Se, de um lado, preocupou-se a Constituição Federal
com a necessidade da destinação social da propriedade privada, enfatizando o
direito à moradia, também de outro, com o mesmo grosso calibre, realçou a
importância da relação de consumo, determinando que o Estado promovesse a
defesa do consumidor.
Incumbiu então, ao legislador infraconstitucional,
atender claramente à Norma Diretiva. Outra não poderia ser a conclusão, face ao
soerguimento da moradia e do direito do consumidor a caráter de direitos
fundamentais e princípios de ordem econômica.
Para o hipossuficiente da relação de consumo,
sobreveio o Código de Defesa e Proteção do Consumidor, com o escopo de dar
plena e irrestrita eficácia à norma ápice.
Nessa senda, uma das células mais importantes da
economia nacional é a pessoa do consumidor. É para ele que são destinados os
produtos e os serviços. É para ele que se destina a publicidade. Sem o
consumidor, não há giro da economia. Sem ambos, consumidor e economia,
impossível a manutenção incólume da dignidade da pessoa humana, dos valores
sociais do trabalho e da iniciativa privada; da sociedade livre, justa e
solidária; do desenvolvimento nacional; e, enfim, difícil se mostra a
erradicação da pobreza e da marginalização, assim como a redução das desigualdades
sociais e regionais.
Todos esses fundamentos do Estado Democrático de
Direito e da República Federativa do Brasil esvair-se-iam céleres com o vento.
Aliás, não é nenhum sofisma ou exagero dizer que o
primeiro direito do consumidor é o trabalho. Sim, pois fora do mercado laboral,
não há possibilidade de auferir rendas e demonstrar existência de credibilidade
negocial, donde resultar na inviabilidade de firmar contratos e/ou adquirir
produtos. O direito ao trabalho é, pela Constituição, um direito social (artigo
6º, caput). Tal como ele, também o direito à moradia tem caráter de fundamento
social (CF, artigo 6º, caput, com a
redação dada pela Emenda Constitucional n. 26, de 14 de fevereiro de 2000).
Ressalte-se, ainda, que o art. 5º, da Lei de
Introdução ao Código Civil, estabelece expressamente para o Judiciário, ao
aplicar a lei, a necessidade de atender aos fins sociais a que se dirige e às
exigências do bem comum. E ainda, se omissa a lei, deve decidir o caso conforme
a analogia, os princípios gerais do direito e os costumes (art. 4º, do mesmo
diploma legal).
E mais: o artigo 126, do Código de Processo Civil,
estabelece que o juiz não pode eximir-se de sentenciar ou despachar alegando
lacuna e obscuridade da lei, posto vedado o non
liquet. Com tudo isso, há instrumentos aptos para adequar a lei com todo o
ordenamento jurídico positivo, como bem lembra o Ministro Sálvio de Figueiredo
Texeira: “A interpretação das leis não deve ser formal, mas sim, antes de
tudo, real, humana, socialmente útil… Se o juiz não pode tomar liberdades
inadmissíveis com a lei, julgando contra
legem, pode e deve, por outro lado, optar pela interpretação que mais
atenda às aspirações da Justiça e do bem comum”. (apud Theotonio Negrão. Código de processo civil e legislação extraprocessual
em vigor. 33ª ed., São Paulo: Saraiva, 2002, p. 224)
Observe-se, ainda, que não é o preceito que informa
o princípio, mas exatamente o inverso. Só há norma posta porque princípios
gerais anteriores a informaram. Parte-se, então, diretamente do princípio para
se dar adequação, lógica e coerência sistemáticas à norma individual.
Pois muito bem.
A defesa do consumidor e a função social da propriedade espelham
fundamentais princípios erigidos a dogma de calibre constitucional. Ambos têm
imediata aplicabilidade nas relações econômicas e, via de conseqüência, nos
direitos sociais, inclusive à moradia. Se não os houvesse no sistema jurídico
posto, liberar-se-iam os abusos e o comprometimento da legitimidade jurídica da
propriedade, e afastar-se-ia a sapiência dos aforismos: “odiosa sunt amplianda, favorabilia sunt
restringenda” (restrinja-se o odioso, amplie-se o favorável) e “ubi eaden ratio legis, ubi eaden legis
dispositio” (onde existe a mesma razão fundamental prevalece a mesma
regra de direito).
