Resumo: Os novos direitos são, por certo, materialização das exigências da sociedade em face das condições da vida e das prioridades determinadas socialmente e se referem à biotecnologia, bioética e engenharia genética, conectados diretamente à questão da vida humana e aqueles advindos da tecnologia da informação, ciberespaço e realidade virtual. Trata-se de assuntos que merecem destaque em razão da alta complexidade, do rápido avanço das tecnologias envolvidas nestes campos de conhecimento e da necessidade de regulação de procedimentos e métodos empregados, uma vez que envolvem diretamente a vida humana, e por conseqüência, a própria dignidade.
Palavras-chave: novos direitos – princípios constitucionais fundamentais – biotecnologia – dignidade da pessoa humana.
Abstract: The new rights are, certainly, the concretization of society desires determinated by life conditions and social priorities in the fields of biotechnology, bioethics and genetic engineer, all directly connected with the human life issue, and rights that come upon from information technology, cyberspace and virtual reality. These issues deserve be mentionated because its complexity, quickly advance of technologies evolved in these knowledge fields and the necessary regulation of methods and conducts because they evolve directly the human life and consequently the own dignity.
Keywords: new rights – constitutional and fundamental principles – biotechnology – human dignity.
Sumário: 1. Introdução; 2. A Bioética e o Direito Genético no Direito Constitucional Comparado; 3. Eugenia e Bioética: os limites da ciência em face da dignidade humana, 4. Eutanásia, Ortotanásia e Doação de Órgãos, 5. Considerações Constitucionais sobre a Pesquisa e aplicação terapêutica das células-tronco, 6. Conclusão, 7. Referências Bibliográficas
“É a ignorância profunda que inspira o tom dogmático” Jean de La Bruyère
E nesta tarefa, levo comigo a advertência de Robespierre: “Nunca se vai tão longe como quando não se sabe para onde se caminha”.
1. Introdução
Para melhor compreender meus propósitos, convém, primeiramente, explicar o título deste trabalho. É imprescindível reconhecer que a verdade não é única, que há outra(s) face(s) dessa mesma verdade que merece(m) ser ouvida(s), despida(s) de todo o julgamento pré-concebido, passando, a seguir, a uma reflexão séria e desinteressada sobre os argumentos de cada uma delas antes de decidir se A, B ou C correspondem ao ideal particular de verdade. Concluí que não é salutar acatar a primeira opinião racional e coerente, é preciso examinar o outro lado, de modo a estimular o exercício da reflexão.
Somente para demonstrar essas faces/fases da verdade, vale recordar as considerações da Profª Marilena Chauí:
“Aletheia se refere ao que as coisas são; Veritas se refere aos fatos que foram; Emunah se refere às ações e as coisas que serão. A nossa concepção da verdade é uma síntese dessas três fontes e por isso se refere às coisas presentes (como na aletheia), aos fatos passados (como na veritas) e às coisas futuras (como na emunah). Também se refere à própria realidade (como na aletheia), à linguagem (como na veritas) e à confiança-esperança (como na emunah).” [1]
Esclarecido o título, é importante delimitar o que vem a ser os “Novos Direitos” e qual a amplitude da minha discussão.
Os novos direitos são, por certo, materialização das exigências da sociedade em face das condições da vida e das prioridades determinadas socialmente. Essa multiplicação histórica dos “novos” direitos processou-se, no dizer de Bobbio[2], por três razões:
“a) aumentou a quantidade de bens considerados merecedores de tutela; b) estendeu-se a titularidade de alguns direitos típicos a sujeitos diversos do homem; c) o homem não é mais concebido como ser genérico, abstrato, mas é visto na especificidade ou na concreticidade de suas diversas maneiras de ser em sociedade, como criança, velho, doente”.
