Resumo: O presente trabalho tem por escopo analisar os entraves à efetivação do direito fundamental de propriedade de comunidades remanescentes de quilombos, previsto no art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. O estudo se inicia por meio da apresentação da Ação Direta de Inconstitucionalidade 3239/2004, que se encontrava suspensa até o fechamento do presente trabalho. A referida ação questiona a constitucionalidade do Decreto 4.887/2004 que visa regulamentar o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos. A mencionada ação foi o ponto de partida para uma análise crítica dos direitos dessas comunidades que se encontram positivados no ordenamento jurídico brasileiro e internacional. Além disso, foi realizado uma pesquisa quantitativa de dados emitidos pela Fundação Cultural dos Palmares e pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária no que diz respeito a quantidade de comunidades tradicionais que receberam a certificação como quilombolas, bem como a quantidade destas que conseguiram obter o título de propriedade da terra que tradicionalmente ocupam. Diante da comparação dos dados, pôde-se verificar a efetividade da legislação posta à disposição destas comunidades, interpretando o resultado encontrado de acordo com importantes teóricos do direito.
Palavras-chave: Remanescentes de comunidades quilombolas. Autoatribuição. Direito de propriedade. Titulação de terras.
Abstract: This paper has as its goal to analyse the obstacles towards the achievement of the fundamental right of property in the remaining communities of slaves descendants, set in the article 68 from the Act of Constitutional Transitional Arrangements. The study begins by presenting the Direct Unconstitutionality Action No. 3239/2004, which was suspended until this paper was done. It questions the constitutionality of the Decret No. 4887/2004, that intends to rule the procedure for identification, delimitation, demarcation, titulation of the occupied lands by slaves descendants. The article mentioned above was the starting point to a critical analysis of these communities rights that are ruled by Brazilian and international law. Besides, a quantitative research was made from data given by the Palmares Cultural Foundation and the National Colonization and Agrarian Reform Institute about the amount of traditional communities that got qualified as slaves descendants, as well as the amount that got the property of the occupied lands. With the comparison of data, it was possible to settle achievement by the legislation given to these communities towards their fundamental right of property,
interpreting the result found according to important law theorists.
Keywords: Remaining slaves descendants communities. Selfattribution. Right of property. Lands titulation.
Sumário: Introdução. 1. A Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.239/2004. 1.1 Petição inicial. 1.2 Decisão liminar pelo relator. 1.3 Informações prestadas pela Presidência da República. 1.4 Manifestação da Advocacia Geral da União. 1.5 Voto do Ministro Cézar Peluso. 1.6 Voto da Ministra Rosa Weber. 2. Comunidades quilombolas como sujeitos de direito. 2.1 O critério da autoatribuição. 2.2 O direito fundamental à cultura e à moradia. 2.3 A natureza jurídica da propriedade quilombola e o instituto da desapropriação. 3. A realidade das comunidades quilombolas no Brasil à luz de teóricos do direito. Considerações.
INTRODUÇÃO
A Constituição Federal do Brasil assegura aos remanescentes das comunidades de quilombos a propriedade das terras que tradicionalmente ocupam, conforme previsto no art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias: “aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”.
Com o escopo de regulamentar o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o art. 68 do ADCT, foi editado em 20 de novembro de 2003 o Decreto 4.887.
Entretanto, o referido decreto tem sua constitucionalidade questionada por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.239 ajuizada em 25 de junho de 2004 pelo Partido da Frente Liberal – PFL, hoje Partido Democratas.
O presente trabalho tem como escopo fazer uma análise crítica dos principais pontos debatidos no âmbito da referida ADI, considerando que até o fechamento do presente trabalho o julgamento encontrava-se suspenso, contando com o voto de dois Ministros do Supremo Tribunal Federal.
A pesquisa tem por objetivo estudar a repercussão do julgamento da ADI 3239/2004 no que se refere aos direitos dos remanescentes de quilombos que vivem no Brasil, especialmente os atinentes à cultura, à moradia e à propriedade previstos constitucionalmente. Além disso, ao final, busca-se analisar a efetividade de tais direitos na atualidade interpretando o resultado encontrado de acordo com importantes teóricos do direito.
Trata-se de pesquisa qualitativa e quantitativa com base em um estudo de caso, que se apresenta tanto como uma metodologia qualitativa de pesquisa quanto como um objeto de estudo. Após a extensiva coleta de dados sobre ele, a análise dos dados foi embutida, quer dizer, levando em conta aspectos específicos do caso, com enfoque nos pontos relacionados ao tema da pesquisa. Para isso, foram eleitas categorias de análise, com base em questões identificadas como mais relevantes, analisadas de forma a agrupar as ideias dentro de um conceito capaz de abrangê-las. Por fim, parte-se para a interpretação final, com a elaboração do que foi apreendido com o caso e seus reflexos no plano concreto.
O primeiro tópico faz um resumo descritivo das principais manifestações já ocorridas no âmbito da ADI 3239/2004, a fim de possibilitar uma visão geral e cronológica do caso, para posterior análise das decisões exaradas.
No tópico seguinte, é feito uma análise crítica das decisões prolatadas no contexto da referida ADI, tendo por referência normas nacionais e internacionais protetivas das comunidades remanescentes de quilombos, assim como teorias elaboradas por importantes estudiosos do direito.
O terceiro tópico apresenta referências quantitativas, em que é realizado o cotejo entre a quantidade de comunidades quilombolas existentes no Brasil e o número destas que já receberam o título de propriedade das terras que ocupam, tais informações foram coletadas nos sítios dos órgãos oficiais do governo na internet. De posse dos resultados obtidos, faz-se uma discussão acerca da efetivação dos diretos quilombolas no contexto nacional, utilizando-se como referencial teórico Ferdinand Lassalle (2011), Konrad Hesse (1991) e Peter Haberle (1997).
O trabalho realizado é de grande importância para o avanço do conhecimento, uma vez que com o estudo das normas postas à disposição dessas comunidades pode-se compreender a efetividade dos meios jurídicos que se propõem a resguardar seus direitos, assim como a realidade na qual estão inseridas.
1. A AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE Nº 3.239/2004
1.1. Petição inicial
A Ação Direta de Inconstitucionalidade 3239 foi ajuizada em 2004 pelo Partido da Frente Liberal – PFL, hoje Partido Democratas, pleiteando a declaração de inconstitucionalidade do Decreto 4.887 de 2003 que regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o art. 68 do ADCT.
Inicialmente, a ADI se funda na alegação de que tal Decreto é um regulamento autônomo, com supedâneo no art. 84, VI, da CF, e por isso, só poderia regulamentar lei. Segundo o referido partido político, como tal decreto regula diretamente norma constitucional, qual seja, o art. 68 do ADCT, ele viola o ordenamento jurídico pátrio e, portanto, padece de vício de inconstitucionalidade.
Ademais, o partido sustenta que é inconstitucional a desapropriação de terras de particulares para transferi-las às comunidades quilombolas, conforme previsto no art.13 do referido decreto, uma vez que as terras abrangidas pelo dispositivo constitucional são exclusivamente as que as comunidades fixaram residência desde de 5 de outubro de 1988. Sendo assim, descaberia a realização de desapropriações por se tratar de transferência de propriedade já efetuada pela Constituição.
De mais a mais, o autor da ação defende que o critério da autoatribuição para a caracterização de uma comunidade como quilombola e, por conseguinte, com direito ao título da propriedade da terra que ocupa, padece de inconstitucionalidade. Isso porque alega que o reconhecimento pela própria comunidade dá margem a que se reconheça tal direito a “pessoas que efetivamente não tem relação com os habitantes das comunidades formadas por escravos fugidos, ao tempo da escravidão no país” (ADI 3.239/2004, petição inicial, p. 10).
Além disso, o partido defende que a indicação pela própria comunidade da área necessária à sua reprodução física e cultural é igualmente inconstitucional, já que sujeitar a indicação aos próprios interessados seria “inidôneo, imoral e ilegítimo” (ADI 3.239/2004, petição inicial, p. 12). Ademais, é arguido que seria excessivamente amplo beneficiar descendentes de quilombolas, devendo tal direito ser estendido apenas aos remanescentes dessas comunidades e somente em relação ao “território em que comprovadamente, durante a fase imperial da história do Brasil, os quilombos se formaram” (ADI 3.239/2004, petição inicial, p. 11).
O autor requereu também a concessão de medida cautelar, a fim de suspender o ato normativo impugnado, fundamentando o periculum in mora na necessidade de se evitar que a Administração Federal passe a reconhecer aos remanescentes das comunidades quilombolas a propriedade das terras que ocupam e, como consequência, passe a aportar recursos públicos para o pagamento de indenizações decorrentes de desapropriações.
1.2. Decisão liminar pelo relator
O processo foi distribuído, no dia 25 de junho de 2004, ao Ministro Cezar Peluso. O relator denegou a liminar, em face da aplicação do rito previsto no art. 12 da Lei nº 9.868/1999. Tal dispositivo prevê que em caso de relevância da matéria e de seu especial significado para a ordem social e a segurança jurídica, após a prestação das informações e a manifestação do Advogado-Geral da União e do Procurador-Geral da República, o relator pode submeter o processo diretamente a julgamento.
1.3 Informações prestadas pela Presidência da República
O então Presidente da República, Luís Inácio Lula da Silva, em 12 de julho de 2004, encaminhou informações a fim de instruir o julgamento da ADI, que foram elaboradas pela Advocacia-Geral da União (Informações nº AGU/RA-03/2004), por meio do Advogado da União, Dr. Rafaelo Abrita.
Nas informações prestadas, o Advogado da União, preliminarmente, aduziu o não conhecimento da ação, uma vez que, ausente de fundamentação específica e de conteúdo jurídico. Sustentou, ainda, a inadmissibilidade de Ação Direta contra atos de efeitos concretos, já que defendeu possuir o Decreto 4.887/2003 conteúdo político-administrativo, haja vista que tem objeto determinado e destinatário certo, sendo insuscetível de controle de constitucionalidade pela via abstrata e concentrada.
