Resumo: Com advento da Lei n.º 11.690, de 9 de junho de 2008, houve a regulamentação, em nível infraconstitucional, do artigo 5.º, LVI, da Constituição Federal de 1988, que preceitua serem inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos. Assim, pretende-se alcançar a cognição de quais seriam os limites na utilização de provas, quem poderia invocá-lo e em que casos. Averigua-se que a doutrina, mediante interpretação do dispositivo constitucional que rege a matéria (artigo 5º, LVI, CF), tem defendido, preponderantemente, pela inadmissibilidade das "provas ilícitas consideradas modalidade de "prova vedada" pelo ordenamento jurídico. Por meio disto, correlaciona-se o assunto com a temática constitucional, valendo-se sobretudo, da urgente ponderação quanto à necessidade de temperar a inadmissibilidade e o desentranhamento das de tais provas. Portanto, o objetivo desta monografia é estudar a fundamentação teórica a respeito das provas ilícitas no âmbito do processo penal a partir de um viés constitucional. Para isto, utilizaremos diversas doutrinas e jurisprudências, visando identificar uma intelecção do fenômeno, sobretudo, a partir do princípio da proporcionalidade, propiciando assim, a defesa da formação de um satisfatório arcabouço jurídico justificador de recepção constitucional.
Abstract: With enactment of Law No. 11,690, of June 9, 2008, there were regulations on constitutional level, Article 5, LVI, the Federal Constitution of 1988, which state are inadmissible in the proceedings, the evidence. obtained by unlawful means. Thus, it is intended to achieve the cognition of what would be the limits on the use of evidence, who could invoke it and in what cases. It ascertains that the doctrine upon interpretation of the constitutional provision governing the matter (Article 5, LVI, CF), has advocated mainly by the inadmissibility of "illegal evidence considered modality" sealed evidence "by the legal system. Hereby correlates it with the constitutional issue, availing especially urgent consideration of the need to temper the disemboweling and inadmissibility of such evidence. Therefore, the aim of this thesis is to study the theoretical background about the illegal evidence in criminal proceedings from a constitutional bias. for this, we use various doctrines and jurisprudence, aiming to identify an intellection of the phenomenon, especially from the principle of proportionality, thus enabling the defense training justifier of a satisfactory legal framework constitutional reception.
Keywords: Proof illegal; Constitutional Criminal Procedure.
Sumário: I. Principiologia da prova e a garantia da jurisdição; II. Presunção de inocência; III. Carga de prova e “in dubio pro reo”. Quando o réu alega uma exclusão de ilicitude, ele tem o dever de provar?; IV. “In dubio pro societate”; V. O Princípio da Identidade Física do Juiz; VI. Hierarquia e especificidade de provas; VII. Provas Ilícitas; VIII. Provas derivadas das provas ilícitas ; IX. Convalidação de provas obtidas por meios ilícitos com a finalidade de defesa das liberdades públicas fundamentais (legítima defesa); X. Aproveitamento da prova com exclusão da ilicitude; XI. A constitucionalização do princípio da proporcionalidade; XII. Pressupostos e requisitos do princípio da proporcionalidade; XIII. Aproveitamento da prova ilícita: proporcionalidade, proibição de excesso (vedação de proteção suficiente?) ; XIV. Considerações Finais
I. Principiologia da prova e a garantia da jurisdição
Sabe-se que a lei processual penal brasileira possui uma inspiração fascista [1], além de possuir características do autoritarismo[2]. Dito isto, buscar-se-á nos princípios constitucionais, uma possível (re)leitura, uma vez que se tentará compatibilizá-los com as necessidades atuais. Desta forma, far-se-á um filtro constitucional, a partir de sua adequação ao tema das provas ilícitas no cenário jurídico contemporâneo, utilizando-se, sobretudo, o princípio da proporcionalidade e seu posicionamento frente às necessidades atuais.
A garantia da jurisdicionalidade deve ser vista no contexto das garantias orgânicas da magistratura, de modo a orientar a inserção do juiz no marco institucional da independência, pressuposto da imparcialidade, que, em última análise, é o princípio supremo do processo.[3]
No entanto, a figura do magistrado não se faz por si só. É preciso investigar quem é esse juiz e a serviço de que(m) ele está. Cabe salientar que o nível de evolução do processo penal (e mesmo de um Estado) está, intrinsecamente, ligado à qualidade da jurisdição. Conforme leciona o douto Aury Lopes Jr.[4], deve-se considerar que a garantia mais importante que se tem é a da jurisdição e, como consequência lógica dela, a de ser julgado com base na prova produzida dentro do processo, com todas as garantias do due process of law.
