Resumo: A Lei n. 7.210, de 11 de julho de 1984 (Lei de Execução Penal – LEP) estabeleceu originariamente três avaliações técnicas, firmadas por uma equipe interdisciplinar de profissionais das áreas de Psicologia, Psiquiatria, Assistência Social e Segurança Pública. Constituem-se nos exames criminológico, de personalidade, e dos pareceres das Comissões Técnicas de Classificação. Com a edição da Lei n. 10.792, de 1º de dezembro de 2003, os arts. 6º e 112 foram parcialmente revogados, suprimindo-se o exame criminológico e o parecer da Comissão Técnica de Classificação para a concessão de benefícios, passando-se a exigir somente o atestado de boa conduta carcerária, concedido pelo diretor do estabelecimento prisional, além da fração mínima do cumprimento de pena. Com a mudança legislativa, a doutrina vem reacendendo a discussão sobre a legitimidade de realização dessas avaliações no curso da execução penal. Concluiu-se, nesse sucinto estudo, que as análises previstas na LEP fazem parte do pensamento mundial reformista da segunda metade do século passado, que reconhece os direitos humanos dos presos, permitindo uma visão, na integralidade, da pessoa dos encarcerados em seus diversos aspectos, como o histórico, social e psicológico, e destinam-se a dar suporte ao magistrado para uma fiel e legítima individualização da pena privativa de liberdade na execução.
Palavras-chave: avaliações técnicas – execução penal – legitimidade – direitos humanos – individualização da pena
Sumário: 1. Introdução. 2. As avaliações técnicas previstas na Lei de Execuções Penais no sistema prisional. 2.1. O exame criminológico 2.2. O exame de personalidade. 2.3. O parecer das comissões técnicas de classificação. 3. A importância da interdisciplinariedade na execução penal. 4. Conclusão. 5. Referências.
1. INTRODUÇÃO
A Lei de Execuções Penais, em seu art. 112, na forma originária, estabelecia que a pena privativa de liberdade seria executada de forma progressiva, com a transferência do condenado para regime menos rigoroso, a ser determinada pelo juiz, após o cumprimento de um sexto (1/6) da pena e o seu mérito indicasse a progressão. O parágrafo único regulava que a decisão seria motivada e precedida de parecer da Comissão Técnica de Classificação e do exame criminológico, quando necessário.
Após a edição da Lei n.10.792 de 2003, o dispositivo foi parcialmente modificado. O critério subjetivo calcado no mérito, exigido para a progressão, foi substituído pelo bom comportamento carcerário a ser comprovado pelo diretor do estabelecimento, respeitadas as normas que vedam a progressão. Ademais, o mesmo procedimento passou a ser adotado, também, em face do parágrafo segundo, no tocante ao livramento condicional, ao indulto e à comutação de penas, mantidos os prazos previstos nas normas vigentes.
O art. 6º da Lei de Execuções Penais, por sua vez, previa que a Comissão Técnica de Classificação faria a proposta de progressões e regressões de regimes, bem como das conversões. Hoje, com as alterações introduzidas pela Lei n.10.792 de 2003, permanece em vigor apenas a elaboração do programa individualizador da pena privativa de liberdade.
Todavia, os Tribunais Superiores e parte da doutrina vêm entendendo que embora o exame criminológico não esteja mais prescrito na LEP para a concessão de benefícios na execução, é possível ao juiz determinar, quando entender imprescindível, que o condenado a ele se submeta. Neste caso, a decisão do magistrado deverá ser devidamente motivada. E hoje já está em trâmite, inclusive, o Projeto de Lei n. 1.294/2007, que prevê o retorno dessa perícia e do parecer da Comissão Técnica de Classificação, em casos de crimes praticados com violência ou grave ameaça à pessoa.
Mas é importante ressaltar que a mudança legislativa trouxe à tona uma antiga discussão sobre a legitimidade da realização de avaliações dessa natureza no sentenciado, durante a execução penal. Apregoam alguns que o sistema baseado nessas análises foi inspirado pelas doutrinas correicionalistas da defesa social e que, no Brasil, em específico, contraria os ideais garantistas do Estado Democrático de Direito, inaugurado pela Constituição Federal de 1988.
Em pólo oposto, outros doutrinadores argumentam que a realização dos exames de personalidade, criminológico e dos pareceres das Comissões Técnica de Classificação encontram respaldo no princípio constitucional da individualização das penas, inscrito no art. 5º, inciso XLVI, da Carta Magna. Como cada ser humano é único, a execução da pena também deve respeitar suas peculiaridades, reconhecendo-se que essas avaliações são importantes ferramentas para se aferir as condições subjetivas do condenado na classificação inicial e na concessão de benefícios durante a execução penal, eis que oriundas de equipes interdisciplinares. Ao invés de ferirem a dignidade da pessoa humana, observam o homem em sua individualidade.