Quanto ao mérito, o AGU defendeu que o art. 68 do ADCT é norma constitucional de eficácia plena e, por isso, não depende da edição de qualquer ato legislativo para sua aplicabilidade, cabendo ao Estado apenas delinear o trâmite administrativo necessário a concretizar o direito assegurado. Nisso se insere a função do Decreto objeto da lide, uma vez que é ato “in concreto” editado apenas para instrumentalizar e viabilizar o direito tutelado constitucionalmente.
Aduziu ainda, que as comunidades quilombolas possuem a característica do uso comunal do território. Sendo assim,
“(…) as terras são concebidas como pertencentes ao grupo que as explora segundo regras consensuais próprias. Tais regras “tomam por base laços de parentesco e vizinhança, assentados em relação de solidariedade reciprocidade”. Desta forma, a terra não é concebida ou explorada em termos de lotes individuais, nem percebida como uma mercadoria que possa ser dividida e comercializada. (ADI 3.239, Petição (77434/2004) – Presidente da República – presta informações, p.34)”
Nesse sentido, a área a ser titularizada pela comunidade deve possibilitar a manutenção do modo de vida próprio do grupo, devendo, portanto, ser delimitado a partir um processo político de negociações internas à comunidade.
Outrossim, defende também que é reconhecido às comunidades quilombolas o domínio das terras que tradicionalmente ocupam, sendo assim, o particular que se diz dono do imóvel por elas ocupado deverá reivindicar perante à União uma possível indenização. Com isso, defende que essas reivindicações patrimoniais podem ser identificadas como uma desapropriação indireta.
Em prosseguimento, o Advogado da União afirmou que inexiste qualquer pecha de inconstitucionalidade no critério da autoidentificação para definir a condição de um grupo étnico. Isso porque, importa mais compreender como se opera a identidade da comunidade do que tentar reduzí-la a uma categoria histórica.
Para o informante, o termo remanescente de quilombo, previsto na Constituição, nem é adequado, uma vez que “remete a noção de que resíduo, de algo que já foi e do qual sobraram apenas reminiscências, não existindo mais em plenitude” (ADI 3.239, Petição (77434/2004) – Presidente da República – presta informações, p. 39). Ao invés, ele defende o uso da terminologia empregada pelo antropólogo Alfredo Wagner Berno de Almeida, qual seja, “terras de preto”. Segundo ele, esta terminologia compreende as diversas situações em que grupos constituídos por famílias de ex-escravos passaram a ocuparam áreas comuns de terras:
“domínios doados, entregues ou adquiridos, com ou sem formalização jurídica; concessões feitas pelo Estado a tais famílias mediante à prestação de serviços guerreiros; extensões correspondentes a antigos quilombos; e áreas de alforriados nas cercanias de antigos núcleos de mineração. (ADI 3.239, Petição (77434/2004) – Presidente da República – presta informações, p. 39)”.
Sendo assim, segundo o manifestante as comunidades de remanescentes de quilombos devem ser entendidas como grupos sociais que compartilham uma identidade que as distingue do restante da sociedade de massa, especialmente quanto a fatores como autoclassificação, ancestralidade comum, estrutura de organização política própria, sistema de produção particular e características raciais em elementos linguísticos e religiosos e em símbolos específicos.
Ademais, segundo o informante, a auto declaração realizada por uma comunidade quilombola pode ser alvo de questionamento, devendo o contestante provar suas alegações ou, pelo menos, apresentar fortes indícios para tal suspeita. A partir daí é que o Poder Público demandaria a reunião de maiores elementos de prova, inclusive com o auxílio de peritos.
No que se fere à caracterização das terras quilombolas, defendeu que estas devem estar ligadas a preservação da cultura e da organização social das comunidades. Tudo isso em consonância com o que dispõe os arts. 215 e 216 da Constituição Federal, que conferem especial proteção a cultura destas, bem como consideram patrimônio cultural brasileiro seus bens de natureza material e imaterial. Logo, o tamanho do imóvel deve permitir sua reprodução física e cultural.
Por fim, argui a inexistência de “fumus boni iuris” e “periculum in mora” aptos a ensejar a concessão da cautelar vindicada.
1.4. Manifestação da Advocacia Geral da União
O Advogado Geral da União, Álvaro Augusto Ribeiro Costa, e o Advogado da União, Marcelo Casseb Continentino, preliminarmente, pugnaram pelo não conhecimento da ação, uma vez que o autor teria se limitado a fazer uma impugnação genérica de todo o Decreto objeto da ação, ao invés de especificar quais os dispositivos constitucionais que cada um de seus artigos, respectivamente, violaria.
Os Advogados aduziram, ainda, que o Decreto 4887/2003 não possui a chamada “autonomia legislativa”. Segundo eles, as normas Constitucionais do art. 215, 216, bem como do art. 68 do ADCT servem de fundamento para as Leis 9649/1988 e 7668/1988, e destas o Decreto 4887/2003 retiraria seu fundamento de validade. Essas leis dispõem respectivamente sobre a competência dos Ministérios de aprovar a delimitação das terras dos remanescentes das comunidades dos quilombos e a Competência da Fundação Cultural Palmares para realizar a identificação dos remanescentes dessas comunidades e proceder ao reconhecimento, à delimitação e à demarcação das terras por eles ocupadas. Sendo assim, o Decreto 4887/2003 estaria no segundo grau de concretização de normas constitucionais.
No mérito, os Advogados da União sustentaram que a conceituação de remanescentes de comunidades quilombolas deve ser extraído de estudos antropológicos e não do Direito. Dessa forma, partindo da análise do estudo de vários antropólogos, os advogados concluíram que os elementos definidores dessas comunidades são as diferenças consideradas significativas para os membros do próprio grupo étnico. Portanto, para eles, o critério da autoatribuição não padece de vício de inconstitucionalidade.
Ademais, a AGU defendeu que o argumento de que esse critério pode beneficiar mais pessoas do que de fato fazem direito, não prospera, uma vez que o Ministério do Desenvolvimento Agrário e o INCRA possuem competência para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras e a Fundação Cultural Palmares detém competência para o controle, mediante a expedição de certidões e inscrição em seu Cadastro Geral.
Em prosseguimento, os Advogados da União argumentaram que não há impropriedade alguma na adoção de propriedade coletiva para os remanescentes das comunidades dos quilombos, devido à finalidade da norma constitucional insculpida no art. 68 do ADCT. Isso porque o desiderato da referida norma é a preservação da comunidade como um todo e em todos os seus aspectos (cultural, social, histórico, biológico, etc.), portanto faz-se necessário um regime de condomínio “pro indiviso”.
No que concerne a desapropriação, o manifestante aduziu que, uma vez que as comunidades quilombolas sofreram ao longo de muito tempo expulsão ilegítima de suas próprias terras, faz-se necessário o reconhecimento de propriedades a essas comunidades, ainda que estas estejam, atualmente, sendo ocupadas ou sobre elas incidam títulos legítimos de propriedade particular.
Nesse passo, os Advogados defenderam que o Poder Público deve se valer do instituto da desapropriação por interesse social, previsto no art. 13 do Decreto 4887/2013, com fundamento no art. 216, parágrafo primeiro, da CF, a fim de garantir-lhes a propriedade definitiva de suas terras.
Isso se coadunaria com a noção de que quilombolas não “se resumem a meros vestígios arqueológicos ou historiográficos” (ADI 3239, 7 – Manifestação – AGU – PG (86513/2004), p. 118). Nesse sentido, a AGU refuta o entendimento de que a eles se deve assegurar apenas o direito de terras que estivessem efetivamente ocupando na data da promulgação da Constituição Federal de 1988.
1.5. Voto do Ministro Cézar Peluso
Na sessão de julgamento do dia 18 de abril de 2012, o Ministro Cézar Peluso preferiu seu voto. No que se refere ao conhecimento da ADI, o relator votou pelo conhecimento da Ação, uma vez que, segundo ele, o Decreto nº. 4.887/93 seria autônomo e, por isso, passível de controle abstrato pelo STF. Para ele, o Decreto “sub judice” não retira seu fundamento de validade das Leis Federais 7.668/1988 e 9.649/1998, uma vez que estas se limitam apenas a indicação dos órgãos encarregados das medidas indispensáveis à execução do artigo 68 do ADCT.
Em prosseguimento, o Ministro indeferiu o pedido de realização de audiência pública requerido por diversas entidades com supedâneo no art. 9º, § 1º, da Lei nº 9.868/1999, uma vez que, a causa cuidaria de matéria apenas de direito e os autos já estariam suficientemente instruídos. Ademais, salientou que já haviam sido admitidos diversos “amici curiae” no processo, concluindo assim, que “a causa não necessitaria de reconhecido notório saber em qualquer área do conhecimento” (ADI 3239, voto do Ministro Cezar Peluso, p. 7).
No mérito, o relator defendeu que o Decreto alvo de questionamento padece de inconstitucionalidade formal, uma vez que a norma insculpida no art. 68 do ADCT, por não ser norma de eficácia plena e aplicação imediata, necessita ser complementada por lei. Assim, o referido Decreto ofenderia o princípio constitucional da legalidade.
Ademais, uma vez que a delimitação das terras pode interferir no direito de terceiros, gerando obrigações e restringindo diretos, arguiu ser imprescindível a edição de lei em sentido formal, em respeito, especialmente, ao princípio de reserva de lei.
Em virtude da declaração de inconstitucionalidade formal do Decreto 4887/93, o Ministro defendeu, pelas mesmas razões, a declaração de inconstitucionalidade do Decreto nº 3.912/2001, que foi revogado pelo primeiro. Isso porque tal declaração teria o condão de evitar a revivescência da lei precedente à impugnada, em virtude da possibilidade de aplicação de efeitos repristinatórios, que podem se operar quando uma norma que revoga outra é declarada inconstitucional.
O relator ainda aduziu a inconstitucionalidade material do Decreto em tela, porque este conteria normas que inovariam e desvirtuariam o disposto no art. 68 do ADCT.
Inicialmente, o relator destacou que os destinatários da norma insculpida no dispositivo constitucional são apenas aqueles indivíduos que tradicionalmente ocupavam quilombos em 05 de outubro de 1988.