Cabe dizer que, por exemplo, o inquérito policial somente gera atos de investigação e, como tais, de limitado valor probatório.
Já com relação aos atos de prova, estes são atos que: “a) estão dirigidos a convencer o juiz de uma afirmação; b) estão a serviço do processo e integram o processo penal; c) dirigem-se a formar a convicção do juiz para o julgamento final; d) exigem estrita observância da publicidade, contradição e imediação”; e) são praticados ante o juiz que julgará o processo.[5]
Vale dizer que os atos de prova são capazes de fundamentar a sentença, ou seja, são os atos praticados dentro do processo, à luz da garantia da jurisdição e demais regras do devido processo penal.
II. Presunção de Inocência
No Brasil, o princípio da presunção de inocência está expressamente consagrado no art. 5°, inciso LVII, da CRFB, sendo este o princípio regente do processo penal. Necessário é ressaltar o que disciplina o notável Amilton B. de Carvalho quando afirma que "o Princípio da Presunção de Inocência não precisa estar positivado em lugar nenhum: é 'pressuposto' – para seguir Eros -, neste momento histórico, da condição humana".[6]
Cabe dizer que este princípio significa que enquanto o réu não for definitivamente condenado, presumir-se-á o mesmo inocente. Desta forma, presumindo-se o réu inocente, sua prisão antes do trânsito em julgado da sentença condenatória, resultaria em antecipação na aplicação da pena. No entanto, ninguém pode ser punido antecipadamente, antes de definitivamente condenado, a não ser que se faça da prisão do réu uma medida indispensável como meio de cautela.
O insigne Lopes Jr. ensina que este princípio é fruto de uma opção protetora do indivíduo, ainda que para isso tenha-se que pagar o preço da impunidade de algum culpável, pois sem dúvida o maior interesse é que todos os inocentes, sem exceção, estejam protegidos. Essa opção ideológica, em se tratando de prisões cautelares, é da maior relevância, pois decorre da consciência de que o preço a ser pago pela prisão prematura e desnecessária de alguém inocente (pois ainda não existe sentença definitiva) é altíssimo, ainda mais no medieval sistema carcerário brasileiro.[7]
Tourinho Filho ensina-nos que: “a antecipação da pena também existe quando se decreta a prisão preventiva como garantia de ordem pública e da ordem econômica, mesmo porque nessas duas hipóteses a privação da liberdade do acusado não acarreta nenhum benefício para o processo. E para que prender o réu na fase de pronúncia? Para aguardar na prisão o julgamento pelo Tribunal popular? E por que aguardar o julgamento na cadeia se ele é presumidamente inocente? Não estaria o Juiz presumindo a sua culpa ou sua fuga? E isso não afrontaria o princípio da presunção de inocência, dogma constitucional? Ademais, se toda prisão cautelar reclama, ao lado do fumus boni juris (fumaça do bom direito), o periculum libertatis (perigo de estar em liberdade havendo um processo em andamento), onde a necessidade dessa prisão para assegurar a realização do processo? Como justificar a medida extrema? Onde a cautelaridade?”[8]
III- Carga de prova e “in dubio pro reo”. Quando o réu alega uma exclusão de ilicitude, ele tem o dever de provar?
A partir do momento em que o imputado é presumidamente inocente, não lhe incumbe provar absolutamente nada. Há uma presunção que deve ser destruída pelo acusador, sem que o réu (e muito menos o juiz) tenha qualquer dever de contribuir nessa desconstrução (direito de silêncio – nemo tenetur se detegere).[9]
Ademais, evidencia-se que o juiz, que deve ter como hábito profissional a imparcialidade e dúvida, tem a tarefa de analisar todas as hipóteses, aceitando a acusatória apenas se esta estiver provada e, não a aceitando, se esta for desmentida ou, ainda se esta não for desmentida, esta não estar suficientemente provada.[10]
Além disto, ressalta-se que o princípio do in dubio pro reo (não há dúvida em favor do réu) fortalece a atribuição da carga probatória ao acusador e intensifica a regra de julgamento, ou seja, não condenar o réu sem que sua culpabilidade tenha sido suficientemente demonstrada. A única certeza exigida pelo processo penal, refere-se à prova da autoria e da materialidade, necessárias na prolação da sentença condenatória. Desta forma, caso não seja alcançado esse grau de convencimento (e liberação de cargas), a absolvição é imperativa. Por fim, tudo isto faz referência ao nulla accusatio sine probatione (não há acusação sem provas).
