Resumo: Este trabalho toma por referência o voto condutor de um julgamento do Tribunal de Justiça de Minas Gerais e considera a possibilidade de que tenha sido em grande parte determinado ideologicamente. Parte-se do pressuposto de que, numa sociedade de classes, a dominação de uma pela outra é garantida pela hegemonia, que se utiliza da ideologia para naturalizar as diferenças e escamotear a exploração. O direito, constitucional e processual, embora referende em tese a pretensão individual de liberdade, rechaçada pelo julgamento ora em questão, é interpretado e aplicado por agências estatais submetidas à ação da ideologia, as quais, por vezes, reproduzem acriticamente os valores assim postos, com o que reafirmam uma dominação de classe. A metodologia do materialismo histórico, assim como aportes da criminologia crítica, são aqui trazidos como importantes elementos voltados à compreensão do tema e equacionamento do problema e das hipóteses de trabalho.
Palavras-chave: Criminologia Crítica. Materialismo Histórico. Direito Penal.
Abstract: It’s assumed that in a society of classes the domination of one to another is guarantee for the hegemony, which uses the ideology to naturalize the differences and to cover the exploitation. Although the constitutional and processual law attests the individual pretention of liberty, which was repelled in such a trial, it’ interpreted and applied by government institutions submitted for the action of ideology, which sometimes emerge critiques to values herein that confirm a domination of classes. The methodology of historical materialism and also parts of critical criminology are taken as important elements to the understanding of the subject and to set the problem and hypothesis of work.
Keywords: Critique Criminology. Historical materialism. Criminal law.
Sumário: Introdução. 1. Decisão do tribunal de justiça do estado de Minas Gerais no julgamento do HC nº 1.0000.16.016063-6/000. 2. Argumentos jurídico-constitucionais contrários ao voto do desembargador Eduardo Machado. 3. Argumentos jurídico-processuais contrários ao voto do desembargador Eduardo Machado. 4. Análise ideológica à luz do materialismo histórico. Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO
O presente estudo se propõe a analisar a decisão proferida pelo Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, no julgamento do HC Nº 1.0000.16.016063-6/000, mais especificamente no que diz respeito ao voto do desembargador Eduardo Machado.
De acordo com o voto do julgador, o paciente – que reclamava a concessão de sua liberdade independentemente de fiança, por se tratar de pessoa pobre – não fazia jus ao benefício em razão de o Judiciário não ser órgão de filantropia e por ser o custo do recurso de Habeas Corpus superior ao da fiança estipulada pelo juízo de primeira instância (um terço do salário mínimo).
Deste modo, parece que o juiz de segunda instância realizou um julgamento de valor, dando primazia ao custo do Estado com o processo criminal em detrimento do direito fundamental constitucional da liberdade do impetrante.
No entanto, o presente estudo se propõe a ir além da análise positiva do tema, não se limitando a discutir se a decisão do desembargador está amparada ou não nos dispositivos legais vigentes. Pretende-se verificar a seguinte questão: o que está por trás do voto do desembargador que o faz supor que o pleito pela liberdade de uma pessoa pobre vale menos do que o custo de um processo criminal? Em outras palavras: por trás do voto do julgador, há uma carga ideológica que norteia todo o sistema do direito penal, direcionada ao encarceramento dos pobres?
Visando a discussão do tema, o artigo trabalhará com a hipótese de que o direito, mais especificamente o direito penal, nada mais é do que um produto do sistema econômico capitalista, trabalhando no auxílio de sua conservação excluindo os pobres improdutivos (desempregados) por meio do encarceramento.
Para verificação da hipótese apresentada, o trabalho utilizará amplamente as obras pertencentes à Filosofia do Direito e à Sociologia do Direito, bem como serão utilizados estudos e textos da Criminologia Crítica.
1. DECISÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE MINAS GERAIS NO JULGAMENTO DO HC Nº 1.0000.16.016063-6/000
A cena é corriqueira: um homem, no fim de fevereiro de 2016, juntamente de uma adolescente, praticou um roubo na cidade de Belo Horizonte. Segundo elementos colhidos, Marcelo, mediante violência, subtraiu um celular e a quantia de cem reais da vítima, com o apoio da inimputável. Preso, Marcelo teve em seu favor estipulada fiança no importe de um terço do salário mínimo pela Juíza de Direito da Vara de Inquéritos Policiais da Comarca de Belo Horizonte/MG. Seu procedimento de prisão foi encaminhado à Defensoria Pública que impetrou Habeas Corpus requerendo a aplicação do artigo 350 do Código de Processo Penal (liberdade independentemente de fiança), por se tratar de pessoa pobre.