Examinando a evolução histórica dos direitos dos homens, podemos situá-los, segundo alguns doutrinadores, em dimensões, a saber: a primeira dimensão, a qual corresponde os direitos civis e políticos, essencialmente ligados às liberdades individuais; a segunda dimensão, que abrange os direitos sociais, culturais e econômicos, assentados sobre a igualdade; a terceira dimensão, consubstanciada nos direitos metaindividuais, coletivos e difusos, vinculados à solidariedade; a quarta dimensão, que diz respeito aos “novos direitos” referentes à biotecnologia, bioética e engenharia genética, conectados diretamente à questão da vida humana; e, a quinta dimensão, relativa aos “novos direitos” advindos da tecnologia da informação, ciberespaço e realidade virtual[3].
Como se pode observar, os direitos de quarta e quinta dimensões são os chamados novos direitos, dentre os quais extraio, para uma análise mais acurada, os referentes à biotecnologia, bioética e regulação da engenharia genética. Minha escolha se deve a alta complexidade destes temas em face do rápido avanço das tecnologias envolvidas neste conhecimento e na necessária regulação de procedimentos e métodos empregados, uma vez que envolvem diretamente a vida humana, e por conseqüência, a própria dignidade.
Pretendo abordar a importância do tratamento constitucional da bioética e do direito genético, o conceito de eugenia contrapondo à sua limitação em face da dignidade humana, as práticas da eutanásia, ortotanásia, distanásia e doação de órgãos, e, por último, considerações acerca da pesquisa e aplicação terapêutica das células-tronco.
2. A BIOÉTICA E O DIREITO GENÉTICO NO DIREITO CONSTITUCIONAL COMPARADO
O ser humano vê ameaçada sua existência pelo desenvolvimento desmesurado das técnicas biomédicas. Isto merece reflexão profunda e uma resposta idônea do direito que leva a jurisdificar a nível constitucional a bioética, reconhecendo o respeito às pessoas, a beneficência, a justiça que representam os princípios fundamentais da Bioética.
A partir dessa constatação é possível afirmar que a biotecnologia pode ser considerada uma das principais fontes de vulnerabilidade dos direitos fundamentais da pessoa, inclusive da própria vida. Em face disto, é lógico que a Constituição trate deste assunto a despeito de outras normas especiais tratarem da matéria.
A dignidade, fundamento da proteção do ser humano, deve servir de base para a ordenação da segurança e garantia constitucional do ser humano, e é por essa razão que a dignidade é tratada de modo especial nas constituições do mundo.
Contudo, há posições favoráveis e contrárias ao tratamento constitucional das questões referentes à bioética.
Os argumentos favoráveis podem ser assim resumidos: trata-se da garantia dos direitos à integridade do patrimônio genético dos povos. As questões de bioética pertencem ao âmbito ético, mas principalmente jurídico; entram em jogo valores básicos da existência humana, tais como a vida, a identidade das pessoas, a liberdade de toda predeterminação por parte de terceiros. Os poderes que a tecnologia confere sobre os semelhantes e sobre o futuro mesmo da espécie, exigem indubitavelmente uma resposta jurídica do mais alto nível a fim de proteger a dignidade humana.
Já no que se refere aos que adotam a postura contrária, seus argumentos redundam em: tratamento jurídico extensivo a respeito da pessoa volte ao seu lugar de origem, ou seja, é matéria fundamental de direito civil. Também esta matéria muda muito, está sempre inovando e fixá-las em normas constitucionais pode parecer inconveniente.
No Direito comparado, pode-se verificar que os princípios bioéticos têm sido tratados em vários países, em dispositivos mais ou menos abrangentes ou explícitos.
A seguir alguns exemplos extraídos do artigo de Enrique V. Rospigliosi[4]:
“a) Limite à aplicação e utilização indevida de material genético humano (Equador) e garantia a identidade genética frente ao desenvolvimento, criação e uso das tecnologias e na experimentação científica (Portugal, Ucrânia), proteção à identidade genética (Grécia).
b) Não a experimentos médicos ou científicos sem consentimento da pessoa (Armênia, Bielorússia, Croácia, Chechenia, Egito, Eslovênia, Estônia, Fiji, Guatemala, Lituânia, Paraguai, Rússia, Argentina – Santa Fé, Polônia, África do Sul, Turquia, Venezuela, Zimbábue). Todas as pessoas serão protegidas das intervenções biomédicas (Grécia).