Com o escopo de colher melhores subsídios para a edificação de uma linha conclusiva sobre o assunto, é que se dedica o presente apontamento. Acolhendo-se a segunda posição, pretende-se demonstrar a legitimidade das avaliações procedidas em encarcerados na execução penal por equipes interdisciplinares, o que viabiliza a execução de uma sanção punitiva adequada e individualizada ao condenado, em estrita conformidade com o Estado Social e Democrático de Direito estabelecido na Lei Mater.
2. AS AVALIAÇÕES TÉCNICAS PREVISTAS DA LEI DE EXECUÇÕES PENAIS NO SISTEMA PRISIONAL
Com a edição da Lei Federal n. 7.210/84 (Lei de Execução Penal) e da Lei n. 7.209/84 (Parte Geral do Código Penal Brasileiro) foram previstas três avaliações a serem procedidas durante a execução da pena privativa de liberdade: o exame criminológico, o exame de personalidade e o parecer das Comissões Técnicas de Classificação (C.T.C.).
Inaugura-se no sistema normativo brasileiro, por força de correntes criminológicas contemporâneas, distanciadas das correntes positivistas, uma compreensão do crime como um complexo fenômeno social, convergindo as análises da execução penal para um olhar abrangente do ato criminoso, a exigir-lhe um exame interdisciplinar.
Registra-se que, em nível mundial, nesse momento histórico, o condenado passa a ser considerado um sujeito de direitos. Objetiva-se a melhora das condições de sobrevivência dos presos no ambiente carcerário e se aposta nas possibilidades de sua reinserção social, passando a serem empreendidas reformas legislativas substanciais, que no Brasil eclodiram nas duas leis supramencionadas.[1]
Assim, as avaliações técnicas na execução surgem com o escopo de melhor conhecer o homem submetido ao sistema carcerário, na sua integralidade para estimulá-lo ao convívio em sociedade, contribuindo, sobremaneira, a uma justa individualização da pena.
2.1. O EXAME CRIMINOLÓGICO
Álvaro Mayrink da Costa pontua que “o exame criminológico permite o conhecimento integral do homem, sem o qual não se poderá vislumbrar uma justiça eficaz e apropriada”. Registra que a simples “aplicação fria da norma penal, tomando como ponto de partida um critério de valorização político-jurídica, inevitavelmente conduziria a enormes injustiças e monstruosos equívocos”.[2]
No magistério de Alvino de Sá, o exame criminológico visa ao estudo da dinâmica do ato criminoso, de suas causas e dos fatores a ele associados, constituindo-se, pois, em uma “perícia”. Oferece num primeiro momento o diagnóstico criminológico, e num segundo, permite concluir pela maior ou menor probabilidade de reincidência, o chamado prognóstico criminológico.[3]
Consoante os ditames dos arts. 34 e 35 do Código Penal, quando do ingresso no sistema carcerário, o condenado a uma pena privativa de liberdade, nos regimes fechado e semi-aberto, deve submeter-se ao exame criminológico. Entretanto, dos termos do art. 8º e parágrafo único da Lei de Execução Penal, deduz-se que no regime fechado o exame criminológico é obrigatório e no semi-aberto é facultativo. Mas não se pode perder de vista que, em face dos reais objetivos da Lei de Execução Penal, é indispensável a sua realização também no regime semi-aberto, “como forma de aplicar o tratamento recuperatório aos condenados”.[4] Registra-se que nesse momento o condenado ainda não se contaminou com os efeitos deletérios da prisão, encontrando-se cronologicamente mais próximo de sua atividade criminosa, permitindo que o diagnóstico seja mais fidedigno.[5] Serve, assim, como importante parâmetro às avaliações futuras, em casos de progressão de regime, livramento condicional, indulto e comutação de pena.
Tal exame é realizado no Centro de Observação, instalado em unidade autônoma ou em anexo a estabelecimento penal, em face de determinação dos arts. 96 e 97 da Lei de Execuções Penais. Os resultados obtidos são encaminhados à Comissão Técnica de Classificação, oferecendo-lhe subsídios para uma melhor classificação dos presos, ao lado daqueles oferecidos pelo exame de personalidade, que será descrito adiante.[6]
Entretanto, ressalta Alvino de Sá que o exame criminológico de “entrada” no sistema carcerário, “praticamente nunca foi feito, pelo menos, no Estado de São Paulo” e ao que “tudo indica dificilmente será feito”, em face do grande contingente de presos que ingressam no presídio por mês.[7] Na Bahia, infelizmente, também não há notícias de que este exame já tenha sido realizado na forma como preconizada na LEP.[8]
Lamentável que dispositivos legais de vanguarda não vêm sendo cumpridos pelo Poder Executivo, ao deixar de implantar infraestrutura necessária que torne o texto legal realidade. Conduta diametralmente oposta vem sendo adotada: o Poder Legislativo, ao verificar a falta de vontade política do Poder Executivo no cumprimento da lei, decide revogá-la, como bem fez com relação aos arts. 6º e 112 da LEP, extirpando o exame criminológico e o parecer da Comissão Técnica de Classificação em casos de concessão de benefícios ao apenado, o que, sem sombra de dúvida, promoveu um retrocesso na execução penal.
