Resumo: No presente artigo procura-se promover uma reflexão sobre a questão do acesso à justiça e a forma de pensar a sociologia jurídica no Brasil, abordando principalmente as visões de Kim Economides, Mauro Cappelletti e Boaventura de Souza Santos, seus reflexos e contribuições para a solução da problemática do acesso à justiça e dos seus rumos epistemológicos.
Palavras-chave: Acesso à justiça. Administração da justiça. Ondas. Conflitos.
1 INTRODUÇÃO
“O tema do acesso à justiça é aquele que mais diretamente equaciona as relações entre o processo civil e a justiça social, entre igualdade jurídico-formal e desigualdade sócio-econômica”. (Boaventura de Souza Santos)
Cronologicamente, constatamos que a Sociologia Jurídica percorreu um árduo e processual caminho até se constituir em uma disciplina autônoma. Porém, é necessário mais do que a sua consolidação para atender as demandas sociais, ou seja, levando em consideração o fator social da disciplina e como tal sua evolução é necessário desenvolver novos enfoques rumo a uma maior tutela da sociedade pelo judiciário.
Pegando como exemplo o nosso objeto de análise mais latente (sociedade/judiciário), imaginemos um caso simples de uma empregada doméstica que é demitida e não recebe seus direitos trabalhistas, ou um consumidor que é lesado em um compra etc. Nestes casos, temos claramente os núcleos sociedade/judiciário, logo podemos imaginar que suas ações na justiça iram demorar algum tempo, as vezes tempo demais. Notamos aí a definição prática da nossa disciplina. Causas de demanda da sociedade e morosidade do judiciário. Essa falta de uma tutela da justiça caracteriza sua crise administrativa. Em uma perspectiva weberiana, a instituição burocrática não cumpre seu papel. Entretanto, o não cumprimento de suas funções esperadas pela sociedade causa um efeito social, seja de frustração, insegurança jurídica ou até mesmo de um diagnóstica de uma crise na administração.
A Sociologia do Direito e Administração da Justiça, como bem foi nomeado pelo professor Boaventura de Souza Santos com seu enfoque contemporâneo, vem trazer uma análise do real entre a sociedade e suas demandas e o judiciário e sua crise administrativa, possibilitando uma maior reflexão sobre o tema e ajudando a desenvolver soluções através de suas pesquisas para o verdadeiro acesso de todos à justiça.
2 ACESSO À JUSTIÇA PELA VISÃO TRIANGULAR E PELAS ONDAS
“Um trabalho, que desenvolvi mais recentemente sobre acesso à justiça, volta à investigação, pode-se dizer, para dentro, deixando o campo da oferta dos serviços jurídicos para concentrar-se no campo da ética legal. Esta nova perspectiva analítica deriva do fato de que considero que a essência do problema não está mais limitada ao acesso dos cidadãos à justiça, mas que inclui também o acesso dos próprios advogados à justiça. De fato, em minha opinião, o acesso dos cidadãos à justiça é inútil sem o acesso dos operadores do direito à justiça”. (Kim Economides)
Quando analisamos as ondas de acesso à justiça estamos nos referindo a um processo analítico da dinâmica histórica da problemática que envolve o acesso à justiça como um todo. Essa metáfora “onda” nos evidencia que cada fator analisado cresce como um espiral e diminui em um determinado tempo, mas é inevitável sua inter-relação entre uma onda e outra. Este estudo é influenciado pelas pesquisas e experiências do professor Mauro Cappelletti *que foi quem empregou essa referência a “ondas” no seu trabalho que é de notável importância para o estudo do acesso à justiça.