c) Preservação da integridade do patrimônio genético do país (Brasil, Equador) e regulação da biossegurança dos organismos voluntariamente modificados (Equador).
d) Proteção especial à reprodução humana (Nicarágua, Portugal, África do Sul), controle das novas práticas de reprodução (Projeto Constitucional de Quebec) e igualdade de todos os filhos inclusive dos procriados por assistência científica (Colômbia).
e) Promoção do direito de investigar a paternidade (Bolívia, Costa Rica, Cuba, Espanha, El Salvador, Guatemala, Honduras, Itália, Panamá, Uganda, Venezuela) e reconhecimento do direito a identidade biológica (Venezuela), de origem (Argentina – Buenos Aires).
f) Promoção da medicina tradicional com sujeição a princípios bioéticos (Venezuela) e regulação da prática médica (Washington).
g) Respeito às gerações futuras (Argentina – Buenos Aires e Santa Cruz – Brasil, Japão, Noruega). ”
Vale lembrar que a Constituição Suíça de 1992 e, posteriormente a de 1999, foram as precursoras na regulação da bioética. No Conselho Europeu de Nice, em Dezembro de 2000, o Parlamento Europeu, o Conselho e a Comissão proclamaram a Carta dos Direitos Fundamentais da União Européia, permitindo a todos os residentes na União Européia conhecerem rápida e facilmente os seus direitos. Todos os direitos pessoais, cívicos e políticos, econômicos e sociais que são garantidos ao cidadão europeu, incluem também os direitos com vista a fazer face aos desafios decorrentes do progresso atual e futuro das tecnologias da informação e da engenharia genética. Vários são os documentos internacionais que tratam do tema: Declaração de Helsinki; Declaração de Bilbao; Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos; Tratado dos Direitos Humanos e Biomedicina; Declaração Bioética de Gijón (I Congresso Mundial de Bioética); Carta de Direitos em Genética (Conselho para uma genética responsável); Declaração Ibero Latino Americana sobre Direito, Bioética e Genoma Humano (Manzanillo – 1996; Buenos Aires – 1998 e Santiago – 2001).
3. EUGENIA E BIOÉTICA: OS LIMITES DA CIÊNCIA EM FACE DA DIGNIDADE HUMANA
A eugenia pode ser definida como a ciência que busca produzir uma seleção nas coletividades humanas, baseadas em leis genéticas, ou seja, o aperfeiçoamento da espécie humana via seleção genética.
A noção de eugenia é tão antiga quanto à formação da sociedade. Os gregos já se utilizavam da eugenia, mesmo sem o conhecimento científico, ao atirarem do desfiladeiro as crianças defeituosas; Aristóteles tratou da questão quando sugeriu a exposição das crianças disformes quando do seu nascimento ou aborto; na Babilônia, a Rainha Semíramis fazia castrar os jovens defeituosos.
Francis Galton, em 1883, foi o primeiro a utilizar-se do termo eugenia, fazendo a distinção entre eugenia negativa e positiva. A eugenia negativa tem por objetivo impedir os homens (julgados inferiores) de se reproduzirem; em termos de genética, isto implicaria reduzir a freqüência dos genes patológicos na população. Já a eugenia positiva pretendia encorajar os elementos “sãos” ou julgados superiores a se reproduzirem; em termos genéticos, objetiva-se aumentar a freqüência das características genéticas “desejáveis” na população.
A eugenia, no contexto científico, era direcionada às teorias de hereditariedade e evolução; no contexto social preocupa-se com a degenerescência da espécie humana. Aliada a isso, as teorias de hibridação de Mendel fez nascer a ciência genética.
As práticas eugênicas encontraram sustentação na seguinte premissa: “Se os criadores de animais, praticando a seleção artificial nos animais, obtêm excelentes resultados, a raça humana pode ser melhorada da mesma forma”.
Em 1912 e 1921 foram realizados Congressos Internacionais sobre Eugenia, sendo que este último em Nova Iorque inspirou a sociedade americana a fazer pressão sobre os juristas para que adotassem leis eugênicas. As medidas adotavam duas posturas: a primeira relativa a normas de exclusão social; e outras medidas relativas à procriação.