Até esse ponto não causa nenhum estranhamento a situação, afinal todos os dias são praticados centenas, senão milhares de crimes patrimoniais nos grandes centros urbanos brasileiros, cujas prisões em flagrante obrigam os magistrados a fixarem fiança em troca da liberdade dos suspeitos. O que chama a atenção no presente caso e será o tema central do presente estudo é a maneira como um dos desembargadores proferiu seu voto em relação ao pleito da defesa.
O relator, desembargador Eduardo Machado, manifestou-se no seguinte sentido ao denegar a ordem:
“Ora entendo que o valor arbitrado pela autoridade coatora foi muito aquém dos limites previstos no art. 321 c/c art. 325, inciso II, do CPP, alterados pela Lei 12.403/11, que autorizam a fixação, para o caso em tela, de 10 (dez) a 200 (duzentos) salários mínimos, a qual pode ser reduzida até 2/3 (dois terços), se assim recomendar a situação econômica do preso, nos termos do art. 325, §1°, do CPP.
Ademais, não se pode olvidar que o paciente já foi por demais beneficiado com a fiança arbitrada, no valor de R$ 293,00 (duzentos e noventa e três), importância esta equivalente a um terço do salário mínimo, devendo se exigir certo esforço do autuado para arcar com a quantia arbitrada.
Já se foi o tempo, e há muito, que o Judiciário era um Poder dado a prestar filantropia. A rigor todo processo tem um preço. E cabe ao operador do direito, mesmo que da Defensoria Pública observar o custo e o benéfico do seu pleito.
Será que ninguém, por mais benevolente que seja, não tenha feito uma análise do quanto custa para o Estado um pleito desta natureza ?????
Será que vale a pena onerar o Estado com o custo de uma demanda extremamente superior ao valor questionado para obter a liberdade do paciente ?????
A falta de bom senso e a valorização de um trabalho jurídico me impressionam!!!!!
Como dito acima já se foi a época em que o direito era tratado como poesia e o Judiciário visto como a casa da concessão de benefícios e de filantropia.
O abuso é reinante e deve ser contido.
E mais uma vez não me venham dizer que o Estado gasta muito mais para manter este paciente preso do que o valor arbitrado para a fiança. Aqui, são coisas distintas, o que se gasta com um preso é muito menos do que o estrago que este pode fazer quando em liberdade.
São por estas e outras que o Judiciário se encontra assoberbado e questões de maior indagação aguardam solução, a falta de bom senso virou regra e o desrespeito com a Justiça aumenta a cada segundo.
Diante do exposto, por não vislumbrar qualquer constrangimento ilegal possível de ser sanado pela via estreita do Habeas Corpus, voto no sentido de DENEGAR A ORDEM”.
O voto do desembargador merece ser estudado, pois aparentemente revela uma carga ideológica que é a mesma que permeia grande parte do sistema criminal. Porém, antes de prosseguir, faz-se necessário demonstrar que os argumentos acima proferidos não foram encampados pelos demais Magistrados.
O desembargador Julio César Lorens denegou a ordem, porém fez ressalva aos argumentos perpetrados pelo relator:
“Acompanho o e. Des. Relator para também denegar a ordem de Habeas Corpus, ressalvando, apenas, meu posicionamento quanto às alegações pertinentes ao custo benefício da presente ação para o Poder Judiciário.
A Constituição Federal, em seu art. 5º, XXXV, dispõe que: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de direito.” Dessa forma, o acesso à justiça é um direito constitucionalmente assegurado para postular tutela jurisdicional preventiva ou reparatória relativa a um direito, também chamado de princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional ou princípio do direito de ação.
É como voto”.
Por fim, em voto divergente, o desembargador Alexandre Victor de Carvalho pontuou:
“Concessa venia, julgo que com razão o impetrante, pelas razões que passarei, agora, a expor.
