Ações cíveis de liberdade: a construção prática do direito á liberdade no Brasil

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Resumo: Esse trabalho tem por escopo investigar o fenômeno das ações de liberdade no século XIX, e analisar o espirito da época que permitiu que seres humanos escravizados pudessem tentar conseguir a sua liberdade através do poder judiciário, operando uma mutação jurídica no status civil do escravizado – res – para o de liberto – pessoa. Buscando compreender o fenômeno em sua dimensão histórico-social-jurídica, através da construção de um direito informal/formal prático/dialético por meio de advogados e juízes simpáticos a causa abolicionista.

Palavras chave: História do Direito. Direito Civis. História do Brasil.

Abstract: The purpose of this work is to investigate the phenomenon of the actions of freedom in the nineteenth century and analyze the spirit of the era that allowed enslaved human beings to try to achieve, or Less trying, their freedom through the judiciary, operating a legal mutation in the civil status of the slave – res – to that of freed – person. Seeking to understand the phenomenon in its historical-social-legal dimension, through the construction of an informal / formal / practical / dialectic right through sympathetic advocates and judges, the abolitionist cause is the object of this research.

Keywords: History of Law. Civil Rights. History of Brazil.

1. Introdução.

Esta pesquisa consiste na busca por um caminho de investigação que desvele a construção das ações cíveis de liberdade na atuação de advogados perante o Tribunal da Relação do Rio de Janeiro no final do século XVIII e durante todo o, XIX. Nesse sentido, o projeto tem o caráter de “guia” ou de orientador em um determinado trajeto. Ele também se presta a função de fornecer dados prévios sobre a pesquisa que se pretende realizar e demonstrar a sua viabilidade enquanto pesquisa cientifica.

Através das ações de liberdade, o Estado, por meio do Poder Judiciário, é provocado a intervir numa seara privada, onde tradicionalmente vigorava o direito costumeiro e o direito de propriedade. Isto é, o poder de alforriar já não estava mais restrito nas mãos do senhor, e, na medida em que o Estado poderia intervir nesta relação determinando que fosse concedida a alforria à revelia dos senhores, terminava por relativizar o domínio que os senhores detinham sobre os seres humanos escravizados.

Em muitas situações foram forjados argumentos de que esses processos, malgrado várias vezes originários de ações consideradas individuais, movidas por escravos, curadores, advogados e, em algumas ocasiões, por promotores, geraram consequências que atingiram vastas esferas políticas, culturais e sociais, bem como a vida e a cosmovisão de muitas pessoas, inclusive as não diretamente envolvidas nos processos judiciais em tela.[1]

Isso ocorreu em razão das repercussões das sentenças e dos trâmites sociojurídicos na correlação de forças e exigências processuais concernentes às avaliações das provas, testemunhos e julgamentos do caso em foco nas ações de liberdade. E principalmente consoante aos resultados das sentenças que envolviam ferrenhos debates e embates entre o costume e o direito positivo de vertente liberal em construção e reformulação e que abarcavam as experiências vividas de escravos com suas famílias, juízes, juristas e advogados, bem como as novas concepções políticas e jurisdicionais que regulamentavam a relação de poder e intervenção de dirigentes políticos e do próprio Estado nas relações tão complexas e multiformes da sociedade imperial da primeira e da segunda metade do século XIX, essencialmente após o processo de independência política do Brasil e fundamentalmente após a primeira lei que proibia a importação de africanos escravizados para os portos do Brasil, como foi a lei de 7 de novembro de 1831.[2]

Desta forma, ao incluirmos as ações de liberdade em seus respectivos contextos temporais, sociais, políticos e espaciais, abordaremos a grande importância dessas documentações. Muitas vezes, elas permanecem desprezadas nos arquivos para o estudo do direito civil, da organização de uma concepção política e cultural de liberdade e propriedade e ainda para o estudo e compreensão das relações das ações de liberdade ou escravização com uma formalização de conceitos liberais que envolveram a propriedade privada, bem como a ideia de liberdade como direitos naturais, assim como uma conotação racializada e discriminatória expressa pelas barras da lei e do costume que conduziu as ações e decisões de muitos agentes históricos escravizados e diaspóricos, no momento de empreender processos cíveis dessa envergadura, como foram as ações de liberdade.