Ou seja: a) deve-se ampliar o alcance dos princípios de ordem pública
e interesse social consagrados primeiro na Constituição Federal e, em seguida,
no Código de Defesa e Proteção do Consumidor; b) e, se tanto o Código do
Consumidor como a Lei Inquilinária objetivaram proteger o mais fraco da relação
jurídica, então que prevaleçam em suas relações as mesmas regras protetivas,
pois só assim atender-se-á ao objetivo legal: igualar as partes, deixando-as no
mesmo patamar jurídico.
Eis a aplicação dos métodos teleológicos, axiológicos e sistemáticos.
Todos, inegavelmente, prioritários aos métodos lógico e literal, sob pena de
esvair a pretensão da lei e obstar que ela cumpra sua verdadeira finalidade.
Mas também os métodos lógico e literal dão guarida à aplicação do
Código de Defesa do Consumidor nas relações inquilinárias. Vê-se dentro do
contexto histórico a presença do locatário como pessoa mais fraca da relação
jurídica locatícia, tratando-se, portanto, da mesma vulnerabilidade fática do
consumidor.
“Assim, na exata medida em que, aparentemente, a Lei de Consumo não
deixa de proteger as locações prediais urbanas, aplicando-se apenas ao
fornecimento de produtos e serviços, contraria o comando constitucional de
proteção do consumidor.
“Sim, pois o consumidor é aquele que consome, ou seja, aplica as
riquezas na satisfação de suas necessidades.
A riqueza, semanticamente dissecada, é a fonte de bens morais ou
materiais, tudo quanto é capaz de satisfazer as necessidades humanas.
“Não há como negar a qualidade de riqueza à utilização de imóveis
urbanos, o que satisfaz uma necessidade humana, mormente considerando o déficit
habitacional, principalmente nos grandes centros.
“Logo, a locação predial urbana, integralmente nos casos legais, é
relação jurídica de consumo…” (Conclusão de estudo desenvolvido sobre o tema
idêntico ao objeto do presente, gentilmente cedido pelo Mestre Luiz Antônio
Scavone Jr.).
E não é tudo.
A posterioridade da Lei Inquilinária não afasta a Lei Consumerista.
Outrossim, não tem cabência o princípio da especialidade das normas. A pensar
desse modo, não haveria como aplicar da Lei n. 8.078/90 nos empreendimentos
imobiliários, nos compromissos de compra e venda ou nas relações bancárias
(exemplificativamente inseridas no rol do Código Consumerista). Se não houve
expresso ou aparente conflito de normas, ou se não tratou inteiramente da mesma
matéria, nada obsta a aplicação conjunta das leis (LICC, art. 2º, §§ 1º e 2º),
sendo que uma servirá para completar a outra, ampliando-se a proteção da pessoa
visada pelo legislador (na Locação: o locatário; no Consumo: o consumidor;
ambos hipossuficientes).
Antes de haver conflito de normas, há convergência de ratio legis. Excluir a aplicação da Lei
Consumerista na Lei Inquilinária é desprezar a ratio legis de ambas, desatendendo à finalidade política
legislativa que as inspirou. Ademais, o que o Estado tem de proteger não é
simplesmente o locatário em face do locador, ou o contrário; mas sim o morador
e toda a sua família em face da falta de moradia e da necessidade de morar,
dentro do seu orçamento familiar. (Cf. José da Silva Pacheco, ob. cit., p. 175)
Único óbice que se nos mostra
plausível é a ausência dos elementos integrativos da relação de consumo na
relação inquilinária. Inicia-se pela ausência do “destinatário final”; e segue
pela ausência da habitualidade do fornecimento do produto descaracterizando a
pessoa do fornecedor.
Ora, tais proposições não se mostram quantum satis à contrariedade, pois e
quanto ao locador profissional? Ou, em relação ao simplório pai de família, que
destina grande parte de seus rendimentos à sua moradia e de toda a sua família,
pagando os locativos?