Entretanto, tendo em vista que o increpado é defendido pela Defensoria Pública entendo perfeitamente aplicável, in casu, o disposto no art. 350, do CPP, mediante o cumprimento das obrigações previstas no art. 327 e art. 328, do mesmo diploma legal […]. Dessa forma, presumir, in casu, que a investigação acerca das condições econômicas do paciente não foi realizada seria exigir formalidade excessiva e prejudicial a ele.
Por fim, tendo em vista que o increpado se encontra custodiado desde 28/02/2016, ou seja, há quase dois meses, é mais um indicativo da ausência de condições financeiras para atendimento da medida imposta em primeiro grau.
Ante o exposto, CONCEDO A ORDEM E DETERMINO A IMEDIATA EXPEDIÇÃO DE ALVARÁ DE SOLTURA EM FAVOR DO INCREPADO, SE POR AL”.
O mencionado julgamento foi proferido no HC Nº 1.0000.16.016063-6/000 e encontra-se disponível para consulta no site do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais.
2. ARGUMENTOS JURÍDICO-CONSTITUCIONAIS CONTRÁRIOS AO VOTO DO DESEMBARGADOR EDUARDO MACHADO
Como bem explicitou o Ilustre desembargador Júlio César Lorens, o artigo 5º, XXXV é claro e não deixa margem às dúvidas, a lei não deve jamais excluir da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de lesão de direito. Se a própria norma não pode elidir a análise, que dirá o entendimento de um profissional do direito. Independentemente da razão ou não do impetrante, há a garantia de ter seu pleito analisado pelo Judiciário estampada no núcleo intangível da constituição.
José Afonso da Silva a respeito do tema asseverou: “O art. 5º, XXXV, consagra o direito de invocar a atividade jurisdicional, como direito público subjetivo”. O autor ainda define tal direito como integrante do princípio da proteção judiciária (2011, p. 432).
Como corolário do direito de ação e de defesa surge a garantia da ampla defesa prevista no artigo 5º, LX, da CF/88. Segundo Antônio Alberto Machado, essa garantia assegura aos acusados “o direito de contrariar a acusação, apresentar livremente quaisquer tipos de teses e argumentos assim como produzir todas as espécies de provas não proibidas pela lei […]” (2012, p. 63).
Importante salientar que o remédio constitucional impetrado em favor do paciente está corretamente ancorado no artigo 5º, LXVIII da CF/88, haja vista que seu direito de locomoção estava sendo violado, pois do dia 28 de fevereiro de 2016 (dia de sua prisão em flagrante) até o julgamento de seu pleito em 26 de abril de 2016, transcorreram quase dois meses, demonstrando claramente que não possui condições financeiras de arcar com o custo de um salário mínimo, fazendo jus ao instituto previsto no artigo 350 do CPP.
Em suma, não parece haver razões jurídicas de ordem técnica ou hermenêutica ao fundamento da denegação da ordem efetuada pelo desembargador Eduardo Machado. O impetrante é detentor do direito de ter sua pretensão analisada pelo Poder Judiciário, bem como demonstrou não ter condições de arcar com o valor da fiança fixada.
3. ARGUMENTOS JURÍDICO-PROCESSUAIS CONTRÁRIOS AO VOTO DO DESEMBARGADOR EDUARDO MACHADO
A fiança é um instituto jurídico cuja origem se deu no direito medieval, sendo inserido no direito brasileiro pelas Ordenações do Reino. Em linhas gerais, trata-se de um direito básico da pessoa presa de se ver livre em troca do depósito de dinheiro, pedras, objetos, metais preciosos, títulos da dívida pública ou hipoteca. Em troca da benesse de responder ao processo em liberdade, o réu deve ceder um bem entre os citados como garantia. Os valores são recolhidos e utilizados, em caso de condenação, como pagamento das custas processuais, indenização do dano causado pelo crime e pagamento da multa imposta a título de pena.
Seja em prisão em flagrante, durante o inquérito ou processo, é direito subjetivo do investigado/réu ter em seu favor estipulado o valor da fiança em substituição de sua liberdade, ou seja, não é faculdade do juiz ou da autoridade policial seu arbitramento.
O valor a ser fixado varia de acordo com a pena imposta abstratamente ao delito cometido. Aos crimes cuja pena máxima não extrapolem o patamar de quatro anos, a fiança poderá ser arbitrada entre 1 e 100 salários-mínimos; aos delitos cujas penas máximas exorbitem os quatro anos, a fiança será arbitrada entre os patamares de 10 e 200 salários-mínimos.