Em quase todos os estudos sobre as ações de liberdade produzidos no Brasil, com raras exceções, não houve um detalhamento metodológico consistente quanto às peculiaridades e diferenças entre as ações de liberdade e outros tipos de processos cíveis relacionados ao mesmo tipo de embate social e jurídico em torno da propriedade, da liberdade e da afirmação da cidadania, tais como ações de proclamação de liberdade, ação de manutenção de liberdade e ação de escravidão. Devido ao universo de abarcamentos, esses documentos são tidos todos no escopo de ações referentes à liberdade e realmente são.

 Entretanto, em muitos estudos, percebemos que há uma generalização e mesmo uma confusão quanto aos seus aspectos jurídicos e funções reais no papel das disputas e concepções de mundo em jogo entre os agentes sociais envolvidos nos referidos processos. Quando abordadas tais ações, tendem alguns estudiosos, muitas vezes, em analisá-las como se fossem todas partes de uma mesma forma processual e com funções muito semelhantes. Não que os estudiosos que se posicionaram dessa forma estejam totalmente equivocados.

 Contudo, faz-se necessário um diálogo entre as evidências mais obscuras contidas nas fontes, os eixos conceituais operados na abordagem e as filigranas, entrelinhas, silenciamentos e as reais funções desses processos cíveis que as diferenciam em sua matéria e espírito para se perceber as diferenciações e complexidades de cada uma dessas ações. Quando as ações de liberdade, ações de proclamação de liberdade, ações de manutenção de liberdade e de escravidão são lidas com as lentes do direito filosófico e com a lógica histórica e dialética entre o contexto real dos sujeitos históricos envolvidos, como também as mediações entre o direito formal e as relações cotidianas e costumeiras, o pesquisador consegue empregar métodos adequados para conseguir diferenciar as razões e formatações que tais documentações assumem para responder aos anseios dos envolvidos. E também reúne instrumentais empíricos para desenvolver ou mesmo operar uma jurisprudência possuidora de uma contextualidade e historicidade necessárias à compreensão do processo histórico e político as quais essas ações cíveis estão servindo de palcos conflituais e de movimentação sócio-jurisdicional entre senhores, escravos e agentes do direito. [3]

Além das diferenciações que as ações cíveis possuem quanto as suas finalidades, também devemos ressaltar suas diferenciações quando de contextos também diferenciados e processos anteriores a um marco político e social, tais como o antes e após o fim do tráfico africano de escravos, antes e após a Lei do Ventre Livre (1871) e a Lei dos Sexagenários (1885).

A título de exemplo, pelo exposto acima, para os historiadores, sociólogos e advogados analisarem as ações de liberdade e outras ações cíveis, primeiramente faz-se necessário compreender o funcionamento dos trâmites jurídicos e institucionais desse tipo de processo cível. A leitura de uma ação de liberdade não é tarefa fácil, exigindo do analista um aparato teórico-metodológico amparado por algumas leituras referenciais sobre temas que envolvem um trato empírico com esses documentos, bem como uma intimidade com as categorias de análise e arcabouços conceituais consoantes a esse tipo de fonte histórica.

Devemos reforçar que o pesquisador carente de embasamento teórico e precário em suporte metodológico e empírico formata uma pesquisa empobrecida, ao passo que um pesquisador seguro e engajado na lógica histórica e seus recursos de testes de hipóteses, conceitos e categorias de análise no confronto das evidências, bem como conectado ao diálogo com outras disciplinas (sociologia, filosofia, geografia e antropologia) tenderá a desenvolver uma pesquisa ampla e profundamente original.

Por essa forma, o pesquisador precisa, além das leituras necessárias ao desenvolver das pesquisas com ações de liberdade, conseguintemente ter uma consciência histórica essencial para conseguir manter tais documentos em sua historicidade e contextualidade. Assim, percebe as ações humanas embebidas em experiências em consonâncias, mas também em processo de reformulação cultural e moral no desenvolver das relações de correlação de forças e conflitos sociais e políticos entre os agentes sociais em confronto ou negociação.