As leis relativas à exclusão social previam: a restrição de imigração; o internamento dos anormais; e a eutanásia. Em 1906, o Parlamento de Ohio aprovou a 1ª Lei sobre eutanásia. Na Europa tentou-se adotar essas medidas, mas somente a Alemanha nazista levou a cabo.
As leis relativas à procriação tratavam: normas relativas ao casamento que dispunham contra o casamento de alienados; sobre a exigência de certificado pré-nupcial, visando eliminar contaminação venérea; e previam a definição de políticas familiais e sociais. Ainda quando às leis referentes à procriação foram aprovadas regras sobre o aborto eugênico e a esterilização eugênica, esta última incondicionalmente aprovada, primeiro nos EUA, Canadá, Suíça, países Escandinavos e Alemanha nazista. No período de 1907-1940, 33 estados americanos tinham adotado, via legislação, medidas de esterilização.
Na Alemanha, em 1920 foi publicado um artigo do jurista Karl Binding e do psiquiatra Alfred Hoche sobre a “Destruição da vida não merecendo ser vivida”; Adolf Jost publicou artigo sobre direito à morte, introduzindo o conceito de “vida negativa”, justificando a eutanásia. Em 1932, com a ascensão do partido nazista nas eleições legislativas, é votado projeto de lei sobre esterilização e sobre a interrupção eugênica da gravidez; em 1933, aprovada lei sobre prevenção da transmissão de doenças hereditárias, por meio da esterilização e do extermínio em campos de concentração. Em 1935 é aprovado um conjunto de leis sobre: “Cidadania do Reich”, na qual se referia expressamente aos judeus e ciganos e só reconhecia como cidadãos alemães os indivíduos de pura ascendência ariana; a de proteção do sangue e da honra alemã, que proibia os casamentos e as relações extraconjugais entre judeus e cidadãos alemães; e da proteção do patrimônio genético do povo alemão, a qual proibia casamento de portadores de taras hereditárias.
É importante ressaltar que essas leis tiveram ampla aceitação popular, inclusive dos próprios judeus. Diante disso, pode-se dizer que havia um verniz de juridicidade, já que as medidas ganhavam validade por meio de leis e eram legitimadas socialmente.
Em 1939 aprovou-se lei sobre eutanásia de doentes mentais; direito sobre morte de incuráveis; direito sobre eliminação dos fracos; a que investia parteiras e médicos na indicação de todas as crianças com má-formação congênita, os quais deveriam preencher formulários para posterior análise de especialistas, o que resultava na condenação à morte dessas crianças ou, dependendo do caso, estas ganhavam um adiamento. Analisando essas medidas, é certo concluir que a vida não representa um valor absoluto.
Desse extermínio, passou-se rapidamente à eliminação de todos aqueles indesejados. Os campos de concentração e os guetos consistiam na nulificação da noção de dignidade humana e aniquilamento de qualquer consideração de eventual humanidade àqueles que foram submetidos a essas condições. Da prática da eugenia ao genocídio, os responsáveis contaram com o aval das instituições médicas, o silêncio dos juristas e a omissão da Igreja. O nazismo consistiu no desvirtuamento insano das conquistas científicas, que foram utilizadas para eliminação da espécie humana; contava com apoio integral de médicos e juristas. Cumpre salientar que os artífices dessa atrocidade foram os segmentos cultos da sociedade alemã e o elemento de consecução, a ciência.