O preclaro Aury Lopes Jr.[11] leciona que a primeira parte do art. 156 do CPP, deve ser lida à luz da garantia constitucional da inocência. Sabe- se que o artigo disciplina que "a prova da alegação incumbirá a quem a fizer". Mas a primeira (e principal) alegação feita é que consta na denúncia e aponta para a autoria e a materialidade. Sendo assim, cabe ao Ministério Público o ônus total e intransferível de provar a existência do delito.
Importante é frisar que a carga do acusador é de provar o alegado; desta forma, demonstrar que alguém (autoria) praticou um crime (fato típico, ilícito e culpável). Assim, entende-se que cabe ao acusador provar a presença de todos os elementos que integram a tipicidade, a ilicitude e a culpabilidade e, naturalmente, a inexistência das causas de justificação.
Um ponto que se deve ressaltar é sobre o caráter indiciário da ilicitude. Sabe-se que esta teoria determina que há uma relação entre tipicidade e ilicitude. Por conseguinte, a tipicidade será indiciária da ilicitude. Neste diapasão, entende-se que o fato típico será, muito provavelmente, antijurídico. A antijuridicidade só não ocorrerá se estiver presente alguma causa de exclusão de ilicitude, conforme se observa no caso da legítima defesa e no estado de necessidade.
Finalmente, outro aspecto que deve ser tratado é sobre a prática suspeita e equivocada de menor exigência probatória para os delitos de menor gravidade, disseminada a partir da criação dos Juizados Especiais Criminais e que decorre, também, do baixo nível de qualidade da prestação jurisdicional prestada nos mesmos.[12]
Entende-se que se trata de um pensamento por completo errôneo. Urge-se dizer que o nível de exigência probatória não varia. Tal prática está enraizada em práticas inquisitoriais, ainda tão vivas e resplandecentes em nosso sistema jurídico, e na maneira de lidar e pensar de muitos operadores do direito processual penal.
IV. “In dubio pro societate”
O douto Paulo Rangel[13] afirma que: “o chamado princípio do in dubio pro societate (na dúvida, em favor da sociedade) é compatível com o Estado Democrático de Direito, onde a dúvida não pode autorizar uma acusação, colocando uma pessoa no banco dos réus. (…) O Ministério Público, como defensor da ordem jurídica e dos direitos individuais e sociais indisponíveis, não pode, com base na dúvida, manchar a dignidade da pessoa humana e ameaçar a liberdade de locomoção com uma acusação penal.”
Com razão, Rangel[14] destaca que:” não há nenhum dispositivo legal que autorize esse chamado princípio do in dubio pro societate. O ônus da prova, já foi dito, é do Estado e não do investigado. Por derradeiro, enfrentando a questão na esfera do Tribunal do Júri, segue o autor explicando que, se há dúvida, é porque Ministério Público não logrou êxito na acusação que formulou em sua denúncia, sob o aspecto da autoria e materialidade, não sendo admissível que sua falência funcional seja resolvida em desfavor do acusado, mandando-o a júri, onde o sistema que impera, lamentavelmente, é o da íntima convicção. (… ) A desculpa de que jurados são soberanos não pode autorizar uma condenação com base na dúvida.”
Ademais, no que tange à doutrina majoritária, entende-se que há a aplicação deste princípio somente no momento do recebimento da denúncia, jamais no momento de aplicação da sentença. Isto se deve ao fato que no momento de recebimento da denúncia bastam “indícios”, menciona-se que desta forma, na dúvida, o juiz deverá recebê-la.
Em suma, cabe dizer que o sistema probatório fundado a partir da presunção constitucional de inocência não admite nenhuma exceção procedimental, inversão do ônus probatório ou paupérrimas construções inquisitoriais, evidenciando assim, uma tendência ao in dubio pro societate.[15]
V. O princípio da identidade física do juiz
Por força da Lei 11.719/08, o Código de Processo Penal passou a incorporar o princípio da identidade física do juiz, ao dispor que “o juiz que presidiu a instrução deverá proferir a sentença” (art. 399, § 2º, CPP).
A mesma regra já existe no processo civil, com maiores especificações: “art. 132. O juiz titular ou substituto, que concluir a audiência, julgará a lide, salvo se estiver convocado, licenciado, afastado por qualquer motivo, promovido ou aposentado, caso em que passará os autos ao seu sucessor”.
A nova legislação, modificativa do Código de Processo Penal, Lei 11.719/08, limitou-se a consignar que o juiz que presidiu a instrução deverá proferir a sentença (art. 399, § 2º, CPP).
No entanto, necessário é que o referido art. 132 do CPC não só pode, mas também deve ser aplicado subsidiariamente.