Hoje, conforme a LEP, basta o atestado de boa conduta carcerária firmado pelo diretor do estabelecimento prisional, além dos requisitos objetivos de temporalidade no cumprimento da pena.
Os Tribunais Superiores[9], interpretando a Lei nº 10.792/2003 sob os enfoques constitucional e infraconstitucional[10], vem decidindo, entretanto, no sentido da possibilidade de o juiz determinar, de forma motivada, a realização do exame criminológico quando entender necessário à formação de sua convicção para a concessão de um benefício.[11] Nesse sentido, o Superior Tribunal de Justiça editou a Súmula 439, que tem a seguinte redação: “Admite-se o exame criminológico pelas peculiaridades do caso, desde que em decisão motivada”.[12]
O Juízo da Vara de Execuções da comarca de Salvador adota a posição de que o exame criminológico “ficou restrito, via de regra, aos casos de crimes hediondos, praticados com violência ou grave ameaça incomuns, aos crimes sexuais com indicativos de distúrbios psíquicos, ou em qualquer caso, quando as circunstâncias reclamem”.[13]
Saliente-se que já está em trâmite o Projeto de Lei n. 1.294/2007, o qual prevê o retorno do exame criminológico e do parecer da C.T.C. para a instrução de pedidos de benefícios legais, em casos de crimes praticados com violência ou grave ameaça à pessoa, o que demonstra, considerando-se também os dados jurisprudenciais apontados, a legitimidade das avaliações técnicas na execução penal, fundamentada na necessária exigência de um olhar interdisciplinar sobre o sentenciado na execução.
2.2 O EXAME DE PERSONALIDADE
No dizer de Jorge Trindade, “personalidade é um conjunto biopsicossocial dinâmico que possibilita a adaptação do homem consigo mesmo e com o meio, numa equação de fatores hereditários e vivenciais”. Acrescenta que a personalidade está fundada numa “construção, e não num grupo de características estanques e adquiridas pelo nascimento”.[14]
Daí inferir-se que o grande diferencial entre um ser humano e outro é a sua personalidade. Portanto, para a real individualização executória da pena é preciso que o juiz detenha o maior número de informações possíveis acerca do preso. Nesse passo, estabeleceu a Lei de Execuções Penais, através de seu artigo 9º, que a Comissão Técnica de Classificação poderá, observando a ética profissional, entrevistar pessoas, requisitar de repartições ou estabelecimentos privados, dados e informações a respeito do condenado, além de realizar outras diligências e exames necessários.
Assim, justificam-se as entrevistas de pessoas, preferencialmente da família do condenado, bem como a obtenção de informes do antigo emprego do sentenciado ou a visita à morada da família e de amigos, para que se conheça melhor a pessoa que está sob julgamento, com o escopo de receber ou não benefícios durante a execução da pena, esclarece Nucci.[15] Mas é preciso distinguir o exame criminológico do exame de personalidade.
A Exposição de Motivos da Lei de Execução Penal, em seu item 34, o faz de forma esclarecedora. Afirma que o exame criminológico “parte do binômio delito-delinquente, numa interação de causa e efeito, tendo como objetivo a investigação médica, psicológica e social” do preso. Já o exame de personalidade “consiste no inquérito sobre o agente para além do crime cometido”. Quanto ao método, refere-se que o exame de personalidade encontra-se “submetido a esquemas técnicos de maior profundidade nos campos morfológico, funcional e psíquico”.