Em face disso, cabe a reflexão sobre a premissa dos ambientes científicos: “Toda experiência é válida pelo mero progresso da ciência”. Deve-se considerar que a ciência sem controle ético e jurídico consiste num perigo à própria integridade física e psicológica do ser humano. O progresso da inseminação artificial, da biologia molecular e biotecnologia têm suscitado questionamentos de cientistas e juristas se não ressuscitaria o risco da eugenia. Ainda que se invoque o controle genético como meio de evitar a transmissão de doenças graves à futura criança, de modo a afastar a sombra da eugenia, ela está latente no procedimento já que a gravidade da doença e a fronteira entre o patológico e a normalidade incidem na triagem genética que pode conduzir à contestação da operação. Por meio de técnicas de diagnóstico pré-natal no útero ou das técnicas pré-implantatórias, o diagnóstico pré-natal permite selecionar crianças que vão nascer de acordo com critérios médicos. A eugenia moderna conduz à exclusão indolor de crianças potenciais graças ao controle de dezenas de conceptos e se trata de método bem mais eficaz uma vez que o diagnóstico pré-natal vinculado à interrupção médica da gravidez age de forma mais severa na aplicação do conceito da normalidade. Torna-se fundamental o regramento do diagnóstico pré-natal, de modo a evitar interrupções de gravidez decorrentes de mínima anomalia ou pela conveniência do sexo do bebê. É forçoso lembrar que a eugenia, inicialmente na Alemanha, tinha objetivos sanitários.
Tênue e frágil é o limite entre eugenia e ciência. Veja, por exemplo, a terapia gênica somática, a qual trata o DNA a partir da substituição do gene deficiente, e a terapia gênica germinal, que introduz nas células germinais (óvulos e espermatozóides), um novo gene que cria novo caráter hereditário e provoca a modificação do indivíduo e de sua descendência. Esta última tem como função a erradicação de qualquer má-formação congênita e melhorar o homem.
Esta lógica legitima a esterilização de doentes mentais, criminosos, alcoólatras, pobres, descartar a possibilidade de procriação de indivíduos considerados inaptos aos padrões sociais de uma contestável normalidade, ou seja, esses padrões ditos normais devem ser entendidos como aqueles que se referem a seres que correspondem a um ideal de atuação autônoma e de produtividade.
4. EUTANÁSIA, ORTOTANÁSIA E DOAÇÃO DE ÓRGÃOS
A idéia de eugenia envolve, entre outras medidas, questões referentes à prática da eutanásia. É evidente que o debate atual não está unicamente voltado para a eutanásia com fins eugênicos, mas na maioria das vezes está inserido no contexto da morte piedosa, morte sem dor, morte sem sofrimento. A utilização do termo eutanásia com o sentido de boa morte foi primeiramente vista na obra do filósofo Francis Bacon, em 1623.
A eutanásia consiste em ato de produzir morte fácil e sem sofrimento de indivíduo portador de moléstia incurável. Já a ortotanásia pode ser compreendida como a suspensão de meios medicamentosos ou artificiais de vida de um paciente em coma irreversível e considerado em ‘morte encefálica’, quando há grave comprometimento da coordenação da vida vegetativa e da vida de relação. Sobre a ortotanásia a Resolução n.º 1805 do Conselho Federal de Medicina admite que seja permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente em fase terminal, de enfermidade grave e incurável, respeitada a vontade da pessoa ou de seu representante legal. Neste caso, o paciente deve receber os cuidados paliativos que consistem em medicação para aliviar os sinais e sintomas da doença; essa conduta leva em conta os limites do ser humano, a compreensão de que a morte é um processo, o fim de um ciclo. Outro conceito que merece atenção é o da distanásia que pode ser entendida como tratamento insistente, desnecessário e prolongado de um paciente terminal, que não apenas é insalvável, mas também submetido a tratamento fútil (inapropriado, não indicado, inútil, ineficaz).
Neste momento, cabe lembrar os princípios da bioética tratados na Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos, ressaltando não haver entre eles qualquer hierarquia:
a) autonomia: qualquer ato que tenha conseqüência para outrem seja subordinado ao consentimento da pessoa envolvida. Envolve informações cuidadosas da verdade sobre diagnóstico e prognóstico, opções de conduta, planejamento do tratamento e das futuras expectativas, de modo que o paciente possa compreender sua real situação.
b) beneficência: a ação deve tender para a realização do bem tendo em consideração a concepção do bem de outrem. Os interesses do paciente estão em primeiro lugar.
c) não maleficência: impõe a obrigação de garantir que os benefícios de uma ação superam os malefícios.
d) justiça: consideração das dimensões sociais, políticas e econômicas das questões que suscita. Todos os pacientes devem ter acesso a um mesmo nível de tratamento de saúde, bem como à distribuição dos recursos disponíveis de tratamento.
