Resumo: Este trabalho traz uma breve a abordagem da autonomia entre as esferas administrativa e processual penal no que diz respeito ao oferecimento de denúncia em tema de crimes contra a ordem tributária, tendo como ponto de partida a discussão sobre a origem comum ou não da obrigação e do crédito tributário.
Sumário: 1. Introdução. 2. Do Procedimento Administrativo. 3. Do Processo Penal. 4. Dos Crimes contra a Ordem Tributária. 5. Conclusão.
1 – Introdução
É antigo na doutrina e na jurisprudência o debate acerca da interconexão entre o procedimento administrativo para acertamento de lançamento tributário e a atuação do órgão do Ministério Público nas ações penais em tema de crimes contra a ordem tributária, notadamente frente à autonomia de ambas as instâncias – administrativa e penal.
Já se cogitou considerar o “lançamento definitivo” como condição de procedibilidade. Hodiernamente, defende-se, entre outras argumentações, que seja condição objetiva de punibilidade, elemento normativo do tipo ou justa causa para a instauração da ação penal.
Como se infere, é assunto que demanda profundas reflexões, especialmente à vista da Súmula Vinculante n. 24.
2 – Do Procedimento Administrativo
O ordenamento jurídico brasileiro, ao garantir a todos o devido processo legal, com seus consectários do contraditório e da ampla defesa, não se limitou à esfera judicial, antes, expressamente o estendeu ao âmbito administrativo (art. 5º, LIV e LV, CF/88).
Sendo o lançamento o ato tendente a tornar líquida e certa a obrigação tributária, a qual nasce com a concretização do fato abstratamente previsto na norma, desde logo se vislumbra que a partir dele pode ter lugar um procedimento (tributário) e administrativo, tendente à sua discussão.
Tal procedimento pode culminar com a confirmação do lançamento, como também pode declará-lo nulo ou inexato, podendo ser acertado, neste último caso, o valor em relação àquele inicialmente apurado.
Só ao final do procedimento administrativo ter-se-á então o crédito tributário definitivamente constituído e apto a ser exigido do contribuinte ou responsável, o qual pode satisfazê-lo espontaneamente, manter-se inerte (conduta que fatalmente acarretará a inscrição do crédito em dívida ativa e o ajuizamento de execução fiscal contra si) ou, então, submeter o caso ao crivo do Judiciário.[1]
Esse é o entendimento da doutrina mais tradicional, apegada à dicotomia entre obrigação e crédito tributário.
Para outra corrente, no entanto, a despeito de o Código Tributário prescrever que o lançamento é o ato tendente a constituir o crédito tributário, na verdade, este nasce no mesmo momento em que a obrigação tributária.
Confira-se a lição de Silva:[2]
“Cabe esclarecer, porém, que a doutrina mais moderna tem refutado tal distinção, salientando que tanto a obrigação quanto o crédito tributário ingressam no mundo jurídico simultaneamente, no momento em que o contribuinte pratica um determinado ato do mundo fenomênico apto a acarretar o surgimento de um correspectivo dever fiscal ( = fato gerador).”
Ato contínuo, o mesmo autor faz referência ao magistério de Torres:[3]
“O CTN diz, no art. 113, § 1º, que a obrigação tributária “extingue-se juntamente com o crédito tributário”. A obrigação e o crédito não só se extinguem como também nascem conjuntamente. Nada obstante, o Código reserva o termo “crédito” à obrigação que adquire concretitude ou visibilidade e passa por diferentes graus de exigibilidade. (…) A técnica utilizada pelo Código deve ser empregada com cautela, pois obrigação e crédito não se distinguem em sua essência, como declara o próprio CTN no art. 139: O crédito tributário decorre da obrigação principal e tem a mesma natureza deste. (…) A distinção que por vezes faz o CTN deve ser entendida no sentido didático. Embora o crédito se constitua juntamente com a obrigação pela ocorrência do fato gerador, recebe ele graus diversos de transparência concretitude (sic), na medida em que seja objeto de lançamento, de decisão administrativa definitiva ou de inscrição nos livros da dívida ativa. O crédito tributário passa por diferentes momentos de eficácia: de crédito simplesmente constituído (pela ocorrência do fato gerador) torna-se crédito exigível (pelo lançamento modificado ou pela decisão administrativa definitiva) e finalmente crédito exeqüível (pela inscrição nos livros da dívida ativa), dotado de liquidez e certeza.” (destaques do autor e grifos nossos)
3 – Do Processo Penal
O processo penal, por sua vez, visa essencialmente dar concreção ao Direito Penal, ultima ratio, através da determinação do delito e da imposição da pena, legalmente prevista.