Para Kim Economides, o acesso à justiça se baseia na triangulação de demanda, oferta e natureza do problema jurídico. Quanto à demanda podemos diferenciá-la em real, isto é, quanto já se tem o litígio que necessita das vias adjudicatórias e a demanda potencial onde se observa o conflito*. Onde se desenvolvem formas alternativas *para solucionar esse conflito, podemos usar a codificação legal da Justiça de maneira mais flexível a atender as necessidades do caso concreto ou não valorizar a codificação existente e então a proposta é construir um novo direito, denominado “insurgente” ou “achado na rua”. No nosso país, que possui uma desigualdade social gigantesca, podemos destacar a atuação de toda a sociedade, do Estado ou da iniciativa privada, ou mesmo da sociedade organizada. O segundo ponto da triangulação é a oferta, isto é, analisar as condições de oferta a disposição para resolver os conflitos. Será que o Judiciário está preparado? Possuímos operadores do direito competentes? A quanto anda nossa Defensoria Pública? Justiça e igualdade são dois conceitos indissociáveis, mas como se falar em igualdade em um país tão desigual? Essas indagações nos deixam explicito a dificuldade que a justiça tem para fazer a igualdade. A igualdade jurídica é um princípio segundo o qual as prescrições, proibições e penas legais são as mesmas para todos os cidadãos sem que se façam quaisquer distinções quanto ao nascimento ou a sua própria situação, raça, cor, credo, classe social etc. Se todos somos iguais porque a sociedade brasileira nutre essa mentalidade de que só os pobres são punidos?
Desde a declaração dos direitos do homem e do cidadão no seu art.1º define que “todos os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos”, e porque depois de tantos séculos isso ainda não é verdade? Simples não estamos no mundo do “deve ser”, mas no mundo real, no mundo desigual “do ser”. Estou analisando a igualdade do ponto de vista social, ou seja, o que está mais perto da vivencia dos cidadãos. Como exemplo citamos o acesso à justiça. É inacreditável que Estados como Santa Catarina, Paraná e Goiás não tenham defensoria Pública. A demora no julgamento dos processos, sistema carcerário que não degenera os presos, dificuldade dos cidadãos mais pobres saberem seus direitos e, por conseguinte estarem mais vulneráveis às injustiças sociais, efetividade dos direitos Humanos, a impunidade para crimes relevantes contra a sociedade. A impunidade é um dos temas mais sensíveis para a população atualmente. Na medida que a justiça se separa cada vez mais da igualdade esperada por sua sociedade, fica mais distante o sonho de uma justiça que atenda às necessidades e proporcione segurança à população.
Basta subir uma favela, ou mesmo perguntar a um trabalhador que percebe um salário mínimo pra saber que justiça para eles é um sonho difícil de alcançar em um país onde ¼ da população vive abaixo da linha da pobreza. A opinião dos cidadãos só irá mudar quando a igualdade de justiça chegar até eles. Quando de fato acreditarem em uma justiça imparcial e eqüitativa do ponto de vista da sua realidade. Justiça para o Brasil só será possível quando o nosso Estado proporcionar a sua sociedade direita a ter direito, ou seja, direito à justiça.
Para fecharmos o triângulo teórico na visão de Kim Economides, temos a discusão sobre a natureza do problema jurídico, onde vemos que os conflitos podem ser individuais ou coletivos. As causas individuais às vezes podem ser coletivas, por exemplo uma causa de relação de consumo com um fornecedor de um serviço telefônico atinge várias pessoas. Por isso, ao racionalizarmos a ação da justiça, uma ação coletiva seria bem mais vantajosa para o Estado e para a sociedade.
Agora que destaquei as idéias de Kim Economides tacitamente podemos fazer sua diferenciação com as exposições do pensamento de professor Cappelletti que se segue.
A primeira onda de acesso à justiça se relaciona com a melhoria dos serviços jurídicos. Como já citado, será que a demanda da sociedade cada vez mais complexa está sendo atendida? Nesse caso toda ajuda é bem vinda e é o que vem acontecendo.
Com a precariedade de um país continental como o nosso em atender a todos, a sociedade se mobiliza. Podemos destacar: ONGs, escritórios modelo das Universidades de Direito, igrejas localizadas em comunidades carentes e até mesmo o Estado com a criação das Defensorias públicas. Mas ainda tem muito a melhorar em relação à assistência judiciária, assim como a jurídica. Existe um desequilíbrio na advocacia, que em muitos casos só pode ser sanado por advogados pagos pelo governo, para defender os interesses não representados pela camada mais venerável da população. A Globalização contribui muito para essa escasez do operador do direito em determinadas camadas, pois o interesse por altos salários fala mais alto.