Saliente-se que estes princípios visam garantir a vida e a dignidade humana, considerando a pessoa humana um ‘minimum’ invulnerável que deve ser assegurado por todo estatuto jurídico, pois ainda que se opte em determinada situação pelo valor coletivo, essa opção não pode nunca ferir o valor da pessoa humana.
Aqueles que são contrários a leis que favoreçam ou permitam a eutanásia em qualquer hipótese, sustentam suas opiniões em um argumento chamado de “Declive escorregadio” (slippery slope), pelo qual qualquer descriminalização ou despenalização oficial, ainda que muito restritiva, da eutanásia poderá ocasionar, segundo esse argumento, rapidamente a generalização e o abuso da prática da eutanásia, principalmente pelos motivos psicológicos (altruísmo, compaixão, vingança), ou mesmo por motivos econômicos.
A questão de doação de órgãos envolve também situações polêmicas e que podem sofrer algumas contestações, embora tenha sido de certa forma superados os primeiros preconceitos e receios quando da edição da Lei n.º 9434/97. Essa lei trata da doação e remoção de órgãos, nas modalidades inter vivos e post mortem. Nos casos de doação inter vivos, a lei e o decreto que a regulamenta fazem restrições, exigindo que a pessoa doadora seja juridicamente capaz; a doação recaia sobre órgãos duplos, partes de órgãos, tecidos ou partes do corpo cuja retirada não impeça o organismo do doador de continuar vivendo sem risco para sua integridade e não represente grave comprometimento de suas aptidões e corresponda à uma necessidade terapêutica comprovadamente indispensável à pessoa receptora. Nas doações post mortem, por declaração do doador ou da sua família, exige-se a constatação da morte encefálica cujos parâmetros clínicos são: coma aperceptivo com ausência de atividade motora supra-espinal e apnéia (Resolução n.º 1480 do CFM). A caracterização da morte encefálica é efetivada através da realização de exames clínicos e complementares durante intervalos de tempo variáveis, próprios para determinadas faixas etárias, devendo, ainda, ser conseqüência de processo irreversível e de causa conhecida.
5. CONSIDERAÇÕES CONSTITUCIONAIS SOBRE A PESQUISA E APLICAÇÃO TERAPÊUTICA DAS CÉLULAS-TRONCO
A fim de compreender alguns elementos que constam da ampla discussão sobre pesquisa e aplicação terapêutica das células-tronco, vale iniciar este tópico trazendo alguns conceitos que podem ser úteis para a exata delimitação do tema.
Células-tronco são as células estaminais ou progenitoras com características peculiares de auto-conservação ilimitada, podendo reproduzir-se durante muito tempo sem diferenciar-se; e capacidade de produzir outras células-tronco de transição, com poder limitado de proliferação, das quais deriva uma variedade de células bastante diferenciadas, quais sejam as células musculares, hemáticas, nervosas, dentre outras.
Embrião é toda célula totipotente (pode produzir todas as células embrionárias e extra-embrionárias) humana que tem a capacidade de dividir-se e dar lugar a um indivíduo humano, sempre que se manifestem presentes as condições adequadas.
Células-tronco embrionárias são extraídas do embrião e têm a capacidade de transformar-se em células de qualquer tecido de um organismo.
Células pluripotentes são aquelas que podem produzir todos os tipos celulares. Inicialmente foram descobertas na medula óssea, onde são capazes de produzir todas as células do sangue e do sistema imunológico. Pesquisas posteriores detectaram tais células nos músculos e no cérebro, sendo que as localizadas neste seriam capazes de gerar diversos tipos de células nervosas.
A clonagem humana consiste em técnicas de micro manipulação com a finalidade de gerar descendentes geneticamente idênticos ao indivíduo humano clonado, que podem ser obtidos por dois processos: partição do zigoto ou das primeiras células decorrentes de sua clivagem, chamada de cisão gemelar; e, reprogramação de células somáticas de indivíduos adultos com transferência de núcleo.