Neste sentido, a lição de Lima:[4]
“Mas o Direito Penal é despido de coerção direta e, ao contrário do Direito Privado, não tem atuação nem realidade concreta fora do processo correspondente. Para que possa ser aplicada uma pena, não só é necessário que exista um injusto típico, mas também que exista previamente o devido processo penal. […]
Existe uma íntima e imprescindível relação entre delito, pena e processo, de modo que são complementares. Não existe delito sem pena, nem pena sem delito e processo, nem processo penal senão para determinar o delito e impor uma pena.”
Para cumprir sua finalidade, todavia, o processo penal deve nortear-se por todas as garantias previstas constitucionalmente (especialmente configuradas no art. 5º e seus incisos), mesmo porque, desde que o Estado de Direito avocou a si o direito (e o consequente dever) de fazer justiça, deve fazê-lo dentro de limites constitucionalmente traçados.
Assim é que o moderno Processo Penal prima por seu caráter instrumental em relação ao Direito Penal (o que não configura nenhum demérito, porque este sem aquele também nada seria, nem poderia) e garantista.
Uma característica marcante o distingue do processo civil: a busca pela verdade material.
4 – Dos Crimes contra a Ordem Tributária
Antes da tipificação dos crimes contra a ordem tributária pela Lei n. 8.137/90, a Lei n. 4.729/65, revogada por aquela, já tratava de crimes de sonegação fiscal.
A grande diferença entre ambas é que nesta os crimes eram de mera conduta, os quais se aperfeiçoavam independentemente de resultado lesivo, enquanto que na primeira, pelo menos os crimes tipificados em seu art. 1º, são de resultado, emergindo tal conclusão do núcleo do tipo “suprimir ou reduzir tributo”.
Na lição de Souza:[5]
“Dessa classificação dos crimes advém conseqüências jurídico-penais de suma importância: na classificação entre crimes formais e materiais, leva-se em consideração o momento consumativo do delito; na distinção entre crimes de dano, ou de perigo, leva-se em consideração o resultado da ação delituosa. Dessa distinção decorre que os crimes materiais, ou de dano, só se consumam com a efetiva produção do resultado previsto no tipo e efetiva lesão ao bem jurídico protegido. Tendo em vista a definição legal dos crimes contra a ordem tributária (supressão ou redução de tributos), eles só se consumam com a efetiva produção desse resultado. E, logicamente, só se pode falar em supressão ou redução do tributo após o término do procedimento administrativo, que culmina com o lançamento, atividade privativa das autoridades fazendárias.
Bem se pode concluir pela existência de uma relação de interdependência das instâncias penais e administrativas no concernente à verificação dos crimes contra a ordem tributária. Se, ao tempo da Lei 4729/65 bastava tão somente a realização de uma das condutas previstas na lei, agora, tal já não basta para que se tenha por caracterizado o delito; é preciso que além das condutas típicas, se produza o resultado lesivo ao erário público, é necessária a comprovação efetiva do dano ao erário público: a supressão ou redução do tributo.”
Pois bem. O art. 83, da Lei n. 9.430/96, por sua vez, prescreve:
“Art. 83. A representação fiscal para fins penais relativa aos crimes contra a ordem tributária definidos nos arts. 1º e 2º da Lei 8.137, de 27 de dezembro de 1990, será encaminhada ao Ministério Público após proferida a decisão final, na esfera administrativa, sobre a existência fiscal do crédito tributário correspondente.
Parágrafo único. As disposições contidas no caput do art. 34 da Lei nº 9.249, de 26 de dezembro de 1995, aplicam-se aos processos administrativos e aos inquéritos policiais e processos em curso, desde que não recebida a denúncia pelo juiz.”
Por outro lado, também o art. 15, da Lei n. 8.137/90, continua a determinar que a ação penal por delitos contra a ordem tributária é de natureza pública incondicionada.
Segundo Souza, a representação tratada no art. 83, da Lei n. 9.430/96, nada tem que ver com o instituto da “representação” previsto no Código Penal ou Código de Processo Penal, como condição de procedibilidade, no sentido de condicionar a propositura da ação penal à representação do ofendido. Deve ser interpretado no sentido de notitia criminis, porque não é razoável que seja oferecida denúncia em desfavor de alguém pelo cometimento de crime contra a ordem tributária, quando é elemento normativo do tipo o vocábulo “tributo”, o qual só pode ser considerado suprimido ou reduzido depois de o crédito tributário estar definitivamente constituído na esfera administrativa, o que, normalmente, só ocorre após o fim do procedimento administrativo. [6]
Observe-se que tal autor se filia à corrente tradicional do Direito Tributário, segundo a qual obrigação e crédito tributário têm momentos distintos de nascimento.