Nesse sentido, defendeu que o constituinte optou pelo conceito histórico de quilombo, correspondente ao que está previsto no Dicionário da Língua Portuguesa: "conjunto de povoações em que se abrigavam escravos fugitivos" (ADI 3239, voto do Ministro Cezar Peluso, p. 39). Nesse passo, refuta quaisquer outras significações que a este termo possam ser atribuídas, por terem natureza metajurídica:
“os respeitáveis trabalhos desenvolvidos por juristas e antropólogos, que pretendem ampliar e modernizar o conceito de quilombos, guardam natureza metajurídica e por isso não têm, nem deveriam ter, compromisso com o sentido que apreendo ao texto constitucional. É que tais trabalhos, os quais denotam avanços dignos de nota no campo das ciências políticas, sociais e antropológicas, não estão inibidos ou contidos por limitações de nenhuma ordem, quando o legislador constituinte, é inegável, as impôs de modo textual (ADI 3239, voto do Ministro Cezar Peluso, p. 39)”
Ademais, sustentou que os destinatários das normas protetivas de direitos quilombolas não são quilombolas, mas sim o remanescente dessas comunidades considerados em sua individualidade. Tal alegação tem por fundamento o fato de que o legislador, na norma insculpida no art. 68 do ADCT, ao substituir "comunidades negras remanescentes dos quilombos" por "remanescentes das comunidades dos quilombos" (ADI 3239, voto do Ministro Cezar Peluso, p. 40) teve a intenção de resguardar direitos individuais.
Nesse passo o Ministro estabeleceu que são inconstitucionais
“(a)o art. 2º, caput e §§ 1º, 2º e 3º, do Decreto 4.887/2003 8 , que estabelecem (1) o critério da autoatribuição e autodefinição, para caracterizar quem são os remanescentes das comunidades de quilombolas; (2) a fixação de que são terras ocupadas por remanescentes, todas as possuídas a título de garantia de sua reprodução física, social, econômica e cultural, (ocupação presumida); e (3) o critério de territorialidade eleito que, para a medição e demarcação das terras por titular, consiste tão-só na indicação dos próprios interessados; (b) o art. 17 9 , que prevê a outorga de título coletivo e pró-indiviso às comunidades de remanescentes, com obrigatória inserção de cláusula de inalienabilidade, imprescritibilidade e de impenhorabilidade. (ADI 3239, voto do Ministro Cezar Peluso, p. 40)”
No que se refere a Convenção 169 da Organização Mundial do Trabalho – OIT, sobre povos indígenas e tribais, aprovada pelo Congresso Nacional mediante o Decreto legislativo 143/2002 e promulgada pelo Presidente da República pelo Decreto nº. 5051/2004, que prevê o critério da autodefinição como como fundamental à caracterização de quem são os remanescentes das comunidades de quilombolas, o Ministro aduziu que, além de tal convenção ser posterior ao Decreto ora impugnado, não se aplica ao caso dos quilombolas, uma vez que "cuida de outros grupos étnicos", e que o critério da “consciência” deve ser utilizado apenas para a determinação dos grupos aos quais se aplicam suas disposições, e não para a aquisição de direitos (ADI 3239, voto do Ministro Cezar Peluso, p. 41).
Já em relação à forma de aquisição da propriedade quilombola, o Ministro defende que ela se assemelha à usucapião, uma vez que os remanescentes quilombolas possuem a posse, centenária, contínua e pacífica das terras que ocupam, com intenção de dono. Logo, possuem um direito subjetivo, cuja aquisição se operou anteriormente a 5 de outubro de 1988, competindo ao Estado apenas a emissão dos títulos de propriedade.
Logo, o Ministro defende a existência de um novo tipo de usucapião constitucional: a destinada aos remanescentes de comunidades quilombolas. Essa nova espécie constitucional deteria as seguintes singularidades:
“(a)característica não prospectiva, no que respeita ao termo inicial da posse, necessariamente anterior à promulgação da Constituição de 1988; (b) autorização especial do constituinte originário para que os destinatários da norma pudessem usucapir imóveis públicos, o que, na mesma Carta, está vedado expressamente pelos artigos 183, § 3º, e 191, § único, que tratam do usucapião constitucional urbano e rural, os quais trazem ao particular o ônus de provar que o bem a ser usucapido é privado; e (c)desnecessidade de decreto judicial que declare a situação jurídica preexistente, exigível nas outras 04 espécies de usucapião: ordinário, extraordinário, constitucional urbano e rural. (ADI 3239, voto do Ministro Cezar Peluso, p. 44)”
Nesse passo, Peluso refuta a utilização do instituto da desapropriação, declarando inconstitucional o art. 13 do Decreto em tela, haja vista que, para ele ou os remanescentes ocupam terras públicas ou ocupam terras particulares, que em razão do prazo, já as têm como terras usucapidas.
Ademais, destacou que a desapropriação prevista no Decreto, além de não está disciplinada por lei específica, não se amolda a nenhum dos tipos previstos na Constituição, quais sejam, desapropriação por necessidade ou utilidade pública e por interesse social.
Para finalizar, o Ministro colaciona diversas matérias publicadas pela mídia que tratam do "crescimento de conflitos agrários e incitamento à revolta" (ADI 3239, voto do Ministro Cezar Peluso, p. 49) que, segundo ele, foram ocasionados pela edição da legislação ora analisada. As reportagens salientam o ocasionamento de uma “absurda reivindicação de terras e uma explosão de comunidades que passaram a se intitular quilombolas” (ADI 3239, voto do Ministro Cezar Peluso, p. 56).
Diante do exposto, o Ministro julgou procedente a ação declarando a inconstitucionalidade do Decreto nº 4.887/03, modulando, porém, os efeitos de sua decisão para considerar “bons, firmes e valiosos os títulos até aqui emitidos, em respeito ao princípio da segurança jurídica e em respeito aos cidadãos que de boa-fé obtiveram a titulação de suas terras, desde 1988” (ADI 3239, voto do Ministro Cezar Peluso, p. 62).
1.6. Voto da Ministra Rosa Weber
Na sessão de julgamento do dia 25 de março de 2015, a Ministra Rosa Weber proferiu voto vista. Inicialmente, Weber acompanhou o relator na rejeição de todas as preliminares arguidas, considerando, por conseguinte, o Decreto impugnável pela via de controle abstrato, uma vez que ele ostentaria "coeficiente mínimo de normatividade, generalidade e abstração, materializando ato normativo autônomo, a retirar diretamente da Constituição da República o seu fundamento de validade" (ADI 3239, voto da Ministra Rosa Weber, p. 4).
No mérito, a Ministra divergiu do relator e julgou improcedente o pedido de declaração de inconstitucionalidade do Decreto nº 4.887/03. Weber defendeu que o art. 68 do ADCT, ao estabelecer como direito dos remanescentes das comunidades dos quilombos o reconhecimento pelo Estado da propriedade sobre as terras por eles tradicionalmente ocupadas, trata-se de norma definidora de direito fundamental, dotada, portanto, de eficácia plena e aplicabilidade imediata, sendo exercitável o direito nela veiculado independentemente de integração legislativa.
Nesse passo, argumentou que o referido artigo elenca de modo completo e abrangente os elementos delineadores do direito que consagra, quais sejam:
“o titular (os remanescentes das comunidades dos quilombos), o objeto (as terras por eles ocupadas), o conteúdo (o direito de propriedade), a condição (ocupação tradicional), o sujeito passivo (o Estado) e a obrigação específica (emissão de títulos) (ADI 3239, voto da Ministra Rosa Weber, p. 16)”.
Nesse passo, salientou que o direito fundamental previsto no art. 68 do ADCT não demanda conformação legislativa, mas na verdade, impõe ao Estado a organização de uma estrutura administrativa apta a viabilizar sua fruição, ou seja, normatizar sua atuação de modo a estabelecer os detalhes procedimentais voltados a emissão dos títulos correspondentes ao direito real nele reconhecido. Assim sendo, o Decreto traduziria o exercício do poder regulamentar da Administração, nos termos do art. 84, VI, da CF.
Em prosseguimento, Weber defendeu a impossibilidade de se chegar a um conceito de quilombo dotado de rigidez absoluta, posto que o referido termo descreveria um fenômeno objetivo, ainda que de imprecisa definição.
Nesse contexto, a Ministra defendeu que a eleição do critério da autoatribuição não é arbitrário, tampouco desfundamentado ou viciado, pois consiste em um método autorizado pela antropologia, assim como estampado como política pública na Carta da República. Segundo ela, tal critério visa à "interrupção do processo de negação sistemática da própria identidade aos grupos marginalizados, este uma injustiça em si mesmo" (ADI 3239, voto da Ministra Rosa Weber, p. 33).
Para Weber tal critério deve ter por plano de fundo o princípio da boa-fé, ou seja, a ninguém se pode recusar a identidade a si mesmo atribuída e, nos casos em que houver reconhecida má-fé, se utilizariam mecanismos previstos no direito aptos a coibi-la.
Nesse passo, defendeu que a questão do reconhecimento da propriedade definitiva das terras ocupadas pelos remanescentes das comunidades dos quilombos, trata-se de uma demanda por reconhecimento cultural e igualdade social, uma vez que, segundo a Ministra, a privação econômica e o desrespeito cultural são duas faces de uma mesma moeda.
Sendo assim, o critério da autoatribuição assumiria o propósito de realizar justiça socioeconômica reparadora, de caráter redistributivo a essas comunidades. Isso porque, aduziu que na medida em que a elas é garantido a formalização dos títulos de domínio em relação às terras que ocupam, estar-se-á valorizando sua identidade ético-racial, assim como sua trajetória histórica própria. Para Weber, "recusar a auto identificação implica converter a comunidade remanescente do quilombo em gueto, substituindo-se a lógica do reconhecimento pela lógica da segregação" (ADI 3239, voto da Ministra Rosa Weber, p. 36).
Segundo ela, na medida em que determinado grupo sofre uma desvalorização racial, faz-se necessário conceder a ele reconhecimento, a fim de compensar as injustiças sofridas.
Em prosseguimento, a Ministra fez referência a dispositivos das Constituições do Equador e da Colômbia que asseguram a comunidades afroequatorianas a proteção das terras comunais e dos territórios ancestrais por elas ocupados.