É de fundamental importância para o historiador e demais analistas históricos que esses documentos, tais como outras fontes, sejam estudados em seus contextos específicos e realidades culturais nos quais se cruzam eventos e memórias contraditórias e conflitantes. É preciso estar atento não somente às continuidades sociais, econômicas, políticas e culturais, como também às descontinuidades e às readequações das realidades aos discursos ideológicos e jurídicos da época, bem como aos reordenamentos jurídicos e institucionais pelas normas costumeiras e sociais comuns nas comunidades formadas tanto por escravos, libertos e seus senhores.

Portanto, é necessário se observar também que o tema sobre ações de liberdade já foi alvo de muitos trabalhos historiográficos, conforme bibliografia a ser mencionada, porém o que tema guarda de inovador é verificar se as práticas judiciais utilizadas por aqueles que se lançaram no judiciário oitocentista brasileiro tinham ou não a preocupação nos limites traçados pela ordenação jurídica positiva da época e a analise da mutação jurídica da condição de um escravo – res – para um liberto – pessoa – o que não foi pesquisado até a presente data, conforme intensa consulta empreendida na historiografia brasileira.

Tentar compreender esse fenômeno histórico-jurídico das ações cíveis de liberdade e divulgá-lo para o debate acadêmico e não acadêmico é um dos objetivos deste trabalho. Algumas centenas, ou milhares, de historias dessas personagens que tiveram um papel fundamental na construção do direito informal/formal, pratico/dialético no Brasil, simplesmente estão esquecidas nos registros dos tribunais do país a fora, nos jornais de época e em arquivos públicos.

2. Fundamentação Teórica.

Como colônia do império português, nosso ordenamento jurídico é reflexo das leis e ordenações de além mar. Nas palavras do professor Machado Neto:

“O Direito português pode ser caracterizado como um aspecto da evolução do direito ibérico. Deste participa em suas origens primitivas, na paralela dominação romana, na posterior influência visigótica, na subsequente invasão árabe, na recepção do direito romano justinianeu, apenas separando suas trajetórias históricas quando Portugal separou seu destino das monarquias espanholas de então, seguindo, daí por diante, o seu direito, uma independente evolução nacional.”[4]

O Direito português, consolidado o Estado lusitano, teve por base as “Ordens do Rei”, codificação das leis e costumes vigentes há época, essas ordenações, mormente as Filipinas, se constituíram no ordenamento jurídico do Brasil colônia por mais de três séculos. As Ordenações Afonsinas foram a primeira grande compilação das leis esparsas em vigor. Resultaram de “um vasto trabalho de consolidação das leis promulgadas desde Afonso II, das resoluções das cortes desde Afonso IV e das concordatas de D. Dinis, D. Pedro e D. João, da influência do direito canônico e a Lei das Sete Partidas, dos costumes e usos”. Pelo fato de terem sido substituídas, em 1521, pelas Ordenações Manuelinas, tiveram pouco espaço de tempo quanto à sua aplicação no Brasil Colônia.

As Ordenações Manuelinas foram a obra da reunião das leis extravagantes promulgadas até então com as Ordenações Afonsinas, num processo de técnica legislativa, visando a um melhor entendimento das normas vigentes. Promulgadas em 1603, as Ordenações Filipinas compuseram-se da união das Ordenações Manuelinas com as leis extravagantes em vigência, no sentido de, também, facilitar a aplicabilidade da legislação.[5]

Foram essas Ordenações as mais importantes para o Brasil, pois tiveram aplicabilidade durante um grande período de tempo. Basta lembrar que as normas relativas ao direito civil, por exemplo, vigoraram até 1916, quando foi publicado o nosso primeiro Código Civil Nacional.

A vigência das Ordenações Filipinas e a ausência de legislação que regulasse a matéria de modo satisfatório possibilitavam as brechas legais que favoreciam as ações cíveis de liberdade. Vários foram os fundamentos jurídicos utilizados para respaldar tais ações. Dentre os tipos de ações mais recorrentes, destacamos as que apresentavam os seguintes fundamentos: tráfico ilegal; liberdade mediante pecúlio; fundo de emancipação; ausência de matrícula; manutenção da liberdade. Importante destacar que os referidos argumentos guardavam relação com as diversas leis referentes à escravidão, editadas no século XIX, mais notadamente a partir da década de cinquenta, com o crescimento do número de simpatizantes à causa abolicionista.