A obtenção das células-tronco embrionárias pressupõe o desenvolvimento do embrião até o estágio de blastocisto, que se inicia 4 dias após a concepção, seguida da extração das células do embrioblasto (massa celular interna do embrião). Após efetua-se uma cultura destas células em ambiente próprio, sobre uma camada de nutrientes. Por fim, realizam-se repetidas subculturas das colônias de células até a formação de células capazes de se multiplicar indefinidamente.
Extremamente polêmico esse tema suscita discussões acaloradas, cujos argumentos podem ser resumidos em:
Argumentos científicos a favor da clonagem terapêutica:
* células-tronco adultas: originam somente células dos órgãos de onde são retiradas;
* células-tronco embrionárias: podem diferenciar-se em células de outros órgãos, tendo o poder de transformar-se em todos os 216 tecidos do corpo humano;
* serão produzidas células e tecidos para sucessivos empregos na medicina regenerativa: doenças neurodegenerativas, nos transplantes sem risco de rejeição e nas lesões da medula;
* os embriões utilizados seriam aqueles cujo destino seria o descarte, uma vez que são os inviáveis, sempre com autorização do casal.
Argumentos Desfavoráveis:
* procedimento demanda necessariamente a geração de seres humanos (ainda que até o estágio de blastocisto), sendo o seu fim o descarte;
* acesso às células-tronco embrionárias implica numa série de procedimentos desde a geração de seres humanos até a destruição dos mesmos;
* existem outras técnicas que não apresentam risco de rejeição: utilização de células-tronco da medula óssea do próprio paciente ou a utilização dos xenotransplantes (órgãos de porcos);
* ensaios com células-tronco humanas não foram bem sucedidas, indicando que ainda não se conhecem seus reais benefícios.
O artigo 5º da lei n.º 11105/05 (biossegurança) foi objeto da ADIN n.º 3510/05 proposta pelo Procurador-Geral da República sob o argumento de que a vida começa na fecundação e a destruição de um embrião humano contraria o art. 5º da CF/88, que garante a todos o direito à vida.
Vários autores se posicionaram quer pelo reconhecimento da inconstitucionalidade do referido artigo, quer pela sua constitucionalidade. Resumidamente, aqueles que entendem inconstitucional o dispositivo argumentam que a proteção constitucional à vida abrange não só a vida extra-uterina, mas também a intra-uterina, pois esta se qualifica como verdadeira expectativa de vida exterior e, sem o resguardo legal do direito à vida intra-uterina, a garantia constitucional não seria ampla e plena, pois a vida poderia ser obstaculizada em seu momento inicial, logo após a concepção. Aqueles que aderem ao reconhecimento da constitucionalidade argumentam que inexiste consenso científico ou filosófico acerca do momento em que tem início a vida e o papel do direito deve ser o de pregar a tolerância e preservar a diversidade, o que se efetiva ao exigir prévia autorização dos genitores para a realização de pesquisas com células-tronco, assegurando, assim, o respeito à convicção de cada um. Registram que a posição dominante no meio jurídico é a de que inexiste na hipótese a violação do direito à vida ou à dignidade humana, porque o embrião fora do útero materno, congelado em um tubo de ensaio, não é pessoa humana nem nascituro.
O STF julgou, por maioria de votos, improcedente o pedido formulado na ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Procurador-Geral da República, prevalecendo o voto do relator Min. Carlos Ayres Britto, que argumentou que as pessoas físicas ou naturais seriam apenas as que sobrevivem ao parto, dotadas do atributo a que o art. 2º do Código Civil denomina personalidade civil, e assentando que a CF, quando se refere à dignidade da pessoa humana, aos direitos da pessoa humana estaria falando de direitos e garantias do indivíduo-pessoa.