Em seguida, destacou a incorporação, pelo Estado brasileiro, da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT sobre Povos Indígenas e Tribais, de 27.6.1989, aprovada pelo Decreto Legislativo 143/2002 e ratificada pelo Decreto 5.051/2004. Tal aparato normativo consagrou a "consciência da própria identidade" como critério para determinar os grupos tradicionais, indígenas ou tribais, determinando que nenhum Estado tem o direito de negar a identidade de um povo indígena ou tribal que se reconheça como tal.
Ressaltou que o critério da autodefinição previsto no Decreto nº. 4.887/93, deve ser interpretado no sentido de conceder a máxima eficácia à Constituição, sendo assim,
“para os fins específicos da incidência desse dispositivo constitucional transitório, além de uma dada comunidade ser qualificada como remanescente de quilombo – elemento subjetivo que reside no âmbito da autoidentificação –, mostra-se necessária a satisfação de um elemento objetivo, empírico: a reprodução da unidade social que se afirma originada de um quilombo há de estar atrelada a uma ocupação continuada do espaço ainda existente, em sua organicidade, em 05 de outubro de 1988, de modo a se caracterizar como efetiva atualização histórica das comunidades dos quilombos. (ADI 3239, voto da Ministra Rosa Weber, p. 40)”
A Ministra julgou, portanto, improcedente o pedido de declaração de inconstitucionalidade do art. 2°, § 1°, do Decreto 4.887/2003.
Outrossim, negou a tese da inconstitucionalidade do art. 2º, §§ 1º, 2º e 3º, do Decreto 4.887/2003. Tais dispositivos preveem que os critérios de territorialidade serão indicados pelos próprios remanescentes das comunidades dos quilombos para a identificação, medição e demarcação de suas terras.
Weber sustentou que o procedimento de demarcação deve assegurar o “devido processo legal na garantia de que as comunidades interessadas tenham voz e sejam ouvidas”. Nesse sentido, o referido artigo, ao prever que deve ser levado em consideração critérios indicados pela comunidade, assegura a participação das populações tradicionais afetadas, ao mesmo tempo em que não exclui outros parâmetros como objeto de análise e nem vincula o ato administrativo correspondente (ADI 3239, voto da Ministra Rosa Weber, p. 43).
Em prosseguimento, aduziu que a efetiva posse das terras em 05 de outubro de 1988 é requisito essencial à proteção do art. 68 do ADCT, porque tal proteção foi instituída quando da promulgação do texto constitucional. Sendo assim, partindo-se de uma interpretação da Constituição, depreender-se-ia que o Decreto não abrange as comunidades já desintegradas no momento da promulgação da Carta Maior, bem como as formadas após 05 de outubro de 1988, ou as que somente após essa data vieram a ocupar terras tidas como reminiscências dos antigos quilombos, ressalvada, entretanto, as que tiveram a suspensão do exercício da posse na referida data em razão de turbação ou esbulho.
Em seguida, a Ministra destacou a adequação da utilização da desapropriação pelo INCRA, a fim de transferir aos remanescentes das comunidades dos quilombos as áreas por eles ocupadas, não vislumbrando, pois, inconstitucionalidade na previsão no art. 13, caput e § 2º, do Decreto 4.887/2003. Isso porque o título de propriedade dessas comunidades decorreria diretamente do texto constitucional, art. 68 do ADCT, norma de aplicabilidade imediata.
Além disso, defendeu que na hipótese de eventual existência de títulos de propriedade em nome de terceiros relativos às áreas ocupadas por comunidades remanescentes de quilombos, considerando que a Constituição não os reputa nulos ou extintos, como faz em relação às terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, art. 231, § 6º, CF, o procedimento expropriatório seria o mais adequado a regularizar a situação dos quilombolas.
Tratar-se-ia de desapropriação por interesse social previsto no art. 5º, XXIV, da Constituição Federal: "a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição".
Para ela, o conteúdo jurídico de tal modalidade de desapropriação encontra-se presente no art. 18, a, da Lei 4.504/1964, com o seguinte teor: “a desapropriação por interesse social tem por fim: a) condicionar o uso da terra à sua função social”.
Nesse passo, “a função social das terras ocupadas pelos remanescentes das comunidades dos quilombos somente pode ser aquela que lhes é dada diretamente pela Constituição, pois nenhuma norma outra a ela se sobrepõe” (ADI 3239, voto da Ministra Rosa Weber, p. 50). E tal função social se refere justamente a garantia dos direitos fundamentais de uma minoria étnica vulnerável: o uso, pelas próprias comunidades, das terras por elas ocupadas de acordo com os seus costumes e tradições, de forma a garantir sua reprodução física, social, econômica e cultural.
Destacou, ainda, que o procedimento de desapropriação visa a proteção do patrimônio cultural brasileiro, em respeito aos arts. 215 e 216 da CF, procedimento este autorizado expressamente pelo art. 216, § 1º, da Constituição da República.
Após o voto da Ministra Rosa Weber, o julgamento foi suspenso em decorrência do pedido de vista do Ministro Dias Toffoli, tendo este devolvido o processo em 1º de julho de 2015. Até a finalização do presente trabalho o processo estava aguardando ser colocado novamente na pauta de julgamento do Supremo Tribunal Federal.
2. COMUNIDADES QUILOMBOLAS COMO SUJEITOS DE DIREITO
2.1. O critério da autoatribuição
O primeiro ponto posto em debate na referida ADI é o conceito de quilombo e o critério a ser adotado para a caracterização de um agrupamento como remanescente de comunidade quilombola. O Decreto nº 4.887/2003, em seu art. 2º, caput, assim conceitua tais comunidades:
“Art. 2º Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para os fins deste Decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de autoatribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida”.
Para o Ministro Cézar Peluso, tal dispositivo padece de inconstitucionalidade, uma vez que, segundo ele, a Constituição albergaria uma definição restrita de quilombo, para ele denominada de “acepção histórica, que é conhecida de toda a gente” (ADI 3239, voto do Ministro Cezar Peluso, p. 39). Assim sendo, defende a utilização do conceito esposado nos dicionários de língua portuguesa, refutando definições estabelecidas por juristas e antropólogos:
“Já no que tange ao conceito de quilombos, é de se ter presente que as muitas acepções que o termo admite são condicionadas por alguns fatores, tais quais, época, ponto de vista sociopolítico e a área do conhecimento daqueles que lidam com o tema. Ora, identificados os requisitos temporais acima vistos, é seguro afirmar que, para os propósitos do art. 68 do ADCT, o constituinte optou pela acepção histórica, que é conhecida de toda a gente. Dos Dicionários da língua portuguesa, Aurélio Século XXI e Houaiss, retiram-se as seguintes definições, respectivamente:
“Esconderijo, aldeia, cidade ou conjunto de povoações em que se abrigavam escravos fugidos: "A palavra 'quilombo' teria o destino de ser usada com várias acepções, a mais famosa delas a de habitação de escravos fugidos, em Angola, e a desses refúgios e dos estados que deles surgiram no Brasil." (Alberto da Costa e Silva, A Enxada e a Lança, p. 507.)” “1. Local escondido, geralmente no mato, onde se abrigavam escravos fugidos; 2. povoação fortificada de negros fugidos do cativeiro, dotada de divisões e organização.”
Reafirmo que os respeitáveis trabalhos desenvolvidos por juristas e antropólogos, que pretendem ampliar e modernizar o conceito de quilombos, guardam natureza metajurídica e por isso não têm, nem deveriam ter, compromisso com o sentido que apreendo ao texto constitucional. É que tais trabalhos, os quais denotam avanços dignos de nota no campo das ciências políticas, sociais e antropológicas, não estão inibidos ou contidos por limitações de nenhuma ordem, quando o legislador constituinte, é inegável, as impôs de modo textual. Não é por outra razão que o artigo 68 do ADCT alcança apenas certa categoria de pessoas, dentre outras tantas que, por variados critérios, poderiam ser identificadas como “quilombolas”. Isso explica, aliás, a inserção desse dispositivo no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADI 3239, voto do Ministro Cezar Peluso, p. 39).”
Entretanto, ao lançar mão da cultura do dicionário, o referido julgador, data venia, acaba por esvaziar o sentido de uma realidade complexa e diversificada que permeia a existência dessas comunidades. É a própria realidade que subsidia a ressemantização do conceito de quilombo, segundo Haberle (1997) “interpretar um ato normativo nada mais é do que colocá-lo no tempo ou integrá-lo na realidade prática”. Por essa razão, a antropologia assume o papel fundamental de traduzir esse conjunto social vivo e concreto.
As antropólogas Schmitt, Cecília e Celina (2002), apresentam a definição de comunidades quilombolas nos seguintes termos:
“(…) os grupos que hoje são considerados remanescentes de comunidades de quilombos se constituíram a partir de uma grande diversidade de processos, que incluem as fugas com ocupação de terras livres e geralmente isoladas, mas também as heranças, doações, recebimento de terras como pagamento de serviços prestados ao Estado, a simples permanência nas terras que ocupavam e cultivavam no interior das grandes propriedades, bem como a compra de terras, tanto durante a vigência do sistema escravocrata quanto após a sua extinção.