Deve-se ter em vista que o Código de Processo Penal não proíbe a aplicação de legislação de outra espécie processual; muito pelo contrário, a permite (art. 3º do CPP). Ademais, urge-se esclarecer que ocorrerão situações em que será necessário recorrer a uma regra de substituição qualquer, para fim de dar implemento à celeridade processual trazida para os novos ritos processuais penais. Neste caso, necessária será a utilização do próprio digesto de processo civil.
E por fim, as regras de substituição do Código de Processo Civil (art. 132) objetivam resguardar o regular andamento processual, apontando situações concretas nas quais o afastamento do juiz da instrução, além de fundamentado em Lei, implicaria em três hipóteses: a) ou a impossibilidade de seu retorno para o julgamento do feito (hipótese de promoção à segunda instância, por exemplo); b) ou o retrocesso na marcha processual, em prejuízo de todos; c) ou, o que seria sem solução, a impossibilidade do próprio julgamento, que poderia ocorrer nos casos de aposentadoria do juiz.
VI. Hierarquia e especificidade de provas
As provas no processo desempenham uma função muito bem definida, a saber: a reconstrução da realidade histórica, sobre a qual se pronunciará a certeza quanto à
verdade dos fatos, para fins de formação da coisa julgada.[16]
Nesta mesma linha de raciocínio, Pacelli[17] completa que se tratando da construção do que deverá ser expressão da verdade judicial, parece-nos perfeitamente possível a exigência de meios de prova específicos para a constatação de determinados fatos. Falar-se-ia, então, na regra da especifidade da prova, cuja conseqüência, entretanto, não seria a existência de uma hierarquia de provas.
É preciso estar atento ao fato de que toda restrição a determinados meios de prova deve estar atrelada (e, assim, ser justificada) à proteção de valores reconhecidos pela e positivados na ordem jurídica. As restrições podem ocorrer tanto em relação ao meio da obtenção da prova, no ponto em que esse (meio) implicaria a violação de direitos e garantias, quanto em referência ao grau de convencimento resultante do meio de prova utilizado.[18]
Quanto às primeiras, existe norma constitucional expressa vedando a admissibilidade de provas obtidas ilicitamente. Em relação às segundas, há também normas legais expressas. Não se deve ver, por isso, qualquer inconveniente na disposição do parágrafo único do art. 155 do CPP, no qual se exige a observância das mesmas restrições à prova, estabelecidas na lei civil, quando se cuida de matéria relativa ao estado das pessoas.[19]
Sabe-se que em relação à prova técnica, é que a legislação demonstra uma maior preocupação quanto à idoneidade da prova, para o fim a que se destina.
É notório que isso não ocorre, pelo menos em duas situações, tal como expressamente previstas no Código de Processo Penal. É o caso, como pode se observar, do art. 155, parágrafo único, CPP, em relação à prova de fato relacionada ao estado das pessoas (ou os tribunais aceitariam a prova do casamento pelo depoimento de testemunhas?), bem como do exame de corpo de delito, quando a infração deixa vestígio e esse não tiver desaparecido. Não se deve acreditar, com efeito, que juiz ou tribunal algum profira sentença condenatória pela prática de falsidade material com base unicamente em prova testemunhal, quando houver prova pericial (técnica) concluindo não terem partido do punho do réu os escritos falsificados. O problema aqui não seria com a idoneidade da testemunha (no caso concreto) para aferir do falso e da sua autoria, mas com o método (abstrato) testemunhal de prova para a aceitação da verdade.[20]
VII. Provas ilícitas
Sabe-se que são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos, conforme disciplina o art. 5.°, LVI, da Constituição Federal, “entendendo-as como aquelas colhidas em infringência às normas do direito material, configurando-se importante garantia em relação à ação persecutória do Estado.”[21]
Insta esclarecer que as provas ilícitas não se confundem com as provas ilegais e as ilegítimas. Disciplina o douto Alexandre de Moraes que as provas ilícitas são aquelas obtidas com infringência ao direito material, as provas ilegítimas são as obtidas com desrespeito ao direito processual[22]. Assim, as provas ilegais seriam o gênero do qual as espécies são as provas ilícitas e as ilegítimas, pois, configuram-se pela obtenção com violação de natureza material ou processual ao ordenamento jurídico.[23]
Neste diapasão, relembra-se um importante julgado do plenário do Supremo Tribunal Federal, in verbis:
