1 Introdução
Utilizando-se de opção aberta pela Constituição, o Estado brasileiro, através de diversos Governos, optou pela prestação de serviço público na forma indireta, ou seja, delegada. Dessarte, as chamadas “privatizações” consubstanciam tão-somente a transferência da execução do serviço público à iniciativa privada, deixando o Estado – por meio da Administração Pública direta ou indireta – de prestá-los, diretamente. Daí que, especificamente no que toca aos serviços públicos de telefonia, com a transferência da execução do serviço público específico, as empresas privadas iniciaram suas ações, através de delegações, concedidas ou permitidas, em outras palavras, restou configurada verdadeira intervenção privada no domínio público, caracterizando a volta ao Estado absenteísta do liberalismo clássico.
Não obstante, até mesmo porque a titularidade do serviço público continua pertencendo ao Estado, tais empresas deverão obedecer aos princípios que informam a Ordem Econômica e Financeira insculpida na Constituição de 1988.
Com efeito, tem o presente estudo por escopo demonstrar em duas vertentes a violação operada a princípio da Ordem Econômica e Financeira pelas empresas delegatárias do serviço público de telefonia, particularmente no que concerne à cobrança, por ditas delegatárias, da chamada assinatura, que se constitui, seja sob o aspecto do Direito Público, seja sob o do Direito Privado, anomalia jurídica a malferir o princípio da defesa do consumidor, como se demonstrará na seqüência.
2 Natureza Jurídica de Taxa
É corrente o entendimento doutrinário – entre os publicistas – segundo o qual os tributos em geral possuem características que os diferem de meras obrigações civis. Dentre estas podemos arrolar a compulsoriedade no seu pagamento.
Do alto de sua sabedoria, Aliomar Baleeiro, na sua clássica obra Direito Tributário Brasileiro, assevera que:
“O CTN adotou a teoria segundo a qual os tributos se caracterizam pelo caráter compulsório, e, para distingui-los das multas e penalidades, inseriu a cláusula ‘que não constitua sanção de ato ilícito’.
Não são tributos, quer do ponto de vista teórico, quer do jurídico, no Brasil, as prestações de caráter contratual, como os ‘preços’ (quase privados, públicos e políticos).” (1990: 62)
Percebe-se, assim, que a distinção primeira existente entre os tributos e a obrigações civis reside exatamente no seu caráter compulsório. Insta frisar, ainda, que tal característica é inerente somente aos tributos, como gênero. Dessarte, no que se refere aos pactos (contratos), o princípio da liberdade contratual, mesmo que hodiernamente mitigado sobremaneira, avulta de importância como tradutor do voluntarismo jurídico kantiano.
Sem embargo, faz-se mister trazer à colação o conceito – mesmo que legal – de uma especial espécie de tributo, qual seja, a taxa. Isto porque, como se demonstrará, o cotejo desta espécie de tributo com a famigerada assinatura revelará sua coincidência conceitual e de características, não obstante a ausência de lei formal que a preveja e a falta de qualidade específica do cobrador.
De efeito, Baleeiro (1990: 324) conceitua a espécie tributária:
“Taxa é o tributo cobrado de alguém que se utiliza de serviço público especial e divisível, de caráter administrativo ou jurisdicional, ou o tem à sua disposição, e ainda quando provoca em seu benefício, ou por ato seu, despesa especial dos cofres públicos.”
De seu turno, ao comentar o tormento existente sobre a remuneração dos serviços públicos, seja através de taxa, seja de preço público, Coêlho (1999: 415) afirma que:
“A realidade está em que os serviços públicos de utilidade, específicos e divisíveis, podem ser remunerados por preços (regime contratual) ou por taxas (regime de Direito Público). O dilema resolve-se pela opção do legislador. Se escolher o regime tributário das taxas, ganha a compulsoriedade do tributo, inclusive pela mera disponibilidade do serviço, se prevista a sua utilização compulsória (CTN, art. 79, I, ‘b’), mas fica manietado pelas regras de contenção do poder de tributar… Se escolher o regime contratual, perde a compulsoriedade da paga pela mera disponibilidade do serviço, mas ganha elasticidade e imediatez na fixação das tarifas, sistema aceito previamente pelo usuário ao subscrever o contrato de adesão, liberando, assim, o controle congressual e a incidência das regras constitucionais de contenção ao poder de tributar. Ao jurista, cujo objeto primordial é o Direito posto, cabe distinguir a taxa do preço exatamente pelo regime jurídico de cada qual. O preço é contratualmente acordado. A taxa é unilateralmente imposta pela lei. O primeiro parte da autonomia da vontade. A segunda é heterônoma.”