Dentro de uma visão ampliada, que considera as diversas origens e histórias destes grupos, uma denominação também possível para estes agrupamentos identificados como remanescentes de quilombos seria a de “terras de preto”, ou “território negro”, tal como é utilizada por vários autores, que enfatizam a sua condição de coletividades camponesa, definida pelo compartilhamento de um território e de uma identidade. (Alessandra Schmitt, Maria Cecília Manzoli Turatti e Maria Celina Pereira de Carvalho, 2002, p. 3)”
O Superior Tribunal de Justiça no caso da comunidade quilombola ocupante da Ilha de Marambaia acolheu o conceito antropológico de quilombo aduzindo, ainda, ser este o mais coerente com uma Constituição que se diz comprometida com a proteção das minorias, confira-se:
“ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL.AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE. TERRENO DE MARINHA. ILHA DA MARAMBAIA. COMUNIDADE REMANESCENTE DE QUILOMBOS. DECRETO N.º 4.887, DE 20 DE NOVEMBRO DE 2003, E ART. 68 DO ADCT. 1. A Constituição de 1998, ao consagrar o Estado Democrático de Direito em seu art. 1º como cláusula imodificável, fê-lo no afã de tutelar as garantias individuais e sociais dos cidadãos, através de um governo justo e que propicie uma sociedade igualitária, sem nenhuma distinção de sexo, raça, cor, credo ou classe social. 2. Essa novel ordem constitucional, sob o prismado dos direitos humanos, assegura aos remanescentes das comunidades dos quilombos a titulação definitiva de imóvel sobre o qual mantém posse de boa-fé há mais de 150 (cento e cinquenta) anos, consoante expressamente previsto no art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. 3. A sentença proferida no bojo da Ação Civil Pública n.º 2002.51.11.000118-2, pelo Juízo da Vara Federal de Angra dos Reis/RJ (Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro – Poder Judiciário, de 29 de março de 2007, páginas 71/74), reconheceu a comunidade de Ilhéus da Marambaia/RJ como comunidade remanescente de quilombos, de sorte que não há nenhum óbice para a titulação requerida. 4. Advirta-se que a posse dos remanescentes das comunidades dos quilombos é justa e de boa fé. Nesse sentido, conforme consta dos fundamentos do provimento supra, a Fundação Cultural Palmares, antiga responsável pela identificação do grupo, remeteu ao juízo prolator do decisum em comento relatório técno-científico contendo […] "todo o histórico relativo à titularidade da Ilha de Marambaia, cujo primeiro registro de propriedade fora operado em 1856, junto ao Registro de Terras da Paróquia de Itacuruçá, em nome do Comendador Joaquim José de Souza Breves, que instalou no local um entreposto do tráfico negreiro, de modo que, ao passar para o domínio da União, afetado ao uso especial pela Marinha, em 1906, já era habitado por remanescentes de escravos, criando comunidade com características étnico-culturais próprias, capazes de inserí-los no conceito fixado pelo artigo 2º do indigitado Decreto 4.887/03". 5. A equivocada valoração jurídica do fato probando permite ao STJ sindicar a respeito de fato notório, máxime no caso sub examinem, porque o contexto histórico-cultural subjacente ao thema iudicandum permeia a alegação do recorre de verossimilhança. 6. Os quilombolas tem direito à posse das áreas ocupadas pelos seus ancestrais até a titulação definitiva, razão pela qual a ação de reintegração de posse movida pela União não há de prosperar, sob pena de por em risco a continuidade dessa etnia, com todas as suas tradições e culturas. O que, em último, conspira contra pacto constitucional de 1988 que assegura uma sociedade justa, solidária e com diversidade étnica. 7. Recurso especial conhecido e provido. (STJ – REsp: 931060 RJ 2007/0047429-5, Relator: Ministro BENEDITO GONÇALVES, Data de Julgamento: 17/12/2009, T1 – PRIMEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 19/03/2010) (grifo nosso)”
Diante do exposto, observa-se que o conceito jurídico de quilombo não se confunde com o conceito tradicional que a ele se costuma associar, qual seja, local de aglomeração de escravos fugitivos. Quilombo, juridicamente, são as áreas tradicionalmente ocupadas por comunidades negras, que ali se instalaram não apenas em razão da fuga, mas por doação, herança, compra ou pela simples tolerância do antigo “senhor”. Essas comunidades permaneceram nesses locais e ali conservaram suas crenças, tradições e modos de produção (Vitorelli, 2015, p. 255).
Os povos quilombolas diferenciam-se do restante da sociedade, uma vez que vivem segundo seus costumes e tradições, com uma identidade étnica e cultural diferente da majoritária. Nesse sentido, o ponto de partida para a identificação de uma comunidade como quilombola deve ser a consciência da própria comunidade, ou seja, como ela se vê e como deseja ser vista pela sociedade em que está inserida, uma vez que não se pode impor a ninguém a assunção de qualquer identidade.
Por essa razão, o Decreto nº 4.887, de 20 de novembro de 2003 em seu art. 2º, § 1º dispõe que o critério para a identificação das comunidades quilombolas deve ser o da autoatribuição da própria comunidade: “§ 1º Para os fins deste Decreto, a caracterização dos remanescentes das comunidades dos quilombos será atestada mediante autodefinição da própria comunidade”.
A Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT sobre Povos Indígenas e Tribais é a norma máxima em termos de direitos fundamentais das comunidades tradicionais no Brasil, tendo sido internalizada no ordenamento jurídico brasileiro por meio do Decreto nº 5.051, de 19 de abril de 2004. Essa Convenção foi promulgada com o procedimento de lei ordinária, mas como dispõe sobre direitos fundamentais, seu status passou a ser o de norma supralegal, conforme entendimento consolidado pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE 349.703-1/RS, rel. p/ o ac. Min. Gilmar Mendes, julgado em 3.12.2008.
Os principais sujeitos de direito ao qual o Estado brasileiro reconhece a aplicação desta Convenção são os povos indígenas e quilombolas, ambos reconhecidos como minorias étnicas pelo Estado brasileiro na Constituição Federal de 1988. Assim sendo, o Estado tem a obrigação de oferecer direitos diferenciados a essas populações com o objetivo de garantir o acesso a uma cidadania plena de seus membros.
O artigo 1º, 2 da referida Convenção afirma que “a consciência de sua identidade indígena ou tribal deverá ser considerada como critério fundamental para determinar os grupos aos que se aplicam as disposições da presente Convenção”.
A Ministra Rosa Weber assim defende o critério da autodefinição:
“(…) a eleição do critério da autoatribuição não é arbitrário, tampouco desfundamentado ou viciado. Além de consistir em método autorizado pela antropologia contemporânea, estampa uma opção de política pública legitimada pela Carta da República, na medida em que visa à interrupção do processo de negação sistemática da própria identidade aos grupos marginalizados, este uma injustiça em si mesmo.
(…) Recusar a autoidentificação implica converter a comunidade remanescente do quilombo em gueto, substituindo-se a lógica do reconhecimento pela lógica da segregação. (grifo do original) (ADI 3239, voto da Ministra Rosa Weber, p. 33-36)”
Portanto, observa-se que o critério da autoatribuição é o mais adequado para identificar tais comunidades, pois é o único capaz de considerar sinais diacríticos, isto é, as diferenças que os próprios integrantes das unidades éticas consideram relevantes para diferenciá-los da cultura de massa. Com isso, se promove justiça social a um grupo historicamente menos favorecido e vítima de estigma e discriminação.
2.2. O direito fundamental à cultura e à moradia
O Estado Democrático de Direito Brasileiro tem como fundamento a dignidade da pessoa humana, e por isso, deve tutelar os direitos culturais próprios de todo seguimentos sociais e étnicos que compõem a população brasileira. As garantias constitucionais, por essa razão, asseguram o respeito às minorias, sem preconceito de origem e raça ligadas à proteção da cultura, com inclusão dos quilombolas, a teor do artigo 215 da Constituição Federal de 1988, nos seguintes termos:
“Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.
§ 1º – O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional.
§ 2º – A lei disporá sobre a fixação de datas comemorativas de alta significação para os diferentes segmentos étnicos nacionais.
§ 3º A lei estabelecerá o Plano Nacional de Cultura, de duração plurianual, visando ao desenvolvimento cultural do País e à integração das ações do poder público que conduzem à:
I defesa e valorização do patrimônio cultural brasileiro;
II produção, promoção e difusão de bens culturais;
III formação de pessoal qualificado para a gestão da cultura em suas múltiplas dimensões;
IV democratização do acesso aos bens de cultura;
V valorização da diversidade étnica e regional”.
Ademais, a Carta Maior de 1988 também passou a reconhecer os bens de natureza material e imaterial dessas comunidades como integrantes do patrimônio brasileiro, nos termos do art. 216, § 5º, “verbis”:
“Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: […]
§ 5º – Ficam tombados todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos”.
Nesse passo, o Estado brasileiro ao enquadrar as comunidades quilombolas como minorias éticas e assegurar a proteção de sua cultura tem o dever de, consequentemente, salvaguardar o território que elas ocupam, uma vez que este é indispensável para a reprodução de suas manifestações culturais, assim como para a sua subsistência.
A Constituição de 1998 no art. 6º, sob o prismado dos direitos humanos, assegura a todos aqueles que residem no país o direito fundamental à moradia e como forma de viabilizar tal direito às comunidades remanescentes de quilombos, garante ainda a titulação definitiva do território sobre o qual mantêm posse, consoante expressamente previsto no art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.
A atribuição dos títulos de propriedade a essas comunidades em relação às terras que tradicionalmente ocupam tem o condão de reparar as injustiças históricas que esses grupos sofreram e de incluí-los no espaço da sociedade nacional. Isso porque a formação dos quilombos representou uma possibilidade de organização social alternativa à ordem escravagista e, por essa razão, tem o caráter de ato de resistência e de luta por reconhecimento.
Assim sendo, o art. 68 do ADCT tem o escopo de promover a promoção de igualdade substantiva e de justiça social a essas comunidades, na medida em que confere direitos territoriais aos integrantes de um grupo menos favorecido, composto quase exclusivamente por pessoas muito pobres e vítimas de preconceito.
Na ADI em análise foi debatido também a utilização do critério de territorialidade mediante indicação da própria comunidade, conforme previsto no art. 2º, §§ 2º e 3º do Decreto nº 4.887/2003, in verbis:
“Art. 2º Omissis (…)
§ 2º São terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos as utilizadas para a garantia de sua reprodução física, social, econômica e cultural.
§ 3º Para a medição e demarcação das terras, serão levados em consideração critérios de territorialidade indicados pelos remanescentes das comunidades dos quilombos, sendo facultado à comunidade interessada apresentar as peças técnicas para a instrução procedimental”.
