A criação, em julho de 1998, do Estatuto de Roma, que institui a Corte Criminal Internacional consolidou, no plano internacional, a existência dos crimes de agressão, de guerra; e, contra a humanidade.
Na realidade, tais crimes já existiam antes do advento do Estatuto de Roma, tendo sido utilizados nos Tribunais de Nuremberg e para o Extremo Oriente, após a Segunda Guerra Mundial. Mais recentemente, constaram nos Estatutos dos Tribunais para a Antiga Iugoslávia; e, no Tribunal de Ruanda.
Além destes, o Estatuto também previu o crime de genocídio que, igual aos anteriores, já estava previsto na órbita internacional, este, entretanto, desde 09 de dezembro de 1948 quando foi assinada a Convenção das Nações Unidas para Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio.
Como se vê, no entanto, boa parte dos delitos tipificados neste instrumento internacional estão vinculados a existência de um conflito armado, salvo os crimes elencados no art. 7o do mesmo – os crimes contra a humanidade – que podem ser cometidos em tempo de paz. E serão estes os delitos objeto deste estudo.
Algumas observações sobre o art. 7o do Estatuto de Roma
A primeira ocasião na história em que se mencionou o termo “crimes contra a humanidade” (“crimes against humanity”) foi no ano de 1915 logo após o massacre dos armênios, na Turquia, quando França, Rússia e Grã-Bretanha fizeram uma declaração tripartite onde afirmaram:
“Tendo em vista estes novos crimes da Turquia contra a humanidade e a civilização, os governos proclamam à Sublime Porta que eles consideram pessoalmente responsáveis por estes crimes todos os membros do Governo Otomano e seus agentes que estão implicados em tais massacres”[1]
Uma das grandes dificuldades para uma melhor compreensão desta espécie delitiva sempre foi sua dificuldade de definição. O mais próximo que se chegou de uma delimitação conceitual foi o conceito construído por Pieter Drost que o fez da seguinte forma:
“Crime contra a humanidade deve ser entendido como um ataque, por qualquer agente do Estado, no exercício de suas funções públicas, ou sob o pretexto de sua competência oficial nas liberdades humanas enumeradas nos arts. 3o a art. 21 da Declaração Universal dos Direitos Humanos.”[2]
No entanto, a primeira vez que se previu esta espécie delitiva – de forma minimamente satisfatória – no ordenamento jurídico internacional foi no Acordo de Londres, assinado em 08 de agosto de 1945, que instituiu o Tribunal de Nuremberg, cujo estatuto os previa no art. 6o, “c”; e possuía seguinte redação:
“Artigo 6
“O Tribunal instituído pelo Acordo mencionado no Artigo 1 acima, para julgamento e punição dos principais criminosos de guerra dos países do Eixo Europeu, é competente para julgar e punir pessoas que, agindo no interesse dos países do Eixo Europeu tenham cometido, quer a título individual ou como membros de organizações, algum dos seguintes crimes:
c) Crimes contra a Humanidade: nomeadamente, assassínio, extermínio, redução à escravatura, deportação ou outros actos desumanos cometidos contra qualquer população civil, antes ou durante a guerra; ou perseguições por motivos políticos, raciais ou religiosos, quando estes actos ou perseguições são cometidos ou estão relacionados com qualquer crime abrangido pela competência deste Tribunal, quer violem ou não o direito interno do país onde foram perpetrados.”
Enquanto na redação do Estatuto de Nuremberg estes crime foram bem delimitados em quatro tipos penais (assassinato, extermínio; redução a escravidão; e, deportação), partindo, logo em seguida para o uso de uma cláusula aberta, a redação adotada no Estatuto de Roma explicita 11 condutas tipificadas sem, no entanto, abrir mão do uso de idêntica cláusula aberta. Tal opção foi escolhida para evitar que a enumeração de condutas fossem taxativas e possibilitando, desta forma, sua ampliação com vistas ao atendimento não previstos à época de sua criação. As onze condutas tipificadas em Roma são as descritas a seguir:
“Artigo 7o Crimes contra a Humanidade
1. Para os efeitos do presente Estatuto, entende-se por “crime contra a humanidade”, qualquer um dos atos seguintes, quando cometido no quadro de um ataque, generalizado ou sistemático, contra qualquer população civil, havendo conhecimento desse ataque:
a) Homicídio;
b) Extermínio;
c) Escravidão;
d) Deportação ou transferência forçada de uma população;
e) Prisão ou outra forma de privação da liberdade física grave, em violação das normas fundamentais de direito internacional;
f) Tortura;
g) Agressão sexual, escravatura sexual, prostituição forçada, gravidez forçada, esterilização forçada ou qualquer outra forma de violência no campo sexual de gravidade comparável;
h) Perseguição de um grupo ou coletividade que possa ser identificado, por motivos políticos, raciais, nacionais, étnicos, culturais, religiosos ou de gênero, tal como definido no parágrafo 3o, ou em função de outros critérios universalmente reconhecidos como inaceitáveis no direito internacional, relacionados com qualquer ato referido neste parágrafo ou com qualquer crime da competência do Tribunal;
i) Desaparecimento forçado de pessoas;
j) Crime de apartheid;
k) Outros atos desumanos de caráter semelhante, que causem intencionalmente grande sofrimento ou afetem gravemente a integridade física ou a saúde física ou mental.”