A despeito de particularmente não concordarmos em deixar ao puro alvedrio do legislador a opção sobre a espécie de remuneração que a prestação do serviço público ensejará, certo é que, optando por uma ou por outra, deverá arcar com as conseqüências de sua escolha, visto possuírem características próprias.
De tais características podemos extrair a clara ilegalidade da cobrança de valores a título de assinatura.
Com efeito, a taxa, como espécie de tributo, será cobrada de forma obrigatória (compulsoriedade), independentemente da utilização do serviço pelo contribuinte, isto é, pela mera disponibilidade do serviço pelo Poder Público – não obstante a não utilização efetiva pelo contribuinte – este terá o direito de receber, a tempo e modo, o respectivo valor previsto em lei (poder de cobrança pela disponibilidade).
Importa frisar, entretanto, que tais características – compulsoriedade e cobrança pela mera disposição – como ocorre com todas as espécies de tributos, deverão vir expressas em lei em sentido estrito, em obediência ao princípio da legalidade tributária que, sob determinado aspecto, resulta em garantia fundamental do contribuinte.
Ao revés, no tocante aos preços ou tarifas públicos, porque regidos pelas normas e princípios do Direito Privado, concretizado mediante contrato, somente poderão ser cobrados se e quando ocorrer a efetiva utilização do serviço pelo consumidor (tratando-se de relação contratual, não é lícita a denominação de contribuinte, e, sim, de consumidor), não cabendo, como ocorre nas hipóteses de remuneração por meio de taxa, a cobrança pela sua simples disponibilidade. De outra banda, inexistirá nesta seara a compulsoriedade, como já mencionamos, visto tratar-se de acordo de vontades entre as partes, o que por si só tornaria, no mínimo, contraditória a aceitação de tal característica tributária.
Dessume-se, portanto, que, em se tratando de preços ou tarifas públicos, ao contrário do que ocorre com a taxa, a relação jurídica estabelecida será de consumo, havendo um fornecedor e um consumidor em cada pólo da referida relação. Via de conseqüência, impossível se mostra a compulsoriedade na cobrança, bem como haver pagamento pelo consumidor de mera disponibilidade do serviço. Isto porque, é cediço que a liberdade contratual se traduz em um dos pilares do sistema capitalista de acumulação de riquezas. De efeito, malfere o próprio cerne do referido sistema econômico – malgradas as hipóteses previstas em lei em virtude do chamado dirigismo contratual a que as sociedades de massa estão submetidas – a obrigatoriedade no fato de ficar contratado ou não. Exporemos mais detalhadamente no próximo tópico sobre a questão.
Pois bem.
Feitas as necessárias distinções, pode-se facilmente concluir que a cobrança de valores a título de assinatura pelas operadoras do serviço de telefonia se constitui em verdadeira taxa, uma vez que, independentemente do uso do serviço pelo consumidor-usuário, este deverá pagar compulsoriamente referido valor. Ou seja, pela mera disponibilidade do serviço de telefonia, as operadoras cobram valor certo, líquido e contínuo, sem que haja a efetiva utilização pelo usuário-consumidor. Ademais, importa frisar que se mostra cristalina a compulsoriedade da cobrança da assinatura no momento em que, não havendo o respectivo pagamento pelo consumidor-usuário, o serviço será peremptoriamente interrompido, i. é, em virtude do inadimplemento, o serviço será cortado por conduta unilateral da operadora de telefonia, não havendo, assim, atitude diversa a ser tomada pelo consumidor-usuário senão realizar o pagamento compulsoriamente.
Entretanto, é forçoso reconhecer que tal conduta não seria ilegal caso houvesse lei stricto sensu prevendo sua cobrança (princípio da legalidade tributária) e que tal compulsoriedade fosse exercida pelo Poder Público diretamente, e, não, por empresas privadas, meras delegatárias de serviço público.