O exame criminológico, acentua Alvino Sá, busca “investigar as causas do comportamento criminoso e a dimensão anti-social da conduta do apenado” e, com isso, inferir sobre “a probabilidade de reincidência”. Já o exame de personalidade, refere-se o autor, volta-se para a “investigação das causas de sua conduta criminosa”, na sua realidade integral e individual de “pessoa”, incluída aí toda a sua história. Pontua que o exame de personalidade é um exame clínico, firmado pela Comissão Técnica de Classificação, “não no sentido estritamente médico-psicológico do termo”.[16] Daniele Penha ressalta que o exame de personalidade se presta à “construção de um plano de individualização da pena e, no âmbito específico da Psicologia, é base para a determinação de tratamentos e intervenções na esfera da saúde mental”.[17]
Também este exame não vem sendo realizado e, na prática, ressalta Alvino de Sá, sequer é conhecido, “talvez até por conta das confusões conceituais” que o norteiam. O que vem sendo feito no estado de São Paulo e outros estados é uma avaliação do preso quando ele ingressa no presídio, por meio das chamadas “entrevistas de inclusão”, pela C.T.C. Os dados colhidos nessas entrevistas servem para o encaminhamento do agente “para esta ou aquela atividade, para este ou aquele programa” e oferecem subsídios para a definição de prioridades em termos de “projetos de reintegração social a serem elaborados e implantados”.[18]
Na Bahia, quando o preso ingressa no sistema carcerário, dá-se início a um precário exame de personalidade, procedendo-se a entrevistas com o interno e seus familiares, que buscam obter dados a respeito de eventual reincidência ou frustração de execução penal anterior. Recentemente, “a Secretaria de Justiça, Cidadania e Direitos Humanos vem implantando o Programa de Assistência Individualizada em algumas unidades, com a promessa de implementar a individualização da pena”.[19]
2.3. O PARECER DAS COMISSÕES TÉCNICAS DE CLASSIFICAÇÃO
Consoante regula o art. 7º da Lei de Execuções Penais, “a Comissão Técnica de Classificação, existente em cada estabelecimento, será presidida pelo diretor e composta, no mínimo, por dois chefes de serviço, um psiquiatra, um psicólogo e um assistente social, quando se tratar de condenado à pena privativa de liberdade”.
Sua função é analisar o condenado com maior profundidade: elabora o parecer para o início do cumprimento da pena e, antes da Lei n.10.792 de 2003, firmava o parecer para a progressão e regressão de regime.
Mirabete[20] certifica que a Comissão Técnica de Classificação possui a legítima função de elaborar o programa individualizador e de acompanhamento do preso. Isto depois de realizados os exames gerais e criminológicos no Centro de Observação. Na falta de Centro de Observação[21], permite a lei (art. 98 da LEP) que os exames sejam realizados no próprio presídio, pela Comissão Técnica de Classificação (C.T.C.).
Trata-se, portanto, a C.T.C., de um órgão dinâmico, que tão logo toma conhecimento da observação criminológica realizada, deve dar início aos procedimentos necessários ao exame de personalidade. De posse desses elementos, procurará definir o perfil do preso, devendo ser acompanhado e preparado ao convívio social.[22] Para tanto, ressalta Alvino Sá, “a C.T.C. criará estratégias de acompanhamento e avaliação, seja da eficácia dos programas, seja da resposta dos presos aos mesmos”.[23]
Com base nesse trabalho, cabia à C.T.C., antes da reforma de 2003, que alterou a redação dos art. 6º e 112, da LEP, propor à autoridade competente, as progressões e regressões de regimes, bem como as conversões e opinar sobre elas quando não tivesse feito a proposta. São os verdadeiros “pareceres das Comissões Técnicas de Classificação”. Esclarece com propriedade Alvino de Sá:
“O parecer da CTC, se tecnicamente bem feito, bem fundamentado, se de fato emanado de todo um engajamento da equipe dentro da dinâmica institucional, não é avaliação pontual, mas reflete toda uma história, uma história de vida prisional, em face das propostas, facilidades, oportunidades, limites e obstáculos da instituição, em contraponto com a história da vida pregressa do preso. Torna-se um instrumento de avaliação amplo e rico de elementos de convicção para a conclusão a que chega. Emanado que é das próprias interações institucionais e construído no dia-a-dia, não há que converter-se, em sua redação final, em nenhuma surpresa para ninguém, inclusive para o reeducando. A equipe deveria ter condições de, no final, explicá-lo, “traduzi-lo” para o recluso, justificá-lo em face de toda a resposta que o recluso vem dando em sua vida institucional. O parecer deveria converter-se em verdadeiro instrumento pedagógico.”[24]
Gulherme Nucci afirma com lucidez que o juiz da execução penal, “última voz na individualização executória da pena, precisa ser bem informado e dar a cada um o que é seu por direito e justiça”. Assegura que presos que se encontram ligados ao crime organizado, por exemplo, podem ser perfeitamente detectados pelos profissionais da Comissão Técnica de Classificação, embora jamais tenham cometido qualquer falta grave. Registra que embora esses presos possuam, muitas vezes, prontuário limpo, têm “atividade sub-reptícia no presídio, sem qualquer merecimento para a progressão”.[25]
Sem dúvida que as avaliações técnicas previstas na Lei de Execução Penal além de serem muito úteis à individualização da pena, estabelecida no texto constitucional, respeitam o condenado no seu lado humano. Ao ser-lhe propiciada a participação de programas de reintegração social, orquestrado por uma equipe interdisciplinar, a lei demonstra a preocupação do Estado em estimulá-lo[26] (não reformá-lo) a uma mudança interior. Mas é preciso que se dê real efetividade a esses programas com a seleção de bons técnicos e a instalação de infraestrutura adequada, que possam trazer luzes ao doloroso, porém ainda necessário sistema do cárcere.