A hipótese de liberdade fundada no tráfico ilegal decorre, inicialmente, da Lei de 7 de novembro de 1831, conhecida como Lei Diogo Feijó. A referida Lei estabelecia a ilegalidade do tráfico negreiro para o Brasil, e no seu artigo primeiro considerava livres todos os africanos entrados no Império a partir daquela data. Ocorre que, mesmo após sua vigência, os traficantes ignoravam a Lei e seguiam desembarcando ilegalmente milhares de africanos em portos brasileiros. Em virtude da sua ineficácia, a Lei de 1831 entrou para a história como “a lei para inglês ver”, tal referência se deve ao fato de que a normativa decorreu de pressões britânicas para acabar com o tráfico no Brasil. No que pese a ineficácia verificada no plano fático, a existência de dita Lei no ordenamento constituiu importante fundamento jurídico para ações de liberdade daqueles ilegalmente importados após o ano 1831. Assim, através de testemunhas e documentos, os libertandos buscavam provar que foram trazidos ao Brasil durante a vigência da referida.[6]

Diante da ineficácia da Lei de 1831, foi promulgada em 1850 a Lei Eusébio de Queiroz que também será utilizada nas ações de liberdade. Tal Lei apresenta a mesma finalidade da anterior, qual seja, coibir o tráfico de negros africanos para o Brasil. No entanto, diversos fatores contribuíram para que a Lei de 1850 fosse recebida na sociedade de modo diverso daquela que a precedeu. A eficácia, ainda que gradual, da Lei Eusébio de Queiroz, no sentido de pôr termo ao tráfico ilegal de escravizados, pode ser justificada não apenas em virtude das pressões externas sofridas pelo Brasil, mas também, e principalmente, por conta de diversos fatores internos. Dentre os fatos ocorridos no Brasil, destacamos o aumento da insurgência escrava através de crimes, insurreições e levantes, notadamente a partir de meados da década de 30. A Lei n. 2.040, outorgada pela Princesa Isabel, em 28 de setembro de 1871, também irá respaldar juridicamente as ações em favor da liberdade. A referida Lei, conhecida como Lei do Ventre Livre, conferia a condição de liberto a todos os nascidos após aquela data. Previa ainda, no art. 4º, a possibilidade de compra da liberdade através de pecúlio. A partir desta permissão legal, diversos foram os escravizados que conseguiram acumular quantia suficiente para adquirir a carta de alforria mediante pagamento do valor correspondente ao preço da sua avaliação.[7]

Outro dispositivo da Lei n. 2.040 que passou a ser utilizado para respaldar as ações de liberdade foi a obrigatoriedade da Matrícula de Escravos, prevista no art. 8º da referida Lei. A partir daí, os senhores estavam obrigados a matricular os escravizados dos quais eram proprietários, sob pena de multa. Porém, para o negro escravizado, o descumprimento pelo senhor quanto a tal obrigatoriedade lhe garantia a alforria. Em 1885, a Lei n. 3.270, conhecida como Lei Saraiva-Cotegipe ou Lei dos Sexagenários, complementa a Lei do Ventre Livre e interfere na aplicação do dispositivo referente à concessão da alforria mediante pecúlio. Dentre outras disposições, a referida Lei estabeleceu uma tabela com valores fixos que deveriam ser pagos nas libertações por pecúlio. Os valores variavam em razão da idade e quanto mais idade tinha o indivíduo,

mais baixo seria o valor estimado para sua liberdade.[8]

As ações de liberdade são fontes históricas interessantíssimas, daquelas em que o pesquisador incursiona no universo de embates e acordos entre personagens e não consegue deixá-los até que saiba o resultado das sentenças e se angustia quando seu texto não apresenta conclusão. Trata-se de uma fonte muito rica, porém que exige uma sensibilidade mais específica consoante aos posicionamentos aparentemente contraditórios de seus autores e réus nas barras da lei.