De acordo com o partido político autor da ADI em análise, a indicação pela própria comunidade da área necessária à sua reprodução física e cultural é inconstitucional, uma vez que, segundo ele
(…) descabe, ademais, sujeitar a delimitação da área aos critérios indicados pelos remanescentes (interessados) das comunidades dos quilombos. Trata-se, na prática, de atribuir ao pretenso remanescente o direito de delimitar a área que lhe será reconhecida. Sujeitar a demarcação das terras aos indicativos dos interessados não constitui procedimento inidôneo, imoral e ilegítimo de definição. (grifo do original) (ADI 3.239/2004, petição inicial, p. 11)”
Entretanto, é preciso considerar que esses povos estão intimamente ligados ao território que ocupam, pois utilizam os recursos naturais da terra como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa e econômica. O patrimônio genético da terra, inclusive, é amplamente conhecido pela comunidade, especialmente em virtude da transmissão de geração em geração de conhecimentos tradicionais ligados a sua biodiversidade.
Para essas comunidades, a terra não é mera propriedade patrimonial, mas sim a extensão da personalidade da própria comunidade e de seus membros. Nesse passo, a delimitação das terras quilombolas deve ocorrer com a ampla participação dessas comunidades, pois só elas serão capazes de dizer o tamanho necessário a garantir sua reprodução física e cultural.
Além disso, na medida em que se está discutindo o direito fundamental à propriedade a essas comunidades, nada mais justo do que empoderá-las e tratá-las como sujeitos de direito, e não como meros objetos, permitindo, portanto, sua participação nos debates com a indicação da delimitação de terras suficientes ao exercício de seus direitos constitucionalmente garantidos.
Nesse sentido, a Ministra Rosa Weber acertadamente defendeu a importância da oitiva dessas comunidades nos seguintes termos:
“O art. 2º, § 3º, do Decreto 4.887/2003, ao comandar sejam levados em consideração, na medição e demarcação das terras, os critérios de territorialidade indicados pelos remanescentes das comunidades quilombolas, longe de submeter o procedimento demarcatório ao arbítrio dos próprios interessados, positiva o devido processo legal na garantia de que as comunidades interessadas tenham voz e sejam ouvidas. Aliás, não há leitura do art. 2º, § 3º, do Decreto 4.887/2003 que ampare a conclusão de que deixada, a delimitação das terras ocupadas pelos remanescentes das comunidades dos quilombos, ao arbítrio exclusivo dos interessados. Tal conclusão corresponde a verdadeiro non sequitur, sequer admitida, portanto, como possibilidade hermenêutica legítima.
Com efeito, o fato de o art. 2º, § 3º, do Decreto 4.887/2003 dispor que os critérios de territorialidade indicados pelos remanescentes das comunidades quilombolas serão levados em consideração pela Administração durante o procedimento de medição e demarcação das terras, assegurando a sua participação, em absoluto traduz sejam tais parâmetros os únicos objeto de análise ou vinculem o ato administrativo correspondente”. (grifo do original) (ADI 3239, voto da Ministra Rosa Weber, p. 43)
O teórico do direito Peter Haberle (1997) desenvolveu uma teoria de interpretação constitucional chamada “hermenêutica constitucional da sociedade aberta dos intérpretes da Constituição”, defendendo a democratização da interpretação constitucional, sob o pressuposto de que todo aquele que vive a Constituição é seu legítimo intérprete.
Sendo assim, o autor argumenta que a interpretação constitucional dos juízes, ainda que importante, não é e nem deve ser a única, ao contrário, cidadãos e grupos de interesse, órgãos estatais, sistema público e opinião pública constituem forças produtivas de interpretação do complexo normativo constitucional. Para ele
“Todo aquele que vive no contexto regulado por uma norma e que vive com esse contexto é, indireta ou, até mesmo diretamente, um intérprete dessa norma. O destinatário da norma é participante ativo, muito mais ativo do que se pode supor tradicionalmente, do processo hermenêutico. Como não apenas os intérpretes jurídicos da Constituição que vivem a norma, não detêm eles o monopólio da interpretação da Constituição. (Haberle, 1997, p. 15)”
Além disso, Haberle defende que em se tratando de direitos fundamentais, a interpretação deve ser processada no modo como os destinatários da norma preenchem o âmbito de proteção daquele direito (Haberle, 1997, p. 15).
No caso das comunidades remanescentes de quilombos, é legítima sua participação no que diz respeito a indicação do critério de territorialidade a ser utilizado para a medição e demarcação de suas terras. Isso porque essas comunidades, além de viverem o contexto regulado por essa norma, são os legítimos destinatários da proteção do direito fundamental que a ela se refere, qual seja, o direito de propriedade. Dessa forma, devem participar ativamente do processo de demarcação, tendo a sua opinião levada em consideração.
Haberle prossegue defendendo que a ampliação do círculo de intérpretes é uma consequência da necessidade de integração da realidade no processo de interpretação. Afinal, considerar os agentes conformadores da realidade constitucional, permite uma interpretação voltada para o atendimento do interesse público e o bem-estar geral.
No caso em análise, uma vez que as comunidades remanescentes de quilombos vivenciam diretamente a norma em referência, poderão integrar com completude e verossimilhança sua realidade no processo de interpretação. Dessa forma, assegurando-se o direito de participação democrática, protege-se o bem-estar dessas comunidades.
Ademais, conforme salientou a Ministra Rosa Weber, a norma em análise não restringe como seu legítimo intérprete apenas as comunidades quilombolas. Pelo contrário, na medida em que esta norma não se apresenta excludente, deve ser conjugada à interpretação das comunidades quilombolas, a de outros setores da sociedade. É nesse passo que Haberle defende a participação dos chamados “experts e pessoas interessadas”:
“A relevância dessa concepção e da correspondente atuação do indivíduo ou de grupos, mas também a dos órgãos estatais configuram uma excelente e produtiva forma de vinculação da interpretação constitucional em sentido lato ou em sentido estrito. Tal concepção converte-se num "elemento objetivo dos direitos fundamentais" (grundrechtlices Sachelement). Assume idêntico relevo o papel co-interpretativo do técnico ou expert no âmbito do processo legislativo ou judicial. […] Experts e “pessoas interessadas” da sociedade pluralista também se convertem em intérpretes do direito estatal. Isso significa que não apenas o processo de formação, mas também o desenvolvimento posterior, revela-se pluralista: a teoria da ciência, da democracia, uma teoria da constituição e da hermenêutica propiciam aqui uma mediação específica entre Estado e sociedade! (grifo no original) (Haberle, 1997, p. 17)”
Portanto, a interpretação da norma ora analisada não é um evento exclusivo de comunidades remanescentes de quilombos, a esse processo tem acesso potencialmente todas as forças da comunidade política, inclusive estatais. Além disso, a ampliação do círculo de intérpretes é consequência da necessidade de integração da realidade no processo de interpretação.
Cumpre ressaltar que o Decreto 4.887 de 2003 em seu art. 17 estabelece que
“Art. 17 A titulação prevista neste Decreto será reconhecida e registrada mediante outorga de título coletivo e pró-indiviso às comunidades a que se refere o art. 2o, caput, com obrigatória inserção de cláusula de inalienabilidade, imprescritibilidade e de impenhorabilidade”.
Este dispositivo prevê a formalização da propriedade coletiva das terras quilombolas, atribuída a uma unidade sociocultural e não uma apropriação individual pelos integrantes da comunidade. Isso se justifica pelo fato de que para essas comunidades a terra é concebida como uma extensão da personalidade do próprio grupo, onde exercem práticas cotidianas de resistência e reprodução de seus modos de vida. Logo, ela é considerada pertencente a um todo coletivo, não sendo explorada em termos de lotes individuais ou percebida como uma mercadoria que possa ser dividida e comercializada.
De acordo com antropólogas Schmitt, Cecília e Celina (2002):
“(…) parentesco e território, juntos, constituem identidade, na medida em que os indivíduos estão estruturalmente localizados a partir de sua pertença a grupos familiares que se relacionam a lugares dentro de um território maior. Se, por um lado, temos território constituindo identidade de uma forma bastante estrutural, apoiando-se em estruturas de parentesco, podemos ver que território também constitui identidade de uma forma bastante fluida, levando em conta a concepção de F.Barth (1976) de flexibilidade dos grupos étnicos e, sobretudo, a ideia de que um grupo, confrontado por uma situação histórica peculiar, realça determinados traços culturais que julga relevantes em tal ocasião. É o caso da identidade quilombola, construída a partir da necessidade de lutar pela terra ao longo das últimas duas décadas. (Alessandra Schmitt, Maria Cecília Manzoli Turatti e Maria Celina Pereira de Carvalho, 2002, p. 4)”
Assim, uma vez que há uma íntima relação de pertencimento entre a identidade coletiva das populações tradicionais e o território por elas ocupado, o título emitido deve ser coletivo e pró-indiviso.
2.3. A natureza jurídica da propriedade quilombola e o instituto da desapropriação
A Constituição Federal assegura, como direito fundamental, o direito de propriedade, que deverá atender a sua função social, nos termos do art. 5º, XXII e XXIII, in verbis:
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
XXII – é garantido o direito de propriedade;
XXIII – a propriedade atenderá a sua função social;”
Entretanto esse direito fundamental não é absoluto, visto que a propriedade poderá ser desapropriada por necessidade ou utilidade pública e, desde que esteja cumprindo a sua função social, será paga justa e prévia indenização em dinheiro.
O tratamento dispensado ao índio e ao quilombola em relação a natureza jurídica da aquisição da propriedade da terra que tradicionalmente ocupam não é a mesma. No que diz respeito ao índio, a Constituição estabelece no art. 231, § 2º, que estes possuem a posse das terras que ocupam, cabendo a propriedade destas à União, conforme artigo 20, XI, da Constituição Federal:
“Art. 20. São bens da União:
XI – as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios. (…)
Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
§ 1º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.
§ 2º As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes. (grifo nosso)”
Além disso, a Constituição previu no art. 231, § 6º, que os títulos incidentes sobre as áreas ocupadas pelos índios seriam nulos e extintos, não gerando direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé, confira-se:
“Art. 231 Omissis (…)
§ 6º São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé”.
Nesse sentido, é de se ver que, no caso dos índios, a Constituição Federal reconhece seu direito de propriedade como de natureza originária e, em decorrência disso, expressamente reconhece a nulidade dos títulos outorgados a terceiros, excluindo o direito à indenização, salvo no caso das benfeitorias de boa-fé.