3. A IMPORTÂNCIA DA INTERDISCIPLINARIEDADE NA EXECUÇÃO PENAL
Há de se reconhecer que a Lei de Execuções Penais foi elaborada por juristas de escol na área dos Direitos Humanos e que realmente acreditavam na capacidade de recuperação do encarcerado. Assim, dotaram o texto de mecanismos que propiciassem a individualização da sanção também na fase executiva.
O princípio da individualização da pena, consubstanciado no art 5º, inciso XLVI, da Constituição Federal, estabelece que a punição deve ocorrer na exata medida de culpabilidade do agente, sem a obediência de padrões. Assim, as penas cominadas na lei são aplicadas de forma específica na condenação, com base nas circunstâncias judiciais estabelecidas no art. 59, do Código Penal. Mas esta determinação legal não termina quando proferida a sentença. Passa-se então à terceira fase de individualização da pena.
Ao se executar uma sentença transitada em julgado, “há permanente individualização e mutação desse comando, alterando-se a quantidade (com a remissão e a unificação de penas) e a intensidade de punição aplicada (com a progressão e o regime condicional)”.[27]
Para o cumprimento do múnus, o juízo da execução conta com diversos instrumentos previstos na Lei de Execução Penal, tais como o exame de personalidade, o exame criminológico e o parecer da Comissão Técnica de Classificação (CTC), já conceituados.
Como se pôde verificar, são avaliações realizadas por diferentes profissionais das áreas da Psicologia, da Psiquiatria, da Assistência Social, além de agentes penitenciários. Daí a credibilidade e, portanto, a legitimidade dessas análises, fulcradas em circunscrições diversas do conhecimento humano.
Não se pode mais conceber, nesse momento histórico, que Poder Judiciário se valha apenas de operadores do Direito para a consecução da Justiça. As várias ciências afins só poderão enriquecer a prestação jurisdicional. E isto foi reconhecido na edição da LEP originariamente.
Por outro lado, a prescrição legislativa exige um aparato estrutural adequado para o efetivo desempenho desses técnicos, e é fato que nem sempre o Poder Público está consciente da necessidade de tal mister. Com isto, deixando de fornecer a indispensável logística, propicia a elaboração de laudos mecânicos, padronizados[28], que terminam por influenciar mudanças legislativas, como a dos arts. 6º e 112 (Lei n. 10.792/03), promovendo, nessa senda, o desmanche do verdadeiro conteúdo humanístico abrigado na LEP.
No diapasão de Guilherme Nucci, “se os pareceres e os exames eram padronizados em alguns casos, não significa que não mereçam aperfeiçoamento”. Acrescenta que “sua extinção em nada contribuirá para a riqueza do processo de individualização da pena ao longo da execução”.[29]
Daniele Penha pontifica que:
“Se todos esses procedimentos fossem realizados conforme prevê a LEP e neste caso, com as condições básicas de trabalho para os profissionais, suprimir essas avaliações geraria uma grande perda para a sociedade e também para o preso, dado que o crime é constituído também por uma esfera psíquica, tem um componente subjetivo que não é tratado a partir do encarceramento (o encarceramento só piora as tensões psíquicas e tende a cronificar o comportamento criminoso). A dimensão subjetiva do crime não pode ser acessada pela letra fria da lei e muitas vezes obedece a uma lógica que só pode ser compreendida quando há uma saída do senso comum.”
Nesse lanço, convém que se reconheça o significativo valor das equipes que tornam a individualização da pena uma realidade na execução através de suas avaliações técnicas.
Os profissionais da Psicologia, Psiquiatria e Assistência Social constituem importante contributo para a valorização humana do condenado, e são capazes de vislumbrar facticidades intrínsecas de sua personalidade e entorno social que não podem ser detectadas apenas por agentes penitenciários ou isoladamente pelos operadores do Direito.