 Tivemos essa consciência quando começamos a desenvolver as nossas pesquisas e a levantar tais documentações, pois nesses arquivos, além da ação de liberdade aqui abordada, preserva uma gama de variados acervos de enorme valor empírico para pesquisadores, legisladores, juízes e advogados, não somente destinados aos trabalhos acadêmico-científicos, mas para o tratamento jurídico de estudos e aplicação das leis, inclusive atuais, como também para a preservação da memória histórica de uma população e seus patrimônios históricos locais, regionais e nacionais.

Portanto, após tais explanações, investiremos no objeto o qual se essencializa este trabalho que respeita a composição processual jurídica, as relações sociais e político-culturais e institucionais que dão significado às ações de liberdade. Assim, apresentemos as problemáticas: – uma ação de liberdade consubstancia-se como um processo judicial cível, ou seja, não criminal, mas de ordem civil, já no contexto dos finais do século XIX, de caráter sumário e que busca dentro dos princípios jurídicos, e inclusive costumeiros, das relações de poder, entre o costume, tradição e a lei questionar uma situação de escravidão em busca da conquista da liberdade, criando ao mesmo tempo jurisprudência para a afirmação da mesma em um arcabouço jurídico social e filosófico tanto na arena do direito quando dos embates socioculturais;[9]

Uma ação cível de liberdade era empreendida, muitas vezes, após a tentativa de os escravos ou seus familiares conquistarem a liberdade pelas vias costumeiras e cotidianas em meio a acordo com seus senhores ou seus herdeiros, ou após uma insegurança quanto a seu destino após o falecimento de um antigo senhor ou mesmo por um confronto direto com o mesmo. Esses escravos, imbuídos de recursos sociais, relações de proteção e mesmo de certa autonomia no mundo das pessoas livres, definem e concretizam sua vontade de se libertar e assumem todos os riscos e consequências que tal tentativa pode resultar, seja seu sucesso, sua derrota e o poder senhorial novamente sobre sua vida em cativeiro.[10]

Todavia, quanto aos trâmites jurídicos, devemos discorrer que o processo de uma ação de liberdade tem início com um requerimento, que prossegue assinado por qualquer pessoa livre, na maioria das vezes a pedido do escravo. Neste ínterim, o juiz nomeia um curador para o escravo e lança a ordem para o seu depósito. Esse depósito concerne ao contrato de depósito, no qual uma pessoa habilitada se obriga a guardar e restituir um bem de alto valor quando lhe for requisitado ou qualquer bem móvel que de outrem receba e pertença. Nesse processo, o escravo cuja ação de liberdade é aceita, deixa de ficar sob a guarda de seu proprietário, sendo dirigido para um depósito, provavelmente sob os cuidados e responsabilidade de seu curador.[11]

Procedido dessa maneira, o curador envia um requerimento, geralmente denominado “libelo cível”, no qual relata as razões pelas quais o requerente reivindica a liberdade. Em meio a todos esses procedimentos pode haver múltiplos e diferenciados requerimentos, tentativas de embargo do prosseguimento da ação cível de liberdade. Todavia, no geral, o advogado do proprietário (ou dos herdeiros deste), que está tendo seu poder moral contestado judicialmente, envia outro libelo apresentando a defesa de seu cliente argumentando em contrariedade ao que apresentou o curador do autor da ação.[12]

Nesse processo de desenvolvimento dos embates judiciais entre senhores e escravos com seus curadores, uma série de exigências acompanham os casos: são ouvidas as testemunhas, certidões são apresentadas e adicionadas à ação cível, como também comprovações das afirmações de ambos os lados por meio dos documentos e depoimentos acima mencionados e mais provas documentais. Dentro dessa realidade e dependendo do contexto, da influência política e social dos senhores e mesmo dos curadores e da extensão da rede de contatos, proteção e recursos financeiros agregados pelos escravos autores das ações, bem como do compromisso dos advogados, juízes e procuradores com a causa, mas também da situação estrutural em que se encontra a instância judiciária local, as exposições dos motivos de ambas as partes e suas respectivas avaliações pelas autoridades competentes em julgar a ação podem prolongar-se por meses e até anos, até que o juiz fique satisfeito e determine a conclusão da ação.[13]