Outro é o entendimento de Silva, o qual, após discorrer brevemente sobre o julgamento da ADI 1.571-MC (rel. Min. Néri da Silveira, DJU de 25.9.98), em que ficou assentado que o exaurimento da instância administrativa não constitui condição de procedibilidade da ação penal, ainda que a exigibilidade da exação fiscal esteja pendente em face de recurso interposto pelo contribuinte na esfera administrativa, teceu críticas ao posicionamento do Min. Sepúlveda Pertence no julgamento do HC 81.611/DF, em que este proferiu voto no sentido de que a decisão definitiva do processo administrativo, nos casos dos crimes tipificados no art. 1º, da Lei n. 8.137/90, consubstancia uma condição objetiva de punibilidade, sem a qual a denúncia deve ser rejeitada, uma vez que apenas a autoridade administrativa fiscal tem competência para constituir o crédito tributário, cuja existência ou montante só restam configurados após a decisão final do processo administrativo.[7]
Ainda segundo tal autor, não obstante a natureza material dos delitos tipificados no art. 1º, da Lei n. 8.137/90, não se pode confundir a consumação do crime tributário, que ocorre com o vencimento do prazo previsto para recolhimento do tributo, com o exaurimento do crime, no que se incluem os atos de constituição (lançamento) e análogos (de fiscalização).[8]
Aduz ainda que “punibilidade não é requisito (ou elemento) do delito, mas a sua consequência jurídica” e que, além de não integrar a estrutura do tipo, do injusto e da culpabilidade, também não está coberta pelo dolo ou culpa do agente, de modo a não se poder condicionar o oferecimento da denúncia pelo órgão do Ministério Público ao fim do processo administrativo.[9]
E continua:[10]
“De fato, se a efetiva exigibilidade do tributo espelhada no auto de infração ainda encontra-se sob o crivo da administração tributária, face à pendência de recurso interposto pelo contribuinte, é possível que, em determinada situação específica, qual seja, quando houver a impugnação do nascimento do fato gerador da obrigação tributária, o resultado da decisão administrativa definitiva afete o tipo de injusto, vinculando, por conseguinte, o teor da sentença penal no sentido da não-caracterização do ilícito penal tributário.
Nessa situação particular, em que o conteúdo da decisão definitiva da instância administrativa possui aptidão para esvaziar o conteúdo do tipo de injusto, caso seja reconhecida a pretensão do contribuinte, forçoso concluir que ela não pode ser tida como condição objetiva de punibilidade, mas sim como elemento integrante do tipo penal tributário, uma vez que estará ausente a efetiva supressão ou redução do tributo estampada no auto de infração.” (destaques nossos.)
Pugna, então, pelo reconhecimento da quebra da autonomia entre as esferas penal e administrativa, em certas circunstâncias, encaminhando a solução do problema para a disciplina das questões prejudiciais heterogêneas (arts. 92 e 93, do CPP).[11]
Obtempera, por fim, que isso só ocorrerá se e quando, “no curso do processo criminal, não for possível a produção de outras provas comprobatórias do aperfeiçoamento do ilícito penal tributário”, o que significa dizer que admite a prolação de sentença condenatória mesmo que tenha havido, na instância administrativa, a desconstituição ou cancelamento da autuação fiscal, justificando a conduta do magistrado à luz dos princípios da inafastabilidade da jurisdição, da verdade real e da livre convicção, o que não configura invasão à seara reservada à autoridade administrativa.[12]
Harada, em artigo sobre o tema, afirma que, se a intenção da Corte Suprema era a de impedir a apresentação de denúncia em tais crimes, antes do encerramento do processo administrativo, a súmula não cumprirá seu fim, eis que inexiste em nosso ordenamento a figura do “lançamento provisório” e que o crédito reputa-se definitivamente constituído com a notificação do lançamento referido no art. 142, do CTN. Assim, depois de consumada a notificação, pode até ter lugar procedimento administrativo tendente a infirmar ou invalidar o lançamento, mas este estará irremediavelmente feito pela autoridade competente.[13]
5 – Conclusão
A interconexão entre processo administrativo e a atuação do Ministério Público em sede de crimes contra a ordem tributária varia, dependendo do ponto de vista que se adote no que tange, principalmente, à natureza do lançamento: declaratória em relação à obrigação tributária e constitutiva em relação ao crédito tributário (posição tradicional) e meramente declaratória em relação a ambos – obrigação e crédito tributários.
Não obstante isso, há que se ter em mente a edição do verbete de Súmula Vinculante n. 24, ao qual já são endereçadas algumas críticas, focadas na expressão “lançamento definitivo”, que remetem à concepção meramente declaratória do lançamento.
Mestra em Direito Público pela Universidade de Franca, Pós-graduanda em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Procuradora da Fazenda Nacional, Ex-Auditora da Receita Federal do Estado de Minas Gerais
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