No entanto, há as possibilidades previstas nos incisos II e III do parágrafo primeiro do artigo 325 do CPP de ser a fiança reduzida até o máximo de dois terços e aumentada em até mil vezes. Por fim, prevê o artigo 350 do CPP a dispensa da fiança ao preso em condição econômica desfavorável, devendo ser substituída por outras medidas cautelares.
Conforme análise do caso estudado, a Juíza de Direito da Vara de Inquéritos Policiais da Comarca de Belo Horizonte/MG arbitou fiança no importe de um salário mínimo ao preso e aplicou a diminuição em dois terços prevista. Em resumo, o valor exigido como “caução” para ser libertado seria o de um terço do salário-mínimo vigente.
Por não possuir condições de arcar com as custas de um advogado, foi nomeado ao acusado um Defensor Público para fazer a defesa de seus interesses. Visando à liberdade de seu assistido, o Defensor Público impetrou Habeas Corpus requerendo a aplicação da dispensa da fiança prevista no artigo 350 do CPP.
O recurso constitucional impetrado foi denegado pelo desembargador, em clara afronta ao disposto nos artigos que versam sobre a fiança do Código de Processo Penal. É possível considerar que uma pessoa que se arrisca a ser presa para subtrair um celular e a quantia de cem reais, bem como permanece custodiada por quase dois meses, não possui condições de arcar com o pagamento de um terço do salário-mínimo, fazendo jus, portanto, ao benefício previsto no útlimo artigo do Título IX do Código de Processo Penal.
4. ANÁLISE IDEOLÓGICA À LUZ DO MATERIALISMO HISTÓRICO
Superados os aspectos legais e teóricos que são passíveis de ampla discussão, passa-se agora a uma análise um pouco mais aprofundada acerca da decisão. Afinal, o que está por trás do voto do desembargador que o faz supor que o pleito pela liberdade de uma pessoa pobre vale menos do que o custo de um processo criminal?
De início, faz-se necessária uma visita à teoria marxista que tão bem explicou as discrepâncias econômicas e sociais da sociedade.
Por meio de sua visão, classificada como materialismo histórico, o pensador alemão Karl Marx identificou que toda a história mundial se desenvolveu em razão e em torno do sistema econômico vigente, ou seja, de como o ser humano se relaciona com a natureza ao produzir suas condições de vida. Para ele, a forma como a sociedade se organiza economicamente gera infalivelmente a criação de classes sociais antagônicas, sempre havendo uma classe detentora do meio de produção e a outra detentora da força de trabalho. Desde os primórdios das civilizações escravagistas grega e romana, passando pelo feudalismo e absolutismo, até culminar nas sociedades burguesas e na entrada da idade contemporânea, a evolução da sociedade se deu em virtude da oposição de ideias das classes existentes em cada um dos modelos citados. Todas estas são sociedades de classes em permanente luta.
Inerente a esta ideia de divisão social em classes é a existência do conflito. Segundo Marx, o antagonismo das classes existentes e a batalha pela dominação se constituíram no motor propulsor da história humana (relação dialética: tese x antítese = síntese). A “guerra” entre escravos e senhores resultou no feudalismo; o entrave entre senhores e servos acarretou no absolutismo e as diferenças entre monarcas e burgueses gerou o capitalismo.
Por trás de todas essas mudanças estava a disputa pelo poder econômico, pela apropriação do capital. Nos primeiros exemplos mencionados (Grécia, Roma, Feudalismo e Absolutismo) a batalha era resolvida pela força, quem perdesse a queda de braço se tornava escravo/servo e logo seria o responsável pela utilização de sua força de trabalho, enquanto o vencedor se tornaria o detentor do meio de produção e dos mecanismos de sobrevivência. A dominação era exercida diretamente pela força bruta, sem necessidade de qualquer mediação.
No entanto, após as revoluções burguesas do século XVIII, a divergência ganha um novo contorno e deixa de ser resolvida pela coerção direta, surge, então, um ente teoricamente imparcial que irá dirimir os conflitos, o Estado, por meio do direito.
