres públicos, diverge do entendimento sufragado pelo Supremo Tribunal Federal. 2. A decisão objurgada ofende o art. 5º, inciso LXXIII, da Constituição Federal, que tem como objetos a serem defendidos pelo cidadão, separadamente, qualquer ato lesivo ao patrimônio material público ou de entidade de que o Estado participe, ao patrimônio moral, ao cultural e ao histórico. 3. Agravo e recurso extraordinário providos. 4. Repercussão geral reconhecida com reafirmação da jurisprudência”.

Nesse mesmo julgamento, o Ilmo. Ministro Dias Toffoli trouxe importante lição sobre o tema:

“Será mais difícil a compreensão da moralidade administrativa, como fundamento para anular ato que a lese. Por outro lado, pode-se pensar na dificuldade que será desfazer um ato, produzido conforme a lei, sob o fundamento do vício de imoralidade. Mas isso é possível porque a moralidade administrativa não é meramente subjetiva, porque não é puramente formal, porque tem conteúdo jurídico a partir de regras e princípios da Administração. No caso da defesa da moralidade pura, ou seja, sem alegação de lesividade ao patrimônio público, mas apenas de lesividade do princípio da moralidade administrativa, assim mesmo se reconhecem as dificuldades para se dispensar o requisito da ilegalidade, mas quando se fala que isso é possível é porque se sabe que a atuação administrativa imoral está associada à violação de um pressuposto de validade do ato administrativo.”

Evidenciando-se a clara separação entre legalidade e moralidade, e retomando o conceito arrojado pela Constituição Federal de 1988, vislumbra-se que a ação popular é de fato cabível para se impugnar ato administrativo imoral per se, porquanto o objeto da ação for tão somente eventual lesão à moral administrativa.

Nesses casos, deve a análise do julgador recair sobre o prisma da moral administrativa. A exigência do requisito de lesividade ao patrimônio público vai totalmente de encontro ao entendimento do Pretório Excelso.

Chega-se a conclusão que a ação popular tem ampla jurisprudência favorável ao interesse da sociedade. O entendimento sufragado pela Suprema Corte de que não existe a necessidade de lesão efetiva ao patrimônio público, porém tão somente à moralidade administrativa, amplia sua possibilidade de utilização.

Assim, tal instrumento deve ser utilizado não somente para a prevenção e correção de atos lesivos ao patrimônio público, mas também a outros elementos essenciais para a formação de uma sociedade saudável, como por exemplo a probidade, moralidade e ética na Administração Pública.

6 CONCLUSÃO

Os chamados interesses individuais e coletivos foram amplamente tutelados pela Constituição Federal de 1988 como direitos e garantias fundamentais de qualquer cidadão.

Outrossim, a ação popular se consolidou como efetivo instrumento processual constitucional de defesa do patrimônio público e da moral administrativa, assumindo papel de extrema importância na sociedade brasileira para proteção e fiscalização dos interesses difusos e coletivos.

Mais do que somente o patrimônio público, serve a ação popular para resguardar a moralidade administrativa como dever ético da atuação dos gestores públicos. Não há mais espaço para a má gestão e administradores nefastos que lesam o patrimônio público causando mazelas para a população necessitada.

A ação popular, portanto, se reveste de grande valia para todos os cidadãos que buscam uma sociedade mais transparente, ética e eficiente.

 

Referências
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Notas
[1] Lei Federal nº 9.784, de 29 de janeiro de 1999
[2] Supremo Tribunal Federal. Súmula nº 365: Pessoa jurídica não tem legitimidade para propor ação popular.
[3] Supremo Tribunal Federal: Rcl 424-4-RJ. Rel. Min. Sepúlveda Pertence. In: RT 738/206.
[4] Tribunal de Justiça do Mato Grosso. Acórdão da 4a Câmara Cível do TJMT. Relator: Dr. Elinaldo Veloso Gomes. Não restando comprovado qualquer dano ou prejuízo concreto ao erário municipal, impõe-se a manutenção da sentença objurgada que julgou o autor carecedor do pedido formulado em Ação Popular, conforme precedentes do Colendo Superior Tribunal de Justiça e desta Corte de Justiça. Apelação julgada improcedente.

Informações Sobre o Autor

Erick Teixeira Barreto

Servidor Público Federal. Graduado em Engenharia de Computação. Especialista em Engenharia de Sistemas


Equipe Âmbito Jurídico

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