"É indubitável que a prova ilícita, entre nós, não se reveste da necessária idoneidade jurídica como meio de formação do convencimento do julgador, razão pela qual deve ser desprezada, ainda que em prejuízo da apuração da verdade, no prol do ideal maior de um processo justo, condizente com o respeito devido a direitos e garantias fundamentais da pessoa humana, valor que se sobreleva, em muito, ao que é representado pelo interesse que tem a sociedade numa eficaz repressão aos delitos. É um pequeno preço que se paga por viver-se em Estado de Direito democrático. A justiça penal não se realiza a qualquer preço. Existem, na busca da verdade, limitações impostas por valores mais altos que não podem ser violados, ensina Heleno Fragoso, em trecho de sua obra Jurisprudência Criminal, transcrita pela defesa. A Constituição brasileira, no art. 5.°, inc. LVI, com efeito, dispõe, a todas as letras, que são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos".[24]
Outro julgado importante ao presente estudo é o da AP 307-3-DF, em o que Ministro Celso de Mello ensina-nos que:
"A norma inscrita no art. 5.°, LVI, da Lei Fundamental promulgada em 1988,consagrou, entre nós, com fundamento em sólido magistério doutrinário (…) A cláusula constitucional do due process of law – que se destina a garantir a pessoa do acusado contra ações eventualmente abusivas do Poder Público – tem, no dogma da inadmissibilidade das provas ilícitas, uma de suas projeções concretizadoras mais expressivas, na medida em que o réu tem o impostergável direito de não ser denunciado, de não ser julgado e de não ser condenado com apoio em elementos instrutórios obtidos ou produzidos de forma incompatível com os limites impostos, pelo ordenamento jurídico, ao poder persecutório e ao poder investigatório do Estado. A absoluta invalidade da prova ilícita infirma-lhe, de modo radical, a eficácia demonstrativa dos fatos e eventos cuja realidade material ela pretende evidenciar. Trata-se de conseqüência que deriva, necessariamente, da garantia constitucional que tutela a situação jurídica dos acusados em juízo penal e que exclui, de modo peremptório, a possibilidade de uso, em sede processual, da prova – de qualquer prova – cuja ilicitude venha a ser reconhecida pelo Poder Judiciário. A prova ilícita é prova inidônea. Mais do que isso, prova ilícita é prova imprestável. Não se reveste, por essa explicita razão, de qualquer aptidão jurídico-material. Prova ilícita, sendo providência instrutória eivada de inconstitucionalidade, apresenta-se destituída de qualquer grau, por mínimo que seja, de eficácia jurídica. Tenho tido a oportunidade de enfatizar, neste Tribunal, que a Exclusionary Rule, considerada essencial pela jurisprudência da Suprema Corte dos Estados Unidos da América na definição dos limites da atividade probatória desenvolvida pelo Estado, destina-se, na abrangência de seu conteúdo, e pelo banimento processual de evidência ilicitamente coligidas, a proteger os réus criminais contra a ilegítima produção ou a ilegal colheita de prova incriminadora (Garrity v. New Jersey, 385 U.S. 493, 1967; Mapp v. Ohio, 367 U.S. 643, 1961; Wong Sun v. United States, 371 U.S. 471, 1962, v.g.)".
Neste diapasão, Alexandre de Moraes[25] ressalta que com o objetivo de amenizar distorções, a doutrina constitucional entendeu que era necessário minorar a vedação das provas ilícitas. A partir deste entendimento, considera-se passível a utilização, diga-se em caráter excepcional, de hipóteses em que há provas ilícitas. Sabe-se que isto tudo, não é feito de maneira distorcida ou sem critérios, uma vez que se vale do Princípio da Proporcionalidade. Neste sentido, seguem as sábias palavras do douto Luiz Francisco Torquato Avolio:
"É, pois, dotada de um sentido técnico no direito público a teoria do direito germânico, correspondente a uma limitação do poder estatal em benefício da garantia de integridade física e moral dos que lhe estão sub-rogados (…). Para que o Estado, em sua atividade, atenda aos interesses da maioria, respeitando os direitos individuais fundamentais, se faz necessário não só a existência de normas para pautar essa atividade e que, em certos casos, nem mesmo a vontade de uma maioria pode derrogar (Estado de Direito), como também há de se reconhecer e lançar mão de um princípio regulativo para se ponderar até que ponto se vai dar preferência ao todo ou às partes (Princípio da Proporcionalidade), o que também não pode ir além de um certo limite, para não retirar o mínimo necessário a uma existência humana digna de ser chamada assim".[26]
Ressalta-se que a regra é da inadmissibilidade das provas obtidas por meios ilícitos, que, excepcionalmente, deverão ser admitidas respeitando-se a liberdade pública e o princípio da dignidade humana.
