I – Introdução ao tema
Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, a criança e o adolescente passaram a gozar de prioridade absoluta com relação a outros temas de relevância social. Foi incorporada àquele texto (vide artigo 227, caput) a noção exata de que infante e jovem são sujeitos de direitos e, nessa qualidade, devem receber todos os cuidados necessários para um desenvolvimento saudável e positivo.
Sobreveio o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei Federal nº 8.069/90), reafirmando esses direitos essenciais e bisando a noção de prioridade absoluta com que deve ser tratada a questão infanto-juvenil (vide artigo 4º, caput).
A questão mais delicada sobre o atendimento de infantes e jovens em seus direitos fundamentais sempre se referiu à questão do risco para eles, mormente em função de ação ou omissão dos pais ou responsáveis. Via de regra, sempre que havia uma ameaça ou efetiva lesão aos direitos essenciais da criança ou adolescente, era ele encaminhado para entidade (denominada abrigo) enquanto o panorama sociofamiliar era analisado pelo Juízo da Infância e da Juventude.
Posteriormente houve o advento da Lei Federal nº 12.010/09 (batizada de “Lei Nacional de Adoção”), a qual modificou radicalmente o quadro envolvendo a possibilidade (ou não) de acolhimento de crianças e adolescentes em instituições (já não mais chamadas de abrigos).
Essa nova legislação é considerada verdadeira “colcha de retalhos” (como se referia o saudoso jurista Sílvio Rodrigues ao projeto de Código Civil, promulgado em 2002). Trata de questões consideradas em posições radicalmente opostas (ao mesmo tempo em que incentiva a adoção, busca proteger a família de origem), coloca entraves em casos de investigação da situação de risco envolvendo determinada criança ou adolescente (limita casos de instauração de procedimento verificatório pela Justiça da Infância e da Juventude a pouquíssimas hipóteses) e até mesmo causa enormes dúvidas quanto a prazos recursais (como no caso de adolescentes postos em internação).
Nem tudo é negativo com a (mal redigida) Lei nº 12.010/09. Houve avanços importantes – em especial com relação a prazos envolvendo os processos em trâmite pelo Juízo da Infância e da Juventude, que eram frequentemente deixados de lado, fazendo com que crianças e adolescentes por vezes ficassem até alguns anos sem definição de suas situações jurídicas, com enormes prejuízos – em especial com relação a reinserção familiar ou mesmo colocação em família substituta.
II – Reavaliação periódica da situação de crianças e adolescentes acolhidos
Um avanço por parte da Lei nº 12.010/09 diz respeito à necessidade de estudo frequente da situação dos infantes e jovens postos sob acolhimento (institucional ou familiar).
Pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, não se tinha a noção exata a respeito da frequência com que as reavaliações do caso pela Justiça da Infância e da Juventude deveriam ocorrer.
Situações inusitadas aconteciam nos Juízos da Infância e da Juventude. Sem a obrigação legal de reavaliar periodicamente os casos que lhes eram trazidos, alguns magistrados chegavam inclusive a determinar o arquivamento de processos – mesmo quando crianças ou adolescentes ainda se encontravam em situação de acolhimento. Tal quadro somente era minorado quando as instituições encaminhavam seus relatórios de acompanhamento, o que podia levar meses a mais.
Esse quadro foi modificado com a edição da Lei nº 12.010/09, segundo a qual essa análise deve ocorrer no máximo a cada seis meses, sendo de responsabilidade das instituições de acolhimento, do Poder Judiciário e do Ministério Público o cumprimento do disposto nos artigos 19, §1º, e 92, §2º, ambos do Estatuto da Criança e do Adolescente.
A importância da reavaliação da situação de infantes e jovens acolhidos reside exatamente na possibilidade de reversão do quadro (com a restituição ao núcleo familiar de origem, desaparecendo a situação de risco) ou encaminhamento do caso sob outro prisma (com a colocação em lar substituto).
ROBERTO JOÃO ELIAS bem discorre sobre a necessidade de colocação em entidade de acolhimento, dizendo que ela, “quando necessária, deve ser o mais breve possível”[1].
Referido jurista detalha a importância da reavaliação periódica ao asseverar que “a avaliação semestral possibilitará à criança ou adolescente a mudança que for necessária para o seu bem-estar”[2].