6. CONCLUSÃO
As questões relativas à eugenia, eutanásia, à doação de órgãos e desenvolvimento dos procedimentos da biotecnologia propiciam a discussão acerca de direitos e princípios fundamentais tais como a proteção da vida, da liberdade, da dignidade humana e a colisão entre eles. Questiona-se, por exemplo, qual o limite da proteção à vida em face da liberdade de interromper uma existência considerada não digna. Dessa indagação surgem outras: Qual o limite da dignidade humana? E o peso da liberdade? O valor da vida de um ser humano é maior ou mais importante do que de outro? Há classes de seres humanos? O que é normalidade?
É evidente que muitas outras poderiam ser suscitadas. Contudo, creio que estas sejam suficientes para demonstrar o grau de complexidade e da fragilidade de conceitos e juízos que temos sobre essas questões. Rememorando o que disse ao iniciar esse texto, antes de pesquisar, ler e ouvir diversas opiniões, eu acreditava ter todas as respostas e justificativas. Algumas vezes, tendia a reconhecer o valor da liberdade, outras, me deixava guiar pelos preceitos religioso-cristãos, sem contestar ou examinar o outro lado da verdade. Entretanto, após esse breve apanhado, passei a questionar meus posicionamentos, e confesso mais uma vez estar me sentindo perdida num caos, sem solução para a maioria destas questões. Creio que muitas dessas respostas só poderão ser dadas quando cada um de nós estiver vivenciando uma experiência que envolva essas situações em nosso círculo mais próximo.
Apesar disso, entendo necessária certa regulação sobre estes temas e que essa decisão seja tomada à vista de todos os interessados, inclusive dos religiosos, ainda que nosso Estado seja laico.
Para provocar reflexão, gostaria de apresentar algumas questões sobre a vida e sua proteção:
a. A Ciência do Direito não é competente para responder a questão a partir de quando começa a vida.
b. As Ciências Naturais, em virtude de seu conhecimento, não estão em condições de responder a partir de quando a vida humana deve ser colocada sob a proteção da Constituição.
Essas foram proposições do Tribunal Constitucional Federal Alemão e, a meu ver, merecem nossa ponderação, especialmente se formos chamados a proferir entendimento sobre o tema. Deve-se reconhecer que o direito não tem respostas para questões eminentemente científicas, que podem ser oferecidas pelas ciências naturais. Entretanto, estas não devem determinar o momento e o grau de proteção da vida pelo direito, afinal o desenvolvimento desmesurado sem imposição de limites pode colocar a vida e a própria continuidade do gênero humano em risco. As Constituições e as Leis não têm, realmente, força coercitiva se não são expressão de normas previamente moldadas no espírito dos cidadãos.
Assim, os princípios são os valores inscritos na sociedade, reconhecidos por ela como essenciais e fundamentais para mantê-la coesa, possibilitando convivência ética e digna a todos os seus membros.
É relevante recordar, neste momento, a manifestação de Kant sobre dignidade humana e ética:
“Age de tal modo que trates a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa dos outros, sempre e ao mesmo tempo, como fim e nunca simplesmente como meio. No reino dos fins, todas as coisas têm um preço ou uma dignidade. Aquilo que não tem um preço pode ser substituído por algo equivalente; mas o que está acima de qualquer preço, e que, por essa mesma razão, não tem equivalente, tem necessariamente dignidade”.[5]
A discussão sobre esses assuntos está sendo colocada diante de cada um de nós, o amplo conhecimento e a reflexão devem ser nossos instrumentos para informar, decidir e influenciar.
Resta-nos a advertência de Aristóteles: “O ignorante afirma, o sábio duvida, o sensato reflete”.
Mestranda em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie
O Benefício de Prestação Continuada (BPC), mais conhecido como LOAS (Lei Orgânica da Assistência Social),…
O benefício por incapacidade é uma das principais proteções oferecidas pelo INSS aos trabalhadores que,…
O auxílio-reclusão é um benefício previdenciário concedido aos dependentes de segurados do INSS que se…
A simulação da aposentadoria é uma etapa fundamental para planejar o futuro financeiro de qualquer…
A paridade é um princípio fundamental na legislação previdenciária brasileira, especialmente para servidores públicos. Ela…
A aposentadoria por idade rural é um benefício previdenciário que reconhece as condições diferenciadas enfrentadas…