IX. Convalidação de provas obtidas por meios ilícitos com a finalidade de defesa das liberdades públicas fundamentais (legítima defesa)
Alexandre de Moraes demonstra que as liberdades públicas não podem ser utilizadas como um verdadeiro escudo protetivo da prática de atividades ilícitas, nem tampouco como argumento para afastamento ou diminuição da responsabilidade civil ou penal por atos criminosos, sob pena de total consagração ao desrespeito a um verdadeiro Estado de Direito. Dessa forma, aqueles que ao praticarem atos ilícitos inobservarem as liberdades públicas de terceiras pessoas e da própria sociedade, desrespeitando a própria dignidade da pessoa humana, não poderão invocar, posteriormente, a ilicitude de determinadas provas para afastar suas responsabilidades civil e criminal perante o Estado.[27]
Neste mesmo sentido o preclaro Professor Alexandre de Moraes[28] discorre sobre a possibilidade de utilização de uma gravação realizada pela vítima, sem o conhecimento de um dos interlocutores, que comprovasse a prática de um crime de extorsão, pois o próprio agente do ato criminoso, primeiramente, invadiu a esfera de liberdades públicas da vítima, ao ameaçá-la e coagi-la. Essa, por sua vez, em legítima defesa de suas liberdades públicas, obteve uma prova necessária para responsabilizar o agente. Poder-se-ia, também, apontar a hipótese de utilização de uma gravação de vídeo realizada pelo filho, de forma clandestina e sem conhecimento de seu pai, agressor, para comprovação de maus-tratos e sevícias. Não se poderia argumentar que houve desrespeito à inviolabilidade, à intimidade e à imagem do pai-agressor, pois sua conduta inicial desrespeitou a incolumidade física e a dignidade de seu filho que, em legítima defesa, acabou por produzir a referida prova. Ainda, poder-se-ia apontar a possibilidade de utilização de uma "carta confidencial" remetida pelo seqüestrador aos familiares do seqüestrado. Certamente essa carta poderia ser utilizada em juízo, sem que se falasse em desrespeito ao sigilo das correspondências, pois o seqüestrador foi quem, primeiramente, desrespeitou os direitos fundamentais do seqüestrado e de seus familiares que, em legítima defesa, produziram tal prova.
Como se observa pelo ilustre Ministro Moreira Alves, em notório voto-relator no Habeas Corpus n.° 74.6781/SP:
"Evidentemente, seria uma aberração considerar como violação do direito à privacidade a gravação pela própria vítima, ou por ela autorizada, de atos criminosos, como o diálogo com seqüestradores, estelionatários e todo tipo de achacadores. No caso, os impetrantes esquecem que a conduta do réu apresentou, antes de tudo, uma intromissão ilícita na vida privada do ofendido, esta sim merecedora de tutela. Quem se dispõe a enviar correspondência ou a telefonar para outrem, ameaçando-o ou extorquindo-o, não pode pretender abrigar se em uma obrigação de reserva por parte do destinatário, o que significaria o absurdo de qualificar como confidencial a missiva ou a conversa".[29]
Nesse mesmo sentido e no referido julgamento, assinalou o Ministro Sepúlveda Pertence a existência de exclusão da ilicitude da gravação obtida por um dos interlocutores, vítima de corrupção passiva ou concussão já consumada, apesar do desconhecimento do outro interlocutor, e, conseqüentemente, a possibilidade de sua utilização.[30]
Nesse mesmo sentido, reiterando esse posicionamento, decidiu a Suprema Corte que: "É licita a gravação de conversa telefônica feita por um dos interlocutores, ou com sua autorização, sem ciência do outro, quando há investida criminosa deste último. É inconsistente e fere o senso comum falar-se em violação do direito à privacidade quando interlocutor grava diálogo com seqüestradores, estelionatários ou qualquer tipo de chantagista.”[31] [32]
XI. Aproveitamento da prova com exclusão da ilicitude
Considera-se inadmissível a prova ilícita. Entretanto, deve-se alertar para o fato de que há situações em que se pode afastar a ilicitude das provas, podendo assim, serem aproveitadas. Vejamos alguns casos:
a) Excludentes de Ilicitude: o art. 23 do Código Penal Brasileiro disciplina que são excludentes da ilicitude, in verbis:
“Art. 23 – Não há crime quando o agente pratica o fato:
I – em estado de necessidade;
II – em legítima defesa;
III – em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito.”
Tais circunstâncias e/ou fatos se enquadrariam em verdadeiras causas de justificação de conduta[33], não podendo assim, tais situações serem enquadradas como criume, haja vista que a ação típica estará plenamente justificada perante nosso ordenamento jurídico.