Além disso, é interessante observar que no Estatuto da Corte Criminal Internacional esta categoria de crimes é autônoma, ou seja, é possível alguém ser julgado apenas pelo cometimento de uma das condutas descritas acima, fato este que não ocorreu em Nuremberg, quando só foram julgados os crimes contra a humanidade quando havia conexão destes com crimes de guerra ou crimes contra a paz, devido a sua imprecisão conceitual.[3]
O Estatuto, no entanto, estabelece algumas exigências para o reconhecimento da ocorrência destes crimes, a saber:
exige intencionalidade especial – a “mens rea” se caracteriza não apenas pelo dolo mas, também pela potencial consciência da ilicitude e, “in casu”, omissão do agente;
o ataque deverá ser dirigido a uma população civil.
A ausência deste último elemento impedirá o reconhecimento do crime de lesa-humanidade. Quando a conduta envolver pessoa de forças armadas ou beligerante poderá ser enquadrado como crime de guerra. A ocorrência isolada de qualquer das condutas descritas afasta, em tese, a competência da Corte Criminal Internacional. Não afasta, porém, a possível responsabilização do Estado frente à comunidade internacional.
O Princípio da Complementariedade
Como sabido por todos, o Direito Internacional Público, historicamente, vê apenas os Estados como sujeitos plenipotenciários[4] na ordem internacional. Apenas no Século XX se iniciou a inserção do indivíduo como pessoa capaz de agir nesta esfera.
Face a isto, um dos aspectos mais importantes a ser considerado nesta órbita é a Soberania. Devemos lembrar que, apesar de vivermos uma era de intensas mudanças no Direito Internacional, este ainda vive, sob vários aspectos, o paradigma construído pelo sistema Westhphaliano.
E, em consideração a este fato, o Estatuto de Roma consagrou o princípio da complementariedade em vários pontos de seu texto, como se vê a seguir: em seu Preâmbulo no item 10, com a seguinte redação – “Sublinhando que o Tribunal Penal Internacional, criado pelo presente Estatuto, será complementar às jurisdições penais nacionais”; em seu art. 1o ; e, no seu art. 17.[5]
Apesar de, a regra ser a complementariedade, a jurisdição da Corte pode ser acionada nas hipóteses previstas no art. 17 do Estatuto. O referido artigo trata em seu item 1 dos casos em que a Corte não irá interferir; já em seu item 2 cita os casos em que a Corte irá avocar a competência do julgamento para si. São elas:
Ter a sentença sido proferida unicamente com o objetivo de evitar o julgamento do réu pela Corte. Neste caso, frente a proibição do “bis in idem”, a Corte se reservou o direito de não-reconhecer a coisa julgada criminal para a acusação em hipóteses de tentativa de fraude à Corte[6];
A demora injustificada no processo que, em alguns casos, ocorre apenas com o objetivo de garantir a impunidade dos autores do delito[7];
A parcialidade dos orgãos de investigação e julgamento do delito.
Além destes, em seu item 3, o art. 17 prevê uma Quarta possibilidade para avocar a competência da Corte, que é: a completa incapacidade do Estado para investigar e punir os autores do delito.
Como se depreende do que foi dito acima, a Corte irá avocar sua competência quando houver irregularidade no processamento dos responsáveis pelo delito. Daí a importância das legislações de implementação (“enabling legislations”), pois as mesmas instrumentalizam o país a cumprir o disposto no Estatuto de Roma[8].
Conclusão
Como visto no desenvolvimento deste estudo, não é tão simples se invocar a competência da Corte Criminal Internacional sendo, no entanto, possível.
A Corte exige por parte dos países que integram o Estatuto uma profunda maturidade no sentido de implementar as medidas exigidas por seu Tratado Constitutivo sob pena de responsabilização do Estado e, em última instância, o julgamento de um nacional seu por esta jurisdição.
Tal realidade jamais deve ser esquecida por nossos governantes, sob pena de tornar obsoleta a nossa participação na Corte.
Analista e Consultor Internacional. Diretor de Negócios Internacionais da Dealers Negócios Internacionais. Doutorando em Direito pela Universidad del Museo Social Argentino (UMSA). Membro do Comitê Brasileiro da Câmara de Comércio Internacional (CCI Brasil).
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