Dado o veredito, ele pode ser contestado por meio de embargos. Caso os embargos fossem aceitos, o juiz então reformaria e divulgaria nova sentença. Mesmo após todo esse percurso, dependendo da sentença e das insatisfações de uma das partes, bem como de seus recursos econômicos e jurídicos, uma ação pode prolongar-se em uma instância e prolongar mais ainda em uma nova ação em que a parte desfavorecida apela da sentença e recorre a uma instância superior, ou seja, à “Corte de Apelação”, ou melhor, para o “Tribunal da Relação” de segunda instância. Até o ano de 1874 foram criados vários tribunais de apelação.[14]

Após a ação ser julgada novamente por esse tribunal, cada desembargador membro dessa instância lia o processo e, em conjunto, proferiam o acórdão da relação, no qual a primeira sentença era reafirmada ou reformada. Dessa nova decisão, as partes poderiam ainda solicitar embargos e, caso fossem deferidos, a sentença poderia sofrer modificações. Caso os curadores de escravos ou advogados de senhores decidissem contestar a decisão da Corte, eles podiam assim fazer, como último recurso, em um processo de pedido de revista cível ao tribunal de terceira instância, no caso até 1808, à Casa de Suplicação de Lisboa; de 1808 até 1828, à Casa de Suplicação do Rio de Janeiro e, a partir desse ano e até 1891, ao Supremo Tribunal de Justiça.[15]

Quanto ao procedimento, regra geral, estas ações eram iniciadas com a petição inicial apresentada em cartório por pessoa livre, representante do escravizado, já que este, enquanto semovente, não poderia peticionar em juízo. Apresentada a petição inicial, o Juiz municipal deveria nomear curador para o libertando. A ausência de curador constituía um obstáculo enfrentado pelo libertando, tendo em vista que inviabilizava o prosseguimento da ação judicial.[16]

Desse modo, estando o escravizado legalmente assistido, era nomeado depositário a quem este seria confiado até o final do processo. A partir daí, as partes apresentavam certidões e arrolavam testemunhas no intento de provar as suas alegações. O Juiz convocava audiência e, com vistas à resolução do conflito, era comum apresentar às partes a possibilidade de acordo. Não havendo acordo e em caso de dúvida ou divergência sobre o valor a ser pago pela liberdade, era designado avaliador responsável por determinar o preço justo a ser atribuído ao libertando e, por consequência, à sua liberdade. Após a lavratura do laudo de avaliação, o Juiz Municipal remetia os autos ao Juiz de Direito para o pronunciamento deste através de parecer ou sentença final. Em caso da sentença ser favorável ao autor, era conferida a carta de liberdade. Caso contrário, sendo a sentença desfavorável ao autor, existia a possibilidade de recurso para a segunda instância, o Tribunal da Relação.[17]

É importante enfatizar que nem sempre era o escravo quem contratava seu advogado na segunda instância. Como a apelação era automática nos casos cujas sentenças contrariavam a liberdade – apelação ex-offício – muitas vezes o curador era designado pelo juiz quando o processo chegava ao Tribunal da Relação, na Corte. Obter curador gratuito era um direito que lhes assistia, como pessoas miseráveis que eram, assim como viúvas e órfãos. Pode-se imaginar, portanto, que nem sempre um advogado aceitasse de boa vontade sua escolha para defender um escravo; este foi o caso, por exemplo de Augusto de Carvalho, representante da escrava Ricarda, que, na introdução do seu arrazoado, lamentava mais a própria situação do que a de sua curatelada: “Agora sim é que tenho de desempenhar a árdua tarefa de curador da mísera Autora Embargante, que me impõem meu dever de juramento.[18]

O Brasil do século XIX caracterizou-se por ser uma sociedade em transformação. A independência política e a abolição da escravatura constituíram processos de mudança sem precedentes na história do país. Com a elaboração do direito nacional e a proclamação da República, o Brasil como que selou a ruptura com as fundações do período colonial e afirmou o compromisso com as bases de uma ordem já em construção desde a primeira metade do século.[19]