Em efeito, estará também afastada a ilicitude da obtenção da prova, podendo ela ser regularmente introduzida e analisada no processo penal.[34]
b) O flagrante delito: disciplina a Constituição Federal em seu art. 5º, inc. XI que:
“A casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial. (grifou –se)
A possibilidade de ingressar em uma residência em tais circunstâncias, se dá em razão do risco aos bens jurídicos protegidos pelo nosso ordenamento jurídico. Desta forma, mesmo que o próprio proprietário da residência seja o causador do delito, qualquer pessoa poderá ingressar nesta casa, tendo em vista a necessidade de proteção dos referidos bens.
Neste diapasão, como exemplo, ninguém poderia argumentar que pelo fato de estar dentro de seu domicílio, poderia assim, estuprar ou matar alguém, sem que nenhuma pessoa do povo pudesse impedi-lo de fazê-lo.
De outro modo, fora dos casos relacionados à inviolabilidade de domicílio, há situações em que a prova do delito foi obtida durante a prática de um crime.
Isto se concretizará quando, por exemplo, alguém realiza uma gravação ambiental, podendo ser feita ou por um vídeo ou por um gravador, e nesta empreitada, um particular poderia captar alguém realizando um crime.
A partir disto, a prova deste crime poderia ser admitida, haja vista que não há como o autor do crime alegar violação a qualquer direito seu (intimidade, privacidade, imagem, dentre outros).
Por meio disto, entende-se que a gravação telefônica realizada por meio de um dos interlocutores, sem a autorização do outro, poderá ser validamente utilizada, quando realizada durante o flagrante delito, como exemplo, no crime de extorsão mediante seqüestro. Evidencia-se isso no julgamento do HC nº 75.338/RJ, DJU de 25.9.1998. Este caso trata de um crime permanente. Assim, entende-se que enquanto durar a sua permanência, as diligências adotadas para a sua apuração não configurarão ilicitude, no que disser respeito à suposta violação da intimidade/privacidade dos autores participantes.[35]
Importante é evidenciar que a prova obtida durante o flagrante delito não é a mesma coisa que a prova produzida antes do delito. Dito isto, entende-se que em uma interceptação telefônica feita de modo ilegal, sem autorização judicial, é constatada por meio da gravação a prática do crime, por exemplo, de ameaça. Neste caso, a gravação não se realizou durante o flagrante delito e sim antes da ação criminosa.[36]
Atesta-se que poderá ocorrer um eventual aproveitamento da prova, mas para isso, deverá haver fundamentação distinta, atendendo assim, à gravidade do caso em questão. Para isto, deve-se recorrer aos critérios de proporcionalidade e razoabilidade, não devendo desta forma, serem aceitos excessos. [37]
XI. A constitucionalização do princípio da proporcionalidade
Sabe-se que o princípio da proporcionalidade originou-se na Alemanha, sob inspiração dos pensamentos jusnaturalistas e iluministas. Neste diapasão, o douto Barroso leciona que: “… abrem-se duas linhas de construção constitucional, uma e outra conducentes ao mesmo resultado: o princípio da razoabilidade integra o direito constitucional brasileiro, devendo o teste de razoabilidade ser aplicado pelo intérprete da Constituição em qualquer caso submetido ao seu conhecimento. A primeira linha, mais inspirada na doutrina alemã, vislumbrará o princípio da razoabilidade como inerente ao Estado de direito, integrando de modo implícito o sistema, como um princípio constitucional não-escrito. De outra parte, os que optarem pela influência norte-americana, pretenderão extraí-lo da cláusula do devido processo legal, sustentando que a razoabilidade das leis se torna exigível por força do caráter substantivo que se deve dar à cláusula".[38]
Ensina-nos Scarance que com relação ao princípio da proporcionalidade “há, ainda, íntima ligação entre o princípio da proporcionalidade e o princípio da isonomia, pois, embora tenham objetos e fins próprios, tangenciam-se principalmente no fato de que, para haver igualdade devem ser superadas as desigualdades dos indivíduos e especificados os critérios para determinar, em que medida as distinções entre eles podem ser admitidas”.[39]
Já o douto Luiz Roberto Barroso discorre que a "importação e sistematização do princípio da razoabilidade-proporcionalidade, no direito brasileiro, projetaram novas luzes sobre o tratamento doutrinário do princípio da isonomia".[40]
Luís Roberto Barroso e Gilmar Ferreira Mendes enquadram o princípio da proporcionalidade no âmbito do devido processo legal. Suzana de Toledo Barros expõe que o princípio está inserido no contexto normativo dos direitos fundamentais e de seus mecanismos de proteção. Trata-se de uma "garantia especial", exigindo-se que toda intervenção na esfera dos direitos fundamentais "se dê por necessidade, de forma adequada e na justa medida". O princípio da proporcionalidade complementa o princípio da reserva legal e reafirma o Estado de Direito.[41]
XIV. Considerações Finais
A partir daqui uma breve síntese será desenvolvida elucidando a questão sobre a admissibilidade e inadmissibilidade das provas ilícitas. Para isto, demonstrar-se-á o tratamento dado pela doutrina e jurisprudência no Sistema Processual Penal em alguns países, valendo-se desta forma, do direito comparado e suas formas de interpretação.