Muitos autores defendem que este é o grande ponto da mudança da sociedade, a justiça passa a ser feita diretamente por uma entidade criada para o fim de preservar direitos. Os principais defensores deste novo modelo de resolução de conflitos foram os filósofos contratualistas modernos como Rousseau.
Para Rousseau, o Estado é uma composição orgânica formada pela vontade geral, um ente que é fruto do contrato social. Por meio deste contrato, o povo passa a pertencer a um ente superior responsável pelo regramento do convívio social.
Merece também destaque o pensamento de Hegel, que em sua obra indica ser o Estado baseado em instâncias ideais, encarnação da racionalidade, expressão direta da racionalidade e do justo (MASCARO, 2010, p. 288).
Todos os defensores do contratualismo, de uma maneira ou de outra, se referem ao surgimento do Estado como uma união de desígnios dos homens para a formação de um ente superior responsável pela busca do bem-comum.
Marx, ao contrário de seus antecessores, rompe com essa ideia e passa a discutir a formação deste ente imparcial e direcionado ao bem-comum. “A crítica marxista é, definitivamente, a pá de cal sobre todo o edifício moderno a respeito do Estado para o bem-comum, rompendo com todas as ilusões sobre a justiça estatal das quais Kant e Hegel foram vigas mestras” (MASCARO, 2010, p. 289).
O filósofo alemão, cujo trabalho é desenvolvido juntamente com Friedrich Engels, justifica sua crítica no fato de ser o Estado moderno uma criação a serviço da classe economicamente dominante. Ao galgar os degraus da liberdade e para a construção do capitalismo, os burgueses do século XVIII tiveram que construir suas teorias na necessidade da extinção da violência e da coação, desmistificando e enfrentando a autoridade divina do monarca e da aristocracia. Deste modo, ao tomar para si o poder político, a classe burguesa não poderia lançar mão dos mesmos mecanismos de dominação utilizados por seus antecessores: fazia-se necessária a criação de um novo mecanismo adaptado ao modo de produção da vida moderna. Ou seja, a apropriação da energia vital do trabalhador pelo burguês e a exploração da classe subalterna não poderiam ser realizadas coercitivamente, passando a ser necessário um elemento de mediação que substituísse a dominação direta era necessário. Estava “inventado” o direito.
O professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), Alysson Mascaro, sobre este tema assevera:
“Assim sendo, a instância de coerção política não pode se apresentar como diretamente dominada pela burguesia. Ela se presta, de fato, ao interesse burguês, mas não porque seja controlada a todo momento pela vontade da burguesia, e sim porque sua lógica, ao construir sujeitos de direito, torna todos juridicamente iguais e livres. O Estado moderno é burguês porque parece não o ser. Isto é, tornando a todos cidadãos livres e iguais formalmente, dá condições de que os capitalistas explorem os trabalhos por meio de vínculos que se apresentam, à primeira vista, como voluntários” (MASCARO, 2010, p. 290).
Segundo esse ponto de vista, portanto, a partir do instante em que as formações sociais primitivas evoluíram para sociedades escravagistas, instituiu-se a sociedade de classes, onde está necessariamente presente o antagonismo entre explorador e explorado; toda a vida em sociedade gravita em torno das forças produtivas e das relações de produção que a partir daí se estabelecem. A forma como se relacionam as classes oprimidas e opressoras, ou de outro modo, a forma como se desenvolve a economia de uma sociedade condiciona a existência das demais atividades sociais, inclusive da capacidade de observação do mundo e da vida. “É a vida material que determina a consciência e não a consciência que determina a vida material”, dizem Marx e Engels em conhecida passagem de A ideologia alemã.
Melhor explicando: o sistema atual é o capitalista. Há neste sistema a presença da classe detentora dos meios de produção (por exemplo, o dono da fábrica, que é proprietário das máquinas, das ferramentas, do estabelecimento etc.) e há a classe que nada possui além da sua própria força de trabalho. Para fins didáticos utiliza-se a mesma nomenclatura utilizada por Marx, os primeiros são os burgueses e os outros o proletariado. Para sobreviver no atual sistema, o proletário precisa se submeter ao burguês, ou seja, precisa vender a sua força de trabalho. O burguês se preocupa em retirar o máximo de lucro de sua produção, enquanto o proletário tem em vista a necessidade do recebimento de seu salário para sobreviver. Está clara a relação antagônica de interesses que gera disputas incessantes entre o dominador e o dominado.