Igualmente há que se atentar para a lição trazida pelo Desembargador JOSÉ LUIZ MÔNACO DA SILVA quando aborda o tema da institucionalização e do atendimento adequado do acolhido:
“O atendimento tal como determinado pela lei faz com que o menor resgate sentimentos de autoestima até então esquecidos ou desprezados, se autovalorizando, além de dar mais importância a tudo que esteja ao seu redor, assimilando melhor as orientações transmitidas sobretudo nas sessões psicológicas, e se conscientizando de que uma entidade não é um mero depósito de menores, impessoal, mas um lugar onde almas humanas recebem um tratamento diferenciado e se irmanam na busca de um determinado fim: o bem estar comum”[3].
Com a limitação temporal, baniram-se situações como a do magistrado e do promotor de Justiça que jamais fiscalizavam os estabelecimentos de acolhimento institucional sob sua responsabilidade ou das instituições que não encaminhavam relatórios ao Juízo da Infância e da Juventude, o qual, por seu turno, se mantinha à espera de notícias, perenizando-se a situação de silêncio das partes envolvidas, com imobilidade processual e indefinição da situação dos infantes ou jovens acolhidos.
Observe-se que a lei exige a análise do caso de cada infante ou jovem acolhido com frequência não superior a seis meses – mas nada impede que essa avaliação se dê em Juízo, com o convite aos órgãos envolvidos na rede de atendimento à criança ou adolescente para participação.
O magistrado também tem a opção de realizar essa reavaliação por intermédio de reuniões (e não de audiências, como equivocadamente tem se rotulado o encontro dos integrantes da rede), nas quais são colhidas as opiniões técnicas (de que o magistrado evidentemente não dispõe em face de sua formação específica) para nortear os rumos do processo de acompanhamento da criança ou adolescente em situação de acolhimento.
III – O papel das audiências concentradas
A recomendação da Corregedoria Nacional de Justiça inserida na Instrução Normativa nº 02, de 30 de junho de 2010[4] previu a realização de audiências concentradas, nas quais o magistrado se vale de equipe interprofissional para realizar levantamento da situação das crianças e adolescentes inseridos em medida protetiva de acolhimento.
Na prática, observou-se desvirtuamento pontual do instituto. Alguns juízes convocaram representantes do Poder Executivo Municipal (principalmente pelas Secretarias de Assistência e Desenvolvimento Social, Educação e Saúde), promotores de Justiça e defensores públicos para as audiências concentradas, quando a recomendação da Corregedoria Nacional de Justiça fala expressamente na realização de parcerias com esses órgãos.
As audiências concentradas encerram grave problema: não estão expressamente previstas em lei, o que lhes retira a obrigatoriedade de realização e a validade perante o ordenamento jurídico.
Em parecer datado de 22/02/11[5], a Coordenadoria da Infância e da Juventude do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo destacou a “resistência de magistrados à realização das audiências” – o que não foi algo pontual, já que o relatório fez menção a “diversos” Juízes da Infância e da Juventude.
O próprio parecer reconheceu que a falta de adesão desses magistrados se deu pela falta de obrigatoriedade de cumprimento da recomendação da Corregedoria Nacional de Justiça e do parecer daquela Coordenadoria.
Assim, sendo a realização dessas audiências uma faculdade do magistrado, do mesmo modo é facultado ao promotor de Justiça e ao defensor público delas participar.
Além disso, não havendo expressa previsão legal, também o magistrado não pode obrigar técnicos (ligados a secretarias municipais, entidades de atendimento, órgãos públicos etc.) ao comparecimento, já que uma eventual condução coercitiva ou penalização afrontaria diretamente o disposto no artigo 5º, inciso II, da Constituição da República.
Continua a existir para o juiz da Infância e da Juventude, porém, a obrigação legal de reavaliação periódica do caso do acolhido (artigo 19, §1º, do Estatuto da Criança e do Adolescente). Caso opte pela não realização das audiências concentradas, poderá realizar a avaliação – pormenorizadamente, com o auxílio de sua equipe técnica e, se o caso, convidando outros integrantes da rede de atendimento para troca de experiências e conclusões sobre a questão.
Há outro problema – de extrema seriedade – envolvendo esses atos: crianças e adolescentes apresentam reações variadas e impressionantes quando expostas a essas audiências.
Ilustra-se com um exemplo prático: na primeira audiência concentrada que se tornou modelo no Estado de São Paulo, gravada que foi pela APAMAGIS, foi observado que um grupo de irmãos (com três, seis e sete anos de idade) se apresentou tímido, quase que em desconforto. A autoridade judiciária apresentou todas as pessoas que estavam presentes ao ato (num total de catorze) e os irmãos se entreolhavam, intrigados.