No entanto, diferentemente do tratamento dispensado às comunidades indígenas, a Constituição não estabeleceu, expressamente, a natureza jurídica da aquisição de propriedade das comunidades quilombolas.
Diante disso, doutrinadores e juristas divergem acerca de sua natureza. Para alguns, a propriedade quilombola é originária e eventual título incidente sobre a área não geraria direito a indenização a seu antigo proprietário, salvo em relação a benfeitorias e acessões construídas de boa-fé, trata-se do que alguns convencionaram chamar de usucapião sui generis. Já para outros, a propriedade quilombola é derivada e, por isso, necessária a utilização do instituto da desapropriação com o pagamento da correspondente indenização.
A dificuldade em estabelecer a natureza jurídica dessa aquisição é um dos fatores que contribui para a lentidão nos processos de titulação, uma vez que as áreas ocupadas pelas comunidades remanescentes de quilombos, não raras vezes, colidem com as de terceiros que possuem o competente título de propriedade.
O Decreto 4.887/2003 dispõe que na hipótese de incidir sobre as terras quilombolas título de domínio particular, deve ser realizada pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária a desapropriação do imóvel:
“Art. 13. Incidindo nos territórios ocupados por remanescentes das comunidades dos quilombos título de domínio particular não invalidado por nulidade, prescrição ou comisso, e nem tornado ineficaz por outros fundamentos, será realizada vistoria e avaliação do imóvel, objetivando a adoção dos atos necessários à sua desapropriação, quando couber.
§ 1º Para os fins deste Decreto, o INCRA estará autorizado a ingressar no imóvel de propriedade particular, operando as publicações editalícias do art. 7o efeitos de comunicação prévia.
§ 2º O INCRA regulamentará as hipóteses suscetíveis de desapropriação, com obrigatória disposição de prévio estudo sobre a autenticidade e legitimidade do título de propriedade, mediante levantamento da cadeia dominial do imóvel até a sua origem”.
No entanto, o partido político autor da Ação de Inconstitucionalidade ora estudada, reputa inconstitucional a utilização do instituto da desapropriação para transferência de propriedade aos quilombolas.
O demandante aduz que as terras pertencentes a essas comunidades são somente as que elas permanecem ocupando desde a promulgação da Constituição Federal, ou seja, desde 5 de outubro de 1988. Isso porque arguiu que somente a partir da promulgação da Constituição elas passam a ter o direito à propriedade das terras onde residem, de acordo com o comando autorizativo insculpido no art. 68 do ADCT. Nesse sentido, argumentou, inclusive, que descabe ao poder público promover gastos para o pagamento de indenizações:
“Ante o enunciado constante do art. 68 do ADCT, descabe ao Poder Público desapropriar a área, visto que a propriedade decorre diretamente da Constituição. Nos termos da dicção constitucional, é reconhecida a propriedade definitiva. Ou seja, não há que se falar em propriedade alheia a ser desapropriada para ser transferida aos remanescentes de quilombos, muito menos em promover despesas públicas para fazer frente a futuras indenizações. As terras são, desde logo, por força da própria Lei Maior, dos remanescentes das comunidades quilombolas que lá fixaram residência desde 5 de outubro de 1988. O papel do Estado limita-se, segundo o art. 68 do ADCT, a meramente emitir os respectivos títulos”. (ADI 3.239/2004, petição inicial, p. 06) (grifo do original)
O Ministro Cézar Peluso corroborou com a referida tese e ainda defendeu que a natureza jurídica da propriedade quilombola trata-se de uma espécie de usucapião sui generis, aduzindo inconstitucional a utilização do instituto da desapropriação.
Segundo ele, a usucapião é uma forma de aquisição da propriedade pelo decurso do tempo, obedecidos certos requisitos instituídos em lei. Diante disso, a norma estatuída no art. 68 do ADCT trataria de nova modalidade de usucapião, haja vista que os remanescentes de comunidades quilombolas detêm a posse prolongada da terra que ocupam e com intenção de dono.
Nesse caminho, argumentou também que a usucapião somente se processou até a promulgação da Constituição de 1988, pois o art. 68 do ADCT visou consolidar um direito subjetivo cuja aquisição somente foi possível antes deste termo. Sendo assim sustentou que “ou os remanescentes subsistem em terras públicas, devolutas, ou, se eventualmente estão em terras particulares, já as têm, em razão do prazo, como terras usucapidas” (ADI 3239, voto do Ministro Cezar Peluso, p. 44), dessa forma descaberia desapropriação.
No entanto, defender que a essas comunidades somente deve ser reconhecida a propriedade das terras que haviam fixado residência até de 5 de outubro de 1988 é desprezar por completo todo o seu histórico de resistência e luta.
Se essas comunidades chegaram até os dias atuais ocupando áreas de uso comum foi em meio a uma série de infortúnios e adversidades, como resistência da Marinha, especulação imobiliária e preconceito racial. Não deve ser esquecido que muitas delas foram expulsas de suas terras por particulares que objetivam explorar a região por elas ocupadas, tanto economicamente, quanto para fins de moradia. E essa expulsão ocorria sempre sob o argumento de que terceiros seriam seus legítimos proprietários por possuírem o competente título de propriedade, ainda que muitos deles adquiridos de forma arbitrária e com a conivência do Estado.
Portanto, pretender que se reconheça a propriedade somente às comunidades que estavam minimamente organizadas até a promulgação da Constituição, colocaria os quilombolas numa situação de vulnerabilidade e estimularia ainda mais conflitos agrários.
A Ministra Rosa Weber, em voto divergente, aduziu que a natureza jurídica da aquisição da propriedade dos remanescentes das comunidades de quilombos é derivada. Assim, reputa adequado o instrumento da desapropriação, a fim de viabilizar à transferência aos remanescentes dessas comunidades as áreas por eles ocupadas.
A Ministra argumentou que na medida em que a Constituição não invalida os títulos eventualmente incidentes sobre as terras ocupadas por essas comunidades, ao contrário do que faz em relação aos índios, a regularização do registro exige a utilização do procedimento expropriatório, conferindo concretude a norma do art. 68 do ADCT.
Weber aduziu ainda que tal desapropriação se amolda a categoria de desapropriação por interesse social, previsto no art. 5º, XXIV, da Lei Maior: "a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição". A Ministra justifica o enquadramento em tal modalidade de desapropriação se remetendo a excerto da lavra de Seabra Fagundes, um dos autores do texto da Lei 4132/1962, in verbis:
“haverá motivo de interesse social quando a expropriação se destine a solucionar os chamados problemas sociais, isto é, aqueles diretamente atinentes às classes pobres, aos trabalhadores e à massa do povo em geral, pela melhoria das condições de vida, pela mais equitativa distribuição da riqueza, enfim, pela atenuação das desigualdades sociais. Com base nele, terão lugar as expropriações que se façam para atender a planos de habitações populares ou de distribuições de terras, à monopolização de indústrias ou nacionalização de empresas quando relacionadas com a política econômico-trabalhista do governo. (grifo do original) (ADI 3239, voto da Ministra Rosa Weber, p. 50)”
A Ministra ressaltou, inclusive, que o conteúdo jurídico da desapropriação por interesse social é o dado pelo art. 18, "a", da Lei 4.504/1964, que dispõe: “a desapropriação por interesse social é aquela que tem por fim, entre outros objetivos, condicionar o uso da terra à sua função social”.
Edilson Vitorelli (2015), por sua vez, sustenta que a referida modalidade de desapropriação se enquadra na previsão do art. 2º, III, da Lei 4.132/62, que considera de interesse social o estabelecimento e a manutenção de colônias ou cooperativas de povoamento e trabalho agrícola. Isso porque,
“Os quilombolas são comunidades rurais, dedicadas ao trabalho agrícola. Embora não seja esse o fundamento de sua proteção, essa característica é suficiente para enquadrá-los na previsão legal que autoriza a desapropriação por interesse social. (Vitorelli, 2015, p. 286)”
Além disso, partindo-se de uma análise sistemática da Constituição pode-se inferir que a utilização do instituto da desapropriação para a transferência de terras a comunidades remanescentes de quilombos está em consonância com o disposto no art. 215 e 216 da CF. Tais artigos visam garantir a proteção do patrimônio cultural brasileiro, e nesse passo, o art. 216, § 1º, prevê expressamente a possiblidade de utilização do instituto a desapropriação para fins de proteção do patrimônio cultural brasileiro, confira-se:
“Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais. (…)
Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:(…)
§ 1º O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação”.
Diante do exposto, pode-se concluir que por mais que o Decreto 4.887/2003 não seja o ideal para o contexto quilombola, sua ineficácia hodiernamente decorre precipuamente da necessidade de que seja garantido aos interessados processo administrativo em que seja assegurado ampla defesa e contraditório.
Pretender que sejam efetivadas usucapiões individuais representaria o fim das comunidades quilombolas no Brasil, “que deixarão de ser reconhecidas enquanto comunidades, para serem reduzidas a uma colcha de retalhos” (Vitorelli, 2015, p. 293). Sendo assim, a transferência de áreas a essas comunidades onde eventualmente incidam títulos válidos depende da atuação do poder público no sentido de promover as desapropriações devidas.
3. A REALIDADE DAS COMUNIDADES QUILOMBOLAS NO BRASIL À LUZ DE TEÓRICOS DO DIREITO
A Lei Federal nº 7668 de 22 de agosto de 1988 com as alterações efetuadas pela Medida Provisória 2.216 de 31 de agosto de 2001 autorizou o Poder Executivo a criar a Fundação Cultural Palmares e acrescentou aos seus objetivos a realização da identificação das comunidades remanescentes de quilombos, formalizando sua existência, in verbis:
“Art. 1º Fica o Poder Executivo autorizado a constituir a Fundação Cultural Palmares – FCP, vinculada ao Ministério da Cultura, com sede e foro no distrito Federal, com a finalidade de promover a preservação dos valores culturais, sociais e econômicos decorrentes da influência negra na formação da sociedade brasileira.