O pensamento geral é o de que esta é uma relação natural e cabe ao Estado, ente imparcial (como imaginavam os contratualistas), a missão de evitar a prática de abusos. Porém, segundo Marx, aqui se encontra uma grande questão. Para o pensador alemão, o Estado, as leis, a política, a religião, a filosofia, entre outros segmentos sociais surgirão no sistema capitalista como instrumento de legitimação deste. Isso significa que todos esses segmentos apontados estão contaminados pela relação de produção típica do sistema capitalista e têm em mira apenas a manutenção da exploração e uma classe pela outra.
Neste caminho, Alysson Mascaro, em sua obra intitulada “Lições de Sociologia do Direito”, conclui:
“É a partir desta mirada mais profunda dos conflitos sociais que o marxismo buscará compreender o funcionamento do modo de produção capitalista, identificando as classes exploradoras, as classes exploradas, o modo pelo qual o capital é apropriado e o modo pelo qual tal apropriação é maquiada para que a maioria não perceba ou não entenda sua injustiça” (MASCARO, 2007, p. 106).
Esta ideia que concebe o plano econômico como pano de fundo de todas as demais construções sociais é o que Marx denomina de base e superestrutura. Base seria o sistema econômico vigente condicionador da superestrutura legitimadora, como, por exemplo, as leis, política, religião, entre outras.
A formação social referente ao Direito não foge à regra lançada por Marx e é expressão do sistema econômico predominante. As leis nada mais são do que criações a serviço da classe dominadora. O Direito, da forma como se apresenta atualmente, é o mecanismo pelo qual a burguesia domina o proletariado. É por meio do Direito que o estado garante a exploração. Afastada a coerção física, surge a lei como substituta.
O seguinte trecho escrito pelo professor Alysson Mascaro explica bem essa questão:
“Nos modos de produção pré-capitalistas os tipos de dominação social são diretos. No escravagismo, o senhor domina diretamente os escravos, por meio da força bruta; no feudalismo, o senhor domina diretamente seus servos, por meio da propriedade imutável da terra. Mas o domínio capitalista é indireto. Quem procede à intermediação dessa dominação do capital é o Estado e o direito. Seja na exploração do trabalho assalariado na produção, seja no lucro resultante do comércio, o capitalismo é o único modo de acumulação infinita de capitais. O capitalista pode ter o quanto for, independentemente da sua força física, porque ele se vale da garantia ao capital que advém do Estado e do direito. O direito é intermediário dessa exploração. O capitalismo, assim, se associa sempre a uma forma jurídica, que é seu meio de intermediação necessário”. (MASCARO, 2007, p. 113 – sociologia).
Para exemplificar basta pensar na seguinte situação: quando um povo vencia o outro em uma guerra e os vencedores tomavam os bens e a liberdade dos derrotados, configurava-se uma relação tipicamente escravagista. No entanto, no sistema capitalista, quando um burguês toma a propriedade do outro, mediante o pagamento de um valor irrisório e vil, há um contrato que legitima e o torna legal, pois possui forma jurídica (MASCARO, 2007).
Um grande problema enfrentado pela dinâmica capitalista é o da mão de obra excedente. Por meio do contrato, por exemplo um contrato de trabalho, o burguês estabelece a exploração do proletariado, que produz muito mais riquezas do que recebe salário. Porém não são todos que conseguem vender sua força de trabalho e se tornam um exército de reserva, sem trabalho e sem condições de sobrevivência. Resulta que muitas dessas pessoas enveredam no rumo da criminalidade como perspectiva de obtenção de renda e garantia de subsistência.
Para essa situação, o Direito, calcado na lógica capitalista, também tem uma solução: o direito penal. Se alguém não está produzindo riqueza material e, consequentemente, gerando lucro, por meio do trabalho assalariado, não pode prejudicar a “paz” da sociedade. Caso resolva prejudicá-la, será imediatamente segregada, por meio do encarceramento, como no caso narrado no início deste artigo.
Pois bem, aqui está situado o ponto nevrálgico do estudo. O desembargador Eduardo Machado denegou a ordem de HC justificando, entre outras coisas, que o custo do processo era superior ao valor da fiança necessária à liberdade do impetrante.
