A volúpia com que os fatos são universalmente absorvidos torna menos importantes situações que, vinte e quatro horas antes, chamaram a atenção do país inteiro. Tratava-se de saber se um jornalista estrangeiro, casado com brasileira e com filhos brasileiros, poderia continuar no Brasil depois de desfechar, publicando-a no jornal “New York Times”, uma boa saraivada de golpes baixos no Presidente do Brasil, dando a todos, americanos, brasileiros e quejandos, a impressão de que Lula bebe demasiadamente. Em conseqüência, o jornalista seria expulso do país, sendo salvo por liminar haurida no Superior Tribunal de Justiça. Depois disso, projetaram-se três vertentes: a) – a expulsão era merecida ; b) – feria a liberdade de imprensa; c) – era sanção exagerada. Alguns outros críticos entendiam que o jornalista mereceria somente processo criminal por injúria e difamação contra o Presidente da República.
No meio tempo, o Ministro da Justiça ficou justamente escandalizado com a catoniana decisão de se expulsar o escriba. Não carregaria no seu currículo um opróbrio de tal natureza.
Posto isso, parece que tudo já foi dito a respeito do assunto. Não foi não. O exercício do poder num país democrático exige estabilidade na conceituação de fenômenos jurídicos análogos. Explique-se: a defesa quase unânime da necessidade de ter a imprensa muito ampla liberdade na atividade de divulgação tem as mesmas roupagens de aspectos outros entrelaçados ao acatamento à intimidade e privacidade do cidadão.
Em suma, se o jornalista pagão investiu contra peculiaridades que mereceriam ficar protegidas de assédio indiscriminado, dizendo tais particularidades com o Presidente da República, controle assemelhado precisaria ser feito sob setores outros da redução do respeito que se deve ter quanto a cidadãos outros, uns submetidos a procedimentos criminais revestidos de sigilo, outros tendo vida pessoal, arquivos e atividade expostos à visitação pública, dando-se a uma emissora de televisão, eventualmente, a primazia de infelicitar para todo o sempre a existência do investigado.
Já se vê que, tocante ao desvestimento de hábitos ou costumes do Presidente Lula, ainda existe coisa a dizer, porque a liberdade abstrusa concedida à venenosa perturbação da dignidade do brasileiro foi, no fim das contas, apenas aproveitada pelo ingênuo americano. Este último entendeu que se uma emissora de televisão podia expor a cinqüenta milhões de brasileiros a imagem de um juiz algemado, sendo levado a um aeroporto e carregado de um a outro lado como um saco de batatas, sendo filmado durante o vôo que o transportava a um outro presídio, mal nenhum haveria em se mostrar o presidente com um copo de cerveja na mão. Afinal, quem pode o mais pode o menos.
De outra parte, o jornalista americano via e ouvia, diariamente, notícias sobre interceptações telefônicas feitas amiudadamente em linhas diversas, tinha conhecimento de casas e escritórios de advogados arrombados e de menos pundunorosa investigação criminal. Assim, não lhe pareceu extravagante a simples publicização da suspeita sobre a capacidade etílica do Luiz Inácio. Já se percebe que a culpa não é do trêfego jornalista, mas sim da implantação sibilina da certeza de que, no aspecto da informação, tudo era possível no Brasil. Surpreendentemente, há agora um escândalo: quem foi recebido no Palácio não pode falar mal do hospedeiro. Deve ser expurgado…
Certa vez, dois grandes juristas foram convidados a participar de uma importante conferência. Um deles trouxe, a título de currículo, uma boa maçaroca de papéis. O mestre de cerimônias perdeu meia-hora na leitura das qualificações do conferencista. O outro jurista, envergonhado, exibiu apenas uma folha de papel. Estava escrito: “Passo minha vida respeitando os direitos e garantias do cidadão”.
Já se entende, portanto, que essa questão de “curriculum vitae” é muito relativa. Mede-se a qualificação pelo conjunto de atos praticados e não por um só. Melhor teria sido se a liberdade de imprensa cuja extensão o Presidente da República pretendeu restringir merecesse igual tratamento nos outros atos em que as autoridades, estáticas, viram a destruição da honra e da dignidade devidas àqueles que, embora submetidos a investigação, ainda não haviam sido condenados, sendo, apesar disso, atirados à fogueira do aviltamento perante toda a comunidade.
Nesse contexto, é preciso refletir sobre o que a criatura traz consigo quando termina uma tarefa, voltando ao lar. Se traz muito, precisa mostrar o que trouxe, para não ser mal-interpretada. Mas, em algumas oportunidades, basta mostrar uma simples folha de papel com uma frase só: “Passei meu tempo fazendo respeitar os direitos e garantias do cidadão. Se não pude fazê-lo, é porque não o permitiram, ou por não ter força suficiente para fazer prevalecer minha vontade. Já deveria ter voltado. Esperei demais”.
Advogado criminalista em São Paulo e presidente, no Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, da Comissão Nacional de Defesa das Prerrogativas do Advogado.
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