Daí que estas características de compulsoriedade e de cobrança pela simples disponibilidade do serviço, próprias das taxas, não poderão compor as tarifas ou preços públicos que servem de espécie de remuneração pela prestação do serviço público de telefonia, sendo certo, como vimos, que aqueles – preços ou tarifas públicos – são regidos pelas normas e princípios de Direito Privado, onde prevalecerá, até determinado limite, a liberdade contratual em seus dois aspectos, ou seja, a liberdade de contratar ou não em si e a liberdade de discussão sobre o conteúdo do contrato. (GRAU, 2003: 85)
Destarte, ao cobrar quantias de forma compulsória e pela simples disponibilidade do serviço através da chamada assinatura, as operadoras auferem vantagens duas vezes: uma, porque cobram valores sem que haja a efetiva utilização do serviço pelo consumidor, ou seja, pela mera disponibilidade, como se verdadeira taxa fosse – o que no caso deste serviço ensejará enriquecimento sem causa para as respectivas operadoras, uma vez que efetivamente não prestaram serviço algum; duas, não arcam com as agruras próprias das taxas como espécie tributária, quais sejam, previsão e majoração somente através de lei em sentido estrito (princípio da legalidade tributária), aumento do valor somente de forma anual (princípio da anuidade), desembaraço das regras constitucionais limitatórias do poder de tributar (limites ao poder de tributar), etc.
Parece claro, portanto, que tal cobrança, nos moldes realizados hodiernamente pelas operadoras de telefonia, faz exsurgir patente a natureza jurídica de taxa que envolve as assinaturas telefônicas em razão de sua compulsoriedade e sua exigência devido a mera disposição do serviço, sem que haja as limitações próprias dos tributos em geral para sua cobrança.
3 A Defesa do Consumidor como Direito Fundamental
Inicialmente, forçoso asseverar que a própria Constituição possui, em seu texto, normas hierarquicamente superiores a outras, o que se infere do artigo 60 e parágrafos da Lei Política, donde se extrai que, pela distinção existente no processo legislativo, evidencia-se a total rigidez de determinados dispositivos em detrimento a outros, semi-rígidos.
Tal raciocínio tem amparo na melhor doutrina. Dessa forma, como afirma Nunes (2000: 2-3):
“Mas mesmo na Constituição existem normas mais relevantes que outras. Essas, mais importantes, são as que veiculam princípios, verdadeiras diretrizes do ordenamento jurídico.
O princípio jurídico é um enunciado lógico, implícito ou explícito, que, por sua grande generalidade, ocupa posição de preeminência nos horizontes do sistema jurídico e, por isso mesmo, vincula, de modo inexorável, o entendimento e a aplicação das normas jurídicas que com ele se conectam.”
Pois bem.
Segundo a Constituição Federal, em seu artigo 5º, XXXII, é dever do Estado fomentar (promover) a defesa do consumidor, na forma da lei. Tratando-se de norma que encerra um direito fundamental, conectado ao supremo princípio da dignidade humana, obviamente sobrepor-se-á a dispositivo também constitucional que não possua a mesma natureza, eis que, às escâncaras, não se traduz este em princípio fundamental do Estado Democrático de Direito inaugurado em 05 de outubro de 1988, via de conseqüência, não faz parte do núcleo rígido constitucional.
Frise-se, no entanto, tratar-se de norma de eficácia limitada à edição de lei para que sua aplicabilidade não seja comprometida. No entanto, somente obedecendo as sérias restrições contidas no corpo constitucional, o legislador ordinário poderá realizar seu trabalho de complementação constitucional. Assim, por força do artigo 48 dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias, não será qualquer lei ordinária que satisfará a necessidade de preenchimento do vácuo legal previsto no texto constitucional. Nessa esteira, faz-se mister a complementação via código – como efetivamente ocorreu com a edição da Lei nº 8.078/90, Código de Defesa do Consumidor – que, não obstante possuir invólucro de lei ordinária, com esta não se confunde em virtude da sistematização de suas normas, bem como a posse de princípios inerentes que regem sua interpretação.
Daí asseverar Gilmar Ferreira Mendes (2002: 227) se tratar de restrição imediata, verbis:
“Os direitos individuais enquanto direitos de hierarquia constitucional somente podem ser limitados por expressa disposição constitucional (restrição imediata) ou mediante lei ordinária promulgada com fundamento imediato na própria Constituição (restrição mediata).”