A dimensão particular da advocacia, presumível e especificamente abolicionista, não era senão a reelaboração do tipo de estrutura social que, de forma regular, organizava as atividades econômicas por meio do uso da força – física, costumeira e legal – que estabelecia, controlava e garantia as relações concretas de subordinação entre senhores e escravos. Essa relação de força, que dominava na sociedade escravagista, fora retoricamente reconstruída e se manifestara, sistematicamente, na atuação discursiva dos advogados através do uso da força que faziam do método dicotômico como instrumento não apenas de solução de conflitos individuais, mas, sobretudo, como meio de questionamento das estruturas sociais vigentes e de alteração das relações entre senhor e escravo. Assim, para poder enfrentar, na justiça, a escravidão, que enquanto força dominava na realidade social, a liberdade precisava também se constituir enquanto força dotada de características próprias. Era comum aos advogados identificarem essa força com o direito natural e através dele realizarem a defesa da liberdade enquanto realidade concreta.[20]

Analisar as ações de liberdade é uma forma de tentar entender esse fato histórico-social-jurídico de nosso país, principalmente a criação de institutos processuais e argumentações jurídicas que foram elaboradas com o fito de garantir ou manter a liberdade dos negros escravizados ao longo do século XIX no Brasil, não obstante toda a legislação abolicionista promulgada durante esse período.

3. Considerações Finais.

Nas pesquisas realizadas, encontramos livros que remetem a este tema, sobretudo em pesquisas virtuais na Biblioteca Nacional e no Arquivo Nacional.  Entre outros, os trabalhos que merecem destaque e que se utilizaram de ações de liberdade está o de Sidney Chalhoub (2009) que foi publicado pela primeira vez em 1990, e utilizou fontes do arquivo do primeiro tribunal do júri da cidade do Rio de Janeiro, com a finalidade de pôr fim à controvérsia da participação ou não de escravos no processo da Abolição. Com isso, Sidney Chalhoub conseguiu desvendar porque alguns autores se preocuparam apenas em dizer que os escravos não passaram de meros objetos e, como tal, não possuíam meios de resistência contra a instituição da escravidão. A conclusão que chegou foi a de que essas interpretações basearam se em investigação de fontes mal selecionadas. Nesse contexto, após uma investigação minuciosa de alguns casos particulares, conseguiu concluir que havia, sim, estratégias para que não só seus direitos fossem respeitados, como também influenciar por escolhas que significavam uma melhora de vida ou permanência de um mesmo modo de vida.

A tese de doutorado de Hebe Maria da Costa Mattos Gomes de Castro (2013), Das cores do Silêncio: Os Significados da Liberdade no Sudeste Escravista – Brasil Século XIX, utilizou uma significativa variedade de fontes, principalmente os processos crimes e cíveis do Tribunal da Relação do Rio de Janeiro, jornais publicados, entre outros. Com isso, redefiniu os padrões de dominação no período em que a escravidão estava chegando ao seu fim e no período pós-abolição, em Campos dos Goytacazes. A mesma autora demonstrou os diferentes significados de liberdade para escravos, proprietários de escravos e libertos, ressaltando este último e os mecanismos de controle social da escravidão.

Outra autora que merece destaque é Keila Grinberg (1994), que diante das ações de liberdade, aprofundou suas pesquisas sobre o tema, em especial, o caso de Liberata, que foi uma escrava vendida aos dez anos por seu senhor a José Vieira Rebello. Recebia todas as formas de maus tratos para uma negra escrava na época. Mas, baseada na promessa de liberdade por seu senhor, Liberata recorre à justiça e propõe uma ação de liberdade. Para esta autora, Liberata representa toda uma classe escravizada que busca nas autoridades jurídicas o direito à liberdade e, ao final, conquistou o que muitos almejavam , e por meios que poucos imaginavam existir.