Alvino de Sá[30] aponta uma importante alternativa para a tomada de decisões mais seguras sobre a concessão de benefícios, que seria uma “avaliação técnica interdisciplinar da resposta do preso à terapêutica penal”. Tal avaliação não se voltaria apenas para os aspectos criminógenos da personalidade do preso, mas procuraria “focalizar seu crescimento pessoal ao longo da execução penal, seu compromisso com os valores ético-morais, os valores do trabalho, da justiça, da família, entre outros”. Pontua que a “boa ou ótima conduta” do condenado teria um “significado mais complexo, tecnicamente interpretado e contextualizado”.
Essa avaliação interdisciplinar seria feita, no dizer do autor, pela C.T.C., integrada por profissionais da área da Psiquiatria, Psicologia, Assistência Social e de Segurança, constituindo-se, assim, no “verdadeiro parecer de C.T.C., previsto na LEP, até a reforma de 2003, em seus arts. 6º e 112, para o qual se exigiria, no entanto, que a C.T.C. exercesse de fato suas funções”, também previstas no art. 5º da mesma Lei.
Tendo em conta “a natureza e gravidade do crime cometido, os históricos criminal e prisional”, seria recomendável em determinados casos, ainda, afirma Alvino de Sá, a realização das duas avaliações para a concessão de benefícios legais, ou seja, o mencionado parecer da C.T.C. e o exame criminológico. O segundo, por se tratar de perícia, deveria ser feito por outra equipe que não acompanha o preso.[31]
Em face do quanto ilustrado, conclui-se ser indispensável, na fase de execução, que sejam procedidas avaliações interdisciplinares da conduta do preso. Primeiro, quando ingressa no sistema prisional, ele deve ser conhecido na sua integralidade, ou seja, como pessoa (exame de personalidade) e na sua íntima relação com o delito praticado (exame criminológico inicial). De posse desses dados, a equipe da C.T.C. promoverá programas específicos de reintegração social, devendo acompanhá-lo durante toda a execução, avaliando sempre as respostas a esses programas, sem prejuízo das perícias necessárias, em casos complexos, para a concessão de benefícios.[32]
Subtrair a equipe interdisciplinar da execução penal é fulminar a individualização da pena no seu nascedouro. As análises reguladas na LEP não significam em absoluto uma subsunção ao atavismo lombrosiano. Não se trata de tornar o preso um simples objeto de exame, mas enxergá-lo como o resultado de um plexo histórico, psicológico, familiar e sociológico, com os fins de promover as melhores condições para a sua harmônica reintegração social.
4. CONCLUSÃO
1. A Lei de Execuções Penais consagrou originariamente avaliações técnicas que se consubstanciam no exame criminológico, no exame de personalidade e nos pareceres da Comissão Técnica de Classificação, as quais se destinam a auxiliar o magistrado na individualização da pena privativa de liberdade, na execução penal.
2. Com a edição da Lei n.10.792 de 2003, os arts. 6º e 112 foram parcialmente revogados suprimindo-se o exame criminológico e o parecer da Comissão Técnica de Classificação quando da concessão de benefícios penais, passando-se a exigir, além de percentual mínimo de cumprimento de pena, tão somente o atestado de boa conduta carcerária, firmado pelo diretor do estabelecimento prisional.
3. Segmentos doutrinários vêm reacendendo a discussão, desde a mudança legislativa, sobre a legitimidade das avaliações previstas na LEP: alguns sustentam que essas análises técnicas contrariam as garantias estabelecidas na Lei Mater, e outros defendem que as mencionadas avaliações se justificam em face do princípio constitucional da individualização das penas, inscrito no art. 5º, inciso XLVI, da Carta Magna.
4. Concluiu-se que as avaliações em epígrafe integram o pensamento reformista, instalado em nível mundial na segunda metade do século passado e cristalizado, no Brasil, através da LEP e da nova redação da Parte Geral do Código Penal, com base no reconhecimento dos direitos humanos dos encarcerados. A inserção das avaliações previstas da LEP, realizadas por técnicos das áreas da Psicologia, Psiquiatria, Assistência Social e Segurança, que formam uma equipe interdisciplinar, demonstra a preocupação do legislador com a “pessoa” do preso na sua integralidade, ao considerar os seus diversos aspectos históricos, sociais e psicológicos, visando, sobretudo, a sua reinserção na sociedade.
5. O Estado tem o dever de investir em aparato estrutural que melhor atenda à qualidade das avaliações técnicas. Desta maneira, ao realizar a tarefa de análise e acompanhamento do condenado, durante o cumprimento da sanção privativa de liberdade, tais avaliações constituem-se em instrumentos úteis à individualização da pena na execução, respaldando de forma legítima a decisão judicial sobre a concessão de benefícios legais. Nessa intelecção, o preso é visualizado como sujeito de direitos, constatando-se o respeito às garantias constitucionais.