De forma prática, sabe-se que na Itália era taxado de inconstitucional qualquer norma que vedasse ou limitasse as partes de participarem ativamente no processo, sendo este um meio pelo qual as partes poderiam provar o que foi alegado em juízo, mesmo que isto tenha ocorrido de modo ilícito.
Com fulcro neste entendimento, o ilustre Luiz Francisco Torquato Avolio, cita que:
“No caso “Vigo x Formenti”, a Corte de Apelação de Milão reprovou o arbítrio cometido pela parte, consistente no apossamento das cartas de propriedade de outro sujeito, rejeitando a possibilidade de utilização de escritos “alheios” como prova das próprias pretensões creditórias.”[42]
Neste diapasão, sabe-se que a doutrina era tendenciosa no sentido de discriminar a possibilidade de utilização de provas ilícitas.
Desta forma, entende-se que o Código Processual Penal Italiano de 1988 constituiu um marco no direito pátrio italiano, tendo em vista que a temática sobre as provas ilícitas, determinava expressamente sobre a não possibilidade de uso das mesmas.
No tocante à Alemanha, Avolio enfatiza que: “em relação à Alemanha, mais ou menos por volta de 1950, adotavam uma posição jusnaturalista, em que se levava em consideração os valores humanos, colocando os interesses dos indivíduos acima da coletividade. Ressalta-se que isto era mais feito no processo penal, onde se garantia a inviolabilidade do indivíduo”.[43]
Já com relação aos Estados Unidos da América, Avolio disciplina que: “embora a jurisprudência já tivesse tido a oportunidade, em diversas ocasiões de repelir as provas obtidas de forma ilegal, foi a partir da sentença proferida pela Suprema Corte Americana no caso “Mapp v. Ohio”,de 1961, que se firmou posição pela inadmissibilidade também nos procedimentos criminais dos Estados-Membros. Tratava-se de uma apreensão, sem mandamento judicial, de material obsceno encontrado na casa da Srta. Mapp, cuja mera posse era proibida pelas leis do Estado de Ohio. A decisão afastou, em caráter geral, tanto nos procedimentos estaduais como federais, a prova ilegalmente obtida, por constituir violação à Constituição Federal.”[44]
Com fulcro neste entendimento, Avolio completa que “de um modo geral, a jurisprudência da Suprema Corte Americana considera ilegalmente obtida a prova quando ocorrer violação às Emendas Constitucionais IV, V, VI e XIV, que tratam, em síntese, respectivamente: do direito do povo à segurança de suas pessoas, casas, papéis e pertences contra registros, arrestos e sequestros “dessarrazoados”; da necessidade de acusação formalizada, das garantias da coisa julgada, do direito a um julgamento rápido e público perante juiz imparcial e natural; e da liberdade dos Estados de reformarem suas leis procedimentais, vinculada ao respeito, no fundo e na forma, à garantia do devido processo legal.”[45]
Já com relação ao sistema Espanhol, sabe-se que grande parte da doutrina opõe-se à possibilidade de utilização das provas ilícitas. “Assim, Manresa & Navarro já defendiam a tese de que o documento em poder do litigante adquirido de forma ilegal é inutilizável no processo, por constituir violação da regra de direito segundo a qual “os fatos ilícitos não devem aproveitar a seu autor.” [46]
No que tange à França, Avolio traz a posição que era adotada: “no sistema francês, encontra-se a possibilidade de aplicação da doutrina da inadmissibilidade das provas ilícitas, através de uma disposição do Estatuto Processual que regula as nulidades. Além das hipóteses de nulidade pela inobservância de determinadas prescrições processuais, o art. 172 do Código de Processo Francês estabelece, com caráter muito amplo, a nulidade nos casos de violação dos direitos de defesa. Deixa, ainda, a critério do Tribunal, decidir sobre abrangência da anulação, que pode estender-se do ato viciado a qualquer fase ulterior do procedimento. E ainda, conforme o art. 173, o ato anulado é excluído dos autos, impossibilitando aos magistrados deles extrair qualquer elemento, sob pena de incidirem em prevaricação, e, quanto aos defensores, em sanções disciplinares.”[47]
Mestrando em Direito Constitucional pela UFF, Pós Graduando em Ciências Criminais pela UERJ, Pós Graduando em Direito Penal pela UGF, Advogado
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