Resumo: O presente estudo tratou da reorganização familiar e sua conseqüente desagregação, ocorridas no Brasil principalmente a partir da década de 1990, em parte produzida pela precarização do trabalho e pelos processos de reestruturação produtiva, explicado como sendo as alterações ocorridas nos sistemas de produção e que acabam por refletir diretamente na composição de poder no conjunto familiar. Foram analisados vários resultados de pesquisas feitas no Brasil, no período de 1992 a 2004 principalmente, aplicadas em diversas áreas geográficas, comprovando o liame existente entre desagregação familiar e ocupação de cargos pelos membros da mesma família na organização do trabalho. Outros fatores como a baixa estima, a mudança de papéis dos atores sociais que compõem o núcleo familiar também acabaram sendo influenciados em parte pelos procedimentos chamados de flexibilização das relações de trabalho, como exemplo valem ser citados o banco de horas e o trabalho aos domingos e feriados, cuja atenção foi redobrada nos estudos produzidos. A conclusão final obtida foi no sentido de reafirmar a necessidade do Estado na proteção do trabalho em todas as suas vertentes, em especial na forma como ele é produzido, resultando em efeitos diretos na melhoria do ambiente familiar, o que contribui com o cumprimento de um outro valor constitucional, que é a proteção da família.
Palavras chaves: reestruturação produtiva; desagregação familiar; globalização.
Abstract: This study dealt with the familiar reorganization and its consequent dissociation, occurred in Brazil mainly during the 1990’s, in part produced by the “precarization” of labor and by the processes of productive restructuring, understood as the alterations occurred in the production systems and that result in a direct reflection in the composition of power within the familiar conjunct. Several results of researches held in Brazil between 1992 and specially 2004, applied in several geographic areas, proving the link between family dissociation and occupation of the positions by the members of the same family in the labor organization were analyzed. Other factors such as low self esteem and the change in the roles of the social parties who form the familiar nucleus are also influenced in part by the proceedings known as the “flexibilization” of the labor relations, as an example the hour banks and the work on Sundays and holidays can be named, in which attention was redoubled in the studies produced. The final conclusion obtained was in the sense of reaffirming the necessity of the State in the protection of the work in all its features, in special in the way it is produced, resulting in direct effects in the improvement of the familiar environment, what contributes to the fulfillment of another constitutional value, the protection of the family.
Key words: Productive restructuring; family dissociation; globalization.
Sumário: 01. Introdução; 02.As alterações na família a partir do trabalho; 03.Da precarização das formas de prestação de trabalho, do desemprego e seus reflexos na estrutura familiar; 04.Da flexibilização das relações de trabalho e a desagregação familiar; 05.Direito do trabalho e unidade familiar; 06.Conclusões; 07. Referências.
01.Introdução
O fenômeno da globalização não se constitui apenas enquanto algo econômico. Diz respeito também ao social, ao político, o que significa que transcende a dimensão de espaço e de tempo. Segundo Diogo de Figueiredo Moreira Neto:
“E’ porque esse fenômeno provoca uma inelutável transformação estrutural qualitativa nas sociedades e em suas expressões políticas contemporâneas, é que sua natureza necessita ser cuidadosamente e competentemente analisada para que possa ser compreendida, como condição de êxito das reformas político-institucionais que estejam ou venham a ser empreendidas em nosso, como em qualquer outro país”.[1]
Esse fenômeno econômico, político e social, que provoca transformações na estrutura da sociedade deve-se a uma enormidade de fatores. Dentre eles ressalta-se a chamada revolução tecnológica, com inovações que foram introduzidas nos sistemas de produção, condenando, por assim dizer, o chamado antigo modelo “fordista” de produção, quando o Estado desempenhava um papel “corretivo de disfunções e falhas do sistema”, ao mesmo tempo que assumia o encargo de ser o principal agente do desenvolvimento.[2]
Segundo Rossi, foi deflagrado um movimento por ele chamado de “estatismo”, com a explosão de demandas cada vez mais por serviços públicos de baixo custo e por infra-estruturas antes não exploradas pela iniciativa privada, em razão do crescimento das “motivações estratégicas e geopolíticas” de cada país, obrigando o Estado a aumentar o seu tamanho para satisfazer essas necessidades.[3]
Retornando às lições de Diogo Neto, a contar da Segunda Guerra Mundial, o modelo fordista foi se deformando, apresentando sinais de incapacidade para absorver as mudanças tecnológicas. Na medida em que foram introduzidas novas tecnologias na produção, foi tornando-se irrelevante o lugar da produção. Conseqüentemente, a importância do Estado, os déficits estruturais acumulados, o desemprego formado pelo desequilíbrio entre a produção e o consumo, enfim uma série de fatores, acabaram por fazer com que o Estado não mais viesse a desempenhar o seu papel de impulsionador da economia.[4]
Desta maneira, vem a primeira comprovação de que a globalização não é apenas econômica. Ou seja, com a alteração das formas de participação do Estado ou alteração da sua importância no sistema de produção ocorre uma transformação no sistema de poder, com conseqüentes movimentos de reforma constitucional em vários países ( exemplo: França, México, Peru, Venezuela, Argentina, Brasil e outros). São mudanças nacionais e internacionais, levando à formação de blocos econômicos, como o da União Européia, por exemplo, trazendo à criação de organizações internacionais como é o caso da Organização Mundial do Comércio.[5]
No campo jurídico tem-se a criação de novas fontes de direito, locais, regionais, autônomas, como é o caso da chamada transconstitucionalização. Mudanças nos conceitos sociais, na cultura local, no comportamento, comprovam as alterações sociais geradas pela globalização. Enfim, a alteração da participação do Estado gera nova estrutura política, social e conseqüentemente do próprio Direito. Quanto a este último principalmente, faz emergir a necessidade de uma nova equação, partindo-se do pressuposto de que o Direito está a serviço dos interesses da sociedade, tendo-se que esta nova sociedade passou por mudanças nos seus interesses, o que também requer readaptação de conceitos, de institutos, sob pena de o Direito não apreender esta nova realidade já existente.
Não se pode cair num discurso sintomático, ao ponto de apontar o Direito como a serviço do capital. E’ evidente que dentro da crítica, o Direito pode ser apresentado como um instrumento do poder, de controle do social. Não se quer desmentir tal entendimento. No entanto, o Direito deve ser trabalhado enquanto a serviço dos valores sociais. Mudanças estruturais ocorreram em face da globalização e com ela institutos, conceitos, situações como a dicotomia entre público e privado não podem mais ser compreendidas como no início do século, sob pena de gerar uma maior ineficiência do que a já existente para o Estado.
“Assim, paradoxalmente, enquanto nos faltam quadros regulatórios modernos para as concessões de serviços públicos, sobejam regulações estatais antiquadas, inúteis e redundantes, quando não nefastas, sobre a produção, os transportes, o comércio exterior e, sobretudo o setor laboral, contribuindo para exacerbar o “custo Brasil” além dos riscos empresariais razoáveis”.[6]
Através desta última colocação, ficam justificados os estudos feitos, sobre o deslocamento do centro das discussões em matéria trabalhista, indo do Estado para a empresa ou para o contrato de trabalho. Melhor explicando, antes dos efeitos da globalização tinha-se o Estado provedor, social, e a relação de emprego era tratada em nível de importância como questão pública. Com a globalização tem-se uma nova dimensão para esta mesma relação, deslocando-se do Estado (que perde sua importância pela não superação da crise social), com o surgimento de novas esferas de competência, que passa a ser a empresa, com o contrato de trabalho tornando-se o centro gravitacional de discussão.
Refletindo um pouco mais sobre o tema globalização, a Organização Internacional do Trabalho publicou dois relatórios nominados de: “O emprego no mundo 1996/97-As políticas nacionais na era da globalização e “A atividade normativa da OIT na era da globalização”. O primeiro relatório revelou a preocupação do referido órgão internacional sobre a precária situação do emprego, a qual deverá agravar-se, justificando que os rápidos progressos técnicos estão trazendo consigo um crescimento que não cria empregos e causando o desaparecimento dos postos de trabalho ou o próprio desaparecimento do trabalho. Conforme a análise feita, os países industrializados não podem atribuir o aumento do desemprego e a redução salarial dos trabalhadores não qualificados ao comércio com os países em desenvolvimento ou à transferência de suas indústrias para o estrangeiro. Outra questão foi que a maioria dos países desenvolvidos encontram-se diante de uma situação de crescimento sem emprego.[7]
O segundo relatório, elaborado em 1997, refere-se ao papel da OIT no contexto da globalização, que se constitui o estudo e a elaboração de propostas, como por exemplo, o projeto desenvolvido no âmbito da Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico, sobre o “ selo social”, o qual permitiria aos consumidores identificar aqueles produtos que respeitaram o cumprimento das normas sociais fundamentais no seu processo de produção, a criação de novos mecanismos que reforcem o controle sobre a aplicação dos princípios sociais básicos.[8]
Para Antônio Lettieri:
“A novidade da globalização não está na abertura progressiva dos mercados, mas na sua extraordinária aceleração. O tempo é um fator determinante. A ampliação dos mercados, as mudanças na divisão internacional do trabalho sempre implicaram reestruturações, crises, desequilíbrios dos velhos aparatos produtivos. Mas os efeitos sociais são mais ou menos traumáticos conforme a duração do ajuste. Hoje, a velocidade imposta particularmente pelos movimentos financeiros restringe o tempo do ajuste até anulá-los. As terapias de choque, aplicadas nos países em transição são o melhor exemplo disso. Na realidade, é negado o tempo de transição. Onde havia uma economia planificada, com todas as suas ineficiências, intervém, como no Leste europeu, e sobretudo na Rússia, uma liberalização repentina e selvagem. As velhas instituições são abatidas antes que se formem as novas”.[9]
Diante de todo esse quadro, como ou o que esperar da estrutura familiar globalizada, vivendo em uma crescente transformação, que segue em parte os efeitos dos modos de produção que se sucedem? A chamada reestruturação produtiva, a busca do lucro sem limites, o não atendimento dos valores constitucionais esculpidos na Constituição Federal em que poderá transformar os laços familiares? A crescente precarização das relações de trabalho, o trabalho informal, a queda dos rendimentos aferidos através da venda da força de trabalho poderá redundar em inversões hierárquicas na estrutura familiar?
Tudo isso deve ser debatido a partir dos novos modos de produção, porque trazem em si a própria produção da vida em sociedade. O homem não é trabalhador somente quando se encontra no ambiente de trabalho. Atualmente, o conceito de ambiente de trabalho se espraiou também para o universo da vida privada, abarcando a vida familiar, trazendo a projeção do universo que dantes era só do trabalho para a forma de manifestação com os outros integrantes da família, os filhos, a esposa e parentes próximos, as formas de convívio, o tempo gasto um com o outro. As novas rotinas de trabalho, como por exemplo, naquelas atividades que se exige o trabalho aos domingos e feriados com vistas a compensar o horário gasto em forma de banco de horas, podem traduzir a própria desagregação familiar ou a transformação dessa estrutura para algo nutrido por outras necessidades que não mais a afetiva e sim a racional, sintonizada de acordo com as necessidades do modo de produção em que a família está envolvida.
São essas questões que merecem ser debatidas a partir de um olhar para a família, tomando-se os modos de produção existentes, com vistas a identificar as transformações ocorridas na sua forma de constituição e desenvolvimento.
02.As alterações na família a partir do trabalho.
Vários autores têm compartilhado do entendimento que a partir da década de 1990, no Brasil, o número de empregos passou a ser visivelmente reduzido, o que também ocorreu em boa parte do mundo desenvolvido.[10] Ocorreram transformações regionais, que estiveram associadas com mudanças setoriais e na forma de gestão empresarial, que fez com que houvesse, ainda diante de um relativo progresso, a redução do emprego industrial, o crescimento das ocupações ligadas ao setor terciário, diminuindo a capacidade ou a condição da inserção dos membros da família no mercado de trabalho.
Para fins de servir de comprovação, vale a pena ser citado o resultado da pesquisa realizada pelo Dieese (Departamento Intersindical de Estudos Socioeconômicos) em algumas das capitais dos Estados. Segundo este órgão:
“O desemprego mostra sua face mais perversa entre os jovens de 16 a 24 anos, cuja taxa de desocupação é quase duas vezes maior do que para a população em geral. Segundo levantamento “juventude: Diversidades e desafios no mercado de trabalho metropolitano”, realizado pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), entre os 3,5 milhões de desempregados existentes no ano de 2004 em Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife, Salvador, São Paulo e Distrito Federal, 1,6 milhão estavam nessa faixa etária. No total, 46,4% dos desempregados nesses centros urbanos é formada por pessoas de 16 a 24 anos. Segundo o Dieese: “O baixo crescimento da atividade econômica brasileira nos últimos anos tem efeito importante ao limitar o ritmo de geração de emprego”, diz a pesquisa. No caso dos jovens há um agravante: a inexperiência e a baixa escolaridade de muitos candidatos ao mercado de trabalho. Segundo a pesquisa, o desemprego entre os jovens entre 16 a 24 anos chega a ser duas vezes superior ao registrado pelos desempregados em geral em praticamente todas as capitais”. [11]
Observa-se a importância existente nos dados sobre relação de emprego e os seus efeitos na interpretação da realidade familiar, que passam a existir no mercado de trabalho e a partir dele reproduz-se na estrutura familiar. Não é possível visualizar o universo familiar e o do trabalho como duas realidades definidas a partir dos seus limites próprios, devendo ser estudados a partir do seu conjunto, não dissociando os filhos, o marido e a mulher da sua situação dentro do modo de produção, no papel que cada um exerce na sua realidade produtiva.
Segundo Bruschini,[12] o crescimento das famílias chefiadas pela mulher demonstram a alteração dos padrões da própria família, a partir de um conjunto complexo de fenômenos, que tem destaque o lugar que passou a se situar a mulher na estrutura produtiva e a sua reprodução na estrutura familiar. Trata-se de uma transformação ocorrida na família, relacionada aos novos papéis que o marido e a mulher passam a exercer, que acabam tendo tudo a ver com o papel que a mulher, principalmente a partir da década de 80 no Brasil, passou a exercer no mercado de trabalho, embora, segundo pesquisa realizada na cidade de São Paulo, um grande número de famílias chefiado por mulheres apresenta um acentuado nível de pobreza. [13]
Portanto, é possível extrair, ainda que de forma peremptória, que a posição dos integrantes da família em sua estrutura é afetada pelas modificações que ocorrem no mercado de trabalho, levando-se em conta o grau de absorção que cada membro possui em dado momento econômico exercido pelo mercado de trabalho. Com isso, tem-se conseqüentemente a redução da importância do “chefe” da família, transportando parte desse poder para a mulher e aos demais membros. Ocorre por assim dizer na estrutura familiar, da mesma forma com que foi explicado no que diz respeito às estâncias de poder, uma pulverização ou descentralização de poder, sem que com isso caia-se em um determinismo econômico. É a geração da estrutura familiar globalizada, partindo-se da reorganização do trabalho.
Não obstante a análise anteriormente feita, alguns autores, dentre os quais Romanelli, leciona que embora o mercado de trabalho influencie a reestruturação familiar, no Brasil, o padrão da família culturalmente aceita corresponde à divisão sexual do trabalho, em que o homem é o responsável pela manutenção da família e a mulher, pelos cuidados com a casa, sendo a relação de poder de autoridade hierarquizada, mesmo que existam tendências para relações mais igualitárias em seguimentos da camada média, não encontrada na mesma proporção nas camadas economicamente mais baixas. [14]
Embora a constatação acima indique a possível manutenção da hierarquização das relações familiares, o resultado da pesquisa pode ser explicado, caso tome-se como parâmetro o fato das famílias com padrão econômico e social mais baixo, peloo fato de possuírem nível de qualificação dos seus integrantes também baixo para o mercado de trabalho, o que acaba dificultando a geração de relações mais igualitárias. Sem querer cair em algo sintomático, novamente vem à tona as possibilidades de empregabilidade que cada membro familiar possui para fins de divisão de poder no âmbito familiar. Na medida em que se aumenta a possibilidade de empregabilidade dos demais membros da família, cresce também as possibilidades de se estabelecer relações igualitárias, podendo alterar as relações de podem entre os membros que compõe a família.
03. Da precarização das formas de prestação de trabalho, do desemprego e seus reflexos na estrutura familiar.
A precarização do trabalho juntamente com o alto índice de desemprego que começou a pairar sobre o Brasil a contar de 1990 principalmente (sem aqui desmerecer a década de 80), pode responder pelo empobrecimento das famílias e pela conjugação da participação da mulher se comparada com os outros integrantes da própria família. Trata-se de uma diferente partilha dos seus membros, explicada pela responsabilidade da manutenção do grupo familiar. Na medida em que existe uma maior dificuldade da inclusão no mercado de trabalho de um membro, como por exemplo os jovens, em face do desemprego ou da própria precarização do trabalho, tem-se um crescimento “natural” daquele outro membro que permanece incluído no mercado de trabalho no conjunto da família e que para ela contribui economicamente, podendo representar ao mesmo tempo a produção de um mercado de mão de obra mais barato.
O trabalho precário acaba eclodindo na redução da jornada com a redução da renda familiar, no desabrigo de proteção previdenciária, produzindo uma desigualdade no que se refere ao tempo de trabalho, proporcionando novos arranjos familiares, acabando por várias vezes por ter-se um crescimento numérico das famílias chefiadas por mulheres, que termina entrando em desacordo com os padrões culturais familiares no Brasil, embora o rendimento médio familiar tem demonstrado que houve uma redução sensível no conjunto da renda familiar, tomando-se em conta como um dos exemplos que pode ser mencionado, a região metropolitana de São Paulo, valendo citar o gráfico que abaixo apresenta-se[15]:
Renda familiar per capita média, segundo tipologia de família na Região Metropolitana de São Paulo 1990-1994
Tipologia de família | 1990 | 1994 |
Casal com filhos | 5,69 | 5,22 |
Casal até 34 anos com filhos e parentes | 3,37 | 2,69 |
Casal de 35-49 anos com filhos e parentes | 4,06 | 3,67 |
Casal de 50 anos e mais com filhos e parentes | 5,63 | 4,68 |
Chefe feminino sem cônjuge | 3,68 | 2,92 |
Total | 4,13 | 3,54 |
Toda essa situação, o trabalho em formas precárias, o desemprego, a redução da renda familiar e outros fatores ligados diretamente ao mercado de trabalho que acabam mudando as relações de poder no âmbito da família contribuem sensivelmente para a produção de efeitos psicológicos dos mais devastadores para o grupo familiar, que podem ser descritos como a baixa auto-estima, ânsia, desespero, vergonha, apatias, desesperanças, sensações de incapacidade, perdas de objetivos, contribuindo assim com a sua desagregação, geração de variadas formas de doenças, como por exemplo, a embriaguez, uso de drogas e a violência dentro e fora do campo familiar.
A conformação pelo emprego precarizado e a falta de emprego leva a uma outra situação que é a própria institucionalização do desemprego, com políticas públicas que não buscam diretamente combater o desemprego e sim tratar do mesmo de forma institucionalizada. O que isso significa? Estatutos sociais, como, por exemplo, a bolsa escola, programas de participação no recebimento gratuito de leite, de vales compra, tratam o desemprego como algo permanente que necessita de formas institucionais que mantenham a sobrevivência do desempregado. Alguns autores tratam essa forma de lidar com o desemprego com a terminologia de “banalização do desemprego”. A melhor proposta seria talvez debater a criação das várias formas de acesso ao emprego ou a criação de uma vida útil, que possa passar não necessariamente por uma forma previamente estabelecida de venda da força de trabalho (relação de emprego, vínculo de trabalho), mas por outras formas que não sejam precarizadas.
Inclusive, tem-se demonstrado que a prestação de trabalho sob o regime de vínculo de emprego está sob tendência de redução, sendo que a própria reorganização do trabalho está levando ao surgimento de outras formas de prestação de serviços, que não através da tradicional relação de emprego, que não conta com a proteção do Estado, ficando à margem de qualquer regulamentação. Isto significa que ao invés de se pensar em grande parte no emprego institucionalizado, deve-se também pensar nas formas não institucionalizadas de prestação de trabalho, que se encontra na marginalidade, como que negadas as suas próprias existências.
Portanto, embora existam pesquisas que apontem para índices de recuperação do emprego formal, sob a égide da relação de emprego, deve-se questionar o grande contingente que se acha sem emprego propriamente, buscando atender as suas necessidades vitais por outras formas de trabalho, na maioria das vezes, banalizados.
A título de exemplo sobre a forma “normal” de se encarar o desemprego no Brasil, pode ser citada a pesquisa anual publicação pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) de dados sobre o desemprego, que foi apresentada ao público em geral com uma certa tranqüilidade mórbida, acompanhada de uma sensação de que “todos sabiam que realmente seria assim mesmo”. Vale citar:
“Pelo terceiro mês consecutivo, a taxa de desocupação, registrada pela Pesquisa Mensal de Emprego do IBGE manteve-se em 9,4%. Em relação à agosto de 2004 (11,4%), a retração foi de 2 pontos percentuais. Apesar de estabilizada, mantém a trajetória de queda iniciada em maio de 2004 (12,2%). O rendimento médio real habitualmente recebido (R$ 973,20) apresentou elevação de 0,7% em relação a julho de 2005 e na comparação com agosto recuperação de 3,7%. Em um ano, o aumento do rendimento foi de 3,7%, a maior variação em toda a série da pesquisa nesta comparação.
“A pesquisa, realizada em Recife, Salvador, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre, registrou, também, estabilidade na taxa de atividade (56,5%) na comparação mensal. No confronto com agosto de 2004, este indicador apresentou queda (-1,1 ponto percentual), em decorrência, principalmente, da redução no contingente de desocupados. O nível da ocupação não se movimentou (51,2%), em ambas as comparações, para o conjunto das seis regiões metropolitanas.”
“O número de empregados com carteira de trabalho assinada permaneceu estável na comparação mensal, mas em relação a agosto de 2004, houve aumento de 6,2% neste contingente, representando 462 mil postos de trabalho nas seis regiões. O único grupo que apresentou redução na taxa de desocupação em agosto de 2005 em relação a julho foi o dos Serviços prestados à empresa, aluguéis, atividades imobiliárias e intermediação financeira (5,7%).”
“Em agosto, na comparação mensal e anual, o rendimento médio real, estimado em R$ 973,20, subiu em todas as categorias, mantendo a trajetória de alta que se iniciou há três meses, e registrando um aumento de 0,7% em relação a julho”.[16]
Essas ferramentas institucionais de banalização do desemprego contribuem sensivelmente na degradação familiar, a partir do momento em que podem criar aquela condição de que o ócio pelo ócio como requisito para o clientelismo de políticas públicas dessa qualidade acaba sendo melhor que o emprego precarizado ou o emprego que resulte em baixos salário. Trata-se de uma postura política que deve ser mudada, uma mudança de foco que requer procedimentos que visem a verdadeira qualificação profissional, de forma a valorizar a unidade familiar.
04.Da flexibilização das relações de trabalho e a desagregação familiar.
Ficou patenteado neste estudo que a criação de novas tecnologias transformou o trabalho humano. Com isso nasceu a necessidade de ações flexibilizadoras, da promoção de adaptações, revisões em várias fórmulas trabalhistas.
Afirmam Arnaldo Sussekind, Maranhão, Vianna e Teixeira:
“(…)o objeto primordial da flexibilização nas relações de trabalho foi o de evitar a extinção de empresas, com evidentes reflexos nas taxas de desemprego e agravamento das condições socioeconômicas. Mas, simultaneamente, a tese se verbalizou para prestigiar os grupos sociais como fontes de direito ( pluralismo jurídico).(…)
“Com a flexibilização, os sistemas legais prevêem fórmulas opcionais ou flexíveis de estipulação de condições de trabalho, seja pelos instrumentos da negociação coletiva, ou pelos contratos individuais de trabalho, seja pelos próprios empresários. Por conseguinte: a) amplia o espaço para a complementação, suplementação do ordenamento legal; b) permite a adaptação de normas cogentes a peculiaridades regionais, empresariais ou profissionais; c) admite derrogações de confissões anteriormente ajustadas, para adaptá-las a situações conjunturais ou a métodos de trabalho decorrentes da implementação de nova tecnologia”.[17]
Entende-se, com base na conceituação e finalidades buscadas pela flexibilização, a adaptação das “velhas normas” à nova situação de fato, no sentido de atender novas necessidades antes inexistentes, como, por exemplo, a alteração ou as mudanças nos próprios instrumentos de trabalho que acabam requerendo mudanças ou um novo disciplinamento, sempre tendo como objetivo principal o melhor atendimento da sociedade como um todo, compreendendo-se com isso o incremento da produção, o barateamento dos produtos com vistas a atender as necessidades sociais, a manutenção dos postos de trabalho com a continuidade do aperfeiçoamento produtivo. Sem os três resultados conjuntos não se justifica a flexibilização.
Conforme ficou frisado por Arnaldo Sussekind, na flexibilização o Estado continua participando em questões básicas, ao contrário da desregulamentação, onde o Estado retira sua proteção do trabalhador.[18]
“Note-se que a flexibilização ocorre dentro de um contexto onde observa-se a participação do empregador, do Estado e do empregado, reforçando-se a necessidade da forte representação dos trabalhadores, entendendo-se por flexibilização não a insistência retaliatória ou de choque ou de simples contradição. Entenda-se por flexibilização a capacitação contributiva para conjuntamente, institucionalmente, integrativamente, trabalhar alternativas na superação dos problemas surgidos em razão, principalmente, das alterações nas condições de trabalho”.
Na Constituição Federal existem dispositivos expressos no tocante à flexibilização, podendo ser citados principalmente: a) art. 7, inciso VI, irredutibilidade salarial, salvo o disposto em convenção ou acordo coletivo; b) art. 7, inciso XIII, duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais, facultada a compensação de horários e a redução da jornada, mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho; c) art., 7, inciso XIV, jornada de seis horas para trabalho realizado em turnos ininterruptos de revezamento, salvo negociação coletiva.
O que interessa diretamente para o estudo aqui proposto diz respeito à flexibilização que se está promovendo principalmente no que tange aos horários de trabalho do empregado, valendo aqui citar decisão recente tomada pelo Tribunal Superior do Trabalho nesse sentido, a qual fez menção direta aos efeitos nefastos das alterações de horário de trabalho, causando prejuízos na integridade familiar, principalmente quando se retira do empregado o direito ao repouso semanal aos domingos:
“O empregado foi demitido por justa causa pela Usina, sob a alegação de indisciplina e insubordinação, por ter se negado a trabalhar no sistema de jornada (cinco dias de trabalho por um de folga), imposto pela empresa para atender necessidades de produção. O contrato, porém, previa o trabalho de segunda a sábado, com folgas aos domingos”.
Na reclamação trabalhista ajuizada pelo trabalhador pleiteando a descaracterização da justa causa e o pagamento das devidas verbas rescisórias, as testemunhas ouvidas levaram o juiz a entender que a mudança havia sido unilateral. O preposto da empresa, em seu depoimento, declarou que houve uma reunião entre a gerência e os trabalhadores para avaliar a reação destes, mas não houve votação. Na ocasião, os cerca de 25 trabalhadores que não aceitaram trabalhar pelo novo sistema foram demitidos.”
A segunda testemunha indicada pela Usina afirmou que “no dia da reunião o gerente deixou claro que aqueles que não estivessem de acordo poderiam descer para o escritório para ser feito o acerto de contas.” A versão foi confirmada pela testemunha do trabalhador, segundo a qual os empregados “não foram consultados se estavam de acordo com a mudança, e o gerente afirmou que quem não concordasse, teria que sair pois havia pessoas que ocupariam o cargo”.”
Diante da condenação ao pagamento da rescisão contratual por dispensa imotivada, a Usina recorreu ao Tribunal Regional do Paraná e ao TST, mas a decisão foi mantida. No julgamento do recurso de revista, a Quarta Turma considerou que os fatos e provas relatados pelo TRT indicaram que a alteração foi informada aos empregados mediante ameaça de que aqueles que não aceitassem seriam demitidos por justa causa.”
“A Usina recorreu então à SDI-1, insistindo na defesa de que “o ato de indisciplina e subordinação restou claro”. Em suas alegações, disse que o empregado, trabalhador rural, “não aceitou a alteração do seu horário, que não lhe traria qualquer prejuízo, por não implicar mudança de turno diurno para noturno, mas apenas remanejamento de horário dentro do mesmo turno”. No entendimento da empresa, seria “direito do empregador proceder às modificações necessárias ao desenvolvimento regular dos trabalhos, o que prescinde de qualquer autorização ou ajuste expresso.”
“Para o relator dos embargos em recurso de revista, ministro Luciano de Castilho, porém, o empregado “exerceu legalmente seu direito de resistência”. A indisciplina e a insubordinação não ficaram caracterizadas “pois a empresa praticou remanejamento de forma unilateral e, ao contrário do alegado, com prejuízos ao empregado”. Os prejuízos haviam sido descritos na decisão do Regional: “É evidente que o empregado que foi contratado para trabalhar de segunda a sábado pode não se interessar pelo labor aos domingos, pois é no descanso dominical que a pessoa pode se dedicar aos outros membros de sua família e da sociedade.”(grifo nosso)
“Concluindo seu voto, o ministro Luciano de Castilho afirma que “em nenhum momento ficou demonstrada a necessidade da alteração qualitativa referente à jornada de trabalho”, afastando as alegações da Usina.” (E-RR-664380/2000.7)[19]
No Brasil, a jornada normal de trabalho é de 44 horas semanais, na forma preconizada pelo artigo 7, inciso XIII da Constituição Federal, podendo ser flexibilizada através de acordos ou convenções coletivas. O que significa, que dentro de uma análise mais simplista, pode o empregado brasileiro vir a trabalhar em jornadas que podem alcançar até 10 horas diárias, no sistema de prorrogação de jornada, desde que com a sua anuência. O que importa para esse estudo é que essa mesma jornada está sendo flexibilizada, instituindo-se através de acordos ou convenções coletivas, uma rotina de trabalho que leve em consideração compensações de jornadas. Quer dizer, o empregado trabalharia mais em um determinado dia, compensando em outros, sem receber o seu percentual de horas extras (50%) pelas jornadas prorrogadas, conforme estabelece o artigo 59, parágrafo 2, da Consolidação das Leis do Trabalho.
A prorrogação ou não das jornadas de trabalho tem sido tema de debates no Brasil e também nos países desenvolvidos. Busca-se através dessa discussão estabelecer uma equação em que possa vir a reduzir o número de desempregados, aproveitando-se de dois fatores. O primeiro, com base na redução brusca da jornada de trabalho, com a proibição da realização de horas extras pelos empregados, com o fito de gerar mais postos de trabalho. Trabalhando menos quem está empregado poderá gerar uma necessidade de contratar mais trabalhadores que se encontram desempregados. O segundo, com os sistemas de compensação de jornada, onde a empresa teria a possibilidade de adaptar a quantidade de mão de obra necessária à sua produção, de acordo com a variação dessa produção, sem dispor de um gasto maior (pagamento de horas extras) , na medida que precisasse de um maior número de horas de trabalho em determinado período, e, também reduziria o número de demissões, na medida em que em outros períodos não precisasse daquele mesmo volume ou número de horas de trabalho. De forma mais simples, por esse modo (compensação de horas), pode ser exigido mais horas de trabalho em um determinado período sem dispor do pagamento de horas extras por essas horas excedentes às normais, compensando-as nos períodos em que a empresa não necessita nem mesmo do número de horas normais colocadas à sua disposição pelos trabalhadores regularmente contratados.
Tudo está muito bem teoricamente, inclusive é um dos grandes exemplos de flexibilização, adaptação aos novos tempos, se não fosse pensar nos desdobramentos que esses sistemas de compensação trariam, em termos de descansos semanais, dos próprios intervalos intrajornadas (intervalos dentro da jornada), nos desgastes acentuados causados aos trabalhadores empregados, nas mudanças quanto ao ambiente familiar e demais conseqüências. Em outras palavras, quais seriam os efeitos negativos que podem ser gerados, na hipótese de não se estabelecer limites a essas alterações que estão ocorrendo na vida do trabalhador, a partir das mudanças que estão sendo produzidas em termos de jornada de trabalho?
Para o estudo aqui proposto, necessita-se interpretar primeiramente alguns dados empíricos encontrados em pesquisas divulgadas pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), conforme tabela abaixo[20]:
Tabela – jornada de trabalho média semanal nos anos de 1992 e 1999- Brasil
membros 1992 1999 variação
Posição na família
| chefe | 17, 911,356, que corresponde a uma média de 45,36 horas semanais | 20,147,621, que corresponde a uma média de 44,97 horas semanais | -0,86%
|
Cônjuge | 6,424,911, que corresponde a uma média de 38,30 horas semanais | 8,172,684, que corresponde a uma média de 39,06 horas semanais | 1,97%
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Filho | 5,469,507,que corresponde a uma média de 43,55 semanais | 6,088,041, que corresponde a uma média de 42,72 horas semanais | -1,92% | |
Outros | 1,580,921, que corresponde a uma média de 44,95 horas semanais | 1,593,938, que corresponde a uma média de 44,28 horas semanais | -1,48% |
O quadro citado leva a uma série de conclusões. As que importam para esse estudo é quanto ao aumento do número de horas de trabalho semanal, que no caso da mulher (cônjuge) aumentou entre os anos de 1992 a 1999, tornando-se jornadas mais longas, se comparadas a períodos anteriores. Também se visualiza a redução do número de horas de trabalho dos homens (chefes)[21]. Considerando verdadeira a alta probabilidade da mulher desempenhar a chamada “dupla jornada”, por ter mais tarefas domésticas se comparada aos demais membros da família, percebe-se que em virtude do aumento da sua inserção no mercado de trabalho a estrutura familiar também foi sendo modificada, com um acúmulo de tarefas sobre ela ou a divisão dessas tarefas em relação aos outros membros da família.
Somando-se a tudo isso as jornadas flexíveis, regimes de compensação, trabalhos aos sábados, domingos ou feriados, que também acabam fazendo parte da política de flexibilização, validados por normas estabelecidas em acordos ou convenções coletivas de trabalho, que de certa forma, coloca mais lenha na fogueira em se tratando de modificação na estrutura familiar, comprova-se que caso não sejam estabelecidos limites ao ritmo, forma de prestação de trabalho, o núcleo familiar poderá ser duramente modificado, mudando-se os papéis desempenhados pelos membros da família. E esses limites aqui referidos estão contidos na própria Constituição Federal.
O artigo 7º, inciso XV da Constituição Federal estabelece o repouso semanal remunerado preferencialmente aos domingos. O que quer dizer que somente em casos excepcionais é que o descanso semanal remunerado poderá recair em outro dia que não o dia de domingo. Este entendimento deita raízes profundas na religião, especialmente em escrituras bíblicas, como acontece, por exemplo, no livro de êxodo, no seu capítulo 20, que tratou do descanso de Deus na construção do mundo no sétimo dia. Vale também citar o imperador Constantino que proibiu no século IV qualquer trabalho no domingo, salvo nas atividades agrícolas. A igreja católica influenciou em demasia que o descanso semanal coincidisse com o domingo. Portanto, essa é historicamente e constitucionalmente a regra posta. Que o descanso semanal deve coincidir com o dia de domingo.
Como não poderia deixar de ser diferente, para toda regra existem as suas exceções. E onde elas acontecerão no caso? Onde elas estão reguladas? Primeiramente cabe citar o artigo 67 e 68 “caput” e seu parágrafo único, todos da Consolidação das Leis do Trabalho. Primeira exceção, a contida no artigo 67 do texto consolidado, onde o descanso semanal remunerado poderá não recair aos domingos, que é o caso de necessidade imperiosa ou motivo de conveniência pública. Levando-se em conta esses dois motivos justificadores e complementando o contido no artigo 67, o artigo 68, também da Consolidação das Leis do Trabalho, atribui ao Ministério do Trabalho a competência para autorizar, em caráter permanente ou provisório o trabalho aos domingos, sendo este último por um período, mediante a troca do dia de repouso para outro dia da semana. Não se trata de compensação pura e simplesmente e sim de alteração da rotina de prestação de trabalho, que pode ser definitiva ou provisória, sem nenhuma repercussão financeira para o trabalhador. Em outras palavras, o empregado terá o seu dia de repouso trocado sem nenhuma vantagem financeira para si.
Continuando, na forma do artigo 68 da Consolidação das Leis do Trabalho, tem-se a necessidade da permissão por parte do Ministério do Trabalho, para que aconteça trabalho aos domingos, o que significa que o trabalho aos domingos é proibido, salvo quando houver permissão expressa. Por sua vez, de forma complementar, sem qualquer conflito com o artigo aqui citado da CLT, a Lei nº 605, de 5 de janeiro de 1949 também regulou o trabalho aos domingos, sendo que no seu decreto regulamentador (Decreto nº 27.048/49) ficou patenteado que, excetuados os casos em que a execução dos serviços for imposta pelas exigências técnicas das empresas, é proibido o trabalho aos domingos e feriados. Novamente, com exceção das atividades que possuem autorização expressa para funcionarem, o trabalho aos domingos não poderá acontecer.
No entanto, vale dizer que esta regra não está sendo seguida. Atividades que não são autorizadas para funcionarem aos domingos, como boa parte do comércio varejista, está funcionando em várias cidades brasileiras, com base em acordos e convenções coletivas de trabalho, validados por decisões judiciais do próprio Tribunal Superior do Trabalho, que ficam à margem da própria Constituição Federal. Primeiro, porque o artigo 7º, inciso XV da Constituição Federal não excepciona a possibilidade de acordo ou convenção coletiva de trabalho autorizadoras do trabalho aos domingos. Em segundo, por se tratar de norma de ordem pública de caráter absoluto aquela que estabelece o repouso semanal obrigatório aos domingos, não podendo as partes convencionarem sobre elas, razão pela qual o trabalho executado nesse dia necessita de autorização expressa do Ministério do Trabalho, levando em consideração os requisitos “motivo de conveniência pública ou necessidade imperiosa”.
Da mesma forma, Lei Municipal também não detém competência para autorizar o funcionamento do comércio aos domingos com empregados, quando não expressamente autorizados pelo Ministério do Trabalho, por fugir da competência do Município legislar sobre matéria trabalhista, que é privativa da União Federal (artigo 22, I, da C.F.). No caso, de forma absurda, poderia o Município autorizar a abertura do comércio, só que sem trabalhadores dentro das lojas, o que inviabilizaria qualquer atividade comercial.
Várias campanhas já foram feitas no Brasil contra o trabalho aos domingos, em especial com apelo para a família. Vale citar a campanha feita pela Confederação dos Trabalhadores no Comércio:
“Violência contra a família. É assim que os comerciários consideram a Medida Provisória do Governo que os obriga a trabalhar aos domingos. Todos os domingos, pais e mães são arrancados de seus lares, privados do precioso tempo ao lado de seus filhos, no único dia em que poderiam ter momentos especiais com a família”.[22]
Concluindo, com os dados colhidos a partir de pesquisas feitas pelo IBGE, que apontam para um crescimento da informalidade do trabalho no Brasil, aliado ao aumento do número de horas de participação da mulher no mercado de trabalho, e, com a prestação de trabalho sendo feita aos domingos, feriados, em desacordo com a própria Constituição Federal, em especial do comércio varejista, shopping, setores industriais, a interpretação dada pelos tribunais pátrios em desacordo com os valores constitucionais plasmados em vários dispositivos, está pendendo para o atendimento de interesses consumistas, para não dizer mercantilistas, não concretizando na prática o próprio respeito à unidade e desenvolvimento afetivo familiar.
Note-se a profundidade das mudanças que estão sendo impostas por um mercado, face ao não controle estatal, que no caso, transpõe as fronteiras da seara trabalhista, repercutindo diretamente no mundo externo à empresa, gerando a partir do trabalho mudanças nos laços afetivos familiares, como que reproduzindo na família a nova estrutura de prestação de trabalho. Seria possível assim afirmar que a nova organização familiar surgida dessas mudanças das relações de trabalho é uma família sem núcleo organizacional, precária, com seus laços afetivos desconstituídos, com a possibilidade dos filhos estarem desagregados, e o casal a cada dia perdendo a sintonia, por conta que o ambiente familiar está em processo de desconstituição? Ou, de uma reorganização a partir de um modelo liberal de prestação de trabalho?
Tem-se como resultado um conjunto de elementos que contribuem decisivamente com a mudança dos papéis dos membros da família, alterando sensivelmente sua estrutura, com conseqüências negativas para constituição do núcleo familiar, razão pela qual se torna importante e urgente voltar aos trilhos dos fundamentos básicos do próprio Direito do Trabalho.
05.Direito do Trabalho e unidade familiar.
Atualmente, o Estado brasileiro, não se diferenciando do movimento que ocorre no plano internacional, impõe uma ordem de valores realizáveis que desponta em primeiro lugar a liberdade individual, apesar dos aparentes programas sociais que querem resgatar, com pouca eficiência, o Estado social ou do bem estar.
O complexo aparelho financeiro é o que determina a localidade em que ocorrerão os investimentos, a produção, a situação política do mundo e conseqüentemente o local geográfico em que haverá a produção e que deverá trabalhar.[23] Não há dúvida que o trabalho e com ele os trabalhadores se internacionalizaram, com movimentos migratórios em todo o mundo, transformando-se principalmente o meio ambiente rural, através do seu esvaziamento, e, engordando os centros urbanos, com um crescente processo de afavelamento. Vale ser citado que a Europa Central e os Estados Unidos possuem um grande exército de reserva que no primeiro caso estende-se pelo norte da África, Paquistão e extremo sul da Europa e no caso dos EUA, por todo o Caribe e outras partes da América Latina. Na Europa, hindus, paquistaneses, turcos, gregos, italianos, africanos e indianos principalmente, cumprem com a suplementação da força de trabalho, oferecendo uma mão de obra barata.[24]
O Estado de onde parte estes trabalhadores entrega à boa sorte os seus nacionais, sendo que em parte a razão desse deslocamento humano é o fato de no local de origem não existir as condições necessárias de subsistência para essas pessoas. Está se referindo aqui a questões que envolvem oferta de trabalho e a busca em regiões longínquas de novas propostas de trabalho, que na maioria das vezes impõe que somente parte dos membros de uma família, aqueles que detém condições de produção, migrem, fazendo com que se tenha uma mudança de poder entre aqueles membros que permanecem na unidade familiar.
No Brasil, internamente, esses movimentos migratórios de trabalhadores deslocam-se de uma para outra região também.
“Os efeitos desta conjuntura se reflete no recrudescimento do êxodo rural intra-regional e na manutenção de um mercado de trabalho ao migrante temporário, infinitamente lucrativo, pois que apoiado na “clandestinização” das relações de trabalho, na falta de contrato de trabalho, na burla de direitos e no barateamento da mão de obra. Evidencia-se a articulação espacial entre o setor moderno e o setor tradicional da agricultura brasileira, ou melhor, no que torna-se lucrativo ser modernizado ou não. … ao avançar pelo campo, através do complexo agro-industrial, o capitalismo não só não urbaniza o campo como desurbaniza as pequenas cidades da região, que se transformam em cidades-dormitórios de trabalhadores volantes. É um processo de desruralização e de desurbanização (Whitaker; 1992: 31).”
“No contexto de territórios rurais com utilização de tecnologia pode-se referenciar às modalidades geográficas de expansão deste setor. Um exemplo que necessariamente envolve migração encontra-se nos projetos de colonização privada. São projetos que, em geral se localizam em áreas de incorporação recente da agricultura modernizada como: os cerrados do Nordeste, o norte e noroeste de Mato Grosso, o sul do Pará e sudeste do Amazonas. Tais projetos oriundos da geopolítica estatal do regime militar (1964-85) ficaram conhecidos como projetos de colonização dirigida (Cf. Miranda; 1990) que tanto poderiam ser empreendimentos estatais como o caso de Altamira (Pará) como de iniciativa privada, por exemplo: SINOP e Alta Floresta (Mato Grosso)”. [25]
É bom destacar, em que pese não se tratar de um trabalho específico sobre o processo de desterritorialização do trabalhador, que as migrações, que significa o deslocamento da mão de obra de uma região para outra, também contribui com a ruptura da vida cotidiana, da vida em família, transformando-se o grupo social, seja por conta da mudança de território com vistas à busca de melhores condições de trabalho, seja na ida e vinda da zona urbana para a rural. Em regra, principalmente no caso da mudança repentina de território em busca do trabalho, para aqueles trabalhadores que se apresentam menos qualificados, conforme afirmado, na grande maioria das vezes somente os que venderam sua mão de obra é que se deslocam, deixando para trás os demais membros da família, o que significa uma acentuada ruptura da corrente familiar.
Diante dessa situação, ficam explicados os efeitos dessa movimentação de trabalhadores e seus produtos no contexto familiar, que também se observa com a utilização dos demais membros da família que permanecem enquanto vendendo sua força de trabalho de forma precária, dando assim origem à um verdadeiro exército de reserva.
O aproveitamento mercadológico da força de trabalho dos demais membros da família, como a mulher, os filhos, enquanto fatores necessários para a manutenção da própria família, por carecer de outras fontes de renda para a própria sobrevivência, têm-se formado naquele grupo, em potencial, os trabalhadores necessários para sustentação do valor da mão de obra em níveis baixos. Quase todos os membros que compõem a entidade familiar são potencialmente utilizáveis no mercado de trabalho, de acordo com as necessidades do mercado, o que faz despencar o valor da mão de obra.
Voltando aos movimentos migratórios, percebe-se que a mudança de localidade na prestação de serviços leva o trabalhador necessitado a ter que se deslocar, podendo fazer-se ou não acompanhar por sua família. E, a colocação dos demais membros da família enquanto vendedores de sua força de trabalho, principalmente no caso de longas jornadas de trabalho, que conforme demonstrado neste estudo no exemplo do trabalho da mulher, o número de horas trabalhadas tende a aumentar duplamente, podendo também contribuir com a desagregação familiar.
Outros fatores de desagregação familiar, que em querendo podem ser mencionados, cita-se as péssimas condições de vida que são produzidas a partir dos baixos salários que hoje são pagos à maioria dos trabalhadores, que não deixa de ser conseqüência da integração dos demais membros do grupo familiar no mercado de trabalho. A título de exemplo, vale citar o relatório da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre o processo de afavelamento do mundo. No documento intitulado – “O desafio das favelas” – por volta de um bilhão de pessoas vivem no mundo das favelas. Trata-se de 1/6 da população mundial, que está crescendo com grande rapidez. Segundo a própria ONU, define-se favela como aglomerados urbanos que combinam habitações precárias, com acesso impróprio a água potável e a redes de saneamento, espaço “per capita” inadequado e ausência ou precariedade de títulos de propriedade. Na América Latina e no Caribe a proporção de pessoas morando em favelas nas cidades é de 31,9%.[26]
Como fazer um estudo paralelo dos valores contidos na Constituição Federal, que despontam para a importância da família, em comparação com o atual quadro de prestação de serviços e suas conseqüências devastadoras da unidade familiar?
Segundo Arx Tourino:
“O conceito de família pode ser analisado sob duas acepções: ampla e restrita. No primeiro sentido a família é o conjunto de todas as pessoas, ligadas pelos laços do parentesco, com descendência comum, englobando também, os afins – tios, primos, sobrinhos e outros E’ a família distinguida pelo sobrenome: família Santos, Silva, Costa, Guimarães e por aí afora, neste grande país. Esse é o mais amplo sentido da palavra. Na acepção restrita, família abrange os pais e os filhos, um dos pais e os filhos, o homem e a mulher em união estável, ou apenas irmãos… E’ na acepção “strictu sensu”que mais se utiliza o termo família, principalmente do ângulo do “jus positium…”.[27]
O princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, inciso III da C.F.), que se constitui em um dos principais fundamentos da República Federativa do Brasil, está ligado diretamente à família, sua tutela, com alcance para as relações familiares, assim como, mesmo diante do seu rompimento. Por corolário, a mesma Constituição acaba apresentando outros princípios de grande importância para a preservação da família, que no caso desse trabalho não serão aprofundados.
No seu artigo 226, a Constituição Federal determina que a família se constitui na base da sociedade, tendo proteção especial do Estado. Ao mesmo tempo, observa-se no artigo 227 que é dever da família, da sociedade e do Estado, assegurar à criança e ao adolescente, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo da toda a forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Pergunta-se: como promover os demais valores que são deveres da família diante da situação e dos efeitos sentidos pela família diante dos variados fatores relacionados ao trabalho e à sua subsistência, ditados pelo atual modo de produção? Em linhas gerais, como uma mãe trabalhando em dupla jornada, com crescente aumento de sua carga horária, poderá se dedicar aos filhos? Como o pai, com baixos salários, trabalhando em regime de compensação de horários, que implicam em grande maioria no trabalho aos domingos e feriados, tendo muitas vezes que migrar da sua região para outra em busca de trabalho, poderá estar integrado definitivamente na realidade familiar? Como os filhos, que são obrigados a ingressarem no mercado de trabalho ainda jovem, furtando deles próprios o direito à educação, com vistas à prover a família, submetendo-se na maioria das vezes a empregos precários, poderão formar-se culturalmente?
É possível, sem radicalizações, afirmar que a família, na forma como está se comportando diante do modo de produção atual (capitalismo globalizado), com as alterações a ela impostas, não possui condições de cumprir com seus deveres, constitucionalmente consagrados. Diante disso, tem-se como desaguadouro o não cumprimento do princípio da dignidade da pessoa humana.
Uma outra questão bastante importante é a proteção que o Estado deve conceder à família, justamente para que através dela sejam realizados os seus deveres, razão pela qual a família deve ter “especial proteção do Estado”(artigo 226), na medida que se constitui em um desdobramento para a realização do próprio fundamento republicano. E de que forma a família deve ser protegida pelo Estado?
No caso do enfoque dado neste trabalho, podem ser destacados: a) da geração de condições para a melhoria salarial, proporcionando uma redução da carga horária de trabalho destruidora dos laços afetivos familiares, de tal sorte que não necessite que todos os membros que compõe a família, em especial os jovens em idade escolar, tenham que ingressar prematuramente no mercado de trabalho; b) da efetiva proteção dos trabalhadores que estão integrados a uma família, sendo respeitados os direitos ao repouso semanal preferencialmente aos domingos, a um bom ambiente de trabalho; c) a projetos de iniciação ao trabalho, com programas públicos de qualificação, de tal forma a não fazer do jovem membro da família uma mão de obra barata em trabalhos precários; d) a integração da empresa com a família, com o fito de cumprir a sua real finalidade social; e) incentivos fiscais para a iniciativa privada, a empresa, de tal forma que crie programas de qualificação profissional para os filhos dos seus trabalhadores; f) da regulamentação pelo Estado e proteção das outras formas de prestação de trabalho que se encontram na marginalidade.
Sem essas bases fundamentais e tantas outras aqui não referidas expressamente, que possuem como objetivo a fortificação da unidade familiar através da melhoria das formas de prestação de trabalho dos seus membros, não será possível que ela cumpra o seu dever e conseqüentemente seja atingida a realização do princípio da dignidade da pessoa humana. Deve-se ressaltar que para que isso aconteça, o Estado deverá cumprir com um dos seus objetivos, que é dar a devida proteção à família, o que significa ser um Estado neste aspecto interventor, que em nada se aproxima ao modelo de Estado construído principalmente sob a ideologia do Estado neoliberal, que sob o manto da crença da proteção à liberdade individual, deixa de promover os seus deveres sociais.
Comprova-se portanto que o Direito do Trabalho está diretamente relacionado com a proteção da família, de tal forma que a construção de um ambiente de trabalho divorciado das condições mínimas de construção da unidade familiar poderá promover não somente uma desagregação do núcleo familiar, como também a construção, e em efeito contrário, um processo de desestruturação social.
06.Conclusões.
01.A globalização produz uma transformação no sistema de poder, alterações na forma de participação do Estado, principalmente no que se refere ao cumprimento de suas finalidades sociais;
02.As relações de trabalho sofrem em demasia os efeitos dessas mudanças, dando ensejo ao chamado processo de reestruturação produtiva, que pode ser explicado como sendo as alterações ocorridas no sistema de produção e prestação de bens, onde a empresa principalmente acaba adotando novos princípios de organização do seu trabalho, descentralizando atividades, realizando sub-contratações, criando novas rotinas que irão afetar diretamente o cotidiano do trabalhador, especialmente a sua relação familiar;
03. As alterações ocorridas na família a partir do trabalho são manifestas. Comprovou-se através de pesquisas feitas principalmente pelo IBGE, o novo papel da mulher na relação familiar, na medida em que para ela se torna cada vez mais necessário sua inclusão no mercado de trabalho. A sua nova forma de participação na relação familiar se define em parte a partir da sua inclusão nesse novo meio empresarial reestruturado.
04. Outra questão destacada foi o desemprego e o processo de precarização do trabalho que refletiu na mudança das relações familiares, valendo citar as dificuldades encontradas dentre os membros da família para suas inclusões no mercado de trabalho, gerando consequentemente a baixa estima, a desagregação familiar, dentre outras conseqüências. A precarização das relações de trabalho produz, dentre outros resultados, o desestímulo, a perda de identidade de classe e a alternância da própria localidade geográfica no tocante à prestação de serviços.
05. O processo de flexibilização da legislação trabalhista, que aliado aos demais fatores aqui estudados, contribuiu para o não atendimento de questões importantíssimas, que são objetivos determinados constitucionalmente, como por exemplo, a existência de um trabalho digno, pautado em regras de segurança, de atendimento à necessidade de convívio familiar e social, de forma a fazer do trabalho algo prazeroso. Situações como o trabalho aos domingos, estabelecimento de metas de difícil alcance, dentre outras, podem contribuir com o processo de desagregação familiar;
06. Desponta-se por fim a necessidade do Estado em proteger a família e através desta proteção, também a proteção das relações de trabalho ou vice-versa. Compreender que o homem produz sua vida a partir da produção do trabalho, cuja forma de realização expande-se alcançando o meio ambiente familiar, contribuindo assim com a sua unidade ou com a sua desagregação.
Doutor em Direito do Trabalho pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; Professor adjunto da Universidade Estadual de Londrina; Professor titular da Universidade de Marília; Professor titular da Unopar; professor da FACCAR.
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