Elciene de Azevedo é outra autora relevante para pesquisas sobre a temática da escravidão no Brasil, com sua obra, publicada inicialmente em 1999, inovou ao abordar que o abolicionismo se fortaleceu a partir da militância de juízes e advogados, como Luiz Gama e Antônio Bento, que tiveram contato direto com escravos, e que, com suas ações, buscavam significados sociais extraídos do direito e da lei, o que, por si só, rompe com interpretações tradicionais que abordam o abolicionismo paulista em uma fase “legalista” e outra “radical”, tudo isto obtido através de análises realizadas em documentos do Judiciário.

Com efeito, esta pesquisa foi realizada com base na bibliografia consultada e seguindo um raciocínio na tentativa de compreender esse fenômeno histórico-jurídico, e sua criação de um Direito pratico/dialético, informal/formal na busca por liberdade de seres humanos em uma sociedade escravocrata, tentamos compreender as raízes desse fenômeno.

 

Referências
Azevedo, Elciene. Orfeu de carapinha : a trajetória de Luiz Gama na imperial cidade de São Paulo. Campinas: Editora da UNICAMP : Cecult, 1999.
Castro, Hebe Maria da Costa Mattos Gomes de. Das cores do silêncio:os significados da liberdade no Sudeste escravista – Brasil século XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995.
Chaloub, Sidney. Visões da Liberdade. Um história das últimas décadas da escravidão na corte. São Paulo: Cia das Letras, 2009.
Grinberg, Keila. O fiador dos brasileiros: cidadania, escravidão e direito civil no tempo de Antonio Pereira Rebouças. São Paulo: Editora Record, 2002.
Hespanha, Antonio Manuel. A cultura jurídica europeia: síntese de um milênio. Ed. Almedina. Coimbra. 2012.
Monteiro, Geraldo Tadeu Moreira. Metodologia da pesquisa jurídica: manual para elaboração e apresentação de monografia. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.
Nascimento, Walter Vieira. Lições de História do Direito. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1984.
WEHLING, Arno e Maria José. Direito e Justiça no Brasil Colonial O Tribunal da Relação do Rio de Janeiro (1751-1808) – Rio de Janeiro: Renovar, 2004.
Wolkmer, Antonio Carlos. Fundamentos de História do Direito. Ed. Del Rey, 3º Ed. Belo Horizonte. 2006.

Notas
[1] Sá, Gabriela Barreto de. Historia do Direito no Brasil, Escravidão e Arquivos Judiciais: Analise da Ação de Liberdade de Anacleta (1949). Pag. 05. Disponível em: https://www.tjrs.jus.br/export/poder_judiciario/historia/memorial_do_poder_judiciario/memorial_judiciario_gaucho/revista_justica_e_historia/issn_1677-065x/v10n19n20/HISTORIA.pdf
[2] Idem.
[3] Idem.
[4] MACHADO NETO, AL. Sociologia jurídica. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1979, p. 311. Apud. Fundamentos de História do Direito. Wolkmer, Antonio Carlos. Ed. Del Rey, 3º Ed. Belo Horizonte. 2006. p. 298.
[5] NASCIMENTO, Walter Vieira. Lições de História do Direito. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 201.
[6] Sá, Gabriela Barreto de. Op. cit.. Pag. 05.
[7] Idem. pag. 05.
[8] Idem. pag. 05.
[9] Idem.
[10] GRINBERG, Keila. Liberata: a lei da ambiguidade: as ações de liberdade da Corte de Apelação do Rio de Janeiro, século XIX. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994.
[11] Idem.
[12] Idem.
[13] Idem.
[14] idem
[15] Idem.
[16] SILVA, Ricardo Tadeu Caires. Os escravos vão à justiça: a resistência escrava através das ações de liberdade. Bahia, século XIX. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, pag.07, 2000.
[17] Idem.  pag. O4.
[18] GRINBERG, Keila. Op.cit. pag.260.
[19] Falbo, Ricardo Nery. Direitos Humanos nas Ações de Liberdade. Pag. 01. Disponível em: http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/synthesis/article/view/7445
[20] Idem.

Informações Sobre o Autor

Michel Faria de Souza

Advogado. Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ e em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Mestre em Sociologia e Direito pela Universidade Federal Fluminense – UFF.


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Equipe Âmbito Jurídico

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