APÊNDICE A – ENTREVISTA
Edmundo Reis, Promotor de Justiça da Vara de Execuções Penais de Salvador
1.O exame criminológico de que trata o art. 34 do Código Penal vem sendo realizado em Salvador?
Não da forma preconizada na LEP. O que se faz é dar início ao exame de personalidade procedendo-se entrevistas com o interno e seus familiares e buscar obter dados a respeito de eventual reincidência ou frustração de execução penal anterior. Recentemente, a SJDH vem implantando o Programa de Assistência Individualizada (em anexo) em algumas unidades, com a promessa de implementar a individualização da pena.
2.Após a edição da Lei n. 10.792 de 2003, exames criminológicos vêm sendo determinados pelo juiz da execução penal? Qual a posição adotada pelo Ministério Público na hipótese de não determinação judicial do exame criminológico?
Os exames criminológicos, mesmo após a edição da Lei 10. 792/03, continuam a ser determinados pelo juízo da VEP/Salvador, na esteira do quanto têm sustentado os tribunais superiores. Cumpre esclarecer, contudo, que a partir de meados do ano findo, em face do colapso apresentado pelas CTC da Penitenciária Lemos Brito e da Colônia Lafaiette Coutinho, em razão do grande número de exames requisitados e da desestrutura de tais unidades para dar fiel cumprimento à tarefa, acrescido pela ferrenha oposição da Defensoria Pública à realização do exame, brandindo o argumento de que a lei já não o exigia como requisito para as progressões e livramentos, tais exames ficaram restritos, via de regra, aos casos de crimes hediondos, praticados com violência ou grave ameaça incomuns, aos crimes sexuais com indicativos de distúrbios psíquicos e em qualquer caso, quando as circunstâncias reclamem. É de se esclarecer, todavia, que os critérios escolhidos para eleição dos casos que deverão ser objeto de requisição de exame criminológico submetem-se à avaliação subjetiva dos operadores do direito envolvidos no processo, dando margem a divergências que culminam com a interposição de recursos de parte a parte.
3.Em caso positivo, em que local estão sendo realizados os exames criminológicos em Salvador? No Centro de Observação Penal? Onde ele se encontra situado?
O Centro de Observação Penal – COP, situado no Complexo Penitenciário da Mata Escura, ao lado da Penitenciária Feminina, desde o provimento CGJ – 14/2007, se destina, além da realização do exame criminológico, da custódia excepcional de presos provisórios, e hoje também de condenados. Só que o que deveria ser exceção, virou regra. E tem sido ele utilizado como unidade destinada a abrigar ex–policiais condenados ou processados, agentes penitenciários ou presos que estejam sendo ameaçados no sistema. Em resumo, o COP está com sua ínsita função desvirtuada pelo excesso de presos que se encontram nele custodiados, considerando que a população carcerária cresce vertiginosamente, inclusive o contingente de ex-policiais e proscritos pelas facções criminosas que disputam o poder dentro do sistema penitenciário.
4.O preso (não lembro o nome dele) que assassinou a médica, pouco antes do dia dos pais (caso amplamente divulgado pela mídia) teve sua progressão de regime com base apenas no atestado de boa conduta carcerária ou se submeteu a exame criminológico? Solicito informar, se possível, os dados do condenado.
O preso a que a Sra. se refere chamava-se GILVAN CLEUCIO DE ASSIS. Cumpria pena na Colônia Lafayette Coutinho, após alcançar a progressão de regime. Consta do processo que o exame criminológico precedeu a concessão do benefício. Como bem enfatizam os psicólogos que prestam esse tipo de serviço junto às unidades prisionais, é quase impossível se fazer um prognóstico de reincidência, sobretudo quando não se tem o exame criminológico de entrada e o acompanhamento diário para a concretização do exame de personalidade é feito de forma precária. Não disponho de maiores dados a respeito do aludido interno porquanto, segundo a divisão interna, da 7ª Promotoria de Justiça, à mim está afeta o acompanhamento do regime fechado. Ademais, o respectivo processo de execução já não se encontra na VEP, posto que arquivado em face do óbito do sentenciado.
5.São procedidos, nesta Capital, exames de personalidade, nos termos do art. 7º da LEP?
Sim, são realizados de forma precária com as entrevistas aos presos, seus familiares e busca de documentos que possam subsidiar o processo de individualização. Como se trata de exame, é mais restrito aos profissionais da área que integram os CTC das Unidades. (Para maiores esclarecimentos lhe indico a Dra Daniele Penha – psicóloga da PLB – pessoa que reputo da mais alta competência, com quem conto para dirimir minhas dúvidas e que se colocou a sua disposição).
6.De que vem se ocupando a Comissão Técnica de Classificação nos estabelecimentos prisionais de Salvador? Como é realizada a classificação dos presos? De que técnicos ela se encontra constituída nos presídios?