Além de exigir uma restrição imediata, o preceptivo insculpido no art. 5º, XXXII da CF/88 pressupõe uma reserva legal qualificada, que, nas palavras de Mendes (2002: 236):
“Tem-se uma reserva legal ou restrição legal qualificada (qualifizierter Gesetzesvorbehalt) quando a Constituição não se limita a exigir que eventual restrição ao âmbito de proteção de determinado direito seja prevista em lei, estabelecendo, também, as condições especiais, os fins a serem perseguidos ou os meios a serem utilizados.”
Assim, como se extrai da simples leitura do dispositivo constitucional referente à defesa do consumidor, a legislação infraconstitucional deverá seguir as vinculações estabelecidas pelo legislador constituinte originário no sentido de promover somente àquela defesa, sob pena de inconstitucionalidade.
Dessarte, qualquer manifestação do Estado – seja administrativa, legislativa ou jurisdicional – deverá ter por escopo a promoção da defesa do consumidor, sendo que outros fins deverão ser considerados inconstitucionais, em razão de incompatibilidade vertical com o direcionamento ofertado pelo preceptivo da Constituição da República.
Vislumbra-se, ademais, ser correta a afirmação segundo a qual, em matéria constitucional de defesa de consumidor, sua complementação somente se dará – sem que seja eivada de inconstitucionalidade – se estiver inserida em código, norma jurídica que encerra sistematização entre seus preceitos e possui princípios regentes próprios. Via de conseqüência, mera lei ordinária que trate de relações de consumo – independentemente do teor de seu conteúdo – revelará inconstitucionalidade formal, à míngua da necessária obediência ao princípio da reserva legal qualificada.
Sem embargo, forçoso admitir que a livre iniciativa, à símile do que ocorre com a defesa do consumidor, encerra um valor constitucionalmente protegido, consoante dispõe o artigo 5º, caput da CF/88, o que, em princípio, legitimaria a cobrança da malfadada assinatura, como expressão desse valor em uma economia de mercado.
No entanto, trata-se, em verdade, de hipótese de colisão de direitos fundamentais que leva o intérprete a obtemperar sobre os interesses contrapostos. Isto porque, não obstante previsão legal expressa (art. 4º, caput CDC), a harmonia nas relações consumeristas cogitada encerra cínica utopia em se tratando de sociedade compostas de classes díspares, como ocorre em todas as sociedades capitalistas, e, em sede constitucional, avultando de importância a adequação dos princípios, sem que se esvaziem totalmente quaisquer deles.
Via de conseqüência, mister fazer coro com Mendes (2002: 299) quando afirma que:
“Embora o texto constitucional brasileiro não tenha privilegiado especificamente determinado direito, na fixação das cláusulas pétreas (CF, art. 60, § 4º), não há dúvida de que, também entre nós, os valores vinculados ao princípio da dignidade da pessoa humana assumem peculiar relevo (CF, art. 1º, III).”
Acolitando tais escólios, divisa-se que na existência de colisão entre este direito fundamental (defesa do consumidor) e determinados valores constitucionalmente protegidos (no particular, a livre iniciativa), preponderá aquele direito em detrimento a estes valores, uma vez que se situa – o direito fundamental – estreitamente ligado ao princípio da dignidade humana, na sua face do homem-consumidor.
Neste sentido, já decidiu o Supremo Tribunal Federal no RE 153.531. Rel. Ministro Marco Aurélio, como nos dá conta, ainda, Mendes (2002: 299):
“Na discussão sobre a legitimidade das disposições reguladoras do preço de mensalidades escolares, reconheceu o Supremo Tribunal Federal que, com objetivo de conciliar os princípios da livre iniciativa e da livre concorrência e os da defesa do consumidor e da redução das desigualdades sociais, em conformidade com os ditames da justiça social, ‘pode o Estado, por via legislativa, regular a política de preços de bens e serviços, abusivo que é o poder econômico que visa ao aumento arbitrário dos lucros.’”
É patente a prevalência – na hipótese de colisão entre direitos fundamentais ou entre estes e valores constitucionalmente protegidos – do princípio da dignidade humana, que se desdobra em outros direitos, dentre os quais, a defesa do consumidor.
Em compêndio, força é admitir que, à luz da Constituição Federal e de sua hermenêutica mais moderna – sobrepuja de importância a defesa do consumidor quando em conflito com o valor da livre iniciativa, por encerrar princípio de maior peso, qual seja, o da dignidade humana.
