Introdução
O Senado Federal cometeu um engano ao confiar na palavra do governo de que não haveria aumento tributário como decorrência da extinção da CPMF, desde que prorrogada a DRU até 2011.
A promessa era tão incoerente e ilógica que teve que ser quebrada. E isso era previsível, conforme assinalamos em artigos e entrevistas anteriores.
A única forma de compensar a perda da arrecadação extraordinária de 40 bilhões de reais, proveniente daquela contribuição provisória que perdurou por 14 anos, era a conteção de despesas inúteis ou improdutivas que a DRU (antes FEF e FSE) vem patrocinando impudicamente.
A DRU representa um ralo enorme por onde escoam e desaparecem, anualmente, mais de 100 bilhões de reais, sem que o Congresso Nacional e o Tribunal de Contas da União possam cumprir, adequadamente, sua missão constitucional de fiscalizar e controlar a execução orçamentária. Representa a mais violenta agressão aos princípios constitucionais da fixação de despesas (art. 167, II da CF) e da vedação de concessão ou utilização de créditos ilimitados (art. 167, VII da CF), próprios de um Estado Democrático de Direito, onde o governante, também, deve submeter-se aos ditames da lei.
A inobservância desses princípios elementares de direito orçamentário inviabiliza o mecanismo de controle e fiscalização das despesas públicas, que passam a ser feitas à discrição do Chefe do Poder Executivo, escamoteando o princípio da legalidade das despesas, que é um corolário do princípio da legalidade tributária, o qual, por sua vez, decorre da soberania popular. Todo poder, inclusive, o poder tributário, emana do povo, diz o parágrafo único do art. 1º da Constituição Federal.
Necessidade de extinguir a DRU
Ao se manter a DRU, que permite as despesas indiscriminadas, era natural que o governo, para continuar usufruindo do privilégio ilegítimo de gastar 20% do produto da arrecadação de tributos federais, independentemente da lei orçamentária anual, ou seja, quando, onde e como quiser, teria que encontrar alternativas de receitas extras para compensar a extinção da CPMF, que já vinha sofrendo desvios na aplicação de seus recursos.
Ao extinguir a CPMF, por coerência, o Senado Federal deveria ter extinto também a DRU, a grande, senão a única responsável pela escalada tributária sem precedentes. Basta verificar que antes desse esdrúxulo tributo provisório, que surgiu em uma conjuntura emergencial (em 1993, para socorrer o setor de Saúde), o nível de pressão tributária estava mais ou menos estabilizado.
Para evitar desperdícios nas despesas correntes e manter a regularidade das despesas de investimentos, a fim de não comprometer as gerações futuras, faz-se necessária a apresentação de uma PEC, extinguindo imediatamente a DRU. Só assim, será possível enquadrar o Executivo à prévia autorização legal de despesas, por via de lei orçamentária anual, devolvendo-se ao Parlamento Nacional a plenitude de suas prerrogativas constitucionais de, em nome do povo, fiscalizar e controlar os gastos públicos. Do contrário, o desperdício de recursos financeiros continuará, a demandar novos aumentos tributários.
O exame sucinto do pacote
A Medida Provisória nº 413, de 3-1-2008, elevou a carga tributária do Imposto de Importação – II – e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido – CSLL – a seguir analisados.
Imposto de Importação
O art. 2º da citada medida provisória majorou o IOF incidente sobre as mercadorias classificadas nos capítulos 22, 39, 40, 51 a 64, 82, 83, 90, 91 e 94 a 96 da Nomenclatura Comum do Mercosul (bebidas, líquidos alcoólicos e vinagres; plásticos; borrachas; lã, algodão; tapetes, tecidos, vestuários etc.).
O aumento ocorreu por meio da substituição da alíquota “ad valorem” pela alíquota fixa ou imposto de valor fixo de R$ 10,00 por quilograma líquido ou por unidade de medida específica da mercadoria.
Essa medida provisória começa desatendendo ao processo legislativo previsto na Lei Complementar nº 95/98, editada em obediência ao disposto no parágrafo único do art. 59 da CF, ao camuflar, em sua ementa, o verdadeiro propósito da medida legislativa, que é o de aumentar os dois tributos acima citados. Por isso, ela padece do vício de nulidade formal.