Destaca-se, de imediato, que o desembargador parece estar alinhado com as duas ponderações feitas até o momento: Estado como ente imparcial que pende para o lado da proteção da classe dominante e, consequentemente, utilização do direito penal como instrumento de retirada da mão de obra desempregada, ociosa e danosa aos interesses burgueses, por meio do encarceramento.
O voto do desembargador, ao que tudo indica, se mostra ancorado nestes preceitos. Negar a liberdade a alguém que possui direito a ela, sob a alegação de que o custo do processo é superior ao valor da fiança, ou seja, decidir pela manutenção da prisão de pessoa claramente desprovida de recursos, exigindo dinheiro em troca e criticando que tenha se socorrido ao judiciário para ter seu direito satisfeito, são indícios de que sua orientação profissional esteja fomentando as diferenças explicitadas.
Por óbvio que não há como avaliar qual o grau de consciência do mencionado julgador quanto à ideologia que serve de base a sua decisão. Acredita-se, inclusive, que ele não tem compreensão de seu papel no cenário da dominação, servindo apenas como mero reprodutor da ordem imposta. Acerca deste fenômeno, Alysson Mascaro pontuou que “essa máscara ideológica faz com que o jurista nem saiba que o direito está a serviço da exploração. Ele imagina, de fato, que todos são cidadãos, que todos são iguais porque seus votos valem o mesmo que o dos outros” (2001, p. 116).
Em resumo, parece claro que a ação do desembargador está norteada pelos princípios do sistema econômico que condicionam a aplicação do direito e se utilizam do direito penal como instrumento de dominação e de eliminação dos agentes transgressores da ordem imposta.
CONCLUSÃO
Pretendeu-se, durante todo o estudo, averiguar a possível existência de uma ideologia, de manutenção da classe dominante que detém o poder econômico, por de trás de toda a formação dos órgãos pertencentes ao Estado, consequentemente na formação e aplicação do direito penal.
Para realização da mencionada análise, partiu-se do voto do desembargador Eduardo Machado proferido no julgamento do HC Nº 1.0000.16.016063-6/000. Inicialmente foram discutidos os argumentos constitucionais e penais contrários à decisão, para então iniciar a análise da verificação ideológica.
Partindo da premissa marxista de que o sistema econômico vigente condiciona todas as estruturas sociais, indicou-se que o direito atual está profundamente enraizado nas bases capitalistas, servindo de instrumento para sua conservação. Deste modo, ao que parece, o direito se porta como legitimador das diferenças típicas do sistema econômico capitalista e o direito penal surge como o braço forte, que serve para afastar os pobres dos ricos, por meio do cárcere.
O sistema econômico capitalista possui como cerne a diferença de riqueza. Para alguém ser rico, outro tem que ser pobre e para que o pobre não se insurja contra esta diferença, há a necessidade de seu controle. A dominação do pobre se faz das mais diversas maneiras: televisão, propagandas, jornais, entre outros. Quando estas formas falham, o direito é acionado e o direito penal é utilizado.
Por óbvio que não se pretendeu provar cabalmente a existência da mencionada ideia, no entanto se planejou trazer à discussão o tema e mostrar que a discussão deve ser realizada, não podendo o estudioso do direito passar despercebido pela decisão mostrada sem no mínimo debatê-la.
Sempre é oportuna a lembrança das ponderações do mestre italiano Alessandro Baratta sobre o caminho da superação do atual sistema penal vigente:
“Por isso, uma política criminal alternativa coerente com a própria base teórica não pode ser uma política de "substitutivos penais", que permaneçam limitados a uma perspectiva vagamente reformista e humanitária, mas uma política de grandes reformas sociais e institucionais para o desenvolvimento da igualdade, da democracia, de formas de vida comunitária e civil alternativas e mais humanas, e do contrapoder proletário, em vista da transformação radical e da superação das relações sociais de produção capitalistas” (2002, p. 201).
Por fim, ressalta-se que cabe ao pesquisador contribuir para a superação do atual sistema jurídico por meio do estudo de decisões como a proferida no caso analisado. Não basta a análise técnica dos fundamentos, faz-se necessário sempre ir mais longe e buscar o real cerne do veredito, mesmo que nisto seja revelada uma situação extremamente incômoda.
Delegado de Polícia em Minas Gerais. Especialista em Direito Penal. Mestrando em Direito Público
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