4 Comutatividade no Contrato de Prestação de Serviço Telefônico
Ademais, sopesando os interesses em jogo – quando da cobrança da assinatura – forçoso admitir que deverão preponderar os interesses consumeristas aí inseridos. Isto porque, e fazendo abstração do fato de estar o princípio da defesa do consumidor inserto no da dignidade humana, mesmo que se faça cogitações tão-somente no âmbito do direito privatístico contratual, chega-se à conclusão de que a cobrança dessa verdadeira taxa malfere a função social que todo pacto deve ter, assim como o seu equilíbrio econômico-financeiro.
Daí afirmar Betti (2003: 248), no que concerne à função social, que todo contrato, mesmo que presente autonomia de vontades – como é normal – deve subsumir-se à função que a sociedade dele espera como fator de distribuição de riquezas, verbis:
“Conteúdo do negócio é – como dissemos (§ 16) – não uma ‘vontade’ qualquer, expressão vazia e incolor do capricho individual, mas um preceito da autonomia privada, com o qual as partes pretendem regular os seus interesses, nas relações entre elas ou com terceiros, em vista de escopos práticos de caráter típico, socialmente valoráveis pela sua constância e regularidade na vida de relações corrente. Quem promete, dispõe, renuncia, aceita, não pretende, pura e simplesmente, obrigar-se, despojar-se de um bem, transmiti-lo, adquiri-lo sem outro fim, não procura fazer tudo isso só pelo prazer de praticar um ato que seja fim em si mesmo. Mas procura sempre atingir um dos escopos práticos típicos que governam a circulação dos bens e a prestação dos serviços, na interferência entre as várias esferas de interesse que entram em contato na vida social… Em qualquer negócio, analisado no seu conteúdo, pode distinguir-se, logicamente, um regulamento de interesses nas relações privadas e, concretizada nele – quando, como é normal, não se tenha desfeito (§ 24) – uma razão prática típica que lhe é imanente, uma ‘causa’, um interesse social objetivo e socialmente verificável, a que ele deve corresponder. Causa, bem entendido, não em sentido fenomenológico, mas teleológico e deontológico, atinente à exigência da sociabilidade que preside à função ordenadora do direito. Tal como os direitos subjetivos, também os poderes de autonomia, efetivamente, não devem ser exercidos em oposição com a função social a que são destinados: o instrumento da autonomia privada, colocado à disposição dos indivíduos, não deve ser desviado do seu destino.”
Em outras palavras, porém em raciocínio convergente, assevera Grau (2003: 83), cogitando a respeito de valores sobre os quais a economia capitalista se funda, quais sejam, propriedade privada dos bens de produção e liberdade contratual, bem como sobre a intervenção do Estado nesta seara, que:
“… a assertiva de que não há institutos jurídicos cuja análise seja monopólio dos cultores de um determinado ramo do direito: os contratos, enquanto realidade jurídica, não são objeto de um privilégio de consideração pelos civilistas; para que os possamos compreender, impõe-se a sua detida consideração também desde a visão do Direito Econômico.”
Concluindo que:
“A verdade, no entanto, é que tais valores não estão dispostos em situação simétrica, sendo mais correto observar que a liberdade de contratar não é senão um corolário da propriedade privada dos bens de produção. Isso porque a liberdade de contratar tem o sentido precípuo de viabilizar a realização dos efeitos e virtualidades da propriedade individual dos bens de produção. Em outros termos: o princípio da liberdade de contratar é instrumental do princípio da propriedade privada dos bens de produção. A atuação do Estado sobre o domínio econômico, por isso mesmo, impacta de modo extremamente sensível sobre o regime jurídico dos contratos.” (GRAU, 2003: 83)
Ora, sendo certo, como afirma o ilustre Ministro do Supremo Tribunal Federal, que a liberdade de contratar é uma conseqüência natural da propriedade privada dos bens de produção; e, por outro lado, sendo certo ainda que o Estado, através de intervenção legislativa, determina que todo contrato deverá seguir sua função social, vislumbra-se que qualquer anomalia neste inserida ou efetivamente praticada importará em óbice àquela função, desdobrando-se em desequilíbrios econômico-financeiros que poderá gerar conseqüências nefastas para toda sociedade.
Percebe-se, a despeito de outras esdruxularias que possam ocorrer no texto de qualquer contrato, que o malferimento de sua comutatividade ensejará desequilíbrios internos ao próprio contrato, bem como sociais irreversíveis em se tratando de contratos de massas.