CSLL
O art. 3º dessa medida provisória, que majorou a alíquota da CSLL de 9% para 15% em relação às instituições financeiras, empresas de seguros privados e de capitalização, além do referido vício formal fere o princípio de isonomia tributária (art. 150, II da CF), porque aleatório o critério de escolha dos setores a serem onerados. O que é pior, afronta o requisito constitucional da urgência a justificar a edição desse instrumento legislativo excepcional.
De fato, tratando-se de tributo que tem como fato gerador o lucro das pessoas jurídicas, tendo como base de cálculo o valor do resultado do exercício, parece óbvio que o instrumento normativo editado em 3-1-2008 não pode alcançar o resultado auferido em 2007. A isso se oporia o princípio da irretroatividade, previsto na letra “a”, do inciso III do art. 150 da CF.
Logo, esse aumento tributário só poderia incidir a partir de 1º de janeiro de 2009, fato que retira totalmente o caráter de urgência, um dos requisitos necessários à edição de medida provisória (art. 62 da CF). Majorar ou criar tributos submetidos ao princípio da anterioridade tributária, por meio de uma medida provisória, editada nos primeiros dias do ano, configura uma aberração.
Aliás, no nosso entendimento, a medida provisória não pode veicular matéria tributária, porque “não preenche o requisito indispensável do principio constitucional da legalidade tributária” porquanto esse princípio “pressupõe prévio consentimento da sociedade no quantum da tributação por meio do órgão de representação popular” (Cf. nosso Direito financeiro e tributário, 16ª edição, São Paulo: Atlas, 2007, p. 322).
Não bastasse a invasão de matéria reservada à lei em sentido estrito, a MP nº 413/08, ao majorar os dois tributos mencionados, em relação à CSLL existe, ainda, um vício adicional, ou seja, não atende ao requisito constitucional da urgência da matéria nela veiculada.
Por tais razões, o Congresso Nacional deve rejeitar essa medida editada pelo legislador palaciano. Em relação ao aumento da CSLL não há necessidade algum de o Parlamento Nacional, por via de um Partido Político, ingressar com ação direta de inconstitucionalidade. O próprio Parlamento, no gozo de sua prerrogativa constitucional, pode e deve rejeitar in limine, sem exame do mérito, a medida provisória que não preencher os requisitos do art. 62 da CF.
IOF
Foi baixado, também, como parte do pacote, o Decreto nº 6.339, de 3-1-2008 para aumentar o IOF em 0,38%, exatamente o percentual correspondente à extinta CPMF, demonstrando o caráter revanchista da medida adotada. Burlou a soberania popular representada pela decisão do Congresso Nacional. O governo autoritário recusa-se a curvar à decisão soberana do Poder Legislativo que, em nome do povo, interrompeu o ciclo de aumento tributário, porque chegou-se à conclusão de que o maior nível impositivo resulta invariavelmente em maiores desmandos administrativos, anulando a capacidade gerencial das finanças públicas.
Acontece que esse aumento do IOF é de uma inconstitucionalidade solar, por manifesto desvio de finalidade, ou abuso de poder, que atenta contra os princípios da administração. Caracteriza autêntico ato de improbidade administrativa, nos precisos termos do art. 11 de Lei nº 8.429/92 (praticar ato visando fim diverso daquele previsto na regra de competência).
Ora, a insubmissão do IOF ao secular e universal princípio da legalidade tributária, no que diz respeito à alteração de suas alíquotas (§ 1º do art. 153 da CF), bem como a exceção ao princípio da anterioridade (§ 1º do art. 150 da CF) decorrem da natureza ordinatória desse imposto. O IOF não é um tributo arrecadatório, mas um imposto destinado a regular as políticas de câmbio, seguro, crédito e de valores mobiliários, que dependem de variações conjunturais.
Daí a faculdade de o Chefe do Poder Executivo alterar as alíquotas do IOF “atendidas as condições e os limites estabelecidos em lei”. Pergunta-se, onde os limites, onde as condições da lei? Que fato implicou alteração da conjuntura nacional ou internacional, em 3-1-2008, em matéria de seguro, câmbio, crédito e títulos e valores mobiliários?