A segunda onda diz respeito à proteção dos direitos coletivos. Nosso sistema jurídico até praticamente o fim da década de 80 é marcado por uma cultura individualista que não consegue lidar com o novo padrão de conflitualidade que se estabelece no mundo emergente. Com a mudança de conjuntura global refletida aqui, os novos conflitos coletivos não poderiam ser direcionados ao Judiciário, cujo acesso lhe é obstruído, e acabam sendo deslocados para soluções informais, paralelas e até mesmo ilegais. Não se pode negar o acesso à justiça da grande massa da população. O Estado não pode se negar a lidar com os conflitos do padrão emergente. O Estado deve reconhecê-los e tentar equacioná-los. Mas com a Constituição Cidadã de 1988 temos reconhecido que os direitos se transformaram em coletivos, isto é, identificamos as pessoas possuidoras desses direitos, e com o advento do Código de Defesa do Consumidor essa questão se aflora mais ainda.
A terceira onda se debruça sobre a informalização da justiça. O Juizado Especial Cível, antigo pequenas causas, foi criado no regime militar na década de 80 como resposta à uma sociedade que almejava a democracia e pressionava por mudanças. Pensava-se assim que democratizar era desburocratizar, no fim das contas o JEC se contaminou com a burocracia jurídica e não atendeu de fato quem deveria atender que era a pessoa menos afortunada. Tornar a justiça mais acessível é um dever do Estado, daí a necessidade cada vez maior de se incentivar a mediação de conflitos e as outras formas alternativas de resolução, pois isso aproxima a justiça da sociedade.
Na quarta onda discutimos a questão epistemológica do direito pela visão de Kim Economides. Nessa fase, questionamos o profissional do direito, sua formação, sua habilidade etc. Já parou pra pensar que tipo de cultura jurídica está sendo formada? Será que o profissional formado hoje em dia está preparado para enfrentar um judiciário lento e cheio de burocracia? Os currículos universitários correspondem a uma boa formação humanística?
As pesquisas do professor Cappelletti param na terceira onda, no entanto à professora Eliane Botelho Junqueira, professora da PUC-Rio, que hoje é o principal centro acadêmico de produção de pesquisas empíricas sobre o acesso à Justiça no Rio de Janeiro, desenvolveu a quinta onda que diz respeito à justiça e a globalização.
A globalização tem gerado inúmeras transformações na administração da justiça, com suas transnacionais, empresas multinacionais e que fogem à jurisdição dos estados-nacionais, sem falar na pressão dos grandes organismos internacionais. Fica claro que o Estado não possui um Judiciário preparado para lidar com essas questões. Com isso temos o fenômeno dos tribunais arbitrais, ou seja, uma nova resolução de conflitos supranacional, no qual o Estado tem de enfrentar e se adaptar para resolver satisfatoriamente problemas de ordem global.
3 CONCLUSÃO
No decorrer dessa pequena síntese sobre o “Acesso à Justiça” verificamos que houve uma grande evolução ao tratarmos dessa questão. No entanto, destaca Boaventura: “Estudos revelam que a distância dos cidadãos em relação à administração da justiça é tanto maior quanto mais baixo é o estado social a que pertencem e que essa distância tem como causas próximas não apenas fatores econômicos, mas também fatores sociais e culturais, ainda que uns e outros possam
estar mais ou menos remotamente relacionados com as desigualdades econômicas. Em primeiro lugar, os cidadãos de menores recursos tendem a conhecer pior os seus direitos e, portanto, têm mais dificuldades em reconhecer um problema que os afeta como sendo problema jurídico. Podem ignorar os direitos em jogo ou as possibilidades de reparação jurídica”*. Ao analisarmos esses fatores, percebemos que a situação é muita mais complexa do que parece e sua solução está diretamente relacionada a um conjunto de fatores não puramente econômicos, mas de ordem histórico-cultural que vai muito mais além. O Estado deve reconhecer que não consegue tangenciar todos os conflitos de uma sociedade crescente, cheia de contrastes e de novas demandas, aceitar o pluralismo jurídico em conjunto com um modelo de administração da justiça norteado pela censo comunitário, o qual se realça a manifestação da decisão no grupo do qual as partes são integrantes, sem imposição do monopólio do aparelho burocrático do Estado. A combinação desses fatores citados caminha junto a edificação de um modelo de administração de justiça com a participação popular efetiva. Só com a participação popular nas decisão de sua próprias vidas, podemos caminhar para uma democracia pautada pela cidadania e fazer do acesso à justiça uma realidade que outrora foi fantasiada.
Acadêmico de Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Graduado em Técnico de Administração de Empresas pela FAETEC. Bolsista-Pesquisador do Programa de Educação Tutorial de Direito (PET-Jur) em Direito Constitucional da PUC-Rio
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