No transcorrer da audiência, a autoridade judiciária foi alertada para o fato de os infantes estarem cansados. Determinou-se o prosseguimento do ato. O resultado foi evidente: a criança mais nova dormiu em plena audiência, sem sequer contar com um local para se amparar durante aquele sono. O que foi comemorado pela autoridade como uma audiência bem-sucedida se revelou para o observador externo como um desastre.
Esse é um típico exemplo de reações que foram observadas durante as audiências concentradas. Diversas crianças se mostravam ansiosas para falar com a autoridade judiciária (num misto de curiosidade e de exibicionismo, apenas para mostrar aos demais que havia falado com um juiz). Adolescentes se mostravam apáticos e desinteressados, na maioria das vezes.
Em todas essas oportunidades, observou-se que os resultados que foram alcançados (reavaliação de casos, indicação de serviços públicos a buscar, diagnóstico de possível restituição ao convívio na família de origem ou encaminhamento para lar substituto) poderiam perfeitamente ocorrer sem a exposição das crianças e adolescentes, que dispensariam absolutamente sua própria presença às audiências, caso lhes fosse ofertada tal opção.
III – Cautelas a observar na realização de audiências concentradas
No caso de a autoridade judiciária optar pela realização das audiências concentradas (as quais são facultativas tanto para o magistrado como para todos os integrantes da rede), alguns cuidados devem ser tomados para que se chegue a bom termo no que tange à avaliação da questão envolvendo crianças e adolescentes acolhidos.
Em primeiro lugar, há que se ter cuidado com o local de realização dessas reuniões. Isso porque em muitos casos os magistrados decidem realizar suas audiências na própria entidade de acolhimento em que a criança ou adolescente se encontra.
Há casos em que o infante ou jovem se mostra extremamente desconfortável com a presença de autoridades e de técnicos que sequer conhece. O ambiente de acolhimento (artigo 92 e incisos da Lei nº 8069/90) é equiparado ao que o acolhido está acostumado a chamar de casa, à falta da sua própria.
Por ser o ambiente a que o infante ou jovem está habituado a se referir como casa, não é tranquilo que aceite estranhos para decidir sobre seu futuro. Assim, deve se ter como facultativa a presença da criança ou adolescente à audiência concentrada. Não se pode forçar alguém a participar de algo que não deseja ou não entende. Ademais, obrigar o infante ou jovem a comparecer a tal audiência constitui verdadeiro atentado a seus direitos fundamentais (em especial o respeito e a dignidade, previstos nos artigos 17 e 18, ambos da Lei nº 8069/90).
A respeito do tema, já se manifestaram EDUARDO ROBERTO ALCÂNTARA DEL-CAMPO e THALES CEZAR DE OLIVEIRA, indicando que “ao ordenar respeito ao direito do menor de agir segundo suas próprias decisões, pretendeu o Estatuto conceder à criança e ao adolescente a possibilidade de desenvolver sua própria personalidade”[6].
Prosseguem os autores dizendo que “o combate aos abusos cometidos contra menores é um dever da sociedade como um todo”[7].
Assim, caso a criança ou adolescente concorde expressamente em participar da audiência, desejando estar junto ao grupo, seus direitos serão respeitados.
O magistrado, quando da realização das audiências concentradas, também tem o dever de manter a sobriedade de seu cargo. Não é o fato de estar no ambiente em que crianças e adolescentes estão residindo que o torna parte daquele lugar. Se as crianças desejarem realizar uma apresentação teatral ou musical, por exemplo, a autoridade judiciária não necessita se juntar a eles (em danças, cantos etc.), mas sim prestigiar. Afinal de contas, não se está num evento social ou de piedade – a audiência concentrada não se presta a isso.
Igualmente deve a autoridade judiciária tomar cautelas para sua atitude não transbordar para aquela banida pelo Estatuto da Criança e do Adolescente e que estava presente quando da vigência do Código de Menores (Lei nº 6697/79), ou seja, a de bom pai (ou mãe) de família.
Isso significa que o infante ou jovem deve ser tratado como sujeito de direitos (vide artigo 15 do Estatuto). Não há a menor possibilidade de invocar a aplicação da lei para o caso concreto unicamente pensando que se está fazendo um bem para a criança ou o adolescente. A audiência concentrada não é palco para benemerências.