É claro, óbvio e ululante que o astuto legislador palaciano usou da competência que detém para fazer uma coisa, e fez outra coisa bem diferente: compensar a perda de arrecadação da CPMF, que o Senado Federal extinguiu, atendendo à mobilização popular.
Se o Executivo quiser aumentar o IOF, visando o equilíbrio orçamentário, conferindo, excepcionalmente, caráter arrecadatório a um imposto de cunho regulatório, deverá enviar ao Parlamento Nacional o respectivo projeto de lei, em respeito ao princípio da legalidade tributária.
O Poder Legislativo pode e deve sustar, por meio de um decreto legislativo, esse Decreto que invade a esfera de sua competência privativa. Aliás, esse malsinado Decreto nº 6.339/08 é absolutamente nulo. Na teoria do Direito Administrativo todo ato praticado com desvio de finalidade, que se detecta com o exame de sua motivação, é ilegal. E a motivação já foi pública e reiteradamente declarada pelo senhor Ministro da Fazenda: compensar a perda da CPMF.
Logo, esse instrumento editado pelo legislador do Palácio do Planalto é nulo e írrito não tendo o condão de produzir qualquer efeito jurídico. Ele não está no mundo jurídico. É como se fosse um ato inexistente.
Instrução Normativa nº 802/07 da RFB
Embora editada no final do ano de 2007 integra o elenco de medidas decorrentes da extinção da CPMF, a Instrução Normativa nº 802, de 27-12-2007, da Receita Federal do Brasil, obrigando as instituições financeiras a quebrar o sigilo bancário, ao arrepio da lei de regência da matéria, a Lei Complementar nº 105/01.
A medida foi decretada pela RFB como sucedâneo da Lei nº 10.174/01, que autorizava ao fisco a utilização dos dados da CPMF, a qual, perdeu eficácia em virtude da extinção daquele tributo de natureza temporária, que vigorou por 14 anos. Sobre o assunto remetemos o leitor ao artigo anterior intitulado “Fim da CPMF e a quebra do sigilo bancário”.
Conclusões
É preciso que o Congresso Nacional suste a execução do Decreto nº 6.339/08 e da IN nº 802/07, bem como rejeite liminarmente a MP nº 413/08, quer para resgatar o compromisso moral assumido e rompido pelo governo e restabelecer a ética legislativa, quer para restaurar o primado do princípio da legalidade tributária, banindo de vez o princípio da ilegalidade eficaz, que vem prosperando de forma assustadora, nos últimos anos, como decorrência da morosidade ou leniência dos órgãos competentes, quer, ainda, para garantir a sobrevivência da democracia, aonde os governantes têm que se curvar à vontade do povo, representado pelo Parlamento Nacional.
Tributos manifestamente inconstitucionais e ilegais vêm sendo cobrados e arrecadados por meio de instrumentos de coerção indireta em substituição ao princípio constitucional do devido processo legal inserto no art. 5º , LIV da CF. São exemplos desses instrumentos normativos truculentos violadores desse princípio: o bloqueio on line de contas bancárias, não distinguindo o dinheiro disponível, do dinheiro destinado ao pagamento de tributos, de fornecedores e de salários; o protesto da certidão de dívida ativa; a inscrição no Cadin; a medida cautelar fiscal; a indisponibilidade universal de bens; a sonegação de certidão positiva com efeito de negativa; a inabilitação do CNPJ; a proibição de imprimir talonários de notas fiscais; fala-se, agora, em inscrição do nome do devedor de tributos no SERASA.
Urge que o Congresso Nacional reexamine esses instrumentos legislativos, aprovados apressadamente, promovendo a faxina legislativa, extirpando do ordenamento jurídico normas violadoras de direitos e garantias fundamentais do cidadão. Em face da urgência reclamada pela cidadania, o autocontrole da constitucionalidade das leis faz-se necessário nesse momento.
Especialista em Direito Tributário e em Ciência das Finanças pela FADUSP. Professor de Direito Tributário, Administrativo e Financeiro em várias instituições de ensino superior. Conselheiro do Instituto dos Advogados de São Paulo. Presidente do Centro de Pesquisas e Estudos Jurídicos. Ex Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo, Titular da cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Acadêmico, Titular da cadeira nº 59 (Antonio de Sampaio Dória) da Academia Paulista de Direito. Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.
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