Observe-se que, a Constituição manda proteger o “consumidor”, e não o
“consumidor de produtos ou serviços”, pois aqui pode-se limitar o campo de
proteção, coisa que não foi determinada pela Norma Maior. Não parece haver
muita dificuldade, ainda, em se concluir que todos os locatários são o
“destinatário final” do imóvel. Enfim, anote-se que são exemplificativas as
hipóteses de aplicação do Código Consumerista, outorgando-se elastério ao
intérprete, de vez que apenas a exceção esteve expressamente mencionada (v.g.,
relações trabalhistas). Ademais, todas as vezes que a interpretação for
conduzida no sentido de excluir direitos, máxime as garantias fundamentais, tem
ela de ser feita de maneira restrita.
Se o locador for do tipo profissional, valendo-se de sua propriedade
para auferir lucros; ou se o negócio é intermediado por imobiliárias,
configura-se no mínimo fornecimento de serviço, sendo o locatário o consumidor
final do serviço.
Ainda que não seja estritamente profissional o locador, inimaginável
quer-nos parecer sua situação de superioridade em relação ao locatário,
principalmente em casos de urgente necessidade na locação de imóvel para morada
de toda a sua família, quando então se vêem com mais freqüência os abusos e as
imposições leoninas do proprietário da coisa cedida. Deve-se, pois, reprimir e
vedar a prática de atos atentatórios ao equilíbrio contratual e à
correspondência das prestações, evitando-se o locupletamento indevido à custa
do empobrecimento alheio.
Ao fim e ao cabo, apenas a incompatibilidade manifesta afasta a
incidência do Código de Proteção e Defesa do Consumidor nas relações
locatícias, quando então deverão prevalecer as regras deste, se em compasso com
os preceitos virtuais consagrados na Constituição Federal de 1988, sendo que
uma das conseqüências lógicas da função social da propriedade é o seu
“fornecimento”, enquanto imóvel urbano, para o uso da sociedade ou, mais
restritamente, para a moradia de certo grupo familiar.
Assim considerada, deve respeito às disposições do Código de Defesa do
Consumidor, que nada mais é que uma das formas de limitação ao direito absoluto
de domínio, vez que, ao admitir a propriedade, a Constituição determina, logo
em seguida, que deve atender a sua função social, ou seja atender a
determinadas limitações (Luiz Antônio Scavone Jr., em trecho da conclusão do
trabalho já referido).
Em
decorrência disso, amplos são os benefícios ao locatário, a começar pelo
Sistema Nacional de Proteção do Consumidor, que visa atender as necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e
segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua
qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo.
Segue-se, ainda, a disponibilidade dos instrumentos jurídicos postos à
disposição do consumidor, entre os quais a
assistência jurídica integral e gratuita para o consumidor carente.
Isso entre tantos outros benefícios da Lei n. 8.078/90,
como a proteção contratual. Aliás, o sistema de considerar-se abusivas e nulas
de pleno direito algumas mazelas em muito se assemelha à preocupação da Lei n.
8.245/91. Se são iguais, não se pode tratar com diferenças. Apenas para
elucidar, citemos como exemplo o sistema das nulidades de ambas as Leis: no
artigo 45, a Lei do Inquilinato considera “nulas de pleno direito as cláusulas
do contrato de locação que visem a elidir os objetivos da presente lei”; e o
Código de Defesa do Consumidor tachou como “nulas de pleno direito, entre
outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e
serviços” “que estejam em desacordo com o sistema de proteção do consumidor”
(art. 51, inciso XV). Ambos os Diplomas Congressuais, de forma aberta e
abrangente, consideraram tisnadas pela nulidade absoluta as disparidades entre
o contratado e o sistema protetivo de qualificação pública e de interesse
social.
Uma interpretação de norma jurídica deve guardar correspondência
mínima com o texto legal. Mas também, deve-se ater ao bem comum, aos fins
sociais que se destina a lei, à vontade da norma, a todo o sistema normativo e,
enfim, a questões históricas. Ademais, uma lei ordinária tem de ser promulgada
para atender aos reclamos da Constituição, norma diretiva ápice de conduta de
toda a nação.