Atitudes como a de se aproximar da criança ou do adolescente, prometendo que irá colocá-lo numa seletiva para times de futebol, por exemplo, são censuráveis, já que o magistrado pode perder a seriedade em suas palavras, passando a (falsa) imagem para o acolhido de que será uma pessoa que solucionará todos seus problemas de vida, prometendo-lhe algo que eventualmente não se concretizará (gerando frustrações profundas no acolhido).
Finalmente, devem ser evitadas audiências concentradas para casos em que não há solução a curto prazo para o caso concreto. Se determinada criança ou adolescente vai permanecer em acolhimento por período prolongado, não há como ser ela convidada a participar para se indagar algo vago como o que quer da vida ou o que planeja fazer assim que sair da obra. Causará enorme frustração para o infante ou jovem saber que a autoridade judiciária esteve em seu ambiente, movimentou todo um aparato e ao final nada decidiu de concreto que pudesse fazer com que seus direitos fossem respeitados.
IV – Conclusões
Há algumas ideias que são aplicáveis ao caso concernente às audiências concentradas.
Em primeiro lugar, essencial se faz que haja efetivamente as reavaliações periódicas de casos de crianças e adolescentes em situação de acolhimento. Não se pode deixar que o acolhido seja um mero número, estando a merecer o respeito devido.
Essas reavaliações, por sua obrigatoriedade legal (o que foi um avanço trazido pela Lei nº 12.010/09), devem ocorrer de forma concreta, devendo a autoridade judiciária orientar seus cartorários quanto a trâmites processuais (evitando-se esquecimentos de autos em escaninhos) e instruir os dirigentes de entidades de acolhimento a constantemente elaborar relatórios de acompanhamento, enviando-os a Juízo o quanto antes.
No que se refere ao modus operandi para as reavaliações, podem ser realizadas pela forma tradicional (apresentação de relatórios, apreciação pelo Ministério Público e determinações por parte da autoridade judiciária) ou em formatos mais dinâmicos, como a realização de reuniões com os demais integrantes da rede de atendimento à criança e ao adolescente.
Nessas reuniões, em que as pessoas são convidadas para expor seus pontos de vista e oferecer sugestões para os casos que são postos para exame, técnicos do Juízo devem interagir com os da rede de atendimento (nas áreas de Serviço Social, Psicologia, Psiquiatria etc.), levando suas sugestões ao conhecimento do promotor de Justiça e do juiz da Infância e da Juventude.
Caso opte pela realização das audiências concentradas, o magistrado deverá ter cautelas para tanto, evitando-se armadilhas que podem constranger a criança ou adolescente acolhido ou mesmo iludi-lo. Também devem ser evitados os ambientes de acolhimento para a realização das audiências, já que são moradia (temporária) dos acolhidos – e como tal devem se manter. Somente devem ser chamados os infantes ou adolescentes caso queiram expressamente participar das audiências e tenham condições de discernimento a respeito do que é colocado em termos de traçado de rumo para sua vida.
Estabelece-se aqui a sugestão de lege ferenda no sentido de que seja esboçada pelo legislador uma previsão legal expressa a respeito da realização das audiências concentradas, caso se queira a uniformização nos procedimentos, já que hodiernamente o magistrado pode (ou não) realizar essas reuniões, fazendo-o com o formato com o toque pessoal de cada juiz da Infância e da Juventude.
O resultado dessa falta de previsão legislativa específica é bastante claro: o sucesso (ou não) das audiências concentradas continua dependendo da atuação (em maior ou menor grau) do magistrado responsável por sua condução.
Com a uniformidade nos procedimentos, cria-se o que já foi estabelecido pelo advento da Lei nº 12.010/09 quanto à reavaliação periódica de casos: um inegável atuar de modo linear, sem distinções entre o procedimento deste ou daquele magistrado em determinado caso concreto.
Do modo que os fatos estão postos atualmente, cada audiência concentrada terá sucesso – ou não – a depender da dinâmica que o magistrado imprime ao caso concreto. Ademais, pela falta de previsão legislativa específica, não se faz possível a convocação, mas sim o convite para comparecimento às audiências.
Portanto, conclui-se pela necessidade de uma reforma legislativa no tocante às audiências concentradas, até mesmo porque é dela que depende o sucesso de tal iniciativa, já que seu estabelecimento pelos magistrados na atualidade é puramente opcional, não havendo espaço para entendimento em contrário.
Promotor de Justiça da Infância e da Juventude da Lapa
Mestre e Doutor em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP
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