As CTC existentes em cada unidade, são constituídas pelos técnicos e integrantes da administração prisional especificados no art 7º da LEP. Nas unidades de Salvador não se tem realizado a classificação nos moldes em que foi legalmente preconizada. Procede-se, quando muito, as rotinas próprias do exame de personalidade, e assim mesmo, sem o aprofundamento devido. A falta de estrutura é muito grande.
APÊNDICE B – ENTREVISTA
Daniele Penha, Psicóloga da Vara de Execuções Penais de Salvador
1. Qual é a função do psicólogo enquanto integrante da Comissão Técnica de Classificação?
O psicólogo na CTC tem basicamente duas funções: proceder ao exame de personalidade e traçar juntamente com outros profissionais da comissão um plano de individualização da pena. O psicólogo dentro da CTC presta um serviço de assistência, comprometendo-se com o desenvolvimento do indivíduo no curso da execução penal.
2. O que faz o psicólogo no exame criminológico?
O psicólogo realiza uma perícia que avalia as características e a dinâmica pertencentes ao binômio crime-criminoso. Atualmente, o exame criminológico deve trabalhar com a análise do lugar do crime na vida de quem o pratica, se é um elemento constitutivo de identidade, se é uma atividade circunstancial, se a pessoa ocupa uma posição de liderança, se tem recursos para chegar nesta posição, os fatores que desencadearam a ação delitiva. Atualmente, não se trabalha com o conceito de periculosidade. Alguns profissionais, bem como alguns autores adotaram a idéia de potencial ofensivo como substituto à periculosidade. O exame criminológico passa necessariamente por um exame da personalidade do agente, mas é importante ressaltar que nesta investigação o objeto é restrito e definido: crime-criminoso. Vale ressaltar que uma PROBABILIDADE de reincidência é analisada, mas não se pode, em nenhuma hipótese, garantir que um determinado comportamento irá ocorrer.
3. E no exame de personalidade?
O exame da personalidade versa sobre os fatores que constituem o indivíduo para além da ação delitiva. Tem um viés clínico e se presta à construção de um plano de individualização da pena e no âmbito específico da Psicologia, é base para determinação de tratamentos e intervenções no âmbito da saúde mental.
4. Na sua opinião, se o trabalho realizado pelos profissionais da Psicologia fosse suprimido, haveria prejuízo ao preso e/ou à sociedade?
Se todos esses procedimentos fossem realizados conforme prevê a LEP e, neste caso, com as condições básicas de trabalho para os profissionais, suprimir essas avaliações geraria uma grande perda para a sociedade e também para o preso, dado que o crime é constituído também por uma esfera psíquica, tem um componente subjetivo que não é tratado a partir do encarceramento (o encarceramento só piora as tensões psíquicas e tende a cronificar o comportamento criminoso). A dimensão subjetiva do crime não pode ser acessada pela letra fria da lei e muitas vezes obedece a uma lógica que só pode ser compreendida quando há uma saída do senso comum. Contudo, o que ocorre é uma subversão do que diz a LEP e uma total precariedade de condições de trabalho para o psicólogo. Como realizar um exame que é extremamente complexo e importante se não existem instrumentos diversificados, local adequado, tempo e profissionais capacitados para realizá-lo?! Esse é o quadro da maioria dos estabelecimentos prisionais do País, então, se analisamos a pergunta dessa perspectiva, a perda não seria tão grande. Diferentemente de outros colegas, eu acredito de forma muito fundamentada, que a Psicologia pode e deve realizar avaliações criminológicas e participar de CTC´s, mas para isso é necessário instrumentalizar unidades e profissionais. Uma avaliação bem feita não vai, por si só, impedir que um crime seja cometido, mas fornecerá dados importantes acerca do sujeito e suas tendências comportamentais. Um exame de personalidade e um plano de individualização da pena não vão garantir que, durante a execução da pena, o interno passará por uma transformação de valores que o tornará “um homem honesto”, mas pode proporcionar a esta pessoa a visualização de opções que ele não julgava ter. Sendo assim, acredito que a discussão deve perpassar pela estratégia que tem que ser empreendida para que seja cumprido o que diz a LEP e ajustes para melhoria do trabalho sejam feitas.
Procuradora de Justiça do Ministério Público da Bahia. Mestra em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia. Especialista em Processo Civil e Penal pela Fundação Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia. Professora convidada do Curso de Especialização em Ciências Criminais da Universidade Federal da Bahia e do Programa de Capacitação e Educação em Direitos Humanos da Fundação Escola Superior do Ministério Público da Bahia. Ex-Professora de Direito Penal da Faculdade 2 de Julho
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