Se a aplicação da lei infra-constitucional redunda em escapar dos
ditames preconizados pela Constituição, então ela se mostra inconstitucional,
ou não recepcionada, pois é aquela quem tem o condão assecuratório do direito
de propriedade em consonância com as limitações previstas em todo o ordenamento
jurídico (onde se encaixa o supedâneo da função social que o domínio tem de
respeitar, por força do Estatuto Supremo).
Outrossim, a Constituição Federal, no art. 5º, inciso XXXII,
determinou que o Estado promovesse a “defesa do consumidor”, não se limitando a
“consumidor de produtos e serviços”, de tal sorte que não se mostra de todo
válida a restrição ditada pela Lei n. 8.078/90 ao verberar o que ela define
como consumidor. Como observado alhures, não se admitiria que lei
infra-constitucional, ao atender comando da Carta Magna, desrespeitasse o
conteúdo do próprio comando, qual seja, de tutelar as relações em que se
identifique consumo, o que inclui qualquer necessidade econômica do homem,
abarcando a cessão temporária de uso e gozo de imóvel urbano, desde que
presentes, simultaneamente, na mesma relação jurídica, a figura do consumidor e do fornecedor,
respectivamente como locador e locatário.
Somem-se a isso os preceitos virtuais e expressos da Constituição,
consagrando a função social da propriedade e o direito social à moradia, como
forma de diminuição do outrora absoluto direito ao domínio, formando um vínculo
que desencadeia em liames entre o proprietário e a coletividade, entre aquele e
à função social de seu bem e entre este ao direito do proprietário.
Somente a incompatibilidade manifesta afasta a incidência do Código de
Proteção e Defesa do Consumidor nas relações locacionais imobiliárias urbanas
regidas pela Lei n. 8.245/91, quando então deverão prevalecer as regras deste,
se em compasso com os preceitos virtuais consagrados na Constituição Federal de
1988, sendo que uma das conseqüências lógicas da função social da propriedade é
o seu “fornecimento”, enquanto imóvel urbano, para o uso da sociedade ou, mais
restritamente, para a moradia de certo grupo familiar.
Assim considerado, as locações de imóveis urbanos devem respeito às
disposições da Constituição Federal e do Código de Defesa do Consumidor, que
nada mais são que uma das formas de limitação ao direito absoluto de domínio,
vez que, ao admitir a propriedade, a Constituição determina, logo em seguida,
que deve atender a sua função social, ou seja atender a determinadas
limitações.
Portanto, o direito de propriedade, atendida a sua função social, está
previsto na Carta Maior, como também o direito à moradia, da mesma forma que as
condições necessárias ao seu exercício, incluída aí a aplicabilidade do Código
de Defesa do Consumidor às locações de imóveis urbanos. Tal aplicabilidade se
dá na exata medida em que o exercício do direito de propriedade, através da
cessão temporária de um de seus atributos, encontra limitações na Lei n°
8.245/91 e, principalmente, nas disposições da Lei n° 8.078/90.
Advogado, Escritor e Consultor.
Pós-Graduado em Direito Civil pelo uniFMU.
Membro do IV Tribunal de Ética da OAB/SP.
Autor dos livros Ofensa à Honra da Pessoa Jurídica e
Arrematação e Adjudicação de Imóvel: Efeitos Materiais.
Autor de dezenas de artigos e trabalhos publicados.
Consultor especializado em ME e EPP.
Uma das dúvidas mais comuns entre clientes e até mesmo entre profissionais de outras áreas…
A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) regula o trabalho aos domingos, prevendo situações específicas…
O abono de falta é um direito previsto na legislação trabalhista que permite ao empregado…
O atestado médico é um documento essencial para justificar a ausência do trabalhador em caso…
O cálculo da falta injustificada no salário do trabalhador é feito considerando três principais aspectos:…
A falta injustificada é a ausência do trabalhador ao trabalho sem apresentação de motivo legal…