Art. 2º A Fundação Cultural Palmares – FCP poderá atuar, em todo o território nacional, diretamente ou mediante convênios ou contrato com Estados, Municípios e entidades públicas ou privadas, cabendo-lhe:
I – promover e apoiar eventos relacionados com os seus objetivos, inclusive visando à interação cultural, social, econômica e política do negro no contexto social do país;
II – promover e apoiar o intercâmbio com outros países e com entidades internacionais, através do Ministério das Relações Exteriores, para a realização de pesquisas, estudos e eventos relativos à história e à cultura dos povos negros.
III – realizar a identificação dos remanescentes das comunidades dos quilombos, proceder ao reconhecimento, à delimitação e à demarcação das terras por eles ocupadas e conferir-lhes a correspondente titulação. (Incluído pela Medida Provisória nº 2.216-37, de 31.8.2001) (grifo nosso)”
De acordo com a referida Fundação (2016), 2.849 (duas mil oitocentas e quarenta e nove) comunidades espalhadas pelo território nacional foram certificadas até 20/05/2016.
No que se refere à viabilização do direito de propriedade, até o ano de 2003, a competência para titulação territorial (identificação e delimitação dos territórios quilombolas), na esfera federal, era da Fundação Cultural Palmares, nesse período, foram titulados 17 (dezessete) territórios. No entanto, por força do Decreto 4.887 de 2003, essa competência passou a ser do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), confira-se:
“Art. 3º Compete ao Ministério do Desenvolvimento Agrário, por meio do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA, a identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas pelos remanescentes das comunidades dos quilombos, sem prejuízo da competência concorrente dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.
§ 1º O INCRA deverá regulamentar os procedimentos administrativos para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas pelos remanescentes das comunidades dos quilombos, dentro de sessenta dias da publicação deste Decreto.
§ 2º Para os fins deste Decreto, o INCRA poderá estabelecer convênios, contratos, acordos e instrumentos similares com órgãos da administração pública federal, estadual, municipal, do Distrito Federal, organizações não-governamentais e entidades privadas, observada a legislação pertinente.
§ 3º O procedimento administrativo será iniciado de ofício pelo INCRA ou por requerimento de qualquer interessado.
§ 4º A autodefinição de que trata o § 1o do art. 2o deste Decreto será inscrita no Cadastro Geral junto à Fundação Cultural Palmares, que expedirá certidão respectiva na forma do regulamento”.
Segundo o Incra (2016), de 2005 a 2015 foram emitidos apenas 30 (trinta) títulos.
Ao realizar-se um cotejo entre o número de comunidades certificadas pela Fundação Cultural Palmares, qual seja 2.849 (duas mil oitocentas e quarenta e nove) comunidades, e o número de títulos de propriedade emitidos pelo Incra a essas comunidades, apenas 30 (trinta), observa-se o quão ineficaz é a previsão constitucional posta à disposição destas comunidades para a efetivação do seu direito fundamental à propriedade.
Ferdinand Lassalle (2011) acredita que um país possui duas Constituições: a constituição real, integralizada pelos fatores reais de poder que regem a sociedade e a constituição escrita, a que denomina “folha de papel”.
Para o autor, se a constituição escrita, ou seja, a positivada no ordenamento jurídico de um país, não refletir a constituição real, ou seja, os fatores reais de poder que regem uma nação, a constituição escrita fatalmente sucumbirá.
Partindo-se dessa visão, infere-se que no momento em que a Constituição prevê um direito fundamental, qual seja, o direito de propriedade das comunidades remanescentes de quilombos em relação às terras que tradicionalmente ocupam, e este não se efetiva em sua completude na prática, como se observa pelos dados divulgados pelo INCRA, a Constituição brasileira passa a ser um mero pedaço de papel.
Sendo assim, para o referido autor, uma Constituição escrita só é boa e duradoura, quando ela “corresponder à Constituição real e tiver suas raízes nos fatores do poder que regem um país”. Nesse sentido, “de nada servirá o que se escrever numa folha de papel, se não se justifica pelos fatores reais e efetivos do poder” (Lassalle, 2011, p. 39).
O autor defende, ainda, a necessidade de formação de uma “arte e sabedoria constitucionais” por parte dos cidadãos (grifo do autor):
“(…) isto é uma questão importantíssima e não há outro remédio senão estudá-la para sabermos a atitude que devemos adotar perante a obra constitucional, o juízo que devemos formar a respeito das constituições que regem atualmente e a conduta que devemos seguir perante as mesmas, para chegarmos finalmente ao seu conhecimento e a possuir uma arte e sabedoria constitucionais. (Lassalle, 2011, p. 32)”
Isso porque, a partir do momento que os cidadãos conhecem o aparato normativo que rege um país e o analisam segundo o contexto fático, eles tornam-se capazes de identificar quem são os destinatários de suas normas e, em que medida as forças políticas permitem a efetivação de tais direitos.
No caso sob análise, a partir do momento em que o constituinte previu o direito de propriedade quilombola, bem como o procedimento a ser empregado para realizar sua efetivação, por meio do Decreto 4.887/2003, observou-se que as forças reais de poder que regem o país constituem, na verdade, um entrave para a efetivação de seus direitos, e, por isso, essas comunidades iniciaram um longo um processo de empoderamento e luta que se perpetua na atualidade.
Em sentido oposto ao defendido por Lassalle, Konrad Hesse (1991) acredita que a Constituição de um país não significa apenas o simples reflexo das condições fáticas de sua vigência, ou seja, as forças sociais e políticas de uma nação. Ao contrário, ele defende que, em virtude da sua condição de eficácia, a Constituição procura imprimir ordem e conformação à realidade política e social:
“Graças ao elemento normativo, ela ordena e conforma a realidade política e social. As possibilidades, mas também os limites da força normativa da Constituição resultam da correlação do ser (Sein) e dever ser (Sollen).
A Constituição jurídica logra conferir forma e modificação à realidade. Ela logra despertar “a força que reside na natureza das coisas”, tornando-a ativa. Ela própria converte-se em força ativa que influi e determina a realidade política e social. (Hesse, 1991, p. 24)”
Porém, para que a Constituição se converta nessa força ativa, segundo o autor, devem se fazer presentes na consciência geral, particularmente, na consciência dos principais responsáveis pela ordem constitucional, não só a vontade de poder, mas também a vontade de Constituição (Hesse, 1991, p. 19).
Nesse sentido, trazendo tal reflexão para o caso em tela, observa-se que as normas da Constituição do Brasil que preveem o direito de propriedade quilombola pretendem conformar a realidade dessas comunidades assegurando seus direitos básicos, especialmente quando se observa que algumas delas já conseguiram o competente título. Entretanto, o baixo número de terras tituladas evidencia que falta aos governantes essa “vontade de constituição” defendida por Hesse, ou seja, falta ainda, o concurso da vontade humana para que esse direito se torne plenamente eficaz.
Sendo assim, faz-se necessário que toda a sociedade brasileira incorpore essa vontade de constituição, ou seja, vontade de que a previsão constitucional que protege os direitos dessas comunidades seja efetivada concretamente. E essa consciência deve estar presente tanto nos governantes, como nas próprias comunidades destinatárias de suas normas, a fim de que exijam a efetivação de tais direitos.
Peter Haberle (1997) defende que a Constituição possui uma função diretiva eminente:
“Constituição é, nesse sentido, um espelho da publicidade e da realidade (Spiegel der Offentlichkeit und Wirklichkeit). Ela não é, porém, apenas o espelho. Ela é, se se permite uma metáfora, a própria fonte de luz (Sie ist auch die Lichtquelle). (Haberle, 1997, p. 34)”.
Nesse passo, na medida em que a Constituição Brasileira se mostra comprometida com a construção de uma sociedade livre, justa e solidária e com a redução das desigualdades sociais, consoante o art. 3º, I e III, da Lei Maior, ela deve ser a fonte legitimadora de todos os procedimentos que assegurem a máxima proteção de sua sociedade, em especial de minorias, ao invés de ser interpretada no sentido de restringir direitos.
CONSIDERAÇÕES
A Constituição da República Federativa do Brasil assegura aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos, conforme art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Entretanto, esse direito assegurado constitucionalmente esbarra em diversas questões que entravam sua efetividade.
O Decreto 4.887/2004 que visa regulamentar o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos tem sua constitucionalidade questionada por meio da Ação Direita de Inconstitucionalidade nº 3239 de 2004.
Através da análise da referida ação pôde-se realizar um estudo de diversos direitos fundamentais a que fazem jus essas comunidades, especialmente o de propriedade. No que se refere a este, observou-se que em que pese a Constituição Federal não apontar a natureza jurídica da propriedade das terras que as comunidades quilombolas tradicionalmente ocupam, é possível identificá-la a partir de uma análise sistemática da constituição.
Nesse sentido, ficou demonstrado que a natureza que mais se coaduna com o escopo da Constituição Federal de proteção de suas minorias étnicas é o de propriedade é derivada e, por conseguinte, o instituto da desapropriação seria mais adequado a viabilizar a transferência de áreas eventualmente tituladas a terceiros a estas comunidades.
Ao final, realizou-se uma análise de dados quantitativos a respeito da quantidade de número de comunidades certificadas pela Fundação Cultural Palmares e o número de títulos de propriedade emitidos pelo Incra a essas comunidades.
De posse desses dados e dialogando-se com os teóricos do direito Ferdinand Lassalle (2011), Konrad Hesse (1991) e Peter Haberle (1997), observou-se o quão ineficaz é a previsão constitucional posta à disposição destas comunidades para a efetivação do seu direito fundamental à propriedade previsto constitucionalmente.
O julgamento dessa ADI, muito embora não tenha o condão de encerrar os debates acerca da efetivação dos direitos a que essas comunidades fazem jus, possibilitará, ao menos, a pacificação a respeito do procedimento adequado para promover a efetivação do direito de propriedade dessas comunidades e, consequentemente, de demais diretos. Dessa forma, o julgamento deve seguir no sentido de buscar equiparar juridicamente este segmento populacional, histórica e socialmente excluído, ao restante da sociedade brasileira.
Advogada; Pós-graduanda em Direito Constitucional; Bacharela em Direito pela Universidade Federal do Piauí – UFPI
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