Com efeito, o saudoso doutrinador Caio Mário da Silva Pereira, em escólios, assevera que:
“São comutativos os contratos em que as prestações de ambas as partes são de antemão conhecidas, e guardam entre si uma relativa equivalência de valores. Não se exige a igualdade rigorosa destes, porque os bens que são objeto dos contratos não têm valoração precisa.” (1992: 47)
Nesta esteira, se a equivalência entre as cláusulas contratuais não precisa ser rigorosa, vislumbra-se que sua presença é conditio sine qua para que exista verdadeiro pacto entre os contratantes, sob pena de existir, em verdade, desigualdade material e formal a ensejar enriquecimento de um em detrimento de outro contratante, impondo-se o fomento a concentração de renda nas mãos dos mais fortes economicamente.
Com efeito, de fácil percepção a inexistência de comutatividade no contrato de prestação de serviços de telefonia – equilíbrio nas obrigações recíprocas – quando um dos parceiros (operadoras de telefonia) recebe valores correspondentes a pagamento – assinatura – que não esteja vinculado a uma obrigação sua que venha a equilibrar as partes no que toca às suas obrigações, restando configurada cláusula leonina que, como já frisado, causará anomalia interna ao contrato e/ou má distribuição de renda na sociedade de massa.
Portanto, cabe lembrar com Cláudia Lima Marques (2003: 772) que:
“As características básicas da lesão ou da cláusula leonina identificada, nos contratos comutativos, seriam, em uma análise, a desproporcionalidade das prestações daí resultante, no que diz respeito aos valores das prestações previstas, e o dolo de aproveitamento ocorrido, representado pelo abuso da inexperiência e da necessidade premente sentida pelo outro contraente em concluir aquele negócio.”
Apreciando demanda onde existia cláusula leonina, os Tribunais pátrios já se manifestaram no sentido da doutrina transcrita, ratificando a necessidade de manter-se a comutatividade contratual mesmo que por vias judiciais:
CONTRATO DE ADESÃO – FORNECIMENTO DE GASOLINA E DERIVADOS DE PETRÓLEO – PEDIDO DE RESCISÃO DO CONTRATO CUMULADO COM COBRANÇA DE MULTA COMPENSATÓRIA E DEVOLUÇÃO DE EQUIPAMENTOS DADOS EM COMODATO – CLÁUSULA PENAL LEONINA E ABUSIVA – ENRIQUECIMENTO ILÍCITO.
As cláusulas padrão, leoninas e abusivas que são inseridas em contrato de adesão para fornecimento de gasolina e derivados de petróleo, estabelecendo prazo contratual demasiadamente longo (onze anos), cota mínima mensal para aquisição de derivados de petróleo superestimada e ainda impondo multa compensatória em elevado percentual a incidir sobre o total dos produtos que não forem adquiridos pela revendedora no prazo estabelecido para a duração da avença, fere a comutatividade das prestações e a igualdade das partes perante o pacto, razão pela qual devem ser consideradas nulas.
Recurso conhecido e improvido.
(Apelação Cível nº 0305595-0/2000, 4ª Câmara Cível do TAMG, Luz, Rel. Juiz Paulo Cézar Dias. j. 24.05.2000, unânime).
Ausente, pois, a comutatividade nos contatos bilaterais de telefonia no tocante à cobrança de assinatura, impõe-se o reequilíbrio contratual ante a patente ilegalidade que enseja, a cada mês, o enriquecimento ilícito das operadoras de telefonia por todo país, visto não prestarem efetivamente serviço, não obstante o recebimento dos valores fixados de forma compulsória.
Cabe, ainda, uma última argumentação em prol da ilegalidade da referida cobrança.
À afirmação segundo a qual a cobrança de assinatura encerra desproporcionalidade nas obrigações contratuais – desequilíbrio econômico-financeiro – visto que enseja pagamento sem contraprestação efetiva de serviço, o Superior Tribunal de Justiça, pela sua 1ª Turma, em aresto relatado pelo Min. Humberto Gomes de Barros, decidiu, no REsp. nº 402.047-MG, interposto por TELEBRASÍLIA – Telecomunicações de Brasília S/A, não incidir ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) sobre os valores cobrados a título de assinatura, exatamente porque tais valores não constituem prestação de serviços ao consumidor. Transcreve-se, pois, a ementa do aresto:
TRIBUTÁRIO – ICMS – “SERVIÇOS DE COMUNICAÇÃO” – CONCEITO – INCIDÊNCIA – AMPLIAÇÃO DA BASE DE CÁLCULO – CLÁUSULA PRIMEIRA DO CONVÊNIO 69/98.
Há “serviço de comunicação” quando um terceiro, mediante prestação negocial-onerosa, mantém interlocutores (emissor/receptor) em contato “por qualquer meio, inclusive a geração, a emissão, a recepção, a transmissão, a retransmissão, a repetição e a ampliação de comunicação de qualquer natureza”. Os meios necessários à consecução deste fim não estão ao alcance da incidência do ICMS-comunicação.
A hipótese de incidência do ICMS-comunicação (LC 87/96; art. 2º, III) não permite a exigência do tributo com relação a atividades meramente preparatórias ao ‘serviço de comunicação’ propriamente dito, como são aquelas constantes na Cláusula Primeira do Convênio ICMS 69/98.
No Direito Tributário, em homenagem ao Princípio da Tipicidade Fechada, a interpretação sempre deve ser estrita, tanto para a concessão de benefícios fiscais, quanto para exigência de tributos. À míngua de Lei não é lícita a dilatação da base de cálculo do ICMS-comunicação implementada pelo Convênio ICMS 69/98 (art. 97, § 1º, do CTN).
Recurso provido.
Extrai-se, ainda, do voto do Relator:
“A Cláusula Primeira do Convênio ICMS 69/98 diz que ‘os signatários firmam entendimento no sentido de que se incluem na base de cálculo do ICMS incidente sobre prestações de serviços de comunicação os valores cobrados a título de acesso, adesão, ativação, habilitação, disponibilidade, assinatura e utilização dos serviços, bem assim aqueles relativos a serviços suplementares e facilidades adicionais que otimizem ou apliquem o processo de comunicação, independentemente da denominação que lhes seja dada.’
A Lei faz incidir o ICMS sobre ‘serviços de comunicação’, em cujo conceito se inserem os de telecomunicações. A interpretação do art. 2º, III, da LC 87/96, indica que só há incidência de ICMS aos serviços de comunicação ‘stricto sensu’, onde não se incluem os serviços meramente acessórios ou preparatórios à comunicação propriamente dita.” (g.n.)
Ora, na esteira do raciocínio colacionado, se sobre os valores cobrados a título de assinatura não incide ICMS em razão de não consubstanciarem serviço de comunicação stricto sensu, não podem as operadoras de telefonia cobrar tais valores, simplesmente por não haver a prestação de serviço de telefonia stricto sensu, ou seja, o que ocorre é, claramente, cobrança de valores dos consumidores sem a necessária contraprestação de serviço, como reiteradamente afirmado.
5 Conclusão
À guisa de conclusão ousamos asseverar que, seja pela visão do Direito Público, seja pela do Direito Privado – hoje cada vez mais público –, a cobrança de assinatura nos serviços de telefonia encerra uma anomalia jurídica, travestindo-se, no primeiro aspecto, de tributo sem que as garantias constitucionais do contribuinte sejam respeitadas, não se podendo deslembrar ser o agente econômico cobrador incompetente para tanto; no segundo aspecto, esta anomalia enseja desequilíbrio econômico-financeiro no contrato entabulado, sendo justo afirmar que, em razão das dimensões territoriais do serviço que é ofertado por todo País, traduz-se em verdadeiro atentado contra a Ordem Econômica, a desrespeitar o princípio da defesa do consumidor, chegando mesmo às raias da esdruxularia jurígena.
Promotor de Justiça. Assessor Especial do Procurador-Geral de Justiça. Membro da Coordenadoria de Controle de Constitucionalidade da Procuradoria-Geral de Justiça de Minas Gerais. Mestre e Doutor em Direito. Membro do Conselho Editorial da Revista De Jure do Ministério Público de Minas Gerais. Coordenador Editorial do periódico MPMG Jurídico. Professor de Graduação e Pós-Graduação lato sensu. Autor do livro Constituição e Políticas Econômicas na Jurisdição Constitucional
Advogada especializada em Direito de Empresa e Relações de Consumo, Especialista em Direito Processual pela PUC-BH, Mestranda em Direito Privado, Membro da Comissão de Defesa do Consumidor – OAB